David Arioch – Jornalismo Cultural

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Al-Ma’arri e a guerra civil na Síria

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Foto: EFE

Lendo sobre a tragédia que é a guerra civil na Síria, me recordei que no século XI o poeta e filósofo sírio Al-Ma’arri já criticava o fundamentalismo religioso, a avareza e a ganância, e defendia o direito à vida, inclusive se abstendo de se alimentar de animais. O tempo passou e as tragédias estão aí, reafirmando mais uma vez algo que um filósofo árabe cego já enxergava, temia e condenava no passado.

 





 

Não comemoro mortes, mas infelizmente…

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Não comemoro mortes, mas infelizmente esse senhor que faleceu na quarta-feira, e que foi um dos fundadores da Minerva Foods, era um dos responsáveis por pagamentos de propina visando “relaxamento” da fiscalização nas superintendências federais de agricultura entre os anos de 2010 e 2016. Aí eu te pergunto, de que adianta ganhar tanto dinheiro, lucrar tanto, morrer e não levar nada? Lesou animais humanos e não humanos a custo de que?

Deixou um estranho legado de muitos bens e muito dinheiro, mas que não existiria sem a desconsideração por vidas humanas e não humanas. Vale a pena? Tudo que lucrou, esse império magnânimo, não garantiu que ele passasse dos 68 anos. As pessoas parecem não entender que nem tudo está ao alcance do dinheiro, e que o tempo se encarrega de enterrar a imagem que criamos de nós mesmos e o que tivemos para preservar ou não o que verdadeiramente deixamos.





 

Written by David Arioch

February 17th, 2018 at 12:48 am

O protovegetarianismo na literatura do poeta romano Ovídio

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“Seres humanos, parem de profanar seus corpos com alimentos ímpios”

Ovídio ajudou a eternizar o filósofo grego Pitágoras como um dos precursores do vegetarianismo no Ocidente (Acervo: Ancient History Encyclopedia)

Influência para Dante Alighieri, Shakespeare, Caravaggio, Michelangelo, Boccaccio, Rembrandt, Rousseau, Chaucer, Kafka, James Joyce, Fernando Pessoa e Cruz e Sousa, entre outros importantes nomes da literatura e das artes plásticas, o poeta romano Ovídio se tornou mais conhecido pela autoria da obra em latim “Metamorfoses”, composta em 15 livros em hexâmetro heroico e considerada uma das mais importantes obras da mitologia clássica.

Quando “Metamorfoses” foi publicada pela primeira vez no ano 8 do século I, Ovídio chegou a ser considerado um contraventor em diversos círculos sociais, principalmente pela forma como descreve, mesmo que poeticamente, um mundo diferente daquele idealizado pelos imperadores da época. Até hoje a causa de seu exílio na remota Tomis (atual Constanta ou Constança, na Romênia), na Cítia Menor, ao Sul do Mar Negro, ainda á incerta, embora “Metamorfoses” tenha sido publicada no mesmo ano.

Mas não é difícil entender por que Ovídio, que gozava de grande popularidade, despertaria desconfiança e receio. Assim como alguns filósofos da Grécia Antiga que foram perseguidos por suas ideias que se voltavam mais para o desenvolvimento humano, equilíbrio entre os seres vivos e à potencialização de sensibilidades, como Sócrates, que foi obrigado a ingerir cicuta após 30 dias preso, Ovídio também não admitia restrições ao intelecto e à capacidade humana de gerir a compaixão e o respeito pela vida em suas multifárias formas.

No 15º livro de “Metamorfoses”, há dois capítulos em especial que chamam a atenção. Na versão traduzida do original em latim para o inglês por Anthony S. Kline, no capítulo “Os Ensinamentos de Pitágoras: Vegetarianismo”, Ovídio ajudou a eternizar o filósofo grego Pitágoras como um dos precursores do vegetarianismo no Ocidente, o que contribuiu para dar origem ao termo “pitagóricos” em referência a “vegetarianos”, locução que passaria a existir formalmente apenas no século 19, em referência a quem se abstém do consumo de carne e de outros alimentos de origem animal. Sendo assim, é importante reconhecer que se a história do vegetarianismo no Ocidente remete há mais de 2,5 mil anos, em parte isso se deve a autores como Ovídio, já que Pitágoras, por exemplo, não publicou nada em vida.

