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Al-Ma’arri e a guerra civil na Síria
Lendo sobre a tragédia que é a guerra civil na Síria, me recordei que no século XI o poeta e filósofo sírio Al-Ma’arri já criticava o fundamentalismo religioso, a avareza e a ganância, e defendia o direito à vida, inclusive se abstendo de se alimentar de animais. O tempo passou e as tragédias estão aí, reafirmando mais uma vez algo que um filósofo árabe cego já enxergava, temia e condenava no passado.
Plutarco e a relação entre a violência e o consumo de carne
“Me pergunto qual foi a sensação do primeiro homem que colocou a carne de um animal assassinado em sua boca”
Dos filósofos gregos da Antiguidade, é provável que Plutarco, a quem costumeiramente é atribuído o entendimento moderno do que foi a Grécia Antiga, tenha sido o mais enfático e o mais pontual na crítica à exploração animal. Autor de “De Esu Carnium”, ou “Do Consumo da Carne”, escrito no século I, que integra uma de suas obras mais importantes – “Moralia”, o filósofo platonista, biógrafo e ensaísta grego, que se voltava para a discussão das questões morais, escreveu que o “hábito selvagem” do consumo de carne inclina a mente à brutalidade, ao derramamento de sangue e à destruição quando o endossamos e o reconhecemos como parte de uma realidade natural.
No capítulo “Do Consumo da Carne”, da obra “Moralia”, Plutarco defende que desde que o ser humano teve acesso a uma praticamente inesgotável fonte de alimentos de origem vegetal é inaceitável o consumo da carne de animais que não seria possível “sem mascarar o sabor do sangue com milhares de especiarias”. A contrariedade do filósofo grego, que mais tarde influenciaria o vegetarianismo ético no Ocidente, era baseada em uma recusa moral, já que a sua rejeição à carne como alimento era uma consequência da ponderação de que o consumo de carne depende do sofrimento e da morte dos animais, logo uma desconsideração do valor da vida não humana.
Plutarco também escreveu que, ao assar ou ferver a carne, o ser humano altera o seu gosto natural e depois se intruja usando especiarias e mel para cobrir o sabor do sangue e “esconder a sua culpa por comer algo que tinha uma alma”: “Me pergunto qual foi a sensação do primeiro homem que colocou a carne de um animal assassinado em sua boca. […] Ele chamou de iguarias as partes que um animal usava para rugir, falar, mover e ver.” […] Como seus olhos podem admirar o sangue de criaturas abatidas, esfoladas e esquartejadas? Como seu nariz pôde suportar o mau cheiro?”
Para o filósofo grego, se uma pessoa realmente acredita que nasceu para consumir carne, ela deve pelo menos assumir a responsabilidade de matar o que há de comer. Ele diz que quem se considera, de fato, carnívoro, precisa abdicar do uso da faca, da marreta ou do machado; e agir como os lobos, os ursos e os leões, que se alimentam ao mesmo tempo em que matam. Plutarco desafia as pessoas a “rasgarem um boi com os dentes”, “roerem um porco ainda vivo” ou a reduzirem “um cordeiro ou uma lebre em pedaços” usando apenas as mãos e a boca.
Tal costume de não assumir a responsabilidade sobre o abate é o que permite a dissociação entre a morte animal e o consumo de carne. Assim permitindo que o paladar esteja em acordo com a barbárie alimentar. Plutarco cita um episódio em que um lacedemônio comprou um peixe em uma pousada e o entregou ao seu senhorio. O homem então exigiu que o preparasse com queijo, vinagre e óleo. O lacedemônio respondeu que se tivesse todos esses ingredientes, não teria porque comprar o peixe:
“Mas somos tão despreocupados em relação ao nosso luxo sangrento que atribuímos à carne o nome de carne; e então exigimos outro tempero para a mesma carne, misturando óleo, vinho, mel, salmoura e vinagre, com especiarias árabes.” Na perspectiva plutarquiana, Pitágoras se absteve do consumo de carne com razão, ponderando que aquilo a que as pessoas chamam simplesmente de “carne” era parte do corpo de um animal não humano, logo importante a ele. Plutarco condenava a banalização do sangue dos corpos abatidos, esfolados e maculados, observando que o mau cheiro era sempre ofuscado como forma de “não ofender o paladar”.
