Archive for June, 2015
Lembranças do jardim de infância
Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas
Lembro como se fosse hoje das aulas do jardim de infância da Escola Vicentina São Vicente de Paulo, no final dos anos 1980. Eu tinha cinco anos e estava aprendendo a passar algumas horas longe da minha família. No primeiro dia de aula, enquanto meu irmão mais velho não soltava a mão da minha mãe, chorava e pedia pra voltar pra casa, eu me silenciava diante de um mundo totalmente novo. Também me sentia mais seguro porque estava usando a minha botinha do Rambo. Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas.
Nunca tinha visto tanta gente pequena como eu junta em um mesmo local. Naquele tempo, as crianças chegavam à escola carregando doces nos bolsos. Tudo era permitido para que se comportassem pelo menos até os pais irem embora.
Os mais desajeitados eram asseados pelas mamães com lenços de pano sempre ao alcance das mãos. A pressa mais do que constante se intensificava quando uma das freiras da escola acionava um botão que emitia um som semelhante ao de um sino. Então um barulho dissonante de passos e vozes ecoava pelo pátio de piso liso e cintilante que sempre me parecia enorme, mesmo não sendo.
Antes da minha mãe ir embora, eu era conduzido a uma fila por ordem alfabética ou de altura. Então cantávamos o hino nacional em posição de sentido. Me sentia um soldadinho quando observava várias crianças perto de mim com o corte de cabelo igual ao meu, o chamado surfista, asa delta ou “corte de penico” para os zombadores.
Na sala de aula, um ambiente multicolorido que estimulava tanto o raciocínio lógico quanto o abstrato, eu enxergava apenas diversão e passatempo. Sentado em uma cadeirinha azul a poucos centímetros do chão, gostava era de ouvir historinhas fantasiosas sobre bichos e crianças. “João e Maria”, “O Pequeno Polegar”, “João e o Pé de Feijão”, “O Soldadinho de Chumbo” e “Rumpelstichen” me acompanharam por muito tempo, nutrindo a minha imaginação. Mas nenhuma outra história me fez sonhar tanto no jardim de infância como “A Festa no Céu”.
Empolgado, um dia cheguei em casa, joguei a mochila e contei ao meu pai o que tinha ouvido. Então ele narrou uma versão mais pomposa, imitando os sons dos animais. Entre palavras e coaxos, dublava um sapo mágico como ninguém. Mesmo assim eu ficava triste e com dó dos bichos que não sabiam voar e não poderiam se fartar em um banquete edênico.
Como eu ainda estava aprendendo a ler e escrever, acabei por criar as minhas próprias versões em sonhos. Na primeira, corri pela floresta, gritando os nomes dos animais e distribuindo asas para que pudessem voar. Na segunda, encolhi com assopros todos os bichos da mata que não sabiam voar e os escondi dentro da viola do urubu convidado para animar a festa no céu.
Mais tarde, a ideia de animais falantes continuou me acompanhando, tanto que um dia cheguei em casa e contei à minha mãe que tinha encontrado um cãozinho mestiço ferido perto da Avenida Distrito Federal clamando por ajuda. “Ele estendeu a patinha, olhou pra mim com cara de choro e disse: ‘por favor, me ajude! Tô com muita dor, me leve daqui. Deixa eu ir pra sua casa’. Quando tentei levantar o bichinho, ele colocou as patas em volta do meu pescoço, fechou os olhos e morreu”, relatei bastante sensibilizado.
Na escolinha, eu e Fabrício entrávamos furtivamente na casa das bonecas, um ambiente rosa proibido aos meninos, para ver como era e o que tinha lá dentro. Arteiros, mudávamos muitas coisas de lugar, saíamos de fininho e íamos direto ao parquinho, fingindo que não tínhamos feito nada. Quando as suspeitas recaíam sobre nós, sorríamos com certa inocência diante do olhar reprovador da orientadora, uma freira corpulenta, alta e sisuda que diziam carregar no bolso uma palmatória borrachuda que fazia as mãos formigarem por até uma semana.
Fiquei mais assustado quando espalharam um boato de que no piso superior da escola existia um quartinho sem janela e iluminação, onde as crianças mal comportadas ficavam presas e recebiam ocasionalmente golpes de férula. Meu corpo miúdo estremecia, meus olhos estalavam e eu sentia uma ligeira fraqueza quando pensava na possibilidade de ser enviado para aquele lugar.
Meus medos só eram amenizados quando a professora Angela falava comigo. Então o breu dos meus pensamentos eram descortinados por rajadas de cores e luzes que me faziam flutuar na inércia de um paraíso cinematográfico. No recreio, a imaginava ao meu lado no banquinho dividindo um lanchinho Recreio ou Mirabel. “Talvez um dia a gente partilhe um Dedito. Humm…será que ela prefere pão com Cremutcho?”, refletia enquanto balançava os pés que mal alcançavam o chão.
Em tempo de parque de diversões, nem prestava atenção no que a professora dizia. Ficava pensando em nós dois na roda gigante vendo as luzes da cidade, comendo maçã do amor e eu ganhando pra ela um urso de pelúcia depois de dar um tiro certeiro com uma espingardinha de rolha na testa de um gremlin.
Também foi com cinco anos que tive minha primeira experiência com a morte. Meu amiguinho Fabrício, que morava nas imediações da Rua Silvio Vidal, perto do NIS Central, estava passeando de bicicleta quando foi atropelado por uma carreta. Fiquei confuso porque não sabia o que a morte significava exatamente. Nem tinha ideia de que seu corpo miúdo seria sepultado dentro de um caixão lacrado. Então eu perguntava à minha mãe se eu teria a chance de brincar com ele algum dia; se o Fabrício não estava apenas dormindo e um dia iria acordar e juntos iríamos até a Padaria Pão de Açúcar comprar sodinha.
Com o passar dos meses, comecei a entender que a morte era um desencontro sem data para chegar ao fim. Falavam que ele foi para o céu, mas eu olhava pra cima, o procurava e não o enxergava. “Será que existe um céu diferente ou essas nuvens estão escondendo ele?”, me questionava sentado no meio-fio na entrada de casa. Queria voar que nem o urubu da “Festa no Céu” e procurar o Fabrício. Achava que ele poderia estar deitado num lugar tão alto que só quem tinha asas poderia alcançá-lo.
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Uma vida em sintonia com a arte
Talise Schneider, a atriz e bailarina que há anos se dedica ao desenvolvimento cultural de Paranavaí
Em 1993, Talise Schneider tinha seis anos quando fazia frente aos outros alunos da Escola Municipal Elza Caselli, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, na hora de declamar nas comemorações do Dia das Mães e da Semana da Pátria. Foi assim, como numa brincadeira de criança, que começou a descobrir na arte uma maneira de transmitir impressões, pensamentos e sentimentos.
“Sempre gostei de teatro e dança. Sou fruto das oficinas de teatro da Casa da Cultura [Carlos Drummond de Andrade] com a atriz e professora Rosi Sanga e também das oficinas do Sesc com a atriz e professora Tânia Volpato. Ou seja, Cia. Oficinas e Grupo Tasp”, explica. Bailarina e atriz profissional, Talise se recorda com nostalgia das dezenas de espetáculos que encenou ao longo dos anos.