Em “Metamorfoses”, o poeta romano narra que havia um homem que fugiu de Samos porque, odiando a tirania de seus governantes, preferiu viver em exílio voluntário. Segundo Ovídio, embora os deuses estivessem longe, Pitágoras poderia visitá-los através do céu e do poder de sua mente, já que o que a natureza negou à visão humana, Pitágoras poderia desfrutar a partir do seu terceiro olho – em menção à sua capacidade intuitiva atilada.

Pitágoras fazia questão de dividir o seu conhecimento com o público. De acordo com o poeta romano, ele reunia multidões silenciosas que ouviam as maravilhas de suas palavras quanto à origem do universo e das causas das coisas. Discorria sobre o mundo físico, os deuses, o surgimento da neve, a origem dos relâmpagos, das tempestades, dos trovões e das estrelas. Na realidade, sobre tudo que era oculto ou mesmo intencionalmente velado. Incentivava também a abstenção do consumo de animais, um fato em especial que estimulou o pintor flamengo Peter Paul Rubens a conceber a pintura que receberia o nome “Pitágoras advogando o vegetarianismo”, criada entre os anos de 1618 e 1620.

“Ele foi o primeiro a condenar o ato de servir carne à mesa. […] Seres humanos, parem de profanar seus corpos com alimentos ímpios. Há colheitas, há maçãs envergando os galhos; e uvas amadurecendo nas videiras; há ervas aromáticas; e aquelas que podem ser suaves e gentis sobre as chamas; […] A terra pródiga de sua riqueza, fornece-lhe um suave sustento e oferece comida sem morte ou derramamento de sangue”, exorta Ovídio citando Pitágoras.

O poeta romano escreveu, baseando-se no discurso do grego, que a carne satisfaz a fome dos animais selvagens, embora não todos eles, já que cavalos, ovelhas e bovinos se alimentam de grama. “Tigres armênios, leões furiosos, lobos e ursos desfrutam de comida molhada com sangue. Ó, quão errada é a carne feita de carne; para um corpo voraz engordar, engolindo outro corpo; para uma criatura viver a partir da morte de outra criatura! Assim, entre essas riquezas, a terra, a maior das mães, cede. Você não é feliz a menos que rasgue, com dentes cruéis, lastimosas feridas, recordando assim a prática do ciclope; e você não pode satisfazer o seu voraz apetite e a sua inquieta fome a menos que você destrua outra vida”, critica.

Entre os ensinamentos de Pitágoras, Ovídio aborda a Era do Ouro, uma época em que os seres humanos eram felizes porque se satisfaziam com os frutos das árvores e com as ervas que a terra produzia, assim não contaminando os seus lábios com sangue. Naquele tempo, os pássaros abriam caminho no ar em segurança, sem terem o que temer, assim como os leões que vagavam sem medo da intervenção humana: “Mas, uma vez que alguém, quem quer que fosse, invejava as presas do leão e enchia sua insaciável barriga com carne, abria-se caminho para o crime.”

Ovídio relata que a violência humana contra os animais começou a partir da violência e da morte das “feras selvagens”. E tal ferocidade, também citada no diálogo de Sócrates com Glauco, e registrado por Platão em “A República”, remete à ganância humana, aos homens invadindo áreas naturais cada vez maiores não para satisfazerem suas necessidades básicas, mas sim para lucrarem com suas produções, o que deixa subentendido que havia aqueles que já não se contentavam com a igualdade. Estes buscavam status, distinção baseada no poder pecuniário.

“A perversidade se espalhou ainda mais, e acredita-se que o porco foi considerado o primeiro a merecer o abate porque arrancou as sementes com o seu largo focinho e destruiu a esperança de uma colheita. A cabra foi levada à morte, no altar da vingança, para navegar pelas vinhas de Baco. Esses dois sofreram pelos seus crimes!”, conta Ovídio, acrescentando que rebanhos tranquilos como de ovelhas, animais naturalmente pacíficos, também foram vítimas da procacidade humana, mesmo sem terem invadido ou destruído plantações.

Citando os ensinamentos de Pitágoras, Ovídio declara que o ser humano imerso na violência contra os animais é um ingrato, indigno da dádiva que é o milho. Também fala dos homens que forçavam os bovinos a puxarem o arado, e quando estes já não gozavam da mesma vitalidade eram mortos a sangue frio, com golpes de machado no pescoço:

“Não era suficiente ter cometido tal maldade; envolveram os deuses em seus crimes e acreditam que os deuses se deleitavam com o abate dos bois que sofriam. A vítima, com sua beleza excepcional (uma vez que ser agradável é prejudicial), e que se distinguia pelas fitas rituais de ouro, era posicionada em frente ao altar enquanto ouvia, sem entender, as orações, e via o milho que trabalhou tanto para produzir sendo colocado entre seus chifres, e depois derrubado, manchado com o sangue das facas que refletiam na água límpida.”