Ele admite que em outros tempos talvez o consumo de carne pudesse ser justificado pela escassez de alimentos vegetais, dependendo da localização geográfica. Porém, em sua época, o consumo de carne já não era visto como essencial, mas somente uma reafirmação de status, distinção social, e expressão de extravagantes concupiscências. “O seu crescente e despreocupado capricho relacionado à variedade excessiva de provisões [de origem animal] trouxe prazeres tão insociáveis como estes contra a natureza”, anotou Plutarco. Tal observação foi feita pelo filósofo arrazoando que à época uma minoria estava imersa nos excessos da carne. Por isso, ele a considerava também um costume insociável, bravio e segregacionista.
“Que abundância de coisas brotam para o seu uso! De quantas vinhas frutíferas você pode desfrutar! Que riqueza você recolhe dos campos! Que iguarias das árvores e das plantas, você pode reunir! Você pode fluir e preencher-se sem poluir. […] Quanto a nós, caímos sobre a parte mais triste e assustadora do tempo, na qual fomos expostos a desejos múltiplos e inextricáveis.”
O filósofo defendia que todos poderiam viver melhor, de forma mais justa e pacífica, se partilhassem da mesma nutrição sem alimentos de origem animal. No seu entendimento, a exaltação do consumo da carne trouxe a gula e a degeneração, e transformou o racional em irracional. “Que refeição não é cara? Aquela em que nenhum animal é morto”, afirma. Valendo-se dos ensinamentos de Empédocles, Plutarco cita que não devemos ignorar o sentimento, a visão, a audição, a imaginação e a intelecção que cada animal recebeu da natureza para adquirir o que é aceitável e evitar o que é desagradável.
Ele reconhecia a grande diversidade dos alimentos de origem vegetal, assim não vendo qualquer justificativa para que os humanos transgredissem o que ele definia como “lei da natureza”, que era a não intervenção na vida não humana visando o abate que nada atende além dos vícios do paladar. “Por que se deixar levar pela voracidade e pelo frenesi nesses dias, contaminando-se com o sangue, quando há abundância de alimentos necessários à sua subsistência? Por que você acredita que a terra não é capaz de mantê-lo vivo? […] Você não se envergonha de misturar as frutas e os vegetais com sangue e morte?”, questiona.
Plutarco associava à naturalização do consumo de carne e da violência contra não humanos com os hábitos dos mais abastados, porque esses representavam a maior parte dos glutões consumidores de carne de seu tempo, que foram os responsáveis por despertar o mesmo ímpio desejo entre os plebeus e miseráveis. “Ó, terrível crueldade! É verdadeiramente uma visão desconfortável a mesa de pessoas ricas que mantêm cozinheiros e fornecedores à sua disposição para abastecê-los com corpos mortos em sua alimentação diária. Mas é ainda pior ver que os mamíferos são afastados da natureza para que os matem em quantidade que nem mesmo consumirão. Estes, portanto, foram mortos sem propósito”, critica.
Ele qualificava como um equívoco o ser humano se intitular carnívoro, ponderando que nos falta a aptidão e as características dos animais naturalmente carnívoros: “Não temos o bico de um falcão, garras e dentes afiados, nem mesmo um estômago apto a digerir adequadamente uma alimentação pesada de carne. Partindo da suavidade da língua e da lentidão do estômago para digeri-la, a natureza parece renunciar toda a pretensão dos víveres carnudos. […] Uma vez, Diógenes arriscou-se a comer um grande contingente de carne crua, para que pudesse se desfazer da carne preparada no fogo; e enquanto vários sacerdotes estavam ao seu redor, ele colocou a cabeça na sua plataforma, o peixe na boca e disse: ‘É por sua causa, senhores, que me coloco em perigo e corro esse risco.’”
Plutarco não negava que o ser humano é capaz de consumir carne, porém reconhecia que a tolerância humana para o consumo de carne é bem diferente daquela dos animais carnívoros, já que nossas limitações são muito mais axiomáticas: “Temos os prejuízos provocados tanto no corpo como na alma dos consumidores. Os incômodos da digestão e aquela desconfortável sensação de peso.” O filósofo grego acreditava que o consumo de carne brutificava a mente e o intelecto humano. Por isso, frisa em “Do Consumo da Carne”, que o próprio estômago não é culpado pelo derramamento de sangue, mas é involuntariamente maculado pela nossa intemperança.
