David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Um índio por um velho chapéu de aba larga

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Garoto caiuá foi comprado para ajudar a escrever um dicionário de guarani

Ulrico Goevert: "Ele literalmente o comprou com um velho chapéu” (Acervo: Ordem do Carmo)

Ulrico Goevert: “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios” (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1951, um frade capuchinho foi enviado a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a missão de evangelizar os poucos índios que ainda viviam nas matas virgens da colônia. “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios, os aborígenes do lugar”, escreveu o frei alemão Ulrico Goevert em publicação da revista alemã Karmel-Stimmen, sobre as experiências em Paranavaí.

Embora seja verdade, o missionário capuchinho conseguiu encontrar nativos de etnia caiuá vivendo na região. Como era impossível estabelecer a comunicação falada, o homem apelou para gestos. No começo foi difícil. Foram necessários dias para conquistar a liberdade de se aproximar dos índios.

Mesmo sem entender quase nada sobre os caiuás do Noroeste Paranaense, o frade ficou intrigado com os costumes e a língua guarani. Então um dia foi até um dos chefes da tribo, mostrou o próprio chapéu de aba larga e apontou para um jovem índio, sugerindo uma troca. Depois de avaliar bem o item, o líder caiuá acabou aceitando. “Ele literalmente o comprou com um velho chapéu”, registrou Goevert no relato escrito em um diário em 1957 e publicado no ano seguinte na Alemanha.

José de Oliveira: “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado” (Foto: David Arioch)

José de Oliveira: “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado” (Foto: David Arioch)

O garoto foi trazido até a área urbana de Paranavaí, onde serviu de referência para o frade escrever um dicionário de guarani. Todas as perguntas eram feitas por meio de sinais. Um trabalho moroso e não muito produtivo. Mas, obstinado, o capuchinho só retornou à aldeia depois de um bom tempo estudando a língua. Ainda hoje, não há informações sobre o destino do jovem subalterno trocado por um chapéu surrado. “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado. Não tinha pra onde voltar”, comentou o pioneiro José Francisco de Oliveira.

Quem também viveu por muitos anos em Paranavaí e teve bastante contato com os caiuás, descendentes dos índios que sobreviveram às investidas dos bandeirantes paulistas e portugueses entre as décadas de 1620 e 1640, foi o frei alemão Alberto Foerst que tinha grande experiência como missionário.

Alberto Foerst: "Com presentes, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo" (Acervo: Ordem do Carmo)

Alberto Foerst: “Com presentes, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo” (Acervo: Ordem do Carmo)

No artigo “Noch Ein Missionsberich”, da edição número 10 da revista Karmel-Stimmen, de outubro de 1954, Foerst diz que para se aproximar dos caiuás, causando boa impressão, era preciso primeiro presenteá-los. “Dessa forma, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo, tornando nosso trabalho mais fácil”, revelou. À época, um dos presentes preferidos era a caneta-tinteiro, pois a consideravam um lindo ornamento para colares.

Ainda assim, segundo Oliveira, os nativos costumavam evitar ao máximo o contato com outros povos. “Eles eram até pacíficos e bem tolerantes. Quando viram o chamado progresso chegando, em vez de nos atacar, eles partiram para uma grande área de mata fechada lá pelas bandas do Rio Ivaí, pra lá de Paraíso do Norte”, conta o pioneiro.

No pequeno livro “História e Memória de Paranavaí”, um lançamento póstumo de 1992, Ulrico Goevert lembrou dos episódios em que, não se sabe se por represália ou escassez de alimentos, os caiuás invadiram muitas roças da região para furtar milho e mandioca. “Era muito diferente daquela enaltecida raça com a qual o Karl May [um dos mais populares escritores alemães – criador de personagens heroicos como Mão de Ferro e Mão de Fogo] nos entusiasmou na adolescência”, queixou-se.

Em uma análise hermética e ocidentalizada, Goevert definiu os caiuás como figuras primitivas alheias à própria cultura. Ficou chocado nas diversas vezes em que os testemunhou comendo lesmas. “Não colocam mais em prática os conceitos morais e praticam a justiça por conta própria. E que mania eles têm de dormir a céu aberto. Não é de se admirar que tenham saúde tão precária”, reclamou em referência aos muitos que adoeceram e até morreram nos anos 1950 em decorrência da tuberculose. No entanto, é válido ressaltar que a doença chegou à região com migrantes e imigrantes.

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Sobre matanças e os temidos quebra milho

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Experiências e impressões sobre criminosos que viveram em Paranavaí nos tempos de colonização

Frei Ulrico: "Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos" (Acervo: Ordem do Carmo)

Frei Ulrico: “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos” (Acervo: Ordem do Carmo)

Embora tenha falecido há muitos anos, o frei alemão Ulrico Goevert, um dos pioneiros religiosos de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, tinha o hábito de registrar muito do que via e ouvia na antiga Fazenda Brasileira. O primeiro diário de Goevert sobre os fatos aqui vividos data de 1951. Sete anos mais tarde, a convite do padre provincial Adalbert Deckert, de Bamberg, no estado alemão da Baviera, o frei começou a publicar suas experiências em Paranavaí na revista germânica Karmel-Stimmen, onde ganhou uma coluna periódica.

Entre os relatos que mais chamaram a atenção dos alemães está um sobre as matanças promovidas pelos quebra milho, como eram chamados os jagunços e grileiros violentos que viviam na região de Paranavaí entre os anos 1940 e 1950. “Muitos que aqui chegavam de outros estados e países buscavam construir uma nova vida. Tudo isso resultou em uma grande mistura internacional”, conta Ulrico Goevert, acrescentando que no meio de tanta gente havia famílias sonhadoras, oportunistas gananciosos e aventureiros preocupados apenas com o presente.

O frei alemão admitiu anos mais tarde que entre 1951 e 1958 foi procurado por quebra milho das mais diversas origens. “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos. Me procuravam pedindo para ajudar a tirar as mortes da consciência”, lembra. O contato frequente com a comunidade fez Goevert se aprofundar um pouco mais sobre o passado duvidoso de uma significativa parcela da população local. “Eu era procurado até por aqueles que não queriam mais do que continuar a sua velha safadeza neste novo lugar”, declara. Boa parte pedia informações ao padre sobre como providenciar novos documentos para dar início a uma nova vida, se isentando dos crimes do passado.

Em Paranavaí, no final dos anos 1940 até a metade da década de 1950, muita gente conseguiu mudar de nome, enganando a polícia e os perseguidores que percorriam milhares de quilômetros para acertar as contas. “Aqueles que demonstravam verdadeira boa vontade, eu consegui ajudar, possivelmente os livrando da morte. O que mais podia fazer se não contribuir para torná-los membros úteis de uma comunidade?”, questiona o frei alemão na coluna mais lida da revista Karmel-Stimmen em 1958.

