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O tesouro da Fazenda Brasileira
O dia em que um colono encontrou um pote cheio de moedas de ouro na serraria da Braviaco
Em 1958, João Mariano, colono de uma das maiores fazendas de café de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi convidado por um amigo, também chamado João, para procurar um tesouro enterrado na velha serraria da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) nos tempos da Fazenda Brasileira.
“Ele estava bem animado em trabalhar na fazenda porque ganhou dinheiro o suficiente para comprar uma potranca e uns porquinhos para criação. Um dia, chegou pra mim e disse: ‘Aqui, Graças a Deus, estou muito bem, João!”, lembra Mariano que visitava o amigo com frequência quando anoitecia.
Em uma noite, o companheiro fez uma sugestão: “Ô, João, vamos arrancar um tesouro ali naquela serraria velha?” Sem entender do que se tratava, Mariano titubeou. “Tesouro?”, interpelou. Com olhar sereno e voz remansosa, o homem respondeu: “Sim, um pote cheio de moedas de ouro que enterraram lá há muito tempo, na época da Brasileira.”
Ainda com dúvidas sobre a proposta do amigo, Mariano questionou se ele recebeu algum aviso, teve um sonho ou visão com o tal tesouro enterrado. Depois de acenar negativamente com a cabeça, e justificar que apenas acreditava na crença de que todo lugar abandonado esconde algo surpreendente, o homem se calou. “Procurar algo à toa, sem base, sem cabimento? Falei que assim eu não iria não!”, argumentou.
Um dia, sem fazer alarde, João reuniu seus pertences e partiu com a família. Antes, sem explicar o motivo, avisou ao amigo que decidiu retornar para São Paulo, seu estado de origem. “Só estranhamos porque ele estava bem aqui. Mas no fim achamos aquilo normal, né? Afinal, era comum um ou outro deixar Paranavaí para tentar a vida em outro lugar”, comenta Mariano.
Mais tarde, caminhando em meio à invernada, o colono João Mariano decidiu dar um passeio pela velha serraria da Braviaco. Quando chegou lá, teve uma surpresa. “Vi um buraco no chão e uma marca ainda brilhante, arredondada e exata de um pote. Lá dentro tinha uma moedinha de ouro. Aí falei: ‘Puta merda! Agora sei porque ele foi embora. Voltei e contei pro meu irmão que me lembrou que quando alguém acha um tesouro tem de deixar uma moedinha pra trás, num sinal de boa fé”, narra.
Quando o proprietário da fazenda soube do acontecido, gritou: “Filho da puta! Esse dinheiro estava na minha fazenda, então era meu. “Mas o senhor não foi arrancar o tesouro, não é mesmo?”, questionou Mariano que nunca mais teve notícias do amigo afortunado.
Saiba Mais
A fazenda situada entre a estrada para Tamboara e a Vila Operária somava mais de 400 alqueires.
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Livro sobre a história de Paranavaí está à venda na Fundação Cultural
A obra de autoria do escritor Paulo Marcelo foi publicada pela primeira vez em 1988
Está à venda na Fundação Cultural de Paranavaí, por R$ 30, a nova versão do livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva, publicado pela primeira vez em 1988.
Relançado após 27 anos com recursos do Fundo Municipal de Cultura, o livro oferece aos leitores entrevistas integrais com pioneiros já falecidos há muito tempo e que fizeram parte das primeiras gerações de moradores de Paranavaí – nos tempos da Vila Montoya e Fazenda Brasileira. Tentando ser o mais imparcial possível, Paulo Marcelo apresenta várias versões de muitos fatos históricos, o que foge da unilateralidade e favorece o debate.
E mais importante, com a reedição do livro “História de Paranavaí”, o autor abre um novo caminho para despertar nos mais jovens a identificação com Paranavaí, o reconhecimento da própria identidade cultural regional e a valorização das histórias de luta e sofrimento que centenas de pioneiros viveram, principalmente nas décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950.
Além de escritor, Paulo Marcelo é bacharel em direito e possui licenciatura em geografia. Participou e foi premiado em muitas edições do Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Também recebeu prêmios de menção honrosa no 15º e 19º Jogos Florais de Barreiro, Portugal, e no 1º Concurso de Romances Juvenis da Academia Paranaense de Letras.