Ele narra que os primeiros homens a alegarem que não devemos justiça aos animais foram os primeiros a baterem o “aço maldito”, fazendo com o que o boi sentisse a lâmina penetrando sua carne. Baseando-se em suas pesquisas, Plutarco concluiu que tiranos e opressores foram os primeiros a legitimarem o derramamento de sangue. Cita como exemplo o primeiro homem que os atenienses mataram deliberadamente. Mais tarde, incorrendo na prática de matarem outros sem direito a um julgamento justo.
Logo passaram a violentar desnecessariamente animais selvagens e a comê-los. Insatisfeitos com a carne das “feras”, os atenienses passaram a matar pequenas aves e peixes: “E o desejo do abate, pela primeira vez experimentado e exercitado, chegou ao cordial boi, às ovelhas que nos vestem, e ao pobre galo que guarda a casa. Até que, pouco a pouco, a força insaciável fora fortalecida pelo uso, e os homens chegaram ao abate de homens, e ao derramamento de sangue, e às guerras.”
O filósofo grego via o hábito de criar animais dóceis com fins de abate, ou seja, seres indefesos, incapazes de escaparem da crueldade humana, como um exemplo clássico da tirania e da vilania em relação às outras espécies. E mais do que isso, como uma prova incontendível da ação humana em arbitrariedade aos desígnios da natureza. Afinal, sempre escolhiam os animais mais fáceis de serem domesticados fora da natureza selvagem. E a esses animais era legado um destino cruel. Ferros incandescentes eram espetados nas gargantas dos suínos, visando garantir uma carne mais tenra e macia conforme o sangue fluía com mais facilidade em decorrência dos golpes.
Também era costume saltar sobre os ventres e os úberes de porcas prenhas, pouco antes destas parirem, fazendo com que o sangue se misturasse ao leite e aos fetos – o que deixava a “carne mais suculenta”. Os homens cegavam cisnes e outras aves criadas em cativeiro, com a finalidade de as condicionarem a uma alimentação forçada que pudesse enriquecer pratos exóticos. E nada disso tinha relação com a necessidade, mas simplesmente com a glutonaria, o prazer da vilania, na concepção plutarquiana. “O início de uma dieta viciosa é acompanhado por todos os tipos de luxo e carência”, censura.
Dentre os filósofos gregos da Antiguidade, Plutarco recomenda em “Do Consumo da Carne” que aqueles que buscam uma formação humana mais civilizada devem seguir os ensinamentos de Pitágoras e Empédocles, em uma clara referência à defesa da abstenção do consumo de animais. São pensadores que, segundo ele, “incitam os seres humanos a se aproximarem dos outros membros da criação”:
“Chamas selvagens e ferozes outros carnívoros, os tigres, os leões e as serpentes, enquanto manchas no sangue as tuas mãos, e em espécie alguma de barbárie lhes ficas inferior. E para eles, todavia, o assassinato é apenas o meio de se sustentarem; para ti, é uma lascívia supérflua. Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa — a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções, quando na realidade são instâncias e súplicas e rogos que cada um deles nos dirige dizendo: ‘Não é da verdadeira satisfação das vossas reais necessidades que queremos livrar-nos, mas da complacente luxúria dos vossos apetites.’”
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Plutarco nasceu em Queroneia, na Beócia, na Grécia Central, no ano de 46, e faleceu em Delfos, também na Grécia, no ano 120.
Além de “Moralia”, outra obra importante do filósofo grego é “Vidas Paralelas”.
Referências
Plutarchus, Moralia: Volume VI, Fascicle 1 (Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana). C. Hubert. H. Drexler. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. K.G. SAUR VERLAG. Segunda reimpressão da segunda edição de 1958 (2002).