Entre os marcantes, cita “O Auto Popular de Romeu e Julieta”, da Cia. Oficinas; “Peter Pan”, “Refúgio das Fadas”, “O Grande Circo Paquita”, “O Mundo na Dança” e “La File Mal Gardé”, da Ballet Devant; “Sapo com Medo de Beijo”, da Vinil Cia. de Teatro, formada por integrantes do Médicos do Humor; “DiverCidade” e “Arte em Movimento”, da Varanda Cia. de Dança; “Ponto Azul”, com o grupo Cogitare; e “Bem Brasil”, “Dancing Movies”, “Dez Anos Dançando pra Você” e “Vem Dançar Comigo”, do Grupo de Dança Maria Teresa Fávero. “Foram muitos espetáculos. É até injusto listar apenas alguns”, admite.
Versátil, participou até de um grupo de viola da Fundação Cultural de Paranavaí e escreveu uma crônica publicada em um livro da escritora Cleuza Cyrino Penha. Na obra, Talise fala dos encontros que a vida proporciona. “Isso é o mais legal da vida. Acho que o que nos move são os encontros e as perguntas”, comenta com um sorriso cativante.
Baixinha e de fisionomia delicada, a artista admite que os seus maiores xodós são os grupos Médicos do Humor e Varanda Cia. de Dança. O primeiro foi fundado em 2008, após o resultado positivo de uma visita em que Talise e alguns amigos se vestiram de palhaço para visitar os pacientes da Santa Casa de Paranavaí. “Géssica Andrade, Jakeline Parron e Adauto Soares me incentivaram e juntos criamos o projeto Médicos do Humor que em julho completa sete anos trabalhando com a humanização”, comemora.
Aos finais de semana, a atriz se dedica exclusivamente ao Médicos do Humor que graças ao seu empenho possui dezenas de participantes. Além de qualificar os voluntários, Talise ministra aulas, coordena encontros e participa dos plantões no hospital, onde os acamados se distraem com brincadeiras e palavras de conforto da trupe. “Atendemos em média 200 pessoas a cada domingo. Já fizemos também visitas aos sábados em asilos, creches e eventos”, destaca.
Questionada se o Médicos do Humor já transformou vidas, Talise Schneider afirma que sim, principalmente a própria. Atribui à arte o seu desenvolvimento humano e o privilégio de ver os amigos que participam do projeto crescendo e “ganhando o mundo”. “Minha vida mudou bastante depois que entrei no grupo. Me tornei uma pessoa mais madura e melhor perante a sociedade graças à Talise. Tudo que ela faz tem um propósito maior. Ensina que você pode ajudar as pessoas e consequentemente ser ajudado”, garante um dos Médicos do Humor, Gustavo Peres.
A opinião também é dividida por Mariana Fusco que ingressou no grupo em 2009, quando se tornaram amigas após se conhecerem no curso de pedagogia da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (Fafipa). “A admiro muito pela sua preocupação com crianças hospitalizadas e sua disposição com a dança e o teatro. A considero mais que uma amiga, é uma irmã que sempre esteve presente em momentos de alegria e de tristeza”, comenta Mariana.
Talise agora está se preparando para ampliar a área de abrangência do Médicos do Humor. Além de abrir vagas para novos voluntários, vai criar campanhas e montar equipes para ajudar em comunidades carentes. “É um projeto que estimula o contato com pessoas em situações adversas. Temos a chance de conhecer histórias que moldam a nossa jornada, nos fazem avaliar onde estamos errando e o que podemos melhorar. Não tem nada melhor do que ver um projeto sair do papel e se tornar realidade”, enfatiza.
Com o Médicos do Humor, Talise Schneider conseguiu estreitar o relacionamento de muita gente com a arte. Quem antes não tinha o hábito de prestigiar eventos culturais, por exemplo, hoje não perde a oportunidade. “Estimulo todos a serem participativos. É gratificante vê-los assistindo espetáculos de teatro, dança e música. Percebo a grande diferença quando lembro que muitos nem conheciam o Teatro Municipal e a Casa da Cultura”, frisa.
“É uma menina artista, feita de inspiração, luta e coragem”
A bailarina e arquiteta Patrícia Romera relata que sempre quis participar de uma companhia profissional de dança, mas foi somente depois de conhecer Talise Schneider no Grupo de Trabalho (GT) de Dança de Paranavaí que acreditou na possibilidade do sonho tornar-se realidade. “Ela tem o dom de fazer os planos acontecerem. Foi assim que criamos a Varanda, inclusive o nome é uma ideia dela. É uma ótima parceira de criação em todas as horas, profissional exigente e sabe comandar um grupo”, revela.
O projeto deu tão certo que logo começaram a se apresentar em Paranavaí e em outras cidades do Paraná. “Até fomos selecionadas em um edital cultural do Sesi, uma grande conquista para nós”, avalia Talise que atualmente está empolgada com a montagem do espetáculo “Metade”, baseado na música de Oswaldo Montenegro. A intenção é comover o público com coreografias sobre medos, amores, loucuras e desejos. “Com movimentos e expressões, mostramos as metades que somos em cada momento que vivemos”, poetiza a bailarina que também está realizando pesquisas com a Vinil Cia. de Teatro e deve estrear um espetáculo até o final do ano.
A bailarina e professora Cristiane Ferreira, proprietária da Escola de Danças Ballet Devant, uma referência na descoberta de talentos para a Escola de Dança Teatro Guaíra – de Curitiba, e Ballet Bolshoi Brasil – de Joinville, conta que Talise Schneider ingressou no ballet em 2007. “Foi depois que a convidei para fazer um dos personagens principais do espetáculo ‘Peter Pan’, quando ela interpretou o braço direito do Capitão Gancho. Me surpreendi com seu amor pela dança, tanto que ficou sete anos aqui, firme e forte, até se formar em ballet clássico. É muito dedicada como profissional, se entrega completamente”, garante Cristiane que vê na ex-aluna um grande futuro na dança contemporânea, modalidade com a qual Talise mais se identificou.
Além de atriz, bailarina e voluntária, a jovem também atua na Fundação Cultural de Paranavaí. Tudo começou em 2007, quando o seu talento garantiu uma oportunidade de ministrar oficinas de teatro e dança na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. Em 2011, se tornou assessora de projetos culturais e em 2013 foi promovida a gerente de desenvolvimento cultural. Hoje, Talise Schneider é diretora geral da Fundação Cultural, o que representa grande responsabilidade sobre o desenvolvimento da cultura de Paranavaí. “Amo muito o que faço. Gosto de ver as pessoas envolvidas no processo. Adoro as produções, bastidores e o frio na barriga antes de subir ao palco. Gosto de todos os segmentos artísticos, me identifico com tudo”, assegura.
De acordo com a bailarina Cristiane Ferreira, 90% de tudo que envolve o Festival de Dança de Paranavaí só é concretizado graças à dedicação de Talise. “Ela tem uma responsabilidade muito grande e consegue lidar com isso muito bem. Organizar um festival é bem mais complicado do que um espetáculo. Há muitas coisas que podem sair de controle e você precisa agir rápido”, pondera Cristiane.
A atual diretora geral da Fundação Cultural também teve papéis determinantes na realização do Festival de Teatro de Paranavaí e Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Talise Schneider é presença constante nos eventos culturais locais. Sempre educada e sorridente, mesmo quando precisa trabalhar aos sábados, domingos e feriados. “É uma menina artista, feita de inspiração, luta e coragem. Faz trabalhos lindos de entrega ao próximo. Ela coloca não apenas o seu suor em cada movimento, mas toda a sua alegria e desejo de fazer cada vez melhor. Que o universo permita que ela continue nesse movimento sempre livre para o sucesso dela e da vida artística de nossa cidade”, elogia a atriz profissional e professora Rosi Sanga.