Tem contos publicados pela Empresa Tipográfica Casa Portuguesa, de Lisboa, em Portugal, e Casa da Cultura dos Trabalhadores da Quimigal, de Barreiro, também em Portugal. Ademais, é autor dos livros “O Lendário Capitão”, de 2012, e “Xondó e o Furto da Vassoura”, de 2013. “Encantamento”, a sua mais recente obra, contém ilustrações do próprio escritor e traz um conto sobre a história de um casal que se apaixonou em Paranavaí nos tempos da colonização. Para mais informações, ligue para (44) 3902-1128.
Conversando com a filha de Manoel Canjerana
No dia 1º de Julho de 2015, entrevistei Nair Alves Silva, filha de Manoel Alves Canjerana, um dos homens mais temidos do Noroeste do Paraná nos anos 1950. Canjerana e Manoel da Rocha, o Macaúba, caíram em uma emboscada em 4 de julho de 1955 e foram assassinados por dois amigos no Bar do Beni, na Rua Marechal Cândido Rondon, no centro de Paranavaí.
O encontro com Dona Nair foi extremamente importante porque contrapõe com provas o fato de que Macaúba não foi morto em Cidade Gaúcha nem teve o corpo abandonado. Na foto, leio a caderneta de trabalho de Canjerana, com anotações de 1954 sobre a sua atuação nas áreas de desmatamento, inclusive dados sobre cada um dos peões por quem se responsabilizava quando trabalhava como fiscal (gato).
Sobre as caçadas na década de 1950
Década de 1950 – Anos mais tarde, o padre e pioneiro alemão Ulrico Goevert (foto) reconheceu a falta de consciência ambiental de muitos que se mudaram para o sertão do Noroeste Paranaense. Poucos se preocupavam com a preservação da fauna local, tanto que até aventureiros despreparados se arriscavam na mata virgem para caçar onças. Não foram poucos os homens que acabaram gravemente feridos ou mortos durante as caçadas.
Entrevistando Adelchi Ferrari
No dia 11 de dezembro de 2014, passei a maior parte da manhã conversando com o ex-bancário Adelchi Ferrari, uma grande figura histórica de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que em 1954 escapou de ser assassinado em um bar por intervenção do lendário e controverso Telmo Ribeiro, pioneiro que chegou a Paranavaí em 1936. Naquele episódio, o então capitão surrou o homem que já estava com a arma em punho.
O princípio de um fim
Não posso afirmar que foi intencional, mas o autor conseguiu destacar o princípio de um fim, além de um imenso vazio nesta foto que remete a Paranavaí do final dos anos 1940 e início da década de 1950. As raízes entrelaçadas parecem nutrir um desespero que ofusca a figura da moça mais acima.
Incrível como a última árvore tombada em uma área pode parecer tão frágil e imponente, mesmo depois de sucumbir. Com um traçador, e dependendo da espécie, eram necessários dias para derrubar uma árvore, o que explica também porque algumas eram exibidas como troféus.
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Um papo com Augustinho Borges
Eu e Augustinho Borges conversando na manhã de 15 de dezembro de 2014 na Fundação Cultural. Augustinho é uma figura histórica de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Até hoje guarda um cheque de 68 mil cruzeiros assinado pelo controverso capitão Telmo Ribeiro, homem respeitado e temido em Paranavaí nos tempos da colonização.
Até 1964, o capitão foi um dos maiores clientes de Borges na empresa Reta Táxi Aéreo. “Era muito educado e só andava bem vestido. Tinha um Pontiac automático que chamava atenção por onde passava”, lembra. Augustinho jamais se esqueceu do dia em que recebeu uma ligação do ex-governador Leonel Brizola pedindo que ele buscasse o corpo do seu cunhado Raphael Azambuja, covardemente assassinado na Gleba Areia Branca do Tucum a mando de grileiros. O corpo de Azambuja foi enviado para Porto Alegre em um táxi-aéreo da Reta.