Séneca: “Resolvi abster-me do consumo de carne e, no final de um ano de abstinência, foi tão fácil quanto prazeroso”
“Insaciável, insondável, a gula procura cada terra e cada mar”
Lúcio Aneu Séneca, mais conhecido como Séneca, foi um importante filósofo do Império Romano, dramaturgo de prestígio, conselheiro do imperador Nero e um dos homens mais influentes de seu tempo. Na juventude, ele teve contato com a filosofia por influência de Átalo O Estoico, Sotion e Papírio Fabiano que faziam parte da escola filosófica criada por Quinto Séxtio, combinando pitagorianismo e estoicismo.Em “Epistulae Morales ad Lucilium”, ou “Epístolas de Séneca” ou “Cartas a Lucílio”, Séneca narra que ele decidiu abdicar do consumo de animais no início dos seus 20 anos por influência de Sotion. Costumava dizer-lhe por que Pitágoras se absteve de consumir animais, e por que, mais tarde, ele também fez isso. “[Já] Séxtio acreditava que o homem tinha opções o suficiente sem precisar recorrer ao sangue, e que um hábito de crueldade é formado sempre que o abate é praticado por prazer. Além disso, ele concluiu que deveríamos restringir as nossas ‘fontes de luxo”, argumentando que uma dieta variada era contrária às leis da saúde e não era adequada às nossas constituições.”
Mais tarde, Séneca começou a despertar atenção negativa, porque no império de Tibério César seus hábitos passaram a ser comparados aos de seguidores de religiões estrangeiras, como os cristãos. “Motivado pelo pitagorianismo, Séneca tornou-se um vegetariano estrito. Quando Séneca O Ancião descobriu o novo entusiasmo de seu filho, ele o advertiu sobre as responsabilidades da vida pública ao ser visto como um excêntrico”, consta na página 20 do livro “Seneca: The Tragedies”. Naquele tempo, os primeiros cristãos tinham hábitos vegetarianos e partilhavam da compaixão por todas as criaturas.
Séneca escreveu que os princípios pitagóricos que envolvem a abstenção do consumo de carne favorecem a bondade e a inocência. E mesmo que os benefícios desse não consumo não fossem aqueles enumerados por Pitágoras, principalmente no que diz respeito à metempsicose ou transmigração de almas, que fala que devemos respeitar todas as criaturas porque nós também podemos renascer como animais não humanos, há algo que, do ponto de vista de Séneca é inquestionável – o fato de que abdicar do consumo de animais aproxima o ser humano da frugalidade e o afasta da crueldade contra animais não humanos.
“Eu simplesmente me privo da comida dos leões e dos abutres. […] Nós só reconhecemos o som da razão quando nos separamos da multidão. O próprio fato da aprovação da multidão é uma prova da falta de prática ou de opinião. Pergunte o que é melhor, não o que é costume. Deixe-nos amar a temperança – sejamos justos – deixemos nos abster do derramamento de sangue. Ninguém está tão perto dos deuses quanto aquele que demonstra bondade”, registrou Séneca na epístola 108 de “Epistulae Morales ad Lucilium”.
Séneca cita os ensinamentos de Sotion que afirmava que o homem pode encontrar suficiência de alimentos sem precisar explorar ou matar animais. Segundo ele, a crueldade tornou-se habitual a partir do momento em que a prática de abater animais foi associada à gratificação do apetite. “Movido por esses argumentos, resolvi abster-me do consumo de carne e, no final de um ano de abstinência, foi tão fácil quanto prazeroso”, confidenciou nas epístolas.
De acordo com The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism, de Nathan Morgan, Séneca também foi influenciado pelos ensinamentos de Epicuro e, ao adotar uma “alimentação vegetariana”, ele também passou a criticar a crueldade dos jogos romanos oferecidos como distração aos cidadãos. O que ele definia como uma das decadências de seu tempo, pelo fato de não haver necessidade de instigar a rivalidade entre seres humanos e não humanos.
Em crítica aos hábitos alimentares exóticos da época, o filósofo romano declarou que ninguém precisava de javalis de mais de 450 quilos nem da língua de pássaros raros para satisfazer o paladar ou a fome, em crítica aos excessos despertados pelo consumo de carne: “Devo admirar você somente quando não desprezar o pão simples, quando você se convencer de que as ervas não existem apenas para os outros animais, mas para o seres humanos também. Os vegetais são o suficiente para o nosso estômago e para garantir a continuidade de nossas valiosas vidas.”
Na página 546 do livro “The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life”, editado por Gordon Lindsay Campbell, Daniel A. Dombrowski informa que Séneca acreditava que a causa psicológica do consumo de carne estava relacionada à ambição humana. Essa afirmação vai ao encontro das “Cartas a Lucílio”, especialmente a passagem em que ele lamenta que incontáveis navios de todos os mares eram deslocados com provisões para alimentarem apenas uma boca, uma poderosa, mas ainda assim uma única boca humana, enquanto um boi ficava satisfeito com a pastagem de um ou dois acres.
