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Quando “dois olhos de fogo” brilharam na escuridão
O dia em que quatro missionários alemães se perderam nas matas virgens de Paranavaí
Em outubro de 1954, um artigo intitulado “Noch Ein Missionberich”, do frei alemão Alberto Foerst, da Ordem dos Carmelitas, foi publicado na edição número 10, ano 21, da revista alemã Karmel-Stimmen, de Bamberg, no estado da Baviera. Ao longo de quatro páginas, o missionário relata algumas experiências nas matas virgens de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde dividiu bons e maus momentos ao lado dos freis Henrique Wunderlich, Burcardo Lippert e Adalberto Deckert.
No texto, Foerst conta que viajar por uma região em processo de colonização era muito complicado. Os mapas eram imprecisos e os menos precavidos podiam perder-se na mata por dias. “Costumávamos nos orientar pela bússola, mas nem sempre era possível evitar o erro. A nossa sorte é que de vez em quando encontrávamos um caminho já trilhado, facilitando o nosso trajeto”, explica.
Porém, certo dia, os freis Alberto, Henrique, Burcardo e Adalberto, como eram mais conhecidos em Paranavaí, ficaram com o jipe atolado em meio a uma floresta densa, habitada somente por uma rica fauna silvestre. Embora viajassem com picaretas, pás e outras ferramentas que auxiliavam em situações difíceis, de nada adiantou. Horas depois, veio a escuridão e tiveram de passar a noite na mata. “Não podíamos seguir a pé porque era uma área muito isolada e distante”, justifica.
Mesmo com uma espingarda ao alcance das mãos, os missionários não conseguiam se distrair da “noite tenebrosa” e especialmente escura, acompanhada de um “silêncio sinistro” que os mantinha em alerta. “Apesar de tudo, como o dia foi estafante, chegou um momento em que cochilamos. Só acordamos quando ouvimos as cobras fazendo ruídos nas ramagens e madeiras apodrecidas da floresta”, conta frei Alberto no artigo “Noch Ein Missionberich”, de 1954.
Não demorou muito e um grupo de macacos começou a gritar bem alto. Daquela escuridão, “dois olhos de fogo” brilharam em direção aos quatro missionários. Foi quando perceberam que estavam cercados por uma onça. “Ficamos assustados e os nossos corações dispararam. O medo era tão grande que podiam tirar nossa pulsação pelo dedinho do pé. A onça nos farejou e circulou o jipe por algum tempo”, relata.
Com dificuldades de raciocínio, se entreolhavam, crentes de que a espingardinha de chumbo fino seria inofensiva contra o selvagem animal. “Ela só riria de nós. Então decidimos ficar quietos, sem se mexer ou respirar alto”, continua. Aguardando a iminência de uma tragédia, os missionários foram salvos por uma eventualidade. Um macaco, debandado de seu grupo, saltou sobre uma imensa árvore que estava acima do jipe, chamando a atenção da onça.
“Ela saiu no encalço dele e respiramos aliviados. Se bem que não dormimos mais naquela noite e ficamos muito felizes quando amanheceu. É uma pena que não haja fotos do episódio”, lamenta. Pela manhã, os quatro aventureiros procuraram as chamadas “árvores elétricas” que ofereciam energia para equipamentos elétricos. A voltagem mais alta ficava nas copas e a mais baixa nas raízes. “Para conseguir uma boa voltagem era preciso pendurar nos galhos. A força da energia estava subordinada ao atrito provocado pelo vento no meio das folhas”, destaca Alberto Foerst.
Depois de usarem os barbeadores elétricos, os missionários se perguntaram o que fariam para sair daquela região desconhecida, pois tinham o compromisso de abençoar uma nova escola. Então Henrique Wunderlich pegou a sua gaita de boca e começou a tocar. “Logo apareceram índios [de etnia caiuá] de todos os lados, atraídos por aquela mágica melodia. O frei Henrique ainda tocou mais algumas músicas e pedimos que os nativos nos ajudassem. Deram a direção certa e conseguimos chegar ao nosso destino”, acrescenta.
No mesmo dia, foram convidados para conhecer uma interessante granja de galinhas. Em torno do aviário, havia uma grande e bela roça de girassóis que deixou os alemães admirados. “Nos falaram que serviam de alimento para as galinhas botarem ovos com mais gorduras saudáveis. Explicaram que os ovos saíam com uma camada extra que dispensava o uso de óleo na hora de prepará-los”, enfatiza.