Breve história de Paranavaí
Conheça alguns dos fatos mais importantes de Paranavaí de 1910 até a década de 1980
Em 1910, a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), de propriedade do jornalista e empresário baiano Geraldo Rocha, começou a desbravar o Noroeste do Paraná, nominando Paranavaí e região como Gleba Pirapó.
Em 1926, a Braviaco criou uma estrada com 110 quilômetros de extensão ligando a Fazenda Ivaí, que se tornaria a Vila Montoya, ao Porto São José, com a finalidade de promover transações comerciais com Guaíra e Porto Mendes, no Oeste Paranaense, e Argentina para onde o café produzido seria transportado. Pelo mesmo caminho foi enviado todo o equipamento necessário para a viabilização de uma serraria, empreendimento determinante para a construção da sede da Fazenda Ivaí, atual Paranavaí.
A década de 1920 é apontada como a mais difícil para os moradores da colônia pelo fato de terem vivido isolados no meio da mata, correndo o risco de serem atacados por animais selvagens. Além disso, o difícil acesso a outras localidades complicava mais ainda a situação. Até mesmo a carne consumida na Fazenda Ivaí vinha de muito longe, era comprada no Mato Grosso do Sul, para onde um encarregado e alguns peões viajavam enfrentando uma série de desventuras para trazer a boiada em um barco a vapor.
Em 1928, a Vila Montoya, baseada na monocultura cafeeira, ganhou contornos de cidade. A colônia oferecia tudo que era necessário à sobrevivência dos mais de seis mil moradores. No entanto, o único acesso ao distrito era a estrada do Porto São José, na divisa com o atual Mato Grosso do Sul. Todos que iam para Montoya usavam a mesma via, que servia também para ligar a colônia ao Porto Ceará e a Presidente Prudente, no Oeste Paulista, segundo o livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva.
Em 1930, foram trazidas à Fazenda Brasileira cerca de 1,2 mil famílias de migrantes para trabalharem nas lavouras de café sob regime de colonato. O trabalho foi interrompido inesperadamente um ano depois. Após a Revolução de 1930, o título de propriedade da Gleba Pirapó foi cassado, o que comprometeu o desenvolvimento de Montoya.
Em 8 de abril de 1931, ano em que a extinta Vila Montoya foi nominada como Fazenda Brasileira, o interventor federal do Paraná, o general Mário Tourinho, assinou um decreto retomando as terras da localidade e autorizou o início dos loteamentos.
Também na década de 1930, quem precisava viajar para outras cidades do Paraná era obrigado a atravessar a divisa com o Estado de São Paulo, embarcar em um trem que percorria a antiga Estrada de Ferro Sorocabana até Ourinhos, e de lá partir para Tibagi, no Centro Oriental Paranaense, a quem o distrito de Montoya pertencia.
Em 1933, o interventor Manoel Ribas visitou a Fazenda Brasileira. Para facilitar o contato com outras colônias e cidades do Paraná, além de diminuir a influência paulista na localidade, Ribas pediu que o engenheiro civil Francisco Natel de Camargo iniciasse a abertura de outra estrada que começava em Arapongas, no Norte Central do Paraná, se ligando à Estrada Boiadeira. Entretanto, a colonização da Brasileira só voltou a ser intensificada em 1935.
Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Estado do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. Bandeira e o administrador da colônia, Hugo Doubek, fizeram o trabalho de demarcação territorial da colônia a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. Pelo fato da colônia ter surgido sob a égide da cafeicultura, as principais ruas e avenidas foram traçadas visando o escoamento das produções, não o desenvolvimento urbano.
O nome Paranavaí surgiu apenas em 1944, por sugestão do engenheiro Francisco de Almeida Faria que destacou a necessidade de batizar a cidade com nome único. Pouco tempo depois, a partir do neologismo que é uma junção dos Rios Paraná e Ivaí, surgiu a Colônia Paranavaí. Logo muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem.
A partir de 1946, a colonização na região de Paranavaí ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama, de acordo com dados do IBGE. À época, o que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado.
Entre os anos de 1940 e 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, espanhóis, japoneses, franceses, suíços, húngaros, sírios e libaneses, além de povos de outras etnias. Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina.