Frase de Talise Schneider
“A gente sempre tenta mudar o mundo, mas cada um tem um olhar diferente para mudar o mundo. A gente não sabe o que se passa dentro do outro, dentro das pessoas. Mas todo mundo pode agregar, ajudar…”
Depoimentos na íntegra
“A Talise gosta de participar, de se envolver. Lembro quando ela teve a ideia de criar a Varanda. Se empenhou muito e depois me convidou para ser a madrinha da companhia. Fiquei muito feliz. É uma pessoa que gosta de desafios e está sempre apta a superá-los.”
Cristiane Ferreira, bailarina e proprietária da Escola de Danças Ballet Devant.
“É difícil descrever o que você sabe e pensa de uma pessoa em poucas palavras. A Tali deve não saber, mas ela é figura fundamental em minha vida. Desde que entrei no Médicos do Humor e a conheci, minha vida mudou consideravelmente. Se pudesse resumir em uma palavra tudo isso, seria amadurecimento. Ter me tornado uma pessoa mais madura e melhor perante a sociedade, graças a outra pessoa que me influenciou a ser assim. Tudo o que ela faz, tem um propósito muito maior. Ela ensina que você pode ajudar as pessoas e consequentemente, ser ajudado. Ela mostra que você é capaz de fazer coisas que achava não ser capaz. Isso é dom pra poucos. Eu a amo muito e agradeço demais por tudo o que faz por mim. Sempre.”
Gustavo Peres, integrante do Médicos do Humor.
“Em 2009, na faculdade, cursando pedagogia conheci uma grande pessoa por quem tenho um imenso carinho. Na época, ela já desenvolvia o trabalho com o grupo Médicos do Humor, do qual comecei a fazer parte no mesmo ano. Conheci um pouco mais dessa pessoa e comecei a admirá-la por sua relação com a arte. A considero mais que uma amiga, como se fosse uma irmã e que esteve sempre presente em momentos de alegria e de tristeza. Nunca faltei a uma apresentação dela. Me recordo que no ano passado em sua formatura de ballet, eu estava em uma viagem com a escola onde trabalho, e demoramos para voltar. Cheguei em casa e me arrumei em 10 minutos para não perder sua dança de formatura, pois se perdesse ela me mataria. Essas foram suas palavras ao telefone. É apenas uma lembrança de muitas histórias, vivências e cumplicidade que compartilhamos. Sei que posso contar com ela a qualquer momento e sei que este sentimento é recíproco.”
Mariana Fusco, integrante do Médicos do Humor.
“Conheci a Talise por volta de 2009, através da Cristiane Ferreira, da Ballet Devant, quando começamos a dançar juntas nos fins de semana. Em 2011, nos aproximamos mais e em 2012 algumas circunstâncias na vida da Talise mudaram e nós fomos morar juntas. Foi nesse período que comecei a conviver realmente com ela e foi muito tranquilo. Nosso relacionamento era baseado em valores comuns e zero julgamento das atitudes uma da outra. Sempre se pode contar com uma opinião sincera vinda da Talise, mesmo que não seja a que você quer ouvir. Na época em que fomos morar juntas, foi reorganizado o GT de Dança de Paranavaí e éramos membros. Sempre sonhei em participar de uma companhia profissional de dança. No GT, a Talise começou a compartilhar desse sonho comigo e a ver possibilidades de realizações. Esse é o bom de sonhar junto com a Talise! Se eu sonho sozinha, eu continuo sonhando e esperando as coisas um dia acontecerem. Se eu sonho com ela, as coisas se tornam realidade. Esse é o dom dela! Foi a Talise junto com o Amauri Martinelli [atual presidente da Fundação Cultural de Paranavaí] que tornou possível a criação do grupo Varanda (nome que foi ideia dela inclusive). Além de amiga doida, oponente de conteúdo para discussões profundas e parceira de criação em todas as horas, ela é profissional exigente e sabe comandar um grupo para fazer as coisas acontecerem; seja para realizar um trabalho filantrópico com o Médicos do Humor, ajudar um amigo num momento difícil, como o bailarino Mario Gilberto, ou para organizar um grande evento como o Festival de Dança de Paranavaí. Em qualquer momento, fazer parte da equipe da Talise é garantia de diversão, respeito pelo trabalho dos outros, tranquilidade e confiança na liderança e parceria, sempre! Também é uma pessoa espontânea, cheia de projetos e disputada entre os muitos amigos apaixonados por ela.”
Patrícia Romera de Paula, bailarina e sócia da Varanda Cia. de Dança.
“Bem, o que falar de Talise? O que falar dessa menina artista? Digo que um artista não é feito só de talento, que essa moleca tem de sobra. Um artista é feito de inspiração, luta e coragem, qualidades que ela também tem. Vejo isso em sua dança. Ela coloca não apenas o seu suor em cada movimento, mas toda a sua alegria e desejo de fazer cada vez melhor. Vejo isso no seu trabalho com o Médicos do Humor, um trabalho lindo de bem ao outro, de entrega ao próximo. Que o universo permita que ela continue nesse movimento, sempre livre, sempre mais e cada vez melhor – para o sucesso dela e da vida artística de nossa cidade.”
Rosi Sanga, atriz profissional e professora de teatro.
Guerra da Tchetchênia, irmãos Tsarnaev e o orgulho “americano”
Por que esses estadunidenses tão patriotas não se recusaram a enterrar gente como Jeffrey Dahmer?
Estudei a Guerra da Tchetchênia durante muito tempo. E isso me levou a me aprofundar no perfil e na formação cultural, social, política e religiosa dos tchetchenos. Ainda assim, não me considero um entendido do assunto. Longe disso. Sou apenas um entusiasta, no máximo um curioso. Tenho como referência um jornalista que talvez seja um dos maiores especialistas do mundo no assunto, Barry Renfrew, dos EUA, que por anos conviveu com os tchetchenos quando era correspondente da Associated Press.
Dito isso, afirmo aqui mais uma vez, assim como o fiz em 2013, que suspeito que os irmãos Tsarnaev não sejam os responsáveis pelo atentado da Maratona de Boston. Na minha opinião, parecem bodes expiatórios para ocultar uma realidade mais grotesca, com motivações sociopolíticas.
Acho que a situação é mais surreal ainda quando penso que a família de Tamerlan Tsarnaev teve dificuldades para enterrá-lo. Muitos cemitérios se recusaram a receber o corpo do jovem. Aí eu te pergunto. Por que esses estadunidenses tão patriotas não se recusaram a enterrar gente como Jeffrey Dahmer? Psicopata e canibal que matou 17 pessoas e comeu a maior parte delas à caçarola, mas foi responsabilizado pela morte de 15.
Onde estava a intransigência desses administradores de necrópoles quando Henry Lee Lucas, homem que assumiu a autoria de mais de 600 assassinatos em parceria com Ottis Toole, foi sepultado no cemitério Captain Joe Byrd em Hunstsville, no Texas? E ainda teve plateia pra isso. Claro, um sujeito que come pessoas, estupra, decapita, esquarteja dezenas, centenas, merece uma bela lápide nos EUA, desde que seja verdadeiramente “americano”. Agora se você for imigrante e acusado de um crime com provas inconsistentes e ditas “secretas” merece ter seu corpo jogado em alguma valeta.