Tencionando descobrir qual era a verdadeira vontade dos deuses, os homens, imersos na violência legitimada, arrancavam os pulmões do peito dos animais enquanto estes ainda estavam vivos, com o coração rufando. “Disso (tão grande é a fome do homem pelo alimento proibido) você se alimenta, ó raça humana! Não, eu imploro, concentre sua mente nas admoestações. Quando você coloca a carne do gado abatido em sua boca, sabe e sente que está devorando uma criatura amiga”, censura o autor.

No capítulo “Os Ensinamentos de Pitágoras: A Santidade da Vida”, Ovídio defende que, seguindo os preceitos de Pitágoras, devemos permitir e garantir que os animais vivam em segurança e de forma honrada, não cabendo a nós intervir no curso de suas naturezas, nem decidir quando suas vidas devem findar simplesmente por um capricho hedonista:

“Não podemos preencher as nossas barrigas como se estivéssemos em um banquete canibal. Que perversidade eles fazem, quão impiedosamente se preparam para derramar o próprio sangue humano, aquele que rasga a garganta de um bezerro com a faca e escuta insensível o seu balido; […] que chora como uma criança, ou se alimenta de uma ave que eles mesmos alimentaram. Até que ponto isso não é um verdadeiro assassinato? Para qual caminho isso leva? […] Deixe o boi morrer de velhice. Não engane os pássaros com galhos molhados nem aprisione o veado, assustando-os com cordas emplumadas ou iscas traiçoeiras como ganchos farpados. […] Deixe sua boca livre de seu sangue, desfrute de uma comida mais suave.”

Saiba Mais

Ovídio nasceu no ano 23 a.C. em Sulmona, na atual Itália, e faleceu no ano 17 ou 18 da Era Cristã em Tomis, na Cítia Menor.

Além de “Metamorfoses”, Ovídio legou obras como “Amores”, “Cartas de Pônticas”, “As Heroides”, “Curas para o Amor”, “A Arte de Amar” e “Tristezas”.

Referências

Ovid. Anthony S. Kline. Ovid’s Metamorphoses. University of Virginia (2000).

Platão. A República. Nova Fronteira (2014).





 

Um homem marcado pela tragédia

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Quando a riqueza material ofusca a importância da vida

Paranavaí quando Hésio Azeredo viveu aqui uma sucessão de tragédias (Foto: Toshikazu Takahashi)

Paranavaí quando Hésio Azeredo viveu aqui uma sucessão de tragédias (Foto: Toshikazu Takahashi)

Na infância, meu avô me contou uma história que jamais esqueci. É sobre um homem que teve a vida transformada por uma sucessão de tragédias em 1958 e 1959. Até o ano passado, sempre me questionei se o que ouvi quando criança era verdade ou não. A confirmação chegou até mim há alguns meses, quando encontrei uma sobrinha do protagonista desta sinistra e pitoresca história.

Hésio Oscar Azeredo era um investidor de grandes posses que vivia com a família em uma fazenda a pouco mais de 20 quilômetros da área urbana de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Passava o tempo todo ocupado, tentando encontrar novas formas de multiplicar os lucros. Havia época em que dormia menos de três horas porque achava que repousar mais o impediria de alcançar seus objetivos. “Ele tinha uma boa família e era uma boa pessoa, mas colocava o dinheiro e a ambição acima de tudo”, diz a sobrinha Maria Aparecida Lorelli.

Hésio Oscar era filho único de um falecido casal de multimilionários que até as primeiras décadas do século XX administrava investimentos de capital estrangeiro no Brasil. Ainda jovem, já possuía propriedades rurais em sete estados, além de fazendas no Paraguai e Argentina. Algumas eram maiores do que muitas cidades do Brasil. Também investia em beneficiamento de grãos e cereais, telefonia e transportes fluviais. Era muito influente, tanto que na sua biblioteca particular, um ambiente inspirado no gabinete do presidente dos Estados Unidos – o Salão Oval, deixava em destaque uma grande foto em que aparecia ladeado pelo ex-presidente Dwight Eisenhower.