Em 14 de dezembro de 1951, com o empenho do primeiro vereador de Paranavaí em Mandaguari, Otacílio Egger, que teve ajuda do pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, a colônia conquistou a emancipação política por meio da lei estadual nº 790. No entanto, foi necessário esperar mais um ano para a elevação de Paranavaí a município, após a eleição que elegeu o médico José Vaz de Carvalho como prefeito de Paranavaí. Ele obteve 2702 votos contra 1607 do adversário Herculano Rubim Toledo. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Paranavaí contava com 22.260 habitantes em 1951. À época, Mandaguari tinha 15.434 e Maringá possuía 8.898 moradores.
Em 14 de dezembro de 1952, quando Paranavaí se tornou município, a população local somava 25.520 habitantes, segundo o IBGE.
Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores. A cidade teve uma evolução exemplar. Era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
Nos anos 1980, a pecuária já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí. De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, uma reação ao que aconteceu em 1969, quando a última e mais grave geada dizimou 80% da produção cafeeira. A diversificação de culturas surgiu tardiamente em Paranavaí, marcada por investimentos mais maciços em citricultura e mandiocultura. Desde então a economia local passou por uma nova pluralização. Exemplo disso é o fato de que na atualidade os setores de prestação de serviços, construção civil e comércio também respondem por importante parcela da geração de renda e empregos em Paranavaí.
A fé do sertanejo
A foto que parece tirada do filme “O Pagador de Promessas”, do grande Anselmo Duarte, na realidade é a imagem de um sertanejo que se mudou para Paranavaí no início da década de 1950 em busca de um futuro melhor. Em meio ao vazio, percebe-se um todo que o migrante sonhava em preencher com a própria esperança.
A máfia italiana chega a Paranavaí
Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala
Em junho de 1943, o ítalo-brasileiro Vittorino Alambare e os italianos Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino atravessaram São Paulo e dezenas de cidadezinhas e lugarejos para chegarem ao Noroeste do Paraná. No caminho, encontraram muitos veículos abandonados, se deteriorando. Mas nada chamou mais a atenção dos quatro do que um caixeiro-viajante com idade entre 25 e 30 anos, deitado aos pés de uma bracatinga, ladeado por um jipe com as rodas soterradas.
O rapaz estava morto. Teve os órgãos vitais dilacerados, possivelmente por uma onça. Mas os vestígios de sangue e couro em suas unhas indicavam que lutou com ardor antes de sucumbir. Dentro do veículo, encontraram documentos e uma foto do jovem com a esposa e dois filhos. Paolo se sensibilizou ao ouvir Alambare ler uma carta que o caixeiro jamais entregou à mulher. Na correspondência, Ildefonso Castanho justificou a partida.
“Não quero ser caixeiro-viajante até o dia de minha morte. O que poderia deixar de herança aos nossos filhos? Dívidas? Prometo buscá-los tão logo eu consiga melhorar de situação em um lugar chamado Fazenda Brasileira, onde um amigo me disse ser o direito às terras ofertado a todos que nutrem no coração o sonho de realização. Prometo que lhe enviarei dinheiro o quanto antes. Mande beijos e abraços às crianças e diga que nos encontraremos em breve”, escreveu Castanho, de acordo com o aposentado Genaro Alambare, filho de Vittorino.
Vergatti ficou preocupado com a situação da mulher que teria de criar três filhos sozinha. Em muitos anos, foi a primeira vez que os amigos o viram com olhos marejados por trás de um papel. Enterraram o corpo do caixeiro-viajante na mata, subiram a bordo do jipe Land Rover e seguiram viagem observando o Sol se pondo por trás da densa mata da região de Londrina.
“Onde fica essa Fazenda Brasileira? Seria longe demais? Será que muitas pessoas vivem lá? Parece ser um local pouco habitado. Talvez compense conhecer”, analisou Vittorino Alambare. Os demais também ficaram intrigados. Ainda assim nenhum deles tinha mais interesse no lugar do que Vergatti. O rapaz guardou a carta de Ildefonso Castanho no bolso da calça.