Outro ponto que considero importante. Os EUA sempre tiveram bom relacionamento com os tchetchenos, quero dizer, pelo menos por muito tempo. A maior prova disso foram as sanções que o governo estadunidense impôs aos russos por causa de violações de direitos humanos desde a década de 1990. Ou seja, são aliados há muito tempo e inimigos dos russos. Mas infelizmente nada disso vai mudar o destino de Dzhokhar Tsarnaev, o rapaz de 21 anos que aguarda a pena de morte. No entanto, faço questão de ressaltar que nos EUA ele tem o apoio dos “Veteranos Pela Paz”, ou seja, um grande número de ex-combatentes que por tantos anos defenderam a “América”.
Logo abaixo volto a reproduzir a mesma linha de raciocínio que fiz questão de compartilhar em 2013, no dia seguinte ao atentado.
Tenho acompanhado de acordo com minhas possibilidades o suposto atentado da Maratona de Boston e com base em tudo que li até hoje, até mesmo por parte de estadunidenses e outros estrangeiros, ouso dizer que o brasileiro mediano consegue ser extremamente medíocre quando se trata da falta de análise crítica e profunda dos fatos. Que falta de bom senso e mínima capacidade reflexiva é essa que faz as pessoas acreditarem em qualquer informação divulgada pelos meios de comunicação mainstream de países de “Primeiro Mundo”?
Nem mesmo quem mora nessas nações costuma simplesmente absorver essas informações como se fosse apenas uma mera esponja, um receptáculo de pseudo-elucubrações. E ainda com conteúdo reproduzido copiosamente e com uma conivência surreal dos veículos de imprensa do Brasil que tratam os EUA como se fossem um país exemplar, o que não é. Claro, muitas vezes, a grana que os sustenta costuma vir de lá, principalmente de conglomerados comandados por magnatas sionistas. Curioso que os acusados do atentado em Boston são muçulmanos tchetchenos, não? Para citar um exemplo, o que será que Rupert Murdoch pensa a respeito do assunto?
Afinal, todo estadunidense sabe que recentemente ele tentou assumir o controle de toda a grande mídia dos EUA, o que só não foi possível por causa das limitações legais do oligopólio midiático. Claro, e não posso deixar de mencionar que esse mesmo líder das comunicações é um dos maiores incentivadores do Estado de Israel, inclusive financiando ações do governo que partem de Tel Aviv e Jerusalém.
Por que quando um meio de comunicação de um país pobre, subdesenvolvido ou que vive um sério conflito civil divulga algo sempre há brasileiros colocando em xeque o conteúdo, mesmo sem entender do que se trata? E ainda em um tom de superioridade que demonstra uma severa incapacidade de autorreflexão, para não dizer uma inclinação mais do que obtusa e falseada do pensamento “americanizado”.
Eu não diria que o brasileiro desinformado costuma ser apolítico, ele consegue ser pior que isso. Não se importa em aceitar tudo que lê sem questionar – e quando o faz prefere ser jactante e frívolo. Assuntos complexos envolvem sim abstração de raciocínio e exigem boa bagagem cultural. Criticidade e bom senso parte do princípio de que tudo que você lê deve ser avaliado cuidadosamente como um cardápio de restaurante. Ou seja, é imprescindível descartar aquilo que não faz bem ao nosso organismo.
Sinto vergonha ao ver tantos brasileiros reverenciando os EUA por terem encontrado os supostos acusados do atentado de Boston no dito tempo recorde. Há “leitores” dizendo que isso deveria servir de exemplo ao Brasil. E pior, vejo brasileiros divagando na superficialidade, admirando as fardas dos estadunidenses responsáveis pelo assassinato do jovem Tamerlan Tsarnaev (quando ainda era um suspeito, não um criminoso). Dizem que é algo que impõe mais postura e respeito. Vestimenta agora é uma alusão ao senso de justiça?
Se eu não for preguiçoso e quiser saber sobre o que realmente está acontecendo nos EUA, prefiro buscar informações e discutir sobre o assunto com pessoas que acompanham a mídia considerada independente, seja nacional ou internacional – formadores de opinião que não sejam de extrema direita nem esquerdistas radicais. E claro, sempre partindo da base de que em menor ou maior proporção os livros continuam sendo a melhor fonte de informação para entender esse tipo de situação.
Ainda considero Noam Chomsky uma importante referência para compreender as problemáticas mais extenuantes da Terra do Tio Sam – seja com relação a conflitos internos e relações internacionais. Outros nomes interessantes que posso citar por ora e do próprio EUA são Benedict Anderson, Bruce Bueno de Mesquita, Norman Finkelstein e Harold Lasswell.
Não sou Anti-EUA, muito pelo contrário, admiro muito a arte produzida por eles, mas simpatizo pouco com o sistema político daquele país e principalmente com os meios de comunicação “mais populares” que estão sempre inclinados sobre si mesmos – como se o mundo se projetasse ao redor da “América”.
As primeiras descobertas de um pré-adolescente
Antes de falecer em 21 de setembro de 1997, meu pai, um bancário aposentado e ex-professor de latim, francês e matemática, tinha como hobby manter uma oficina mecânica na Avenida Rio Grande do Norte, próxima ao cruzamento com a Rua Guaporé, na região central de Paranavaí. Em meio a muita poeira e velharias, lá era um dos seus refúgios quando não estava trabalhando. Mecânico por diversão, não por profissão, mantinha aquele espaço para ajudar um amigo desempregado chamado João.
No mínimo uma vez por semana eu e meu irmão mais velho, Douglas, íamos até lá. Era um galpão enorme de madeira que atraía a atenção dos curiosos, principalmente pela profundidade que os olhos não permitiam acompanhar. Do alto de minha pequenez, assim eu pensava à época, quando me via absorto diante de uma porta de madeira de mais de três metros de altura que mais parecia a entrada de um celeiro saído do filme “Por um Punhado de Dólares”, do Sérgio Leone.
Meu pai gostava de carros antigos, inclusive tinha alguns. Então circular pela oficina era um presente com requinte de “viagem no tempo”. Afinal, nem toda criança tem o privilégio de brincar de dirigir um Fordinho Pé de Bode de 1929. A alegria era tão grande que eu até esquecia a rinite alérgica. Ignorava o fato do carro estar completamente empoeirado e sem dois pneus. Pra mim, ele era perfeito, mesmo com o motor danificado e as portas emperradas. Me contentava em acionar a buzina fanhosa e o para-brisas de palhetas irregulares e sofríveis. Era o suficiente para eu fingir que trafegava pela cidade em um dia chuvoso e bastante movimentado.
Quando não estava brincando no pé de bode, eu gostava de passar algum tempo no espaçoso interior da Querida, uma Mercedes-Benz 230 S, de 1966. Prateada, com todas as peças originais e em perfeito estado, era o xodó do meu pai. Ostentava um rabo de peixe que sempre recebia uma camada extra de cera antes de deixar a garagem. Mas enquanto continuava estacionada, eu deitava no banco traseiro, onde passava horas lendo gibis como Recruta Zero e O Pequeno Ninja ao som da única fita K7 que meu pai raramente tirava do tocador. Era uma coletânea original do maestro Ray Conniff com releituras de clássicos como “Aquellos Ojos Verdes”, “Brasil”, “Bésame Mucho” e “Tico-Tico no Fubá”.