“A moldura do quadro era de ouro maciço. Poucas pessoas podiam entrar lá. Somente alguns familiares conheciam o lugar. Meu tio ainda pedia que por discrição ninguém falasse sobre o que viu lá dentro”, declara Maria que na infância e adolescência teve três oportunidades de visitar o local. Apesar do apego aos bens materiais, o investidor era considerado pelos empregados como um patrão rigoroso, mas justo. Fazia questão de acompanhar de perto todos os seus negócios. Ainda assim, muitos boatos se espalhavam sobre o Tymbara, apelido que um místico colono de origem kaingang deu a Hésio Azeredo. “Era o único índio da nossa turma. Ele inventou esse apelido e não explicou o significado. Só que ninguém nunca teve coragem de chamar o ‘Dr. Hésio’ de Tymbara, então isso ficava mais entre a gente”, comenta o ex-colono aposentado Inácio Durval Reis que naquele tempo era mais conhecido como Mizim.

Nos anos 1950, o investidor construiu um escritório inspirado em Eisenhower e no Salão Oval (Foto: Reprodução)

Nos anos 1950, o investidor construiu um escritório inspirado em Eisenhower e no Salão Oval (Foto: Reprodução)

Em 1957, já circulava entre os colonos um boato de que Azeredo se referia ao dinheiro como se fosse um tipo de deidade. “Falavam que ele tinha um altar cheio de dinheiro e que não saía de lá sem se ajoelhar e rezar pra ganhar mais um punhado a cada dia”, conta Mizim, acrescentando que talvez tenha sido apenas conversa fiada de gente à toa.

Há quem diga que uma cozinheira da fazenda jurou ter visto paredes forradas com notas de cem dólares em alguns dos cômodos da casa principal. “Todo mundo ouvia falar. Só que não conheço ninguém que testemunhou isso. Sei que tinha cômodos da casa que o ‘Dr. Hésio’ não permitia a entrada de ninguém, nem das empregadas”, enfatiza Reis. Embora as lembranças não estejam mais tão frescas na memória, Maria se recorda com carinho da tia Clara e dos primos Tadeu e Joaquim. “Eram bem espertos e adoravam correr pelo campo. Na fazenda, perto de uma bica de mina, tinha um morrinho coberto por uma grama bem verdinha onde eles adoravam escorregar e rolar. Às vezes eu e uma babá cuidávamos dos dois”, comenta.

Tadeu, de cabelos negros que chegavam a azular com a incidência do sol vespertino, era bem comunicativo e agitado. Já Joaquim, de cabelos loiros, era calmo e parcimonioso. Os dois sofriam de heterocromia. “Tadeu tinha um olho preto e um azul. Joaquim possuía um olho preto e um verde. Por causa disso, eu ficava sabendo de muitas bobagens ditas pelos mais ignorantes”, lembra Maria Lorelli. Hésio Azeredo pouco participava do cotidiano familiar. Assistia ao desenvolvimento dos filhos como um espectador desatento. Tinha o hábito de viajar antes do amanhecer, retornando apenas semanas mais tarde e normalmente de madrugada. A pressa era tanta que nem se despedia dos filhos. Se o lucro fosse muito alto e exigisse mais tempo fora de casa, não se importava em se ausentar por alguns meses. Uma vantagem é que o empresário sempre teve pessoas de sua confiança para garantir o bom andamento dos seus muitos empreendimentos.

Criado em uma família que há várias gerações se dedicava a multiplicar riquezas, Azeredo foi o primeiro a romper o ciclo, e não por vontade própria, mas por uma sucessão de acontecimentos que transformaram sua vida. Em dezembro de 1958, após uma séria discussão com o marido, Clara chamou os dois filhos e disse a eles que iriam passar alguns dias na casa da avó em Curitiba. “Ajudei eles a arrumarem as malas e os acompanhei até o aeroporto da família, onde um avião e um piloto estavam sempre à disposição”, relata Maria. No último momento, apesar da resistência em deixá-los partir, Hésio Oscar achou que contrariar a mulher poderia piorar a situação. No início da noite, se arrependeu amargamente ao receber a notícia de que o piloto Julião Martins Bastina sofreu um mal súbito e perdeu o controle da aeronave. O avião que caiu na região dos campos gerais foi encontrado por um caminhoneiro que viu uma criança ensanguentada acenando e gritando por socorro.