Em Maringá, para onde planejavam se mudar antes do incidente com o caixeiro-viajante, decidiram seguir adiante. No dia 25 de junho, perto de onde surgiria Nova Esperança, um denso nevoeiro matutino atrapalhou a visibilidade da estrada quando Alambare sentiu o impacto e o barulho de algo preso às rodas traseiras. Di Carlo e Comezzino desceram armados e circularam o jipe cautelosamente, revezando olhares em direção à floresta.
Apesar do susto, não havia nada embaixo do veículo. Nas imediações, ouviram apenas um acirrante som de água ecoando entre as copas das árvores. Caminharam alguns metros e encontraram um córrego e uma cristalina mina d’água intocada pelo homem. “Depois do banho, Paolo Vergatti saiu para procurar frutas quando foi surpreendido por uma onça-parda. Com o focinho sujo de sangue, o animal se aproximou dele, o observou, cheirou suas mãos e se afastou, correndo mata adentro. Paolo ficou calado e imóvel, sem entender o que aconteceu”, relata Genaro.
Horas depois de reiniciado o trajeto, encontraram um homem cego de meia-idade sobre um cavalo de pelagem escura. Percorrendo em sentido norte a margem de um carreador da futura Alto Paraná, o sujeito trajava apenas uma calça de estopa. Alambare reduziu a velocidade do jipe e perguntou se havia algum vilarejo por perto. Antes de responder, o homem se apresentou como Adolpho Aureliano. “Perdão se minha voz soa atrofiada, mas faz mais de 20 anos que vivo sozinho. Podem seguir adiante que vão encontrar o que procuram. Não estão longe. Ah! Mas se tiverem fome ou sede, venham à minha casa”, convidou.
Seguiram o galope e a pouco mais de um quilômetro viram um casebre com desenhos esfíngicos nas paredes, registrados com uma mistura de jenipapo e urucum. Dependendo da incidência do sol, as imagens pareciam ganhar vida. “Cada desenho retratava uma fase vivida por aquele homem. Em um deles, o viram arando a terra e recebendo ajuda de crianças. Os cômodos da residência eram divididos por galhos longos, finos e bifurcados”, diz Genaro Alambare.
Após o modesto banquete, Battaglia Di Carlo chamou a atenção dos amigos para uma foto com data de 21 de agosto de 1917 grafada com faca ou punhal na moldura de madeira. Jovial, Aureliano estava sentado em um sofá com a esposa e três filhos. O homem se aproximou e explicou que perdeu a família em 1921. “A maleita levou o que eu tinha de mais importante. A culpa foi minha por ter vindo pra cá em 1913. Não deu tempo de encontrar ajuda. Apesar de tudo, quero ficar aqui até o fim dos meus dias”, frisou.
Impotente e sentindo-se culpado pela morte da esposa e dos filhos que tinham entre cinco e nove anos, Aureliano descampou uma área erma a alguns metros de casa e lá ficou deitado, observando o Sol por horas até perder completamente a visão. “Eu sentia uma queimadura interna tão forte que até anestesiava a queimadura externa. Meu corpo pegava fogo, mas isso não era nada comparado ao meu coração que ardia em chamas”, confidenciou.
No canto da sala havia um piano francês Pleyel bem conservado e coberto por uma capa. Sobre ele, uma partitura de “A Sertaneja”, de Brasílio Itiberê. Sotero Comezzino, que estudou na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma, pediu autorização para tocá-la. Aureliano, que circulava pelo ambiente como se a visão não lhe fizesse falta, acenou em aprovação e exibiu dentes tão brancos que pareciam esmaltados artesanalmente. Nos primeiros minutos, Alambare e Di Carlo ouviram um som estranho vindo do fundo da casa enquanto as mãos de Comezzino percorriam as teclas. Quando se aproximaram, Aureliano estava cuidando dos ferimentos de uma tranquila onça-parda rodeada de filhotes. Sem dizer palavra, se comunicaram com os olhos e voltaram para a sala.
“Aquele eremita transcendeu de alguma forma. Mesmo cego e solitário, não nutria desprezo pela vida, não praguejava. Meu pai dizia que Aureliano descobriu dentro de si algo que só poderia ser sentido ou compreendido por poucos seres humanos”, enfatiza Genaro. Depois da despedida, seguiram viagem. A floresta se tornou mais densa, tanto que em vários trechos tiveram de arrastar árvores tombadas e desviar de cipoais.