Às vezes eu ia à oficina só para ficar no sótão fuçando em caixas, procurando algo diferente pra fazer. Foi assim que tive o meu primeiro contato com a pornografia, numa época recente em que tudo parecia uma grande novidade para quem estava começando a se distanciar da infância. Como não havia internet no Brasil até 1995, as coisas aconteciam sem pressa, naturalmente, ou melhor, como consequência do acaso. Eu tinha 11 anos no dia em que movi uma caixa do sótão e percebi que atrás dela havia uma revista do tamanho de um gibi. Fiquei surpreso e ao mesmo tempo empolgado com o conteúdo da capa. Nunca tinha visto nada parecido, só ouvia falar. Era uma fotonovela pornográfica. Quando a abri e vi as primeiras imagens, meus olhos se agigantaram, olhei ao redor e desci alguns degraus para me certificar de que ninguém estava me observando.
Subi novamente e continuei folheando a revista. Por um momento, num rompante de ingenuidade, me questionei: “O que esse cara tá fazendo com essa mulher? Vixi, uma mulher consegue fazer tudo isso com as pernas? Ah! Então era disso que falavam aquele dia na escola. Humm…” Logo entendi porque o Fábio foi suspenso da Escola São Vicente de Paulo quando acharam a tal da camisinha na sua carteira. Depois daquele dia nunca mais retornei à oficina sem me recordar da fotonovela. E curiosamente comecei a notar que o amigo do meu pai que trabalhava o dia todo na oficina tinha o hábito de deixar revistas espalhadas pelos mais diferentes lugares. Talvez a minha ausência de malícia antes do primeiro contato com aquilo que eu chamava de “gibi adulto” não me permitisse ser tão observador.
Todos os lugares onde eu costumava passar a maior parte do tempo serviam de esconderijo para algum tipo de pornografia. Havia dezenas de exemplares, de várias cores e tamanhos. Em alguns casos a poucos centímetros de onde eu recostava a cabeça para ler gibis. Lá estavam elas, amassadas, enroladas, dobradas, inteiras ou parciais. Parecia que se revezavam embaixo de bancos, tapetes, dentro do porta-malas, do capô e até mesmo presas ao chassi. À época eu não imaginava que alguém pudesse gostar tanto assim do assunto. Havia revistas dos anos 1970, 1980 e 1990.
Em síntese, um acervo de pornô que poderia ser organizado por perfis e ordem cronológica. Após algum tempo foi inevitável ver a oficina com outros olhos. Já não pensava nem lembrava tanto dos carros que eram a minha principal motivação naquele ambiente rústico e ruidoso com um característico cheiro de óleo lubrificante. Na pré-adolescência da década de 1990 procurar pornografia era como uma caça ao tesouro, um universo de possibilidades, no meu caso interrompida quando um dia cheguei à oficina e não encontrei mais nenhum dos “gibis adultos”. João tardiamente descobriu que eu sabia de sua coleção. Ainda assim continuei retornando à oficina, mas nunca tocamos no assunto.
Mais tarde, na sétima série do então primeiro grau, eu e alguns amigos estávamos decididos a assistir pela primeira vez um filme pornô. Enquanto o dia tão esperado não chegava, íamos até a locadora de vídeo, na tentativa de tentar descobrir o que nos aguardava. Na seção de lançamentos, fingíamos ler as sinopses das fitas em VHS esperando o atendente conversar com algum cliente. Em poucos segundos de distração, entrávamos na seção de filmes adultos com as mãos à boca para evitar que o funcionário ouvisse as nossas gargalhadas.
Lá dentro, o que minava nosso objetivo era que muitos dos filmes tinham tarjas e estrelas que velavam o conteúdo explícito. Apesar disso, a recompensa veio alguns meses depois quando um amigo conseguiu uma cópia pirata de um filme do John Stagliano, o rei do pornô, reproduzida por um camarada que era filho de um dono de locadora. Assim que soubemos da novidade, a apreensão só aumentou. Como estudávamos de manhã aos sábados, marcamos um encontro no início da tarde para assistir ao filme na casa do Bruno, aproveitando a ausência de seus pais. Especialmente naquele dia comentamos que as aulas pareciam que não chegariam ao fim nunca.
No horário marcado, eu, Alexandre e Thiago chegamos à casa do Bruno pontualmente. As risadas e as “caras de paisagem” foram inevitáveis quando estacionamos as bicicletas na garagem. Na sala, sentamos no sofá e Bruno ligou o vídeocassete. Após muitas risadas e olhares sardônicos, o silêncio tomou conta do ambiente quando subiram os créditos iniciais do filme acompanhado de uma música retumbante dos anos 1980. A primeira cena era de um homem com mullets em um salão de beleza dizendo que daria um tratamento especial a uma cliente. Assim que a mulher começou a se despir, Alexandre gritou: “É agora! É agora!” Então ouvi um ruído estranho saindo do aparelho e o filme desapareceu da TV. Entre chiados e uma tela preta, a fita se rompeu e ficou toda mastigada, assim como nossas esperanças de assistir pela primeira vez um filme pornô.
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Lelinho: usuário de drogas, ladrão e possível aidético
Rapaz se tornou refém do narcotráfico com 12 anos e hoje não pode sair às ruas quando quer
Ao longo dos anos, vi muitas vezes na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, um garoto magricela de estatura mediana com as pupilas dilatadas, olhar sempre desconfiado, cabelos desgrenhados, rosto relativamente sujo e pés encardidos, que há muito tempo não recebem outro calçado que não seja um velho par de chinelos surrados. Para preservar sua identidade, o chamo de Lelinho. Hoje, com 18 anos, não gosta de ser observado, apesar de não reclamar, mas há muito tempo deixou de ser sociável. A forma como percorre as ruas do bairro em horários estratégicos denuncia que é procurado por integrantes de uma facção criminosa. Usuário de drogas, Lelinho está devendo, só que nem a camaradagem dos tempos de “laranja” do narcotráfico é capaz de garantir a sua integridade física. De vez em quando chega em casa todo machucado, com hematomas dos pés à cabeça.
Por enquanto o jovem está autorizado a viver. Até quando? Ninguém sabe. Já recebeu inúmeras visitas de homens armados avisando que qualquer dia a dívida vai ser cobrada com muito sangue. Refém do vício em crack, Lelinho já invadiu muitas casas para furtar fiação elétrica. Dava preferência por residências com placas de “aluga-se”. Quando os espólios eram insuficientes para sustentar o vício, apelava aos mais próximos. Chegou a furtar uma coleção de calcinhas novas de uma tia. Também vendeu o chuveiro de casa, as galinhas da avó e as ferramentas de ferraria e marcenaria do pai e do avô. Em síntese, “tudo virava pedra”.
Durante algum tempo trabalhou recolhendo produtos recicláveis. Motivado pela dependência química ainda furtava materiais e ferramentas que encontrava em áreas de construções. Ocasionalmente Lelinho circula de bicicleta por outros bairros e pelo centro de Paranavaí. Não se incomoda com o som ruidoso, o desconforto e os perigos das duas rodas sem pneus. Inclusive usa um rabicho improvisado para arrastar um carrinho barulhento, sem os aros de borracha. Sempre que recebe uma nova ameaça se afasta das ruas e se esconde dentro de casa por pelo menos um mês. Tem o apoio dos avós que se negam a reconhecer que o neto é usuário de drogas.