Ele também observou que enquanto uma floresta era o suficiente para vários elefantes o ser humano seguia sua nefasta jornada como o responsável pela pilhagem de toda a terra e de todos os mares. Isso explica ainda porque ele costumava se referir aos glutões que consumiam grandes quantidades de carne como “escravos da barriga”. Defensor de uma alimentação simplificada, e que não incluía alimentos de origem animal, na epístola 95, Séneca aponta como um problema o surgimento de uma força “supernumerosa” de médicos, de instrumentos cirúrgicos e medicamentos, porque isso significava que o número de pessoas doentes estava aumentando vertiginosamente.
O filósofo romano via isso como consequência de maus hábitos alimentares, entre os quais os excessos do consumo de alimentos de origem animal. “Muitos pratos induziram a muitas doenças. Observe o quão vasta é a diversidade de vidas que um estômago recebe. Insaciável, insondável, a gula procura cada terra e cada mar. Alguns animais perseguimos com armadilhas, redes de caça, ganchos, não poupamos nenhum tipo de trabalho para submetê-los ao nosso jugo. Não há permissão para qualquer espécie viver em paz. Não é de se admirar que com uma dieta tão exagerada as doenças variam tanto”, lamenta na epístola 95.
Correndo o risco de ser executado como um traidor, Séneca foi obrigado pelo governo imperial a abdicar da abstenção de alimentos de origem animal. Seus hábitos alimentares passaram a ser vistos como uma ameaça à ordem. No entanto, isso não o impediu de estimular outras pessoas a seguirem por esse caminho por meio de suas 124 cartas, mais tarde transformadas na famosa obra “Epistulae Morales ad Lucilium”. Ainda assim, abdicar de sua nutrição essencialmente vegetal também não o impediu de ser morto, já que o imperador Nero o acusou de participar de uma conspiração para assassiná-lo.
Até hoje a maior parte dos pesquisadores da história e da obra de Séneca defende que ele jamais participou desse plano. A desconfiança de Nero, supostamente reforçada pela inveja que ele tinha do prestígio de seu conselheiro, custou a vida do filósofo romano que foi compelido a suicidar-se em Roma aos 68 anos, no ano 65 do século I. Além de suas cartas e ensaios filosóficos, outro importante legado deixado por Séneca são as tragédias “Medeia” e “Tiestes”, que influenciaram a tragédia e o drama europeu durante e após o Renascimento.
No livro “Ethics of Diet”, publicado em 1883, Howard Williams enfatiza que Séneca foi um ser humano excepcional, de pensamentos elevados, e essencialmente bom no melhor sentido da palavra; que não se limitava ao lugar-comum e a uma moral convencional. Diferente dos muitos oradores de sua época, que conquistavam facilmente aprovação e aplausos com seus enunciados clichês, Séneca instigava a dúvida e a reflexão, porque entendia que só a mudança de consciência e pensamento poderia permitir ao ser humano rever a sua conduta de vida em todas as suas relações. Os seus discursos não raramente demandavam abnegação, autocontrole e uma consciência para além da concepção ortodoxa do mundo e da vida.
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Lúcio Aneu Séneca, filho de Séneca o Ancião, nasceu em Córdova, atual Andaluzia, no ano 4 antes da Era Cristã. Por influência de sua tia, acabou eleito questor após o ano de 37 do século I, o que deu-lhe o direito de ocupar um lugar no senado romano. Séneca foi considerado o mais importante filósofo estoico durante o Renascimento.
Referências
Seneca. Letters From A Stoic: Epistulae Morales AD Lucilium: All Three Volumes. CreateSpace Independent Publishing Platform; Combined edition (2014).
Phillips, Howard. The Ethics of Diet: An Anthology of Vegetarian Though. White Crow Books (2010).
Campbell, Gordon Lindsay. Daniel A. Dombrowski. The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life. Oxford University Press (2014).
Seneca. Seneca: The Tragedies. Página 20. Series: Complete Roman Drama in Translation. Johns Hopkins University Press; 1st edition (1995).
Tyson, Jon-Wynne. The Extended Circle: A Dictionary of Humane Thought. Penguim Group. United Kingdom (1990).
