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A consciência de José
“Lendo os ingredientes para ver se não encontra nada de origem animal, não é mesmo?”
No mercado, enquanto eu olhava os produtos na seção de cereais, um camarada, a quem vou chamar de José, passou por mim, me cumprimentou e disse: “Checando se não encontra nada de origem animal entre os ingredientes, não é mesmo?” Balancei a cabeça em concordância e sorri.
Ele continuou: “Cara, aqueles seus textos sobre veganismo mexem com a cabeça da gente. Tenho que reconhecer.” Gostei de saber disso e comentei que a ideia é justamente essa. José deu um sorriso amarelecido e partiu empurrando seu carrinho de rodinhas tortas que dificultavam uma movimentação mais rápida.
Depois de 10 a 15 minutos, na seção de farináceos, o vi na fila do açougue. Provavelmente ele estava aguardando a vez desde que trocamos algumas palavras. Assim que me viu, desviou os olhos. Empunhando uma longa faca recém-usada para fatiar parte de algum animal, o açougueiro ajeitou o boné branco com uma mão enluvada e perguntou o que ele desejava. Mesmo à distância, ouvi sua resposta: “Não desejo nada, meu senhor, nada! Muito obrigado! Tenha um bom dia!”, e se afastou, esfregando a mão sobre o topo da cabeça e empurrando o carrinho em sentido oposto.
Continuando as compras, na seção de hortifruti, fiquei feliz por encontrar brócolis e couve-flor orgânicos a preços acessíveis. Peguei dois de cada, coloquei no carrinho e olhei à minha direita. José, como se carregasse bebês nos braços, deitou duas bandejas de iogurte grego e uma garrafa de bebida láctea dentro do carrinho quando notou minha presença.
Ele corou e tirou todos os laticínios do carrinho, recolocando-os no expositor. Testemunhando a cena, uma idosa baixinha segurando uma caixinha de leite de arroz com as duas mãos falou: “Você fez bem, filho! Leite de bicho faz mal. Olhe como você está vermelho!” Só ouvi um não sonoro e desajeitado que afastou a boa senhora, mas não sem antes fazê-la agigantar os olhos e levar as duas mãos ao coração, sem entender o que aconteceu.
Quando me recordei que em casa não havia mais alho, me apressei até a banca e, coincidência ou não, vi José segurando duas bandejas de ovos de galinha. Ele parecia preocupado em ser visto por alguém, e movia a cabeça de um lado para o outro. Não notou que havia uma plaquinha amarela avisando que o piso estava escorregadio. Gritei seu nome em vão. José não ouviu e foi ao chão, caindo sentado e resfriando o traseiro. Não restou um ovo inteiro.
A raiva era tanta que ele grunhiu: “Nunca mais como ovo na minha vida! Nunca mais! Para os diabos com os ovos!” Sorte ou não, nenhum o atingiu. Me aproximei para ajudá-lo a levantar, só que ele recusou: “Estou bem, David. Me deixe, estou bem!” As pessoas o observavam sem entender o que se passava com José. Preocupado com as horas, caminhei até as seções de produtos de limpeza e higiene, o que me tomou um tempinho considerável.
Já no caixa, logo à minha frente, encontrei José esvaziando o carrinho e colocando as compras sobre o balcão. No fundo, restavam três bandejas de embutidos, um saquinho com carne moída e outro saquinho com bifes. Ele os posicionou sobre o balcão, mas quando me viu logo atrás, levou um susto e sorriu. Retribuí o sorriso e José chamou a atenção da moça do caixa: “Olhe, alguém deve ter colocado por engano esses embutidos e essas carnes no meu carrinho. Isso aqui não é meu. Vou deixar aqui do lado.”
Godard e a Virgem Maria
Je Vous Salue, Marie propõe discussão entre matéria e espiritualidade
Em 1985, o cineasta francês Jean-Luc Godard lançou o polêmico filme Je Vous Salue, Marie que anos depois chegou ao Brasil com o título original, baseado na oração católica. A obra é uma interpretação contemporânea da história da Virgem Maria e se sustenta em diálogos e imagens que propõem uma discussão com requinte de ensaio entre matéria e espiritualidade.
Famoso pela audácia, desinteresse pela objetividade e despreocupação em agradar o público, Godard apresenta duas histórias paralelas em Je Vous Salue, Marie. Na primeira, Marie (Myriem Roussel) é uma esportista adolescente em crise existencial, convivendo com as tentações da modernidade e as incertezas sobre o futuro.
A jovem tem um relacionamento conturbado com o materialista Joseph (Thierry Rode), um cético e imaturo taxista que decide ter relações sexuais com outra mulher após as muitas recusas de Marie. Entre o casal subsiste um antagonismo sutil.
O anjo Gabriel (Philippe Lacoste), sem qualquer característica física ou psicológica de arcanjo, é a materialização do pragmatismo. Jean-Luc criou um personagem frágil e dotado de inúmeros defeitos que, em vez de voar, viaja de avião. Em pleno século 20, assume a missão de fazer Joseph crer que o filho de Marie, com quem jamais teve uma relação sexual, é dele.
Em contraponto a breve história de Maria, sustentada em fé inominável, é apresentada a realidade de um racionalista professor de ciências que refuta a religiosidade em favor da ufologia, gerando assim um embate envolvendo estética e dialética.