Um dia o avô pediu a um vizinho para chamar a polícia, alegando que Lelinho teve um surto e estava quebrando tudo dentro de casa. Quando a viatura chegou o idoso sorriu e tentou explicar que era só pra dar um susto no neto. “Não leva ele não, por favor!”, suplicou, se negando a admitir a seriedade da situação. Diariamente, assim que a escuridão toma conta de uma das ruas mal iluminadas da Vila Alta, Lelinho caminha até a entrada da casa de um vizinho, se agacha e recolhe as sobras de alguns cigarros de maconha. Em seguida, pacientemente transforma os restos misturados à fuligem e sujeira em um “baseado”. Depois de acendê-lo, senta sobre uma calçada estreita de cimento e ignora tudo à sua volta, até mesmo a presença de outras pessoas. É surpreendente o seu empenho em se distanciar da realidade.
O artista plástico Luiz Carlos Prates já tentou ajudá-lo muitas vezes, só que o rapaz se nega a ouvi-lo. “Entrou num estado profundo de decomposição social e moral. Quando não está se drogando, ele passa muito tempo dormindo. Acorda de madrugada e fica vagando por aí”, lamenta Luiz Carlos. Na época em que comercializava crack, a entrada da casa dos avós virava ponto de venda. Sentado em uma cadeira na calçada, e entre um gole e outro de cachaça, o avô virava o rosto e fingia que não via nada. Ao anoitecer, encostavam carros, motos e bicicletas de vários bairros de Paranavaí. “Parecia um ‘enxame de abelhas’, onde tem droga tem gente. Era aquele desfile. Lá encostava cada carrão”, garante o artista plástico.
Mesmo atuando no narcotráfico, o rapaz nunca conseguiu comprar nada, inclusive se tornou laranja porque ficou devendo para a mulher que lhe deu as primeiras pedras de crack. Em uma rara ocasião o garoto apareceu na casa do artista plástico para mostrar o “presente” que recebeu. Ingênuo e orgulhoso exibiu um telefone celular. Um aparelho velho sem a tampa traseira. “Tu não vê que essa mulher só quer te usar? Ela só lucrando e você aí na merda, se afundando cada vez mais. Te deu essa porcaria pra tu avisar ela quando a polícia chega e te complicar mais ainda. Vai ficar andando todo sujo com esse chinelo de dedo velho até quando?”, disse Prates exaltado e preocupado. Mais tarde, a traficante que o introduziu no mundo das drogas foi expulsa do bairro, o que não o livrou desse caminho porque o garoto começou a trabalhar em outra “boca de fumo”. Hoje não atua mais no narcotráfico, mas ainda é perseguido pelas dívidas que contraiu com o vício.
Ontem o artista conversou com Lelinho e o irmão mais velho do rapaz. Os dois usuários de drogas saíram há poucos dias da prisão por envolvimento com furtos. “O verdadeiro malandro sou eu que estou nesta vida com 85 anos e nunca fui preso, nunca usei drogas, nunca fumei. Tu acha que é malandragem estar preso, sem liberdade pra fazer nada? Perde os melhores anos de sua vida na cadeia, uma luta inglória, não ganha nada!”, aconselhou Luiz Carlos. Para piorar, Lelinho e o irmão tiveram relações sexuais com uma moça do bairro diagnosticada com Aids. Ainda assim o jovem evita falar sobre o assunto e deixa claro o seu desinteresse em procurar ajuda médica. “Está cada vez mais seco e vive fedendo. Quem cuida das roupas dele é uma prima que busca, lava e passa. Faz até compras no mercado pra ele. Segue nessa vida de dependência química há seis anos. Não percebe que isso o destruiu”, destaca o artista plástico.
“Olha, filho da puta, quando eu crescer vou comprar um 22 e te dar um tiro na cara”
Morador da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, Lelinho começou a ficar agressivo aos sete anos, quando o pai o levava para a escola. Com o tempo o garotinho não quis mais saber de estudar. Rebelde, corria o máximo que podia, se embrenhando na mata do Bosque Municipal de Paranavaí. Para coibir as fugas, um vizinho se dispôs a ajudar. Ia atrás de bicicleta para segurá-lo, caso corresse.
Em uma das vezes que foi segurado pelo braço e não conseguiu escapar o menino esbravejou: “Olha, filho da puta, quando eu crescer vou comprar um revólver 22 e te dar um tiro na cara.” Apesar das ameaças, até hoje nunca segurou uma arma. Nem mesmo reagiu nas muitas vezes em que foi espancado depois de se tornar usuário de drogas. Quando Lelinho estava com 10 anos, o artista plástico Luiz Carlos Prates o convidou para participar da Oficina do Tio Lú, projeto que ensina crianças e adolescentes a criarem obras de madeira. O garoto concordou. Na realidade, mais do que isso, ficou eufórico. Logo se tornou um dos melhores alunos da oficina, tanto que Luiz Carlos se emociona ao se recordar da dedicação de Lelinho. “Fazia cada coisa linda. Era caprichoso demais”, lembra.
No entanto, houve um período em que o artista plástico precisou interromper a Oficina do Tio Lú para produzir obras a serem comercializadas na ExpoParanavaí. Com o fim da feira agropecuária que exigiu dez dias de dedicação do artista, Luiz Carlos procurou Lelinho e logo ficou receoso por não encontrá-lo. “Um traficante foi preso e a mulher dele assumiu a boca de fumo, então ela começou a iludir crianças e adolescentes para entrarem no esquema. Uma dessas crianças era o meu aluno que na época não tinha completado nem 12 anos”, revela. Lelinho não era mais o mesmo. Não queria mais conversar com Luiz Carlos e adquiriu o hábito de se esconder. Quando passava perto da casa do artista, atravessava a rua ou virava o rosto.
“Tentei falar com os avós do menino, contar que o comportamento dele era de um usuário de drogas. Não quiseram acreditar. Só que não demorou pra ele começar a furtar. Quando eu tentava aconselhar, justificavam que tinha gente tentando incriminar o garoto”, enfatiza Prates que até hoje não desistiu de livrá-lo do mundo das drogas. Outro agravante na vida de Lelinho é a falta de estrutura familiar. A mãe abandonou o filho e o marido para viver com outro homem. Quando o relacionamento não deu certo, o amante encomendou o assassinato da mulher. Para não morrer, ela fugiu para São Paulo e só retornou quando pararam de procurá-la. “O pai dele era um homem bom. Não posso dizer o mesmo da mãe que nunca se importou com o filho e o marido. Hoje ela circula pelo bairro como um farrapo humano e ainda virou traficante. Só anda com drogados. Não sei se está louca ou finge estar”, comenta Luiz Carlos.
Quem mais se importava com Lelinho era o pai, falecido recentemente em Arapongas, no Norte Central Paranaense, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). De acordo com Prates, um homem trabalhador e de boa índole. O problema era o vício em cocaína, mal que o matou com apenas 36 anos. “Apesar de tudo, ainda vejo bondade no Lelinho. Se a família desse uma força, tenho certeza que conseguiriam recuperá-lo. Eles estão em negação, preferem fazer vista grossa. Não percebem que a qualquer momento o menino pode morrer de overdose ou ser morto”, reclama Luiz Carlos Prates.
Frase do artista plástico Luiz Carlos Prates
“Todo viciado é ladrão. Pode ser podre de rico, ainda assim ele sente necessidade de furtar ou roubar.”