“A tia Clara, o Joaquim e o piloto não resistiram aos ferimentos. Acho que morreram na hora do impacto. O Tadeu sobreviveu por um milagre. Ele teve só escoriações e não precisou ficar internado”, destaca Maria Aparecida. A maior parte do sangue sobre o corpo do garoto era do irmão e da mãe que o envolveu nos braços instantes antes da queda. Pelo menos por dois meses após o enterro, a tragédia fez de Azeredo um homem incomunicável, agressivo e ostracista. Não tinha vontade de ver ninguém, nem mesmo o filho sobrevivente. Depois retornou à rotina sem avisar ninguém. E não aceitava que falassem das mortes da mulher e do filho, negando a si mesmo a partida dos dois, mesmo tendo participado da cerimônia fúnebre.

Avião com a mulher e os filhos de Hésio caiu nos Campos Gerais (Foto: Reprodução)

Avião com a mulher e os filhos de Hésio caiu nos Campos Gerais (Foto: Reprodução)

Sem saber como lidar com a vida pessoal, até mesmo esquecendo que tinha família, se afundou ainda mais em trabalho. Esqueceu muitas vezes que Tadeu continuava morando na mesma casa. “O pai dele tinha atitudes de alguém que perdeu tudo. Em vez de se basear naquele exemplo para mudar de vida, fez exatamente o contrário. Fiquei muito nervosa com a situação”, desabafa a sobrinha. Isolado por Hésio Oscar, Tadeu começou a agir como se o irmão Joaquim continuasse com ele. Maria Lorelli foi a primeira a perceber que o primo divagava e tinha alucinações. Parecia falar com outras pessoas, mesmo quando estava sozinho. Quem o via de longe, pensava que havia alguém acompanhando o garoto.

“Ele corria lá pelos lados das plantações. Se embrenhava no meio do cafezal e brincava de se esconder. Lembro que perguntei se tinha mais alguém com ele. Me respondeu que era o irmão. Achei que fosse uma traquinagem inocente, nem comentei com ninguém”, revela Mizim. Episódio semelhante se repetiu uma semana mais tarde, quando Tadeu estava sozinho no quarto, escondido e cochichando dentro do guarda-roupa. Com a insistência dos mais próximos, Azeredo concordou em procurar um tratamento psiquiátrico para o filho. Tadeu foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático. Mesmo com acompanhamento médico, o estado do garoto só piorou. Embora se preocupasse com a situação, Hésio preferia deixá-lo aos cuidados de familiares e empregados.

Um dia, quando se machucou ao saltar sobre uma cerca, a perna de Tadeu começou a sangrar. Ele se aproximou do pai e disse: “Por que o senhor não gosta de mim? É por que o que sai do meu corpo é um líquido vermelho sem valor? Mas e se fosse amarelo e brilhante como ouro?” Azeredo não respondeu. Surpreso, se calou e abraçou o filho, clamando por perdão. A cena foi testemunhada ao longe pela prima Maria. Na semana seguinte, três dias antes de completar 12 anos, Tadeu foi encontrado deitado na própria cama, abraçado a uma foto em que ele aparecia brincando com a mãe e o irmão. Havia um pequeno frasco de estricnina ao seu lado. Tadeu estava morto e com os olhos fechados, como se estivesse se preparando para dormir. Quando viu o filho de pijama e sem vida, Hésio saltou pela janela do quarto que ficava no andar superior. O impacto provocou apenas um corte na cabeça, escoriações e um desmaio que durou cerca de duas horas. Ao acordar, teve uma cefaleia intensa que desapareceu só no fim da noite.

Maria Lorelli tentou conversar com o tio sobre a necessidade de velar e enterrar Tadeu, mas Hésio não quis dialogar. Deixou claro que não precisava da ajuda de ninguém, assumindo o compromisso de fazer tudo sozinho. Só exigiu que dois empregados levassem um enorme refrigerador horizontal, que estava na maior despensa da casa, até um quarto ao lado do seu. Mandou que todos saíssem, tomou Tadeu nos braços e o carregou para a sua suíte. Chaveou a porta do quarto e disse aos familiares que retornaria em algumas horas. Antes que alguém fizesse alguma pergunta, entrou em um jipe Land Rover e desapareceu na escuridão, retornando antes do amanhecer, acompanhado de um húngaro misterioso e com um forte sotaque a quem chamava de Gazda. Transferiram Tadeu para o quarto ao lado da suíte e não permitiu que ninguém entrasse no local.