Agostinho da Silva: “Evito comer animal, coitado do bicho, que culpa tem ele que eu exista?”
Em 1990, o filósofo, poeta e ensaísta português Agostinho da Silva foi entrevistado por Herman José no programa “Conversas Vadias”, da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), de Lisboa. Em um determinado momento, o apresentador perguntou a Agostinho como ele se alimentava, que tipo de cuidado ele tinha com a alimentação para ter chegado aos 84 anos em forma estupenda.
O filósofo deixou claro que não tinha nenhum cuidado em especial com a alimentação, simplesmente evitava comer animais. “Evito comer animal, coitado do bicho, que culpa tem ele que eu exista?”, declarou quando José o questionou sobre o motivo.
Outra curiosidade é que o pensador recusava que o chamassem de guru, visionário ou profeta. “Considero-me uma pessoa que tenta ser o mais simples possível, que deixa que a vida lhe traga os problemas que vai tentar resolver se puder. Mais nada”, respondeu a Herman José.
Vegetariano, Agostinho da Silva é tema da biografia “O Estranhíssimo Colosso”, de Antônio Cândido Franco, lançada em 2015 pela Quetzal Editores, de Portugal. Como bem observado pelo autor, Agostinho acreditava que os animais são nossos companheiros, não nossos escravos e vítimas.
O livro dividido em quatro segmentos aborda também o vegetarianismo do filósofo português que ficou famoso por andar indocumentado, prezar pela liberdade em suas mais variadas formas e dedicar sua vida a seguir na contramão da “normalidade”.
De acordo com Antônio Cândido, Agostinho da Silva se mudou para o Brasil em 1947, instalando-se em São Paulo e depois na Serra da Itatiaia, no Rio de Janeiro. Enquanto estudava entomologia, trabalhou no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e lecionou na Faculdade Fluminense de Filosofia (FFF). Entre os anos de 1952 e 1954, foi professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa.
Em parceria com o médico, historiador e escritor português Jaime Cortesão realizou um grande trabalho de pesquisa sobre a vida do diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão. Agostinho continuou no Brasil até 1969, então retornou a Portugal, onde viveu até falecer em 3 de abril de 1994.
De acordo com o professor Nuno Sotto Mayor Ferrão, Agostinho da Silva foi não apenas um intelectual, mas também um empreendedor, já que no Brasil ele se empenhou na criação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Nacional de Brasília (UNB). “Ele também criou centros de estudos que ampliaram a compreensão da importância da lusofonia”, enfatizou Ferrão.
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Sobre a destruição da escultura de Abul ʿAla Al-Maʿarri
Esta é a escultura de Abul ʿAla Al-Maʿarri, poeta e filósofo sírio que viveu no século XI e tinha uma filosofia de vida que hoje seria qualificada como veganismo. A obra erigida em 1940 foi destruída em 2013 por fundamentalistas “islâmicos” da Al-Nusra, um dos braços da Al-Qaeda.
Al-Maʿarri, um crítico do islamismo, até hoje é considerado um dos maiores poetas da cultura árabe. No entanto, seus poemas, que ao longo de centenas de anos foram estudados nas escolas, hoje são proibidos em cidades dominadas pelo Estado Islâmico e por outros grupos extremistas.
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A escultura foi criada pelo artista plástico Fathi Muhammad em 1944.
Montaigne: “Há um dever geral da humanidade em relação aos animais, que têm vida e sentimento”
“E com que devoção e respeito vejo a própria imagem da amizade, tão pura, nos animais!”
O francês Michel de Montaigne foi um dos mais importantes filósofos e humanistas do Renascimento, e entrou para a história como o criador do gênero literário ensaio, situado entre o poético e o didático. No século XVI, inspirado pelo grego Plutarco, a quem via como um mestre, ele criticava a irracionalidade e o preconceito humano em relação às outras espécies. Seu trabalho, muito avançado para a época, influenciou pensadores como Friedrich Nietzsche, René Descartes, Jean-Jacques Rousseau e Isaac Asimov.
Vegetariano, Montaigne sempre defendeu os animais através de suas obras. Em “Ensaios”, publicado em março de 1580, considerado um dos livros não ficcionais mais influentes de todos os tempos, o pensador declarou acreditar que foi pelo massacre dos animais selvagens que o ferro tingido de sangue esquentou pela primeira vez. “E com que devoção e respeito vejo a própria imagem da amizade, tão pura, nos animais!”, escreveu.