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse fatos sobre Paranavaí na revista Karmmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse sobre Paranavaí na revista Karmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Perdulários, os quebra milho eram temidos e chamavam muita atenção em Paranavaí pelos gastos astronômicos com bebidas, comidas e orgias em locais como a Boate da Cigana. No entanto, algumas festas eram particulares e aconteciam em locais afastados da cidade. “Eles apenas ordenavam que buscassem as moças, escolhidas a dedo, que iriam servir para o lazer”, confidencia o pioneiro cearense João Mariano.

Tudo era custeado com pequenas fortunas conquistadas em um curto período de tempo explorando mão de obra barata na derrubada de mata e lavouras ou cobrando dívidas e desapropriando terras ilegalmente. “Eram promotores de um estilo de vida totalmente imoral e leviano. Não tinham interesse em mudar. Viviam em função da sequência roubo, homicídio e morte”, registra o alemão.

Apesar de não haver dados sobre a quantidade de quebra milho nos tempos da colonização, é possível inferir que era o suficiente para amedrontar a população. “Não se passava um mês sem eu ter de dar a unção a alguma vítima de assassinato, nem sempre o morto fazia parte desta leviana corja. Tivemos muitos homicídios por causa de direitos de posse”, frisa Ulrico Goevert.

Os crimes eram quase inevitáveis quando dois ou mais proprietários de um mesmo pedaço de terra se encontravam. Um apresentava ao outro o documento que dizia ser legal e reivindicava o direito da área. “Um não queria ceder e muito menos o outro. A discussão só acabava quando puxavam o revólver”, afirma o frei que presenciou algumas dessas situações. Com o tempo, o alemão começou a tentar entender como várias pessoas tinham diferentes escrituras de uma mesma terra. Depois de muito pesquisar, Goevert descobriu que a diferença entre um documento e outro ultrapassava décadas.

A verdade é que em outros tempos alguns oportunistas compraram terras em áreas não colonizadas de Paranavaí e desistiram de construir, levando em conta o investimento com derrubada de mata e povoamento. Então esperavam anos, até alguém iniciar a colonização da região. O tempo passava e o governo autorizava uma nova venda de uma área comercializada muito tempo antes. “Quando tudo ficava aberto, limpo e habitável aparecia gente até com documentos do Século XIX e a confusão se armava”, detalha o líder religioso.

Não é à toa que até hoje há pioneiros em Paranavaí que culpam o governo federal e o governo paranaense por diversos assassinatos provocados por conflitos de posse e comissão de terras. “A situação esquentava e ninguém fazia nada. Se o poder público entrasse no meio para tentar amenizar a situação, quem sabe até disponibilizando uma nova terra à parte lesada, teríamos evitado tantas mortes. Com o sangue quente, e ninguém para ajudar, o peão perdia o controle e matava”, pondera Mariano.

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

As colonizadoras também ignoravam as negociações anteriores e simplesmente continuavam a atrair mais colonos com a venda de lotes pagos em pequenas parcelas. “Também perdi as contas de quantas mulheres apareceram reclamando a paternidade do filho e mostrando a foto do pai que já tinha outra família em Paranavaí”, desabafa o frei.

Normalmente o homem fugia de madrugada, abandonando as duas mulheres. A vontade de escapar da responsabilidade era tão grande que o sujeito atravessava a densa mata fechada habitada por animais silvestres e ainda cortava o Rio Paraná com algum bote. “É quase certo que no Mato Grosso o fujão começava tudo de novo”, lamenta frei Ulrico.

O perfil e a conduta dos quebra milho

De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, os quebra milho eram homens das mais diversas origens que podiam andar em grupos, duplas ou sozinhos. Chegavam a Paranavaí com um plano de ação definido. Eram contratados para comandar as mais diversas atividades, desde grupos de peões atuando na derrubada de mata até cobranças de dívidas e comissões de terras. “Um quebra milho não sentia remorso em tirar uma vida, mas também não fazia isso de graça ou por qualquer coisa. Eram como mercenários, mas com código de conduta”, explica Mariano.

A conduta era ditada pelo dinheiro, não por vingança ou punição. Quanto maior a recompensa, menor a preocupação com a exposição. Se o retorno financeiro fosse grande, não se importavam em invadir um bar cheio de gente para assassinar três ou quatro pessoas. “Ele ia, fazia o serviço e partia, sem olhar para ninguém a sua volta, a não ser as vítimas. Só que se fosse incumbido de cobrar alguma coisa sem matar ninguém, o sujeito também atendia a exigência”, esclarece o pioneiro que ao longo da vida conheceu muitos quebra milho, inclusive teve amizade com alguns.

Paranavaí nos tempos dos quebradores de milho (Acervo: Casa da Cultura)

Paranavaí nos tempos dos quebra milho (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Ao contrário do senso comum, dificilmente reagiam quando eram provocados por alguém sem envolvimento com seus negócios. Isso porque não traria retorno financeiro – a lógica da função. Metódicos, os quebra milho da Fazenda Brasileira dificilmente agiam por impulso. Além disso, não atuavam apenas em Paranavaí, mas em todo o Paraná, chegando a prestar serviços em São Paulo, Mato Grosso (incluindo o Mato Grosso do Sul), Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente a serviço de grandes empresários e latifundiários.

“Sei de alguns que encheram caminhões de cadáveres lá pelas bandas de Querência do Norte numa desapropriação ilegal e forçada. Tudo foi feito a mando de uma família tradicional da região de Maringá”, segreda Mariano que viu quando o caminhão estacionou em frente ao antigo Hospital João Cândido Ferreira (Hospital do Estado), onde é hoje a Praça da Xícara.

O veículo encostou e de longe os curiosos sentiram um forte odor de sangue que invadiu o centro da cidade. João Mariano diz que nunca tinha visto tanta gente morta em um mesmo local. “Havia dezenas. A maioria foi levada direto para um necrotério improvisado. Tinha tanto sangue que escorria até pelos pneus”, assegura.

Os quebradores eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Os quebra milho eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Por medo, nos anos 1940 e 1950, quando se falava em quebra milho, a maior parte da população não se manifestava sobre o assunto. Habilidosos com armas de fogo e armas brancas, inúmeros foram identificados como ex-jagunços, ex-guerrilheiros, criminosos condenados ou procurados, antigos membros de brigadas e de grupos paramilitares, além de desertores do Exército Brasileiro.