Assim que chegaram à Fazenda Brasileira, chamaram a atenção de curiosos na Avenida Paraná, a via mais movimentada da colônia. Crianças descalças cercavam o jipe e gritavam: “Oi, oi, oi, oi, oi!” e “Ô sinhô, de onde cês são?” Os italianos riam, se recordando da infância em Messina, na Sicília. Paolo Vergatti observou um vento repentino obrigando as mulheres a recolherem as roupas ainda úmidas do varal, evitando que a terra arenosa as sujasse. Alambare, que foi pedir informações em uma casa de Secos e Molhados, voltou dizendo que conheceu um fazendeiro chamado Marcolino Rufião. “Ele falou que tem uma terra boa a pouco mais de 20 quilômetros daqui. Quer vender pra voltar pra São Paulo. Se for viável, fechamos negócio”, sugeriu Vittorino.
No trajeto até a fazenda de Rufião, situada na região onde surgiu o Povoado de Cristo Rei, assistiram crianças saltando sobre pequenos tocos, jogando pião, gargalhando e correndo em círculos. “Aqui seremos homens comuns, passíveis de morrer no anonimato”, pontuou Paolo Vergatti. Quando chegaram à propriedade de pouco mais de 110 alqueires, gostaram do que viram. Só que alertaram Marcolino sobre as consequências de uma suposta trapaça.
“Confiamos na sua palavra e acredito que sua intenção de ir embora seja verdadeira. Só que se por ventura formos enganados ou alguém aparecer por aqui reclamando esta terra, vamos atrás do senhor para saldar a dívida”, prometeu Battaglia Di Carlo usando uma flanela do bolso para limpar cuidadosamente uma pistola Parabellum guardada em um estojo com forro de veludo vermelho. Marcolino pediu calma, sorriu e garantiu que eles não teriam problemas.
Na semana seguinte, Rufião não foi mais visto na Fazenda Brasileira. No entanto, após 15 dias, numa noite de sábado, Vittorino, Paolo, Battaglia e Sotero estavam conversando na sala quando ouviram dois disparos contra a porta principal da casa. Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram estrategicamente enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala e atravessava a cozinha, causando buracos de diversos tamanhos. Os italianos ficaram em silêncio. Sem reagir, observaram quais eram os pontos menos atingidos pelos invasores.
Os quartos de Vergatti e Comezzino ocupavam as duas áreas menos vulneráveis da casa. Então se dividiram em duplas e aguardaram a aproximação dos atiradores. Em menos de uma hora, os sicilianos mataram os 12 invasores com tiros de curta e longa distância à base de pistola e carabina. Usaram como ponto de partida algumas fendas que permitiam ver quem se aproximava da entrada. A vantagem é que só podiam ser notadas por quem estava dentro da casa. Os dois últimos tiros foram disparados por Sotero que atingiu a cabeça de um invasor que tentou fugir.
Entre os mortos havia homens de 20 a 40 anos. A maioria se vestia com simplicidade. A exceção era um sujeito que trazia joias e ouro nas mãos, na boca e nos pés. O homem era Marcolino Rufião que num momento de desespero correu para tentar salvar a própria vida. “A inexperiência deles era tão grande que parecia que estávamos abatendo animais indefesos”, comentou Comezzino com os amigos.
Os corpos foram colocados dentro do caminhão de Rufião e enterrados numa área de mata nativa a cerca de dez quilômetros da fazenda, com exceção do cadáver de Marcolino, depositado em um buraco mais distante. O posicionaram com o peito para o chão. Suas pernas e braços foram cruzados e amarrados com retalhos das roupas ensanguentadas dos homens que morreram sob seu comando. Antes de taparem o forame com terra, seguraram a cabeça de Rufião e introduziram em sua boca dezenas de bagas de beladona.