Se aprofundando na história e na relação da humanidade com as outras espécies, o francês conta que antes do surgimento do cristianismo, os turcos realizavam muitas obras de caridade em benefício dos animais, inclusive construíram hospitais para espécies não humanas.
Os romanos tinham um serviço público para a alimentação dos gansos. Já os atenienses, por volta de 490 a.C., ordenaram a libertação das mulas e dos burros após a construção do Templo Hecatompedon, permitindo que eles circulassem por qualquer lugar, sem restrição. No mesmo período, os agrigentinos seguiam a tradição de enterrar com dignidade os seus animais. Muitos monumentos suntuosos foram erguidos para homenageá-los.
“E duravam, visíveis, por vários séculos adiante. Os egípcios enterravam lobos, ursos, crocodilos, cães e gatos em lugares sagrados. Embalsamavam seus corpos e ficavam de luto. Címon [estadista e general ateniense] fez uma sepultura honrosa para os jumentos (…). O político Xantipo mandou fazer uma tumba para seu cão num promontório, na costa do mar, o qual desde então conservou esse nome”, narra Michel de Montaigne.
O filósofo defendia que a humanidade deve justiça aos seus e benevolência às outras criaturas. E no relacionamento entre humanos e animais há uma obrigação do primeiro em zelar pelos demais. “Não temo confessar a ternura de minha natureza tão pueril que me leva a não conseguir recusar ao meu cão a festa que me oferece fora de hora”, confidencia em “Ensaios”.
E foi estudando o trabalho de Plutarco que Montaigne descobriu que não era exatamente a figura caricata do gato ou do boi, por exemplo, que os egípcios, enquanto politeístas, adoravam. O que eles amavam nesses animais era a imagem das faculdades divinas materializadas em suas diversas qualidades, como paciência, singeleza e vivacidade. Além disso, viram que os animais eram incapazes de suportarem a clausura, e isto representava a liberdade que amavam mais do que qualquer faculdade divina.
Por outro lado, o filósofo observou que a religião dos antigos gauleses, povo celta que deu origem aos franceses, incutiu a ideia de valores diferentes para os animais. Eles acreditavam que como a alma é eterna e passível de mudar de um corpo para o outro, o destino de cada um dependeria de sua conduta. “As almas dos cruéis entrariam nos corpos dos ursos, as dos ladrões nos corpos dos lobos, e as dos mentirosos nos corpos das raposas. E depois de vários anos e, através de mil figuras, seriam chamados às suas formas humanas originais, uma vez que teriam sido purificados pelo Rio Lete [que tinha Hades com guardião, o deus do mundo inferior e dos mortos]”, cita Montaigne.
Os gauleses levavam a sério a crença de que os homens valentes poderiam renascer como leões, os voluptuosos como porcos, os covardes como cervos ou lebres e os maliciosos como raposas. “Eu, inversamente, o que tenho de bom o tenho pelo acaso do meu nascimento (…). A inocência que há em mim é uma inocência inata, de pouco vigor e sem arte. Entre os vícios, odeio cruelmente a crueldade, tanto por natureza como por julgamento, como sendo o extremo de todos os vícios”, enfatiza.
Uma das cenas que mais marcou a vida do pensador foi o testemunho da degola de um frango. Além disso, Michel de Montaigne não suportava ouvir os gemidos das lebres frequentemente atacadas por cães de caça. “A caça é uma forma violenta de prazer. Os que devem combater a volúpia a usam de bom grado, mostrando que ela é totalmente viciosa e irracional”, critica.
O filósofo aponta o século XVI como um período de exemplos inacreditáveis de legitimação da crueldade, intensificados principalmente pelas guerras. O passado, segundo ele, não era pior que o presente. Ainda assim, o pensador não conseguia se acostumar com tanta violência. E quanto mais animais eram mortos, mais bárbaro o homem se tornava, ampliando a morte dos seus.
“Eu mal era capaz de me convencer, antes de tê-lo visto, que pudessem existir almas tão ferozes que cometessem assassinatos por prazer – retalhar e cortar os membros de alguém, aguçar o espírito para inventar torturas inusitadas e mortes novas, sem inimizade, sem proveito, e só para o fim de gozar do agradável espetáculo, dos gestos e movimentos lastimáveis, dos gemidos e dos gritos (…)”, lamenta.