À época, como Paranavaí era apenas uma colônia, podiam ser facilmente identificados, mas ninguém queria se meter em confusão. Personagens controversos, os quebra milho fazem parte da história de Paranavaí, onde já viviam no princípio da colonização da Fazenda Brasileira na década de 1930. “Policiavam” e impediam que os migrantes atuando nas lavouras de café abandonassem o trabalho. Quem tentasse era abatido em barrancos às margens de algum rio ou durante a travessia. Antes do descarte de cadáveres, os criminosos os abriam, os enchiam com pedras, costuravam e os lançavam na água para afundar rapidamente, impossibilitando a localização.

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“O pessoal ficava até quatro meses sem ir a Paranavaí”

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Pioneira Francisca Schiroff lembra as dificuldades dos anos 1950

Em 1953, Graciosa já contava com mais de 200 famílias (Foto: Reprodução)

O distrito de Graciosa já contava com mais de 200 famílias em 1953 (Acervo: Ordem do Carmo)

Hoje em dia, quem visita Graciosa, no Noroeste do Paraná, nem imagina que a distância percorrida em 15 minutos até chegar a Paranavaí era um obstáculo nos anos 1950. A maior parte da população da colônia, então de predominância germânica, vinha a Paranavaí apenas de vez em quando. “O trajeto era difícil, tanto que até caminhão atolava. E mesmo sem imprevistos, a viagem poderia durar horas, então o pessoal ficava até quatro meses sem ir a Paranavaí”, relata a pioneira e professora Francisca Schiroff que nasceu em São José, Santa Catarina, distrito que pertencia a Braço do Norte, no Sul do estado, e se mudou para Paranavaí em 1951. Quando alguém adoecia e precisava ir ao médico na cidade, o costume era recorrer a um pioneiro que possuía um caminhão Ford 1950.

Como a estrada era estreita e havia muita mata virgem, os moradores tinham de seguir todas as recomendações do motorista do caminhão que transportava madeira até uma serraria de Paranavaí. Os cipós iam de uma árvore até a outra, chegando a formar uma cortina no meio do caminho. “O veículo rodava devagar e o motorista dizia: ‘cuidado com a cabeça, olha o cipó’ e todo mundo desviava quase que em sincronia”, conta Francisca rindo. Um dia a professora e alguns familiares decidiram ir até a cidade pegando carona em cima de um caminhão usado no transporte de algodão.

No trajeto o veículo quebrou e tiveram de seguir viagem a pé. Perto da ponte onde hoje está instalada a Avícola Felipe se depararam com uma enorme queimada. “A fumaça atravessava toda a estrada. Tivemos que dar uma grande volta para evitar de se asfixiar com a fumaça. Foi um dia muito difícil”, relata. Muitos dos migrantes saíam do distrito apenas para comprar roupas no armazém de Severino Colombelli e Casa Faber, situada onde é hoje a agência do Banco do Brasil. Dona Francisca, como é mais conhecida, sempre teve espírito de aventureira. Não ficava mais de um mês sem vir a Paranavaí.

Casa Faber, um dos destinos da população do distrito em Paranavaí (Foto: Toshikazu Takahashi)

Casa Faber, um dos destinos da população de Graciosa em Paranavaí (Foto: Toshikazu Takahashi)

Naquele tempo, um dos produtos preferidos da população da cidade era a broa de milho da pioneira. “Vendia muito, assim como o pão de fubá, porque não existia padaria”, lembra. A mandioca, até hoje uma das culturas mais tradicionais de Graciosa, era usada na produção de farinha, e a oferta dificilmente acompanhava a demanda. Como não havia feira em Paranavaí nos anos 1950, os produtores faziam as entregas de carroça ou montavam pontos provisórios nas principais ruas da região central.

Os moradores da cidade sabiam quais eram os dias e os horários da chegada dos vendedores. Um fato curioso é que nas décadas de 1950 e 1960, ao contrário da atualidade, os compradores preferiam o porco caipira gordo em vez do suíno fino – branco ou de raça. “Atraía até gente de São Paulo. Isso acontecia porque não tinha óleo de cozinha, então o animal gordo rendia bastante toucinho e banha para fritura”, justifica Francisca. O milho cultivado no distrito também chamava atenção de compradores de longe. Muitas cargas do produto foram enviadas para Santa Catarina. Nos anos 1950, Graciosa tinha duas serrarias. Uma possuía motor elétrico e a outra uma turbina a vapor. Eram modestas, mas atendiam as necessidades da população.

Em 1952, Francisca Schiroff lecionava para mais de 150 alunos do primeiro e segundo ano do ensino fundamental. Um total que aumentou no ano seguinte, quando o distrito somou mais de 200 famílias morando em sítios e chácaras. “Algumas tinham uma área de até 50 alqueires, mas a maioria residia em propriedades de 7 a 10 alqueires”, explica a pioneira. Antes de Paranavaí se tornar município, a população de Graciosa sofreu bastante porque as reivindicações tinham de ser feitas na distante Mandaguari. Era preciso dispor de vários dias para realizar a viagem.

À época, Paranavaí tinha como representante o vereador Antonio Lacerda Braga, mais tarde homenageado com o nome de um importante ginásio de esportes. A união da comunidade de Graciosa sempre foi notória e rendeu bons resultados. Exemplos são as conquistas de um campo de futebol, associação esportiva e um clube. “No passado, chegamos a ter até três vereadores na Câmara de Paranavaí. Os moradores eram bem ativos na política”, destaca dona Francisca.

Nos tempos da “domingueira”

Nos anos 1950, Graciosa ainda não realizava os tradicionais bailes que nas décadas seguintes atrairiam moradores de toda a região de Paranavaí. Por isso os mais jovens encontraram uma alternativa de lazer. Aos domingos, se reuniam na casa de algum morador, onde preparavam uma refeição, seguida por dança e atividades esportivas. “Esses encontros de domingo ficaram conhecidos como ‘domingueira’, a nossa alegria de final de semana”, revela a pioneira.

Frei Burcardo Lippert e frei Bonaventura Einberger na construção do seminário em 1954 (Acervo: Ordem do Carmo)

Frei Burcardo Lippert e frei Bonaventura Einberger na construção do seminário em 1954 (Acervo: Ordem do Carmo)

A “domingueira” era sempre organizada bem cedo porque os pais não deixavam as filhas saírem de casa à noite, inclusive os namoros costumavam ser supervisionados pelas famílias das moças. “Também não se namorava por tanto tempo como hoje. Os jovens casavam bem rápido. Em média, com um ano de relacionamento”, garante Francisca Schiroff. Para o rapaz conquistar o direito de segurar a mão de uma jovem era imprescindível namorar por alguns meses. Além disso, as famílias do casal precisavam se conhecer e estabelecer uma relação de respeito.