Um índio por um velho chapéu de aba larga
Garoto caiuá foi comprado para ajudar a escrever um dicionário de guarani
Em 1951, um frade capuchinho foi enviado a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a missão de evangelizar os poucos índios que ainda viviam nas matas virgens da colônia. “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios, os aborígenes do lugar”, escreveu o frei alemão Ulrico Goevert em publicação da revista alemã Karmel-Stimmen, sobre as experiências em Paranavaí.
Embora seja verdade, o missionário capuchinho conseguiu encontrar nativos de etnia caiuá vivendo na região. Como era impossível estabelecer a comunicação falada, o homem apelou para gestos. No começo foi difícil. Foram necessários dias para conquistar a liberdade de se aproximar dos índios.
Mesmo sem entender quase nada sobre os caiuás do Noroeste Paranaense, o frade ficou intrigado com os costumes e a língua guarani. Então um dia foi até um dos chefes da tribo, mostrou o próprio chapéu de aba larga e apontou para um jovem índio, sugerindo uma troca. Depois de avaliar bem o item, o líder caiuá acabou aceitando. “Ele literalmente o comprou com um velho chapéu”, registrou Goevert no relato escrito em um diário em 1957 e publicado no ano seguinte na Alemanha.
O garoto foi trazido até a área urbana de Paranavaí, onde serviu de referência para o frade escrever um dicionário de guarani. Todas as perguntas eram feitas por meio de sinais. Um trabalho moroso e não muito produtivo. Mas, obstinado, o capuchinho só retornou à aldeia depois de um bom tempo estudando a língua. Ainda hoje, não há informações sobre o destino do jovem subalterno trocado por um chapéu surrado. “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado. Não tinha pra onde voltar”, comentou o pioneiro José Francisco de Oliveira.
Quem também viveu por muitos anos em Paranavaí e teve bastante contato com os caiuás, descendentes dos índios que sobreviveram às investidas dos bandeirantes paulistas e portugueses entre as décadas de 1620 e 1640, foi o frei alemão Alberto Foerst que tinha grande experiência como missionário.
No artigo “Noch Ein Missionsberich”, da edição número 10 da revista Karmel-Stimmen, de outubro de 1954, Foerst diz que para se aproximar dos caiuás, causando boa impressão, era preciso primeiro presenteá-los. “Dessa forma, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo, tornando nosso trabalho mais fácil”, revelou. À época, um dos presentes preferidos era a caneta-tinteiro, pois a consideravam um lindo ornamento para colares.
Ainda assim, segundo Oliveira, os nativos costumavam evitar ao máximo o contato com outros povos. “Eles eram até pacíficos e bem tolerantes. Quando viram o chamado progresso chegando, em vez de nos atacar, eles partiram para uma grande área de mata fechada lá pelas bandas do Rio Ivaí, pra lá de Paraíso do Norte”, conta o pioneiro.
No pequeno livro “História e Memória de Paranavaí”, um lançamento póstumo de 1992, Ulrico Goevert lembrou dos episódios em que, não se sabe se por represália ou escassez de alimentos, os caiuás invadiram muitas roças da região para furtar milho e mandioca. “Era muito diferente daquela enaltecida raça com a qual o Karl May [um dos mais populares escritores alemães – criador de personagens heroicos como Mão de Ferro e Mão de Fogo] nos entusiasmou na adolescência”, queixou-se.
Em uma análise hermética e ocidentalizada, Goevert definiu os caiuás como figuras primitivas alheias à própria cultura. Ficou chocado nas diversas vezes em que os testemunhou comendo lesmas. “Não colocam mais em prática os conceitos morais e praticam a justiça por conta própria. E que mania eles têm de dormir a céu aberto. Não é de se admirar que tenham saúde tão precária”, reclamou em referência aos muitos que adoeceram e até morreram nos anos 1950 em decorrência da tuberculose. No entanto, é válido ressaltar que a doença chegou à região com migrantes e imigrantes.
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Jesuítas salvaram mais de 12 mil índios caiuás
Antonio Montoya comandou fuga que garantiu a sobrevivência dos índios do noroeste paranaense
Das 13 missões espanholas fundadas pelos jesuítas na Província de Guaíra, somente as de Nossa Senhora de Loreto e de Santo Inácio Mini, nas regiões Noroeste e Oeste do Paraná, resistiram por muito tempo às investidas dos bandeirantes. Em episódio heroico, Antonio Montoya e outros missionários prepararam a fuga de mais de 12 mil índios caiuás.
Em 1628, os bandeirantes Antônio Raposo Tavares e Manuel Preto já tinham capturado milhares de índios nas imediações do Rio Tibagi, na bacia do Rio Paraná, no atual Norte do estado. No entanto, o que eles realmente queriam era um pretexto para invadir as reduções jesuíticas espanholas.