“As pernas e os braços cruzados simbolizavam o desencontro, a perdição. Um desejo de que aquele homem nunca mais encontrasse o seu caminho, nem em outra vida. E os frutos tóxicos colocados em sua boca indicavam que foi condenado a passar a eternidade ébrio. Queriam que ele fosse reconhecido no outro mundo como um perene repositório de erva daninha”, relata Genaro, acrescentando que a boca do fazendeiro foi lacrada com a manga longa de uma camisa encharcada com o sangue do homem mais jovem do bando. Dias depois, o caminhão de Marcolino foi abandonado no Ranchão de Zinco, um cemitério de veículos perto do Porto São José.
Mesmo com o desaparecimento de Rufião, ninguém apareceu na Fazenda Niente, dos italianos. E conhecendo a má fama do homem, a polícia ficou satisfeita com o sumiço. Mais tarde, os quatro amigos foram até a Brasileira fazer compras num armazém na Avenida Paraná. Lá, ouviram uma história sobre uma família de italianos que estava se mudando para a Brasileira, trazendo um baú de barras de ouro. “A última vez que vi Marcolino, ele me disse que tinha uma proposta a fazer a esses italianos”, falou um senhor de olhos miúdos segurando um copo de cachaça durante conversa com um compadre.
A ideia de que Rufião confundiu os sicilianos com outra família de italianos que nunca chegou ao povoado intrigou Comezzino e Bataglia. Sotero gargalhou tanto na saída do armazém que chegou a esticar uma grande cicatriz que possuía embaixo do queixo. Paolo Vergatti se mantinha disperso, alheio às brincadeiras dos amigos. Em julho de 1943, pediu a ajuda de Alambare e pagou a um advogado de origem polonesa para datilografar uma carta com destino a Palmas, no extremo Sul do Paraná. A correspondência foi despachada pelos Correios de Londrina através do motorista da catita que fazia a linha Londrina – Fazenda Brasileira.
Junto da carta, Vergatti, se passando por Ildefonso Castanho, enviou um pouco de dinheiro. Dois meses depois, recebeu uma correspondência de Júlia Ramalho contando como os filhos estavam crescendo. Paolo se extasiava com o carinho e compreensão embutidos à escrita da moça. Era como se a chegada daquele pedaço de papel fosse a razão de sua existência, mesmo ciente de que as cartas eram destinadas ao falecido, não a ele.
Na segunda carta de Júlia, duas das crianças escreveram seus nomes no rodapé. Com o tempo a mulher ficou muito surpresa. Ela recebia por mês até três vezes mais do que o necessário para as despesas familiares. Era um sonho a possibilidade do marido ter se tornado alguém tão bem-sucedido em pouco tempo. Por correspondência, Vergatti se apaixonou por Júlia e adotou a personalidade de um pai de família. A natureza gentil e fraternal da moça o encantava. Júlia estranhou apenas quando o suposto marido pediu-lhe que banhasse a carta em seu perfume antes de enviá-la a ele. Ildefonso talvez fosse amável, mas não parecia dominado pelos rompantes passionais de Vergatti.
Sempre que o questionava sobre o dia em que poderia partir com os filhos para encontrá-lo, ele inventava alguma desculpa. Júlia suspeitou que o marido tivesse outra mulher na Fazenda Brasileira. A verdade é que Paolo temia a reação de Júlia. “À mesa, imagino ela me pedindo para levá-la à vila. No campo, vislumbro Roberto e Paula [filhos de Júlia] me convidando para brincar de esconde-esconde. Ah, Romeu! [o terceiro filho ainda bebê] O embalo no colo e o levo para conhecer os cafezais, onde seus intensos olhos negros, como pequeninos diamantes abissais, idealizam no solo arenoso o arquétipo de um parque. Sinto-me neste momento como um verme; incapacitado, inútil, infrutuoso! Se ei de pertencer a morte, que me leve para os umbrais rapidamente! Irrita-me a espera, mesmo quando o destino é deixar de ser humano para tornar-me húmus para esta terra”, segredou Genaro, citando trechos do rascunho de uma carta.