Um seminário que se tornou referência

Além de professora, dona Francisca também era muito ativa nos trabalhos da comunidade católica de Paranavaí, tanto que por muitos anos deu aulas de catequese para crianças. “Foi por causa desse meu envolvimento com a igreja que recepcionei praticamente todos os padres que chegaram da Alemanha a partir de 1953”, enfatiza. Em 1954, a pioneira contribuiu na construção do Seminário Imaculada Conceição, inaugurado com uma turma inicial de 50 jovens. Francisca se recorda com alegria dos muitos seminaristas que se tornaram excelentes profissionais e importantes lideranças religiosas.

Segundo a pioneira, o seminário representou um grande avanço na educação de Graciosa, pois muitas crianças e adolescentes não tinham condições de viajar para estudar. “A maior parte das despesas era bancada pela Ordem dos Carmelitas da Alemanha. Desde a comida até a administração do local e a remuneração dos professores”, confidencia, sem deixar de citar que o seminário também recebeu uma boa ajuda dos moradores do distrito e de Paranavaí.

Com o tempo, o Seminário Imaculada Conceição, conhecido pelo rigor educacional, começou a atrair jovens de todas as partes do Brasil. Além de oferecer acompanhamento pedagógico e exigir dedicação cotidiana dos alunos, o local já funcionava sob regime de internato. “Devemos muito aos padres alemães que foram responsáveis pelo seminário. Eles transformaram Graciosa em uma referência até na Alemanha, de tão positivo que foi esse trabalho”, avalia.

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Terror sobre a ponte do Rio Itapicuru

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Antonio de Menezes relata experiência como sobrevivente de uma tragédia ferroviária em 1951

Ao fundo, a ponte do Rio Itapicuru (Foto: Reprodução)

No ano em que se mudou para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a família, o aposentado e artista plástico Antonio de Menezes Barbosa teve uma das experiências mais marcantes de sua vida. Com apenas seis anos, participou de um acidente ferroviário sobre a ponte do Rio Itapicuru, na Bahia.

Em março de 1951, Barbosa fez parte de um grupo de 12 pessoas, entre familiares e amigos, que aguardaram uma semana para ingressar em um trem na Estação Ferroviária de Laranjeiras, a 19 quilômetros de Aracaju, em Sergipe. “Me recordo que o trem vinha de Aracaju e chegou às 6h. Naquele dia, estávamos eu, minha mãe, meu pai, irmãos, um tio e dois amigos, o ‘Seu Quelemente’ e a mulher dele, Maria, inclusive os dois já faleceram”, relata Menezes.

Enquanto o veículo ferroviário seguia o trajeto normal, o curioso Antonio se aproximou da janela para observar a paisagem. “Eu estava do lado direito e via os outros vagões conforme a curva ‘puxava’ para a direita. Paramos na estação de uma cidade que não me recordo qual e algumas pessoas desceram e outras subiram”, conta. Quando se aproximavam de uma ponte sobre o Rio Itapicuru, já na Bahia, os passageiros ouviram o trem apitando em velocidade moderada. De repente, o “plá plá plá” emitido pelas rodas sobre as emendas dos trilhos foi ofuscado por um grande estouro semelhante ao som de uma bomba.

“Era o barulho dos primeiros vagões caindo sobre os outros. Tenho até hoje isso registrado na memória. Aqueles que não caíram foram para um lado e para o outro”, afirma Antonio de Menezes. O acidente foi provocado pelo desmoronamento da ponte, após o trem percorrer poucos metros. Alguns passageiros disseram que com frequência aquele trecho da ferrovia recebia trens de carga, principalmente de cimento, o que pode ter comprometido a estrutura da ponte. Durante o tumulto do acidente, a família se dispersou. O vagão onde estava o pequeno Antonio ficou preso a outro vagão próximo a um pilar recostado ao aterro.

Antonio de Menezes (o segundo da esquerda para a direita) e os quatro irmãos que sobreviveram ao acidente (Foto: Arquivo Familiar)

A movimentação dentro do trem aumentava de acordo com o desespero dos passageiros. Sem saber onde estavam os familiares, Barbosa não conseguia esquecer a cena de um homem caindo de um vagão sobre uma enorme placa sinalizadora de metal. “Ele caiu de uma maneira que a cabeça foi cortada como se fosse um melão, um corte tão limpo que nem vi sangue”, destaca.

Antonio de Menezes também viu inúmeras pessoas prensadas entre os vagões. Não falavam, apenas mexiam com dificuldades os braços e as pernas, instantes antes de morrerem. A cerca de oito metros do Rio Itapicuru, a ferrovia ladeada por um brejo ecoava os gritos de dor das vítimas. Barbosa se lembra de uma mulher com um braço quebrado e o outro agarrado a um morro, gemendo e clamando por ajuda.

Por sorte, a criança contou com a solidariedade de uma senhora que estava no mesmo vagão. A mulher o tratou muito bem, dialogando e o ajudando a se distrair da tragédia. Algum tempo depois, encontraram a família de Antonio. O pai, Augusto de Mendonça Barbosa, teve a iniciativa de retirar todas as malas e baús dos vagões menos danificados antes da chegada do atendimento emergencial. Pela atitude, o pai foi capa de um jornal de Sergipe.

De todos os familiares, apenas um dos irmãos de Antonio se feriu. José machucou o braço no momento do impacto. Apresar da gravidade do acidente, a maior parte dos passageiros sobreviveu. Muitos eram migrantes de mudança para São Paulo e Paraná. O plano da família de Barbosa, assim como de muitas outras, era estar em São Paulo na semana seguinte, porém tiveram de aguardar sete dias até a chegada de um trem com o mesmo destino. Nos dias chuvosos que se seguiram, os passageiros envolvidos na tragédia contaram com a hospitalidade dos moradores de um povoado.

“Coisa de quem nunca viu gelo”

Augusto de Mendonça vendeu tudo que possuía para se mudar para o Paraná. Interromperam a viagem quando chegaram a Rancharia, no interior paulista, onde passaram um mês. “Nunca tínhamos visto geada nem gelo, então quando esfriou numa madrugada, levantamos às 6h para subir em cima de um paiol coberto de sapé. Pegamos uma colher para recolher o gelo pra comer. Coisa de quem nunca viu”, comenta Antonio de Menezes às gargalhadas.

Já no Norte do Paraná, quando chegaram a Maringá estava chovendo, então o ônibus levou um dia para percorrer o trajeto até Paranavaí. O grupo de Mendonça desembarcou no primeiro terminal rodoviário da cidade, o Ponto Azul, em 9 de maio de 1951.