Modelo do jipe usado por Azeredo em 1959 (Foto: Reprodução)

Modelo do jipe usado por Azeredo em 1959 (Foto: Reprodução)

No dia seguinte pela manhã, Azeredo estava mais calmo e convidou parentes e amigos mais próximos para participarem de enterro do filho no cemitério particular da família. Estranharam a atitude porque Hésio nem mesmo havia planejado o velório. Por comiseração e até por medo de uma má interpretação, ninguém cogitou questioná-lo por não deixar ninguém ver Tadeu antes de fechar o caixão. Algumas das pessoas que participaram da cerimônia, segundo Maria Lorelli, comentaram que Azeredo parecia mais lúcido e provavelmente, após o rompante de desespero, logo entraria na fase de aceitação. Quando todos os parentes foram embora, Azeredo dispensou parte dos empregados, justificando que como estava sozinho não precisava mais de tantas pessoas trabalhando na casa principal. Maria insistiu em continuar com o tio por mais alguns dias, mesmo ciente de que talvez não fosse mais bem-vinda. “Desconfiei de algo estranho acontecendo porque o tal húngaro que ninguém conhecia ficou na casa quase uma semana. Além disso, ele não parecia o tipo de pessoa com quem o tio costumava negociar”, argumenta.

Algumas horas antes de Gazda partir, Maria o ouviu cochichando algumas palavras ininteligíveis a Hésio. Sem motivo para prolongar a estadia, a jovem partiu para Curitiba, onde ingressou no curso de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nas férias, Maria sempre passava alguns dias na fazenda do tio para saber como ele estava e também para reviver lembranças do tempo em que ajudava a tia Clara e os primos Tadeu e Joaquim. Azeredo estava mais comunicativo e não viajava com muita frequência. Na realidade, raramente deixava a fazenda. A propriedade do empresário se tornou o seu mundo, tanto que as negociações diminuíram consideravelmente. Em 1962, apenas nove dos empregados continuaram trabalhando na propriedade. Era o suficiente para manter a operacionalização das atividades locais.

No final daquele ano, por intermédio dos pais, Maria ficou sabendo que Hésio, sem dar explicações, desfez de grande parte dos imóveis e empresas que possuía. Mas a surpresa maior veio em janeiro de 1963, quando Maria encontrou a fazenda abandonada. As plantações estavam morrendo e não havia ninguém no campo. Na casa principal, a sobrinha sentiu um forte mau cheiro vindo da cozinha, onde muitos alimentos estragaram há bastante tempo. Maria também se deparou com móveis cobertos por lençóis brancos. Nada disso pareceu tão estranho quanto uma bem disposta e linear trilha de notas de cruzeiro que começava no cemitério particular da família e terminava no quarto de Hésio Azeredo.

Maria Lorelli seguiu as notas e quando abriu a porta do quarto viu o tio deitado na cama abraçado com o filho Tadeu. Mesmo sem vida, o garoto estava com a aparência do dia em que foi encontrado morto. “Como participei do enterro dele três anos antes, pensei que eu estivesse louca. Até a expressão no rosto de Tadeu ainda era a mesma”, comenta. Após o susto, Maria viu que Hésio também estava morto. Ao lado do corpo, somente um frasco quase vazio de estricnina. Preocupada com a repercussão, a família de Maria evitou comentários e fez o possível para impedir que a história fosse divulgada. Até mesmo no registro de óbito consta que a causa da morte foi um ataque cardíaco. O caixão onde supostamente colocaram o corpo de Tadeu em 1959 sempre esteve vazio. O substituíram por outro e realizaram uma nova cerimônia fúnebre para pai e filho. Desta vez, com a participação de cinco pessoas. Antes de morrer, Hésio Azeredo deixou um testamento destinando 80% da fortuna para orfanatos, asilos e entidades sociais que cuidavam de crianças de rua.

O restante foi dividido entre sete familiares e dois irmãos de criação. Em um bilhete queimado no mesmo dia em que foi lido, Hésio explicou brevemente que o húngaro Gazda era um artista da matéria humana que lhe proporcionou, mesmo que por pouco tempo e com certo requinte ilusionista, se comunicar e se despedir do filho de uma maneira que ninguém jamais entenderia. Anos depois, Maria Lorelli ouviu novamente falar de Gazda em São Paulo. Então soube que o homem misterioso foi um dos mais revolucionários taxidermistas do Leste Europeu, onde trabalhou para czares, aristocratas e líderes socialistas. Se mudou para o Brasil nos anos 1940, fugindo da perseguição nazista aos ciganos.

Curiosidade

Tymbara é uma palavra de origem tupi-guarani que significa “aquele que enterra”.

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