E levando em conta esse tipo de experiência, Montaigne escreveu que julgava incoerente as opiniões mais moderadas de raciocínio que tentavam apontar as semelhanças entre os seres humanos e os animais. “Quando tentam compará-los a nós, sem dúvida rebaixo muito nossa presunção e renuncio de bom grado a essa imaginaria realeza sobre as outras criaturas. Mesmo se esse não fosse o caso, há todavia um certo respeito que nos liga e um dever geral da humanidade em relação aos animais, que têm vida e sentimento”, pondera.
O pensador jamais conseguiu entender onde o ser humano busca motivação para perseguir e matar um bicho inocente, que além de não ter defesas, não causa mal a ninguém. “E o cervo que comumente, sentindo-se sem fôlego e sem força, e não tendo outro remédio, se vira e se rende a nós mesmos que o perseguimos, pedindo-nos piedade por suas lágrimas, sangrando e, lembrando, por seus queixumes, um suplicante. Isso sempre me pareceu um espetáculo muito desagradável. Não pego animal vivo a que não restitua liberdade. Pitágoras fazia o mesmo, comprando-os dos pescadores e dos passarinheiros para libertá-los”, assinala.
Platão, em sua perspectiva da Era de Ouro, destaca que uma das maiores conquistas da humanidade foi o estabelecimento da comunicação com os animais, a capacidade de reconhecer as verdadeiras qualidades não humanas. Nesse período, foi validado o valor da inteligência animal, garantindo à humanidade o privilégio de traçar um futuro próspero e harmonioso. “É preciso mais provas do que isso para condenar a imprudência humana em relação aos animais?”, questiona Michel de Montaigne.
Para o pensador, as índoles sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade. Ele cita como exemplo da decadência humana a emergência dos espetáculos de mortes de animais na Roma Antiga. A ânsia por sangue e violência cresceu, e mais tarde surgiram os gladiadores. Ou seja, a violência do homem contra o homem é um desdobramento da barbárie iniciada com a suplantação dos animais.
“A própria natureza (temo) fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, avalia Montaigne.
Um homem à frente do seu tempo
O ensaísta inglês William Hazlitt expressou admiração por Michel de Montaigne, declarando que, distante do fanatismo e do pedantismo, ele foi o primeiro autor que teve a coragem de dizer como se sentia enquanto ser humano. Não era pedante e nem fanático.
À época, seu ensaio, recheado de anedotas e reflexões pessoais não foi bem recebido pelos leitores. Consideraram sua obra deficiente, talvez porque Montaigne tenha revolucionado a literatura não ficcional ao incluir-se como matéria do seu próprio livro, gerando desconforto nos leitores mais conservadores. Mais tarde, Montaigne acabou por ser considerado um dos melhores escritores do seu tempo.
Seu comentário mais famoso e cético é: “Que Sçay-je?”, que significa O que eu sei? em francês da Idade Média. Até hoje Montaigne é considerado um autor moderno, isto porque examinava o mundo através dos próprios olhos, conciliando bagagem cultural, observação e experiência. E a partir daí, formulava juízo sobre tudo. Séculos após sua morte, foi considerado o autor mais acessível do Renascimento. Depois de unir narrativa pessoal e sabedoria intelectual, montaigne se tornou uma referência da literatura moderna não ficcional.
Saiba Mais
Michel de Montaigne foi um político, jurista, filósofo e humanista francês. Para ele, a educação de qualidade só é possível quando a formação de indivíduos privilegia o discernimento moral aliado à prática.
Montaigne, que só teve o seu trabalho devidamente reconhecimento após sua morte, também foi influenciado pelo jônico Pitágoras, pelo ateniense Sócrates e pelo neoplatônico Porfírio.
O pensador nasceu no Castelo de Montaigne em 28 de fevereiro de 1533 e faleceu no mesmo local em 13 de setembro de 1592.
Referências
Montaigne, Michel de. Rosa Freire D’Aguiar. Os Ensaios. Penguin – Companhia das Letras (2010).
The Autobiography of Michel de Montaigne. Marvin Lowenthal. David R. Godine, Publisher (1999).
Williams, Howard. The Ethics of Diet (1883). University of Illinois Press (2003).
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