As balas de Corisco

Quando morava na Bahia, a mãe de Antonio de Menezes Barbosa costumava se esconder dos cangaceiros que circulavam pela região. “Meu pai tinha dois sítios em Coronel João Sá [no Nordeste Baiano]. Um já tinha sido invadido pelo Corisco, inclusive tinha marcas das balas do comparsa de Lampião”, ressalta.

A propriedade ficava próxima ao Rio Vaza-Barris e município de Geremoabo. Sempre que ouvia alguma notícia da chegada de Lampião e seu bando, a mãe e as amigas se escondiam no meio da caatinga, atrás das folhas de macambira.

Curiosidade

Antonio de Menezes Barbosa nasceu em 11 de setembro de 1944.

No tempo dos engraxates

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O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro

Antonio de Menezes: “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado” (Foto: Vincenzo Pastore)

Já havia muitas crianças em Paranavaí, no Noroeste Paranaense, no começo dos anos 1950. Para estimulá-las a ocuparem o tempo livre quando não estavam na escola, os pais autorizavam que os filhos exercessem alguma atividade remunerada. “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado”, comenta o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa que em 1949, aos cinco anos, aprendeu a diferenciar diversos tipos de cultura, pouco tempo depois de ganhar uma enxada do pai Augusto de Mendonça Barbosa.

À época, os mais jovens que residiam na área urbana de Paranavaí descobriram na engraxataria uma atividade regular. Dezenas de garotos percorriam as vias mais movimentadas da cidade, como a Avenida Paraná e ruas Minas Gerais, Marechal Cândido Rondon, Manoel Ribas e Getúlio Vargas, sem se intimidar com o “areião”, para ganhar uns “trocados” engraxando calçados. As principais referências eram as áreas do antigo Terminal Rodoviário Urbano, Prefeitura, Bar Gruta da Onça e Hotel Elite.

Artista plástico era engraxate em Paranavaí em 1951 (Foto: David Arioch)

O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro, dinheiro que normalmente era usado pelas crianças para comprar sorvete de groselha. “A gente comprava em uma sorveteria de uma família de origem japonesa, próxima ao Bar Gruta da Onça. Era um sorvete muito delicioso”, afirma sorrindo Barbosa que se tornou engraxate aos sete anos, em 1951. Na Rua Marechal Cândido Rondon, entre o Banco do Brasil e a Ótica Pupila, havia uma famosa engraxataria, muito bem frequentada. Lá, dois garotos conhecidos como Chiquita e Ligueira trabalhavam para um homem a quem pagavam comissão.

“Era tudo muito tranquilo. Não havia preocupação em saber quanto cada um ganhava. O pessoal tratava bem e lembro que uma vez juntei 100 cruzeiros”, relata. Recentemente o artista plástico reencontrou um cliente de quem na infância engraxou muitos sapatos pretos de pelica na Rua Minas Gerais. O movimento sempre aumentava nos finais de semana, quando colonos e peões que trabalhavam na derrubada de árvores retornavam à cidade. Com base em uma estimativa, pode-se dizer que cada criança engraxava pelo menos cinco pares de sapatos por dia.

Réplica rústica da caixa usada por Antonio de Menezes (Foto: David Arioch)

Muita gente desembarcava na primeira parada de ônibus de Paranavaí, o Ponto Azul, onde eram assediados pelos engraxates mirins. As crianças os cercavam e gritavam: “Vai graxa, aí? Vai engraxa?” “Dava pra trabalhar o dia todo. Comprava graxa da marca nugget na Casa São Paulo. Tinha latinha de dois tamanhos. A gente passava com escova de dente ou de engraxar”, relata Antonio de Menezes. Para dar um brilho nos calçados, a garotada não dispensava o paninho de flanela. E claro, nem os clientes que faziam questão de cobrar quando o serviço não era completo.

Barbosa tinha a própria caixa de engraxate, o que era um privilégio para poucos, pois podia trabalhar sozinho e onde quisesse, sem precisar cumprir horário ou prestar contas do serviço. Porém, a função não era bem encarada por todos os moradores de Paranavaí. “A figura do engraxate já era de uma pessoa marginalizada, de alguém que não era de confiança”, desabafa Antonio de Menezes que conquistou um bom número de clientes fiéis, mas no início da adolescência desistiu da atividade para trabalhar na área comercial. O auge dos engraxates em Paranavaí se estendeu até a década de 1960.

A boa mão para a engraxataria fez Barbosa ser chamado para um serviço na casa de um homem conhecido como “Seu Euquério”, ex-gerente da Boa Táxi Aéreo. “Um dia, ele me pagou só para encerar o piso da casa dele com cera canário e dar um brilho no assoalho”, conta rindo.

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População começou a pagar impostos em 1953

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Moradores não precisaram pagar tributos por mais de duas décadas

Paranavaí foi distrito de Tibagi, Apucarana e Mandaguari até 1951 (Acervo: Fundação Cultural)

A colonização de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, teve início em 1924, mas a população começou a pagar impostos em 1953,  quando houve a emancipação política que culminou na primeira eleição municipal, de 1952, que elegeu o médico José Vaz de Carvalho como prefeito.

Até 1951, ao longo de mais de duas décadas, Paranavaí foi distrito de Tibagi, Londrina, Rolândia, Apucarana e Mandaguari. Naquele tempo, como era importante para os prefeitos que as colônias se desenvolvessem, permitiam que qualquer tipo de estabelecimento fosse aberto, sem rigor e necessidade de se pagar impostos.

“Uma vez o prefeito de Apucarana criou um decreto que permitia ao comerciante desempenhar atividade por dez anos sem pagar nenhum tipo de tributo”, relatou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho. Ainda assim, é importante lembrar que nenhum dos municípios aos quais Paranavaí pertenceu desempenhou qualquer trabalho voltado ao progresso da colônia.

“Todo povoado tinha que ter uma origem, fazer parte de algum município, então era só algo formal, tanto é que a gente não conhecia essas cidades e quase nunca recebia algum político, investidor ou morador desses lugares. Aqui era bem abandonado”, garantiu o pioneiro cearense João Mariano.

Com o empenho do primeiro vereador de Paranavaí em Mandaguari, Otacílio Egger, que teve ajuda do pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, a colônia conquistou a emancipação política em 14 de dezembro de 1951, por meio da lei estadual nº 790. Só que foi necessário esperar mais um ano para a realização da primeira eleição que transformou Paranavaí em município.