Naquele mesmo ano, um dos prisioneiros, o cacique caiuá Tataurana, capturado pelos bandeirantes Frederico de Melo, João Pedroso de Barros, Antônio Bicudo e Simão Álvares, conseguiu fugir para a Missão de Santo Antônio. Quando soube do acontecido, Raposo Tavares foi até a redução e exigiu que os missionários entregassem o índio.
Os jesuítas se recusaram, e assim os bandeirantes portugueses e paulistas decidiram invadir e destruir a redução, de acordo com o historiador Romário Martins. À época, Raposo Tavares e Manuel Preto contavam com uma guarnição de mais de três mil homens fortemente armados, o suficiente para promover a morte de mais de 15 mil índios caiuás no atual Noroeste do Paraná, antigo território espanhol.
Os indígenas capturados eram transformados em escravos. Muitos foram enviados a mando de Manuel Preto para o Sudeste e Nordeste do Brasil. A situação se tornou tão preocupante que em 1629 os missionários receberam ordens de Assunção, no Paraguai, e Madri, na Espanha, para abandonarem as reduções na Republica del Guayrá.
Os jesuítas italianos José Cataldino, Simón Mascetta e o peruano Antonio Ruiz de Montoya, que eram os responsáveis pela Missão de Nossa Senhora de Loreto e Santo Inácio Mini (atual Noroeste e Oeste do Paraná), acharam melhor acatar a ordem, já que dos mais de cem mil índios catequizados pouco mais de 12 mil escaparam do genocídio bandeirante.
Fuga contou com mais de 700 embarcações
À época, 11 das 13 missões jesuíticas fundadas pelos três padres foram destruídas pelos bandeirantes que invadiram a Província de Guaíra. Em suas cartas, Antonio Montoya escreveu que além de evangelizarem os índios, os padres explicavam sobre a importância da vida política, roupas, monogamia e tecnologia. Segundo Montoya, da Missão de Loreto prepararam uma fuga que contou com o empenho de sete padres, entre os quais Mascetta e Dias Tanhos.
Os índios de Loreto e Santo Inácio construíram mais de 700 embarcações, principalmente jangadas, que foram dispostas às margens do Rio Paranapanema em área que inclui os municípios de Jardim Olinda e Terra Rica. De lá, partiram antes da chegada dos bandeirantes.
Desceram do Paranapanema até o Rio Paraná, passando inclusive pelas Sete Quedas, onde perderam a maior parte das jangadas. Mesmo vítimas de inanição e de inúmeras doenças, os caiuás e os padres resistiram e chegaram a redução de Natividad del Acaray y Santa María del Iguazú, na Província de Alto Paraná, no Paraguai, onde hoje se situa Foz do Iguaçu, no Oeste do Paraná, e Ciudad Del Este, capital do Departamento de Alto Paraná.
Em março de 1632, chegaram às margens do Rio Yabebyry, atual território argentino, onde recriaram as missões de Loreto e Santo Inácio. O padre Montoya foi além e criou novas reduções desde o Rio Paraná até o Rio Uruguai, onde se situa atualmente o Rio Grande do Sul. Pouco tempo depois, o padre recebeu um convite para viajar a Madri, na Espanha, e testemunhar a favor dos índios caiuás em um tribunal que contou com a presença do Rei da Espanha, Filipe IV.
As historiadoras paraguaias María Angélica Amable e Karina Dohmann relatam que por meio de decreto, o rei condenou os ataques dos bandeirantes e ordenou a libertação de todos os cativos. “Antes de morrer em 11 de abril de 1652, Montoya estava na Espanha e disse que não queria que seus ossos fossem enterrados entre os espanhóis, mas sim junto de seus filhos, os índios caiuás”, revelam María Angélica e Karina. O desejo de Montoya foi atendido e seus restos mortais depositados em um túmulo na segunda Missão de Nossa Senhora de Loreto, na Argentina.
Curiosidades
A segunda Missão de Nossa Senhora de Loreto, na Argentina, foi pioneira na arte de produzir e preparar a erva-mate.
Suspeita-se que lá tenha sido criada a primeira prensa literária da América Latina, de onde foram impressos um sem número de livros.
A segunda Redução de Loreto recebeu da Unesco o título de Patrimônio Mundial em 1984.
Frase do historiador Romário Martins
“Antonio Montoya, Simón Mascetta e Dias Tanhos eram figuras formidáveis que a história do cristianismo projetou, como um clarão, nos sertões meridionais do Novo Mundo, que o destino escolhera para salvar 12 mil criaturas perseguidas por toda a espécie de perigos, através da imensidão das distâncias, da inclemência dos inimigos, das precárias condições de êxodo.”