Sobre a divulgação de fotos íntimas na internet
Pra que se preocupar com o estado emocional de uma jovem fragilizada quando é mais importante pensar no que os amigos do boteco vão dizer quando ele chegar para tomar suas biritas?
Mais uma moça teve fotos íntimas divulgadas na internet por um suposto amigo. Quando a família ficou sabendo, o pai simplesmente a expulsou de casa, claro que do alto de uma perspectiva travestida de paternalista. Afinal, pra que se preocupar com o estado emocional de uma jovem fragilizada quando é mais importante pensar no que os amigos do boteco vão dizer quando ele chegar para tomar suas biritas? Outros familiares deram entrevista relatando que a jovem sempre foi muito problemática, deu muito trabalho aos pais. Sem dúvida, ela vai se sentir muito bem quando souber disso por meio dos jornais.
Amigos e parentes pedem o retorno da moça. Apesar das críticas, divulgam na internet que querem que ela volte. Só esqueceram de ponderar que depois disso tudo não há garantias que essa jovem veja a casa como um lar. E quem pode culpá-la? Lar é pra ser um local seguro, uma fortaleza, um ambiente onde se aprende a importância de uma boa comunicação, da cumplicidade existencial. Mas infelizmente há situações extremamente negativas e pesadas na vida que servem para descortinar fatos até então incredíveis sobre a realidade parental. Vejo que em certos aspectos o mundo tem evoluído rápido demais, mas nem todas as famílias acompanham essas transformações, talvez por ainda estarem confinadas a um panorama por vezes anacrônico da vida e do mundo.
Acredito que já temos o entendimento e as ferramentas necessárias para não incorrer no erro dessas famílias que expulsam os filhos de casa por causa de fotos íntimas compartilhadas. O orgulho ferido de um pai deveria ser mais importante? Falo com segurança e tranquilidade que se eu tivesse uma filha passando por esse tipo de situação nunca viraria as costas para ela ou a repreenderia. É preciso ter calma e tentar dialogar. O mundo sempre vai estar pronto para julgá-la, castigá-la, então por que fazê-la se distanciar do lugar e das pessoas que deveriam ser as suas principais referências de segurança?
Sempre que leio sobre fotos íntimas que foram parar na internet me surpreendo com tantos comentários hostis e truculentos. “Se fosse minha filha eu descia o cacete”, “Coitado desse pai!”, “Caramba, que vadia sem noção!”, “Vai, otário, não cuidou direito da filha” e “Vagabunda desde novinha” são alguns dos comentários que me recordo agora sobre o assunto. Pouco se fala sobre quem as divulgou. Você pensaria assim se fosse sua filha? Tem certeza? E mesmo que pensasse, ela tem a sua própria individualidade, é um ser humano como qualquer outro, com suas aspirações, inseguranças e desejos. Sim, claro que muitos jovens que passam por essa situação são dependentes financeiramente, mas nem por isso vão deixar de agir como pessoas que avaliam a vida à sua maneira, com uma autonomia peculiar, mesmo quando reféns da ingenuidade.
Eu, a musculação e o preconceito
“Os músculos sempre vão demandar menos do que o cérebro. O seu corpo agradece se você dedicar uma hora do seu dia. Já o cérebro não se satisfaz com tão pouco”
Sou jornalista e já enfrentei inúmeras situações de preconceito por gostar de musculação, por gostar de me alimentar bem. Já ouvi várias vezes pessoas dizendo que jornalista é o sujeito sedentário que tem uma rotina baseada em junk food, cigarro, álcool, litros de café e muita insônia.
Nunca me enquadrei nesse obsoleto estereótipo e sei que há muitos outros jornalistas que também não. As pessoas tendem a achar que se você gosta de musculação é porque você tem tempo de sobra, é uma pessoa à toa, que fica mais tempo na academia do que em casa ou no trabalho. Não, isso não é verdade e eu posso afirmar por experiência própria, já que passo a maior parte do dia produzindo, pensando, lendo e ouvindo pessoas, o que tem tudo a ver com a minha atividade profissional.
“Cuidado pra não ficar brocha!”, dizem alguns num tom de brincadeira que vela um anseio pela ofensa. A verdade é que o preconceito é sempre recorrente. Há aproximadamente dois anos, me encontrei com um camarada em um conselho de discussões sociais. Quando me viu, ele disse: “Nossa, Arioch! Tá bem maior, hein? Pelo jeito está dando mais prioridade para os músculos do que para o cérebro. Então comentei: “Não, pode ficar tranquilo. Os músculos sempre vão demandar menos do que o cérebro. O seu corpo agradece se você dedicar uma hora do seu dia. Já o cérebro não se satisfaz com tão pouco.”
Passei por outras situações parecidas, até piores. Tem gente que até se afasta de você por causa disso. Há quem ache estranho você gostar tanto de musculação sendo que profissionalmente atua numa área que não tem nada a ver com atividade física. Claro que não há o menor sentido em pensarem assim, mas é o que acontece. Inclusive há alguns anos fui ofendido por postar fotos da minha evolução no Facebook, o que revela um nível excruciante de intolerância.
Muita gente tem dificuldade em entender que isso é uma forma até de estimular quem não pratica atividades físicas ou de incentivar amigos que estão começando. Todos os dias percebo como as pessoas são capazes de odiar ou desprezar alguém por gostar de alimentação saudável e atividades físicas. Sei que há pessoas que exageram nesse aspecto, só que não é justo fazer generalizações. Eu, por exemplo, nunca tive o hábito de criticar ninguém por suas preferências alimentares ou desinteresse por musculação.
Na realidade, não vejo sentido em tocar no assunto com quem não gosta de nada disso. As pessoas merecem a liberdade de escolher o que querem fazer. Mas claro que sempre tentei ajudar ou recomendar profissionais para todos que vieram até hoje conversar comigo sobre o assunto, até porque me recordo como eu era desinformado quando ingressei numa academia há mais de oito anos.
Ainda assim, me identifiquei tanto que frequento o mesmo ambiente até hoje. De segunda à sexta, dedico pelo menos uma hora do meu dia à musculação, o que não é muito se levarmos em conta que o dia tem 24 horas. A nossa condição física exige isso, já que fomos feitos para o movimento.
Mudei de horário algumas vezes por necessidade. Já treinei 5h30 da manhã. Naquela época o instrutor me entregava as chaves para eu abrir a academia. Foi assim durante pelo menos três anos. Hoje treino no final da tarde, horário que sempre que posso sigo liturgicamente há cinco anos. Quando necessário, também dou um jeito de ir em outro horário. Com o tempo, comprei algumas anilhas, barras e halteres para quebrar o galho de vez em quando.
Musculação pra mim nunca foi tortura ou sacrifício. Um dia ouvi uma instrutora ao meu lado na academia falando para um rapaz que odiar musculação é normal, já que ninguém gosta, apenas faz porque precisa. Não, isso também não é verdade. Amo me movimentar e levantar pesos, por mais que isso possa parecer estranho para muita gente. É muito prazeroso.
Há pessoas que apenas são assim, gostam do que fazem e se sentem bem. Muitas outras não. Ouço muitas reclamações à minha volta o tempo todo na academia. Muita gente impõe limites a si mesmo. Quando os obstáculos não existem, as pessoas o criam, como forma de fuga. Respeito o direito de cada um de não gostar de musculação, até porque se você não se identificar com ela, ela também não vai se identificar com você.