Ferreira de Araújo lembrou que os impostos começaram a ser cobrados em 1953, após a posse de José Vaz de Carvalho, que assumiu a prefeitura em 14 de dezembro de 1952. “O dinheiro do imposto era nosso, então todo mundo pagava”, comentou. A eleição municipal que elegeu Carvalho como prefeito foi coordenada por um juiz eleitoral de Mandaguari.

Em 1953, ninguém reclamou por ter de pagar impostos (Acervo: Ordem do Carmo)

Segundo o pioneiro catarinense José Matias Alencar, ninguém reclamou por ter de pagar os tributos, pois a população já tinha algum conhecimento sobre o assunto. “Havia muita gente humilde e simples em Paranavaí, mas ninguém era ignorante a ponto de não saber que o investimento era revertido pra gente mesmo, que seria usado para investir em infra-estrutura e mais qualidade de vida”, argumentou Alencar.

Houve grande comemoração quando Paranavaí se tornou município, o que estimulou a comunidade a crer no progresso da cidade. “Quando isso aqui ainda era um povoado ninguém tinha certeza de nada. A gente achava que a qualquer momento Paranavaí podia ser abandonada pelo Governo do Paraná e todo mundo ficaria na mão, perderia tudo que investiu”, revelou João Mariano.

O que aconteceu foi exatamente o contrário do que temiam os moradores. “Quando virou município, a cidade começou a melhorar. Muita gente do Paraná e de outros estados ficaram sabendo e quiseram conhecer. O interesse era bem maior do que na época da Brasileira. Acredito que a maioria nunca mais saiu daqui. Graças a toda essa gente que Paranavaí existe até hoje”, enfatizou o pioneiro gaúcho João Alegrino de Souza.

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O sacrifício do casamento

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Moradores de Paranavaí tinham de se casar em Mandaguari

Geraldo Bruno e Guilhermina Baptista foram a Mandaguari a pé para formalizar a relação (Foto: Akmitsu Yokoyama)

Geraldo Bruno e Guilhermina Baptista foram a Mandaguari a pé para formalizar a relação (Foto: Akmitsu Yokoyama)

Geraldo Bruno e Guilhermina Baptista viviam na zona rural de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, e decidiram se casar em 1951, após dois anos de namoro. O maior obstáculo na época era que não havia cartório de registro civil, obrigando-os a irem até Mandaguari. Apesar da distância de cem quilômetros, o casal aceitou o desafio para formalizar a relação. Saíram de mãos dadas numa madrugada de outono, antes do galo cantar, com a intenção de chegar a Mandaguari no mesmo dia. “Fomos a pé e não deu tempo de achar o cartório aberto, então dormimos numa pensão, em quartos separados, e nos casamos no dia seguinte pela manhã”, relata a pioneira Guilhermina Baptista, acrescentando que hoje quando conta aos netos pensam que é invencionice.

Geraldo e Guilhermina levaram as roupas e os sapatos do casamento dentro de uma bolsa de estopa, pois sabiam que chegariam sujos em Mandaguari. “O caminho foi bem tortuoso, mas a vontade de casar era tanta que parecia que não existia mais nada além de nós dois na estrada”, comenta Guilhermina em tom de nostalgia, esboçando um largo sorriso. Geraldo Bruno, com um olhar disperso no tempo, lembrou que viajaram de galocha porque tinha chovido dias antes e o lamaçal pelo caminho podia deixá-los descalços se percorressem todo o trajeto com calçados comuns. “Atenção era tudo porque dependendo de onde a gente pisava a lama afundava”, frisa Bruno.

A viagem foi longa e os dois não conseguiram chegar limpos a Mandaguari, mas pelo menos viajaram com roupas escuras para evitar que a sujeira ficasse mais evidente. “Quando passava algum caminhão ou jipe por perto, a gente tinha que cortar pela mata. A paisagem fazia valer a pena. Era bonita demais e tinha muitos bichos pela floresta, fora o verde que forrava o chão pra gente pisar em cima, o que deu mais segurança”, diz Guilhermina.

Cerimônia religiosa foi realizada na Capela São Sebastião (Acervo: Fundação Cultural)

O casamento no cartório de Mandaguari foi testemunhado por desconhecidos, pois naquele tempo a viagem não compensava para quem iria apenas assinar o testemunho da oficialização. Além disso, poucos tinham automóvel. Por isso, alguns casais tinham de ir a Mandaguari a pé para se casar.

Em Paranavaí, os familiares já estavam preparando a cerimônia na igreja e também a festa de casamento. “Deixamos tudo acertado. Mesmo assim a viagem demorou mais do que a gente imaginou. Levamos dois dias pra ir a Mandaguari casar e depois voltar pra Paranavaí. Na volta, a gente ficou mais feliz porque tinha dado tudo certo”, afirma Geraldo Bruno. A viagem foi muito cansativa, mas, entre sorrisos e olhares, o casal declara que seria capaz de fazer tudo de novo se ainda fossem jovens. Guilhermina confidenciou que antes do matrimônio o relacionamento se limitou a abraços não muito íntimos e carícias na mão.

“Era tudo muito diferente de hoje, havia uma relação muito forte de respeito e cumplicidade. Era bem mais gostoso porque muitas moças só se envolviam quando sabiam quais eram as intenções do rapaz. A gente também tinha certas curiosidades, mas valia a espera”, enfatiza. Quando não eram casados, de acordo com Geraldo Bruno, só saíam de casa com a autorização dos pais de Guilhermina. “Só dava pra namorar nos finais de semana e ainda assim tinha um limite, por volta das 21h, no máximo, eu tinha que levá-la pra casa. Se passasse um minuto além da conta era punido. Ficava uma semana sem ver a Guilhermina”, explica. Geraldo e Guilhermina Bruno têm mais de 80 anos e estão juntos há mais de 60.

Curiosidade

Em 1951, Paranavaí ainda era Distrito de Mandaguari. O título de município só foi assegurado em dezembro de 1952.

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No tempo das quermesses

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Grandes festas para angariar fundos tiveram início em Paranavaí em 1951

Quermesse reunia milhares de pessoas (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1951, pioneiros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, começaram a realizar as primeiras quermesses para ajudar a comunidade, principalmente a Paróquia São Sebastião que construiu a primeira igreja local. Naquele tempo, era o único espaço de oração para uma legião de migrantes e imigrantes que viviam na colônia.

Normalmente, quem organizava a quermesse criava uma lista com todos os itens necessários para a realização da festa. Depois reunia um grupo de voluntários que percorria a cidade a pé pedindo prendas ou dinheiro. Cada um ajudava como podia, cientes de que tudo que era arrecadado seria leiloado na quermesse, sempre iniciada após a missa e a bênção do padre.