Em agosto de 1945, completou dois anos que os italianos se dedicavam à produção de café, milho e algodão. Sem contar com ajuda externa, trabalhavam apenas para ocupar o tempo e evitavam interagir com curiosos. Iam até a área urbana da Brasileira apenas quando necessário, passando despercebidos pela maioria. Em fevereiro de 1946, Júlia se irritou porque não recebia cartas do marido há mais de um mês. Então viajou para a Brasileira com o irmão Agnaldo Ramalho e os três filhos.
Graças à ajuda de um rapaz chamado Pedro, que era balconista em uma casa de secos e molhados, ficou sabendo que ninguém conhecia Ildefonso. Mas o jovem percebeu que a descrição do lugar de acordo com a correspondência era a mesma da propriedade de quatro italianos que faziam compras ocasionais no armazém. Então Julia decidiu se arriscar. Achou a fazenda, se aproximou da entrada da casa e antes que chamasse alguém foi recebida por Gernaro Alambare que trazia uma faixa preta no braço. De aspecto taciturno, não se importou em ser visto pálido, com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar.
Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino estavam mortos desde janeiro de 1946, vítimas de uma epidemia de leishmaniose tegumentar americana (LTA) que assolou a região. “Meu pai pediu que o irmão de Júlia levasse os sobrinhos para passear pelo pomar e contou a verdade a ela. Disse que Ildefonso Castanho morreu em 1943 e por compaixão Paolo Vergatti se passou por ele. Se apaixonou por Júlia, só que não teve tempo de ganhar coragem para relatar toda a história, preferindo se corresponder por dois anos e meio, enviando até três cartas por semana”, menciona Genaro.
Vittorino a levou para ver os túmulos dos três amigos, enterrados lado a lado, numa área coberta por acácias, a sudoeste da casa principal. Não havia nada escrito nas modestas e pequenas lápides brancas que traziam o mesmo desenho de três punhos unidos. Confusa sobre tudo que ouviu, e com as pernas trêmulas, Júlia agarrou o próprio vestido com as unhas e começou a chorar e soluçar diante do túmulo de Vergatti.
Sozinho, Alambare, que nunca entendeu porque a doença não o matou, retornou para Santos. Antes entregou a Júlia todo o dinheiro de Paolo Vergatti, guardado em uma mala escondida numa tulha. Acompanhada da família, a moça se mudou para a propriedade com o consentimento de Vittorino. Em pouco tempo, aprendeu a amar o homem que nunca conheceu. Todos os dias pela manhã, Júlia carregava um banquinho de cedro até o túmulo de Paolo Vergatti. Sentava ao seu lado e lia as dezenas de cartas enviadas por ele. Foi assim até outubro de 1967, quando Júlia faleceu em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).
Vittorino recebeu a notícia em dezembro do mesmo ano, junto com a informação de que os filhos dela venderam a fazenda. Em janeiro de 1968, o novo proprietário demoliu a casa, as lápides e as acácias, relegando ao esquecimento a passagem dos amigos italianos por Paranavaí.
Sicilianos articularam o assassinato de um líder da Ndrangheta
Membros de um clã da Cosa Nostra de Messina, na Sicília, Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo, Sotero Comezzino e Vittorino Alambare ocupavam posições de destaque na organização. De acordo com Genaro Alambare, Vergatti e Di Carlo eram caporegimes (capitães) especialistas em minimizarem conflitos entre as famílias, evitando guerras desnecessárias.
Comezzino, conhecido como o “carrasco de sottocapo”, era um dos soldados mais temidos da Sicília nos anos 1930, considerado o responsável pela morte de cinco subchefes da Camorra e da NDrangueta. Alambare era um associado da Cosa Nostra e contrabandista com passagem livre pelo Porto de Santos.
O irmão mais velho de Battaglia, Domenico Di Carlo, foi um guerrilheiro da Resistência Italiana que ajudou a capturar e assassinar o ditador italiano Benito Mussolini. Os três fugiram da Itália após articularem o assassinato de um dos principais líderes da Ndrangheta, a máfia calabresa. O clã de Paolo, Battaglia e Sotero era contra a exploração de crianças que se expandia pelo país.
Curiosidade
Mesmo depois de Paranavaí ser desmembrada de Mandaguari em 1951, muitos ainda se referiam ao município como Fazenda Brasileira por causa do nome que surgiu na década de 1930.