Para a Paróquia São Sebastião, independente de valor, qualquer doação era bem vinda e demonstrava o interesse da população em contribuir. Nos leilões públicos, o padre alemão Ulrico Goevert sempre se surpreendeu. “Era incrível como uma coisa totalmente sem valor recebia um alto lance”, comentou o frei no pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.

As brincadeiras eram o grande atrativo da festa que reunia quase toda a população local, além de pessoas de outras cidades e povoados. Exemplo disso foi o leilão de uma mamadeira que um amigo ofereceu a outro para mamar em troca de 20 cruzeiros. “Ele se recusou e ofereceu 50 cruzeiros para o rapaz que fez a primeira oferta dar uma mamada”, relatou o padre. Um jogo simples como o da mamadeira durava horas e até alguém dar o último lance dezenas de pessoas já estavam envolvidas na brincadeira.

As ofertas cresciam tanto que uma mamadeira era leiloada por mais de mil cruzeiros. Ao final do jogo, o participante que não tivesse dinheiro para cobrir a última oferta tinha de subir na mesa, colocar a mamadeira na boca e chorar como um bebê. Enquanto isso, o público não continha as gargalhadas.

Frei Alberto Foerst cuidava do leilão de animais (Foto: Wilmar Santin)

Outro jogo que prendia a atenção do público era o “cavalinho de lata” que ficava sobre um rolamento e permitia ao vencedor faturar até cinco vezes mais o dinheiro investido. Havia também uma barraca em que as pessoas apostavam em qual das 25 casinhas um coelhinho entraria. Enquanto o bichinho corria o público gritava sem parar. Tinha ainda um jogo dos fumantes em que o participante arremessava argolas sobre maços de cigarro. Quem acertasse, ganhava o produto.

Na quermesse, eram leiloados porcos, bezerros e carneiros. Porém, nenhum animal podia ser comercializado abaixo do preço de mercado. Quem cuidava do leilão de animais era o frei Alberto Foerst. ”Se fosse pra vender barato, preferíamos guardar os animais em nossa propriedade”, disse frei Ulrico. Sorteios de rifas eram outro atrativo da quermesse e para participar bastava pagar vinte cruzeiros. “O prêmio era algo como um canivete de cem cruzeiros”, enfatizou o alemão.

Famílias patrocinavam as festas

Com relação à gastronomia, as festas também levavam à tona as particularidades de vários povos. À época, o churrasco não era tradição nas festas da região, então o que mais agradava a população eram os leitões assados e temperados com bastante sal e pimenta. O que era muito bom para os idealizadores da quermesse, pois o prato aumentava muito a venda de bebidas.

Quando a festa tinha duração de dois dias, a organização do evento conseguia um patrocinador para cada dia. Eram as famílias de melhor poder aquisitivo que custeavam as despesas mais importantes. Segundo frei Ulrico, os resultados das arrecadações com as festas eram publicados em um edital para que toda a comunidade acompanhasse. “Sempre surgia uma rivalidade, nenhuma família queria arrecadar menos que a outra, o que beneficiava a igreja e a escola”, avaliou o padre alemão.

Freis Burcardo e Adalbert conseguiam doações da Alemanha (Fotos: Wilmar Santin)

Como Paranavaí era muito jovem nos anos 1950, os patrocinadores das quermesses adotavam como bandeira o estado ou país de origem. “Havia disputa de poloneses contra alemães, italianos e japoneses, baianos e paulistas, cearenses e pernambucanos e muitos outros”, destacou frei Ulrico, acrescentando que o dinheiro arrecadado era usado para saldar dívidas com construções e reformas de igreja, escola e hospital.

De vez em quando, algum pioneiro doava terrenos para serem rifados e a renda destinada a novos investimentos para a comunidade. “Dava para ganhar o equivalente a quatro vezes o valor do lote”, assegurou o padre. É importante lembrar que contribuições financeiras também partiam da Alemanha, organizadas pelos freis alemães Adalbert Deckert e Burcardo Lippert, de Bamberg, no Estado da Baviera.

Quando cães frequentavam a igreja

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Animais de Paranavaí tinham o hábito de participar das cerimônias religiosas nos anos 1950

Goevert: “É oportuno dizer que havia muitos cachorros em Paranavaí. Muitos eram tão devotos que até no meio da semana iam para a igreja” (Acervo: Ordem do Carmo)

Entre os anos de 1951 e 1957, a primeira igreja de Paranavaí não era frequentada apenas por pessoas, mas também por cães, principalmente em dias de missa. Os animais não podiam ver a porta da igreja aberta que logo entravam e passavam horas no local.

Em 2 setembro de 1951, o frei alemão Ulrico Goevert, logo após tomar posse como pároco de Paranavaí, reuniu alguns pioneiros para cobrir a pequena igreja que não tinha telhado. Terminado o trabalho que levou pouco mais de uma semana, o padre realizou a terceira missa como pároco. Foi a primeira de frei Ulrico na igrejinha.

Naquele dia, o padre se virou em direção aos fiéis para abençoá-los e se deparou com seis cães parados, como se aguardassem a bênção. O mais curioso é que havia mais animais na igreja do que pessoas. Só quatro pessoas estavam lá dentro assistindo a cerimônia religiosa. “Recordei das minhas primeiras missas na Igreja do Carmo, de Bamberg, e também na minha aldeia natal, Darfeld. Aqui era muito diferente, pois poucos participaram das cerimônias no início”, revelou o padre.

E não era apenas em dias de missa que os cães entravam na igreja. A partir de 1951, o episódio se repetiu diariamente. “É oportuno dizer que havia muitos cachorros em Paranavaí. Muitos eram tão devotos que até no meio da semana iam para a igreja”, relatou o pároco Ulrico Goevert em tom bem-humorado.

Antiga Igreja São Sebastião era a segunda casa dos animais (Acervo: Ordem do Carmo)

Os animais se portavam como se estivessem em casa. Os cães não latiam nem rosnavam no interior da igreja, apenas participavam das cerimônias religiosas como os fiéis. Nem se intimidavam com a presença humana, tanto é que o padre decidiu proibir a entrada dos animais.

O que não adiantou muito, pois até 1957 os cães ainda eram encontrados no interior da antiga Igreja São Sebastião, construída em 1952, em substituição a igrejinha. “Às vezes, apareciam até durante a santa missa no altar-mor. Falei ao bispo que eu daria 25 dias de indulgência para cada fiel que desse um pontapé num cachorro dentro da igreja”, frisou o padre. O bispo riu da proposta de Frei Ulrico, mas não concordou em dar as indulgências.

No livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”, Frei Ulrico admitiu que deu vários chutes nos cães que invadiam a igreja. E justamente por isso, os animais reagiram. “Os cachorros têm boa memória. Quando me viam na rua, rosnavam e latiam mesmo de longe”, destacou.

À época, um dos cães, revoltado por não poder entrar mais na igreja, mordeu a panturrilha do padre. Apesar de tudo, Frei Ulrico relatava o fato de maneira cômica. “Sempre fui um verdadeiro amigo dos animais, mas não podia permitir a estadia de cães na casa do Senhor”, comentou. De acordo com pioneiros, os animais gostavam de ficar na igreja porque era um local silencioso e de uma atmosfera que inspirava paz.

A chegada de Frei Ulrico Goevert

Logo que chegou a Paranavaí, no dia 1º de setembro de 1951, frei Ulrico Goevert conheceu a primeira igreja de Paranavaí. Era uma casinha de madeira sem telhado e com uma pequena torre. “A casa paroquial também era de madeira, mas tinha cobertura de telhas”, contou Goevert. O padre provincial dos josefinos pediu ao frei alemão para usar o dinheiro arrecadado em uma festa organizada pela comunidade para cobrir e ampliar a igrejinha.

Frei Ulrico conheceu a primeira igreja de Paranavaí em 1951 (Acervo: Ordem do Carmo)

“Ele afirmou que esse seria o meu primeiro trabalho”, enfatizou frei Ulrico que foi enviado a Paranavaí para substituir o padre Carlos Ferrero que comandou as atividades religiosas locais durante alguns meses. Como seria preciso algum tempo para a reforma da igreja, a primeira missa do frei alemão ocorreu num sábado na Casa Paroquial. Lá, improvisaram um altar e um quadro grande de Nossa Senhora das Dores.

O padre estava tão preocupado com as dificuldades que enfrentaria em Paranavaí que admitiu ter suplicado à santa para lhe ajudar. “Naquele tempo, a ‘cidade’ tinha mais ou menos 60 casas e eram todas de madeira. Muitas nunca seriam classificadas como casa, conforme o conceito alemão”, comentou. No início dos anos 1950 ainda havia muitas residências com características de rancho, o que despertou estranheza em frei Ulrico, acostumado ao estilo de vida europeu.

No dia 2 de setembro de 1951, a segunda missa transcorreu em uma casinha que mais parecia uma “barraca de madeira”. No mesmo dia, o padre provincial apresentou frei Ulrico como o novo pároco de Paranavaí e entregou-lhe uma estola e um decreto de nomeação assinado pelo bispo.

O padre fixou residência na Casa Paroquial, onde havia apenas uma mesa, quatro cadeiras, dois armários e duas camas. “Não tinha fogão, e na hora de dormir o padre Carlos se abrigava na casa do vizinho, pois só havia camas para mim e o provincial”, Lembrou.

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Histórias de Paranavaí eram publicadas em revista alemã

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Frei Ulrico Goevert começou a escrever para a Karmmelstimmen em 1958

Adalbert Deckert quem sugeriu que Ulrico Goevert escrevesse sobre Paranavaí (Foto: Ordem do Carmo)

Em 1951, logo que chegou a Paranavaí, o frei alemão Ulrico Goevert teve a ideia de relatar em um diário todos os fatos que lhe chamavam a atenção. Foi assim até o final de 1957. Um ano depois, recebeu o convite para publicar as histórias uma vez por mês na revista alemã Karmelstimmen.

Sobre a necessidade de contar alguns dos fatos mais simples até os mais complexos da história local, o padre justificou que quando um acontecimento não é registrado por escrito em pouco tempo as pessoas esquecem ou criam outras versões. Frei Ulrico começou a escrever, quem sabe, visando a preservação histórica regional que independente de época sempre contribui para a formação da identidade de um povo.

A partir das publicações na revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera, o padre queria mostrar aos leitores o quão extraordinária era a jovem Paranavaí que despontava em meio a mata virgem, onde pessoas de diversas etnias conviviam com animais silvestres; um lugar onde crianças balançavam sobre os cipós que adornavam as casas. Segundo frei Ulrico, a solidariedade da população o encantava e o motivava a se sentir mais brasileiro do que alemão.

“Quando uma criança come durante o recreio escolar, sempre oferece o pão à criança mais pobre e diz: Qué um pedaço? O trabalhador mais pobre também fica feliz em dar ao companheiro um pouco da sua sopa de feijão”, escreveu o padre para a Karmelstimmen em 1958. A sugestão para publicar textos sobre Paranavaí partiu do padre provincial Adalbert Deckert, superior de frei Ulrico em Bamberg.

Boa parte dos textos publicados na revista abordou também o trabalho dos padres carmelitas. “Cumpri com muito gosto a tarefa de descrever aos leitores como foi fundada a missão em Paranavaí, além das nossas alegrias”, disse Goevert. Quando o primeiro relato foi publicado, o vigário pediu aos leitores alemães que não fossem rigorosos com o seu estilo literário. Frei Ulrico acrescentou que nunca teve intenção de escrever livros ou artigos científicos.

Modesto, o padre qualificou os próprios textos como rabiscos, talvez pelo fato de tê-los concebido com bastante pessoalidade, incluindo muitos adjetivos e comentários. Ainda assim, é perceptível que essas características agregaram mais valor aos textos, os deixando leves, cômicos e recheados de envolventes contextualizações. “Quando escreveu para os alemães, frei Ulrico não teve a preocupação de fornecer certos detalhes ou citar nomes de pessoas”, revelou frei Wilmar Santin, responsável pela tradução dos artigos publicados na revista alemã.

População de Bamberg leu muitas histórias sobre Paranavaí em 1958 (Foto: Reprodução)

Em janeiro de 1992, durante a Festa de São Sebastião, a Ordem dos Carmelitas publicou o pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí” que reúne uma compilação de textos que Ulrico Goevert escreveu para a revista Karmelstimmen.

Para a publicação da obra, Wilmar Santin fez uma profunda pesquisa para a inclusão de notas de rodapé. “O livro não é só para homenagear o frei Ulrico, mas também manter viva parte da memória histórica do povo de Paranavaí e região. Povo sem passado é povo sem futuro”, enfatizou Santin.

Saiba Mais

Livro “Memórias e Histórias de Paranavaí” foi editado pela Livraria Nossa Senhora do Carmo.

Frei Adalbert Deckert chegou a Paranavaí no dia 10 de junho de 1955 para uma visita canônica e ficou aqui até o dia 14 de julho.

Bamberg, cidade de origem da revista para a qual frei Ulrico Goevert escrevia, é um município de 70 mil habitantes.