Quando decidi praticar musculação, a primeira coisa que fiz foi não encará-la como algo distante da minha realidade. Para exemplificar, cito o fato de que fui diagnosticado com hérnia de disco antes de me matricular numa academia. Um ortopedista recomendou que eu não fizesse musculação. Contrariei suas indicações e comecei a treinar. Eu fazia todos os exercícios que qualquer pessoa completamente saudável faria. Com o tempo, minha coluna lombar se fortaleceu e até hoje tenho uma rotina baseada nos exercícios que mais exigem da lombar. Resumindo, meu treino é extremamente intenso, já que estou sempre me forçando ao limite, e me sinto mais saudável do que nunca.
Atividades físicas fazem uma grande diferença na minha vida, assim como uma boa alimentação. Eu não como bem porque preciso. Bom, na verdade eu preciso sim, mas não vejo como obrigação. É algo natural pra mim. Comecei a me interessar por nutrição há uns bons anos, quando me consultei com uma nutricionista que elaborou pra mim uma dieta ruim voltada para pessoas sedentárias. Ou seja, ela não entendia de nutrição esportiva. A partir daí, comecei a pesquisar sobre o assunto. Ingressei em fóruns de musculação e nutrição, fiz amizades com pessoas da área, comprei livros sobre o tema. Enfim, tentei adquirir conhecimento e me manter atualizado.
Após alguns anos, aprendi a conhecer minhas necessidades, por isso hoje minha dieta não é baseada em contagem de calorias. Levo em conta apenas quantidades e distribuição de macronutrientes, ou seja, carboidratos, proteínas e gorduras, sempre tendo como referencial meu peso corporal. Realmente não costumo comer bobagens. Pra mim, não é privação. Faz tanto tempo que tenho esse estilo de vida que não costumo sentir falta de consumir alimentos baseados em calorias vazias. E como meu foco nunca foi competir como fisiculturista, treino naturalmente, ou seja, sem o uso de esteroides anabolizantes.
Apesar disso, meu ano é dividido em duas fases. Uma de ganho de massa muscular e outra de queima de gordura. Só que evito deixar meu percentual de gordura realmente alto. Também acho viável dizer que não vejo suplemento como necessidade primária, mas gosto de proteína vegetal em pó, até porque também é uma boa para quem gosta de cozinhar, o que é o meu caso como mostra o meu blog vegaromba.com. Também acho interessante o consumo de um multivitamínico, claro, dentro das minhas necessidades.
Além de tudo que falei até agora, afirmo ainda que vejo a musculação como uma atividade terapêutica, uma boa forma de escape ou extravasamento para quem tem uma rotina com grande desgaste psicológico e emocional.
Cajazeira, uma estranha quase nativa
Plantada antes do surgimento de Paranavaí, a árvore é um contraste no cenário tipicamente paranaense
É muito comum as pessoas morarem anos ou até a vida toda em uma cidade e não perceberem que à sua volta ou a alguns poucos quilômetros existem grandes riquezas naturais. Esse foi o primeiro pensamento que tive quando vi uma árvore de proporções colossais que cobre a casa do artesão conhecido como Tavão. Situada na Rua Formosa, número 277, no Jardim São Jorge, em Paranavaí, a cajazeira com aspecto de umbuzeiro parece uma estranha em um cenário dominado por sibipirunas, ipês, pinheirais e outras espécies que há muito tempo caracterizam a paisagem urbana típica do Noroeste Paranaense.
Com pelo menos 25 metros de altura e uma copa de mais de cem metros de diâmetro que mais parece um véu protetor, a mais antiga moradora do Jardim São Jorge tem garantido o direito de se estender pelas propriedades vizinhas sem ser incomodada. “Ela chegou aqui antes de todos que hoje moram no bairro. É uma pioneira”, defende o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa, um amante da natureza que foi quem me apresentou à cajazeira.
Imponente, a árvore extremamente saudável parece mais jovem do que muitas com a metade da sua idade. Do robusto e curto tronco de 4,40m de diâmetro, ela se abre como uma mão dotada de dedos irregulares ou um “polvo da terra” com tentáculos longos e curvilíneos. Não há como dizer quantas vezes foi vitimada por tempestades, vendavais e raios ao longo dos anos. Mas a cajazeira sempre sobreviveu graças à própria força, sustentada por raízes densas, extensas e profundas que atravessam a propriedade, ratificando a forte relação com esta terra para onde foi enviada em forma de semente antes do surgimento de Paranavaí.
Após cada chuva, ela logo se cobre de verde, quando uma bela e vívida vegetação rasteira brota da base e se estende até os últimos galhos. Espaçosa, é melhor observada à distância. Então percorro quase 100 metros até chegar à esquina. De lá, vejo integralmente a sua copa harmoniosa, de ramificações intactas. “É uma árvore muito forte, tanto que quando chegamos aqui já era desse tamanho”, garante Tavão que trabalha ao ar livre, a poucos metros, construindo móveis coloniais a partir de madeiras descartadas.
Quanto mais observo a cajazeira que um dia abrigou uma casa, mais me sinto pequeno. Tento visualizar a sua extensão total, mas é impossível. Quando encosto do outro lado do muro, me distanciando ao máximo, sinto algo bem rígido sob a terra, então percebo que até ali chegam suas raízes que conheceram o solo ainda virgem.
Parece estar além de tudo e de todos, testemunhando as transformações da cidade e da população ao longo dos anos. Antes de Paranavaí se popularizar como Fazenda Brasileira, ela já estava lá, velada num universo verde de onde não é originária, contrastando com outras espécies e servindo de abrigo e esconderijo para animais selvagens.
Nos tempos da colonização, provavelmente testemunhou confrontos entre homens e onças, crimes envolvendo grilagem de terras e a chegada e partida de migrantes e imigrantes. Bom, pelo menos é o que se pode inferir a partir da longevidade do cajá e do seu tronco marcado por inúmeras cicatrizes. A mais perceptível é uma maior que minha mão, resultado de uma saraivada de tiros que remete aos tempos da Fazenda Brasileira.
Foi castigada tanto quanto foi abençoada. Afinal, dezenas de árvores caíram diariamente à sua volta no auge do desmatamento para servirem de matéria-prima na construção de casas ou simplesmente abrirem espaço para a urbanização e agricultura. Próxima da saída para Nova Aliança do Ivaí, a cajazeira resistente já esteve na rota de João Pires, um dos quebra milho mais violentos de Paranavaí, responsável por dezenas de mortes.
“Imagine o que ela não viu todos esses anos? Superou um período em que o homem não se preocupava com o meio ambiente”, comenta Antonio de Menezes enquanto massageia o tronco da árvore e sorri diante de um dos mais desconhecidos patrimônios naturais da cidade. É possível que a cajazeira que habita a área que um dia fez parte da fazenda do capitão Telmo Ribeiro, homem que chegou a Paranavaí para impor ordem acompanhado de um grupo de mercenários paraguaios, tenha vivenciado alguns dos maiores atos de bondade e de maldade da população local.
“Como a árvore é originária do Norte e Nordeste do Brasil, quem a trouxe também deve ter vindo de lá. A intenção acho que era se sentir um pouquinho mais perto de casa”, avalia o artista plástico. O que surpreende também é o fato de que a cajazeira costuma resistir apenas em locais quentes e úmidos, com temperatura média de 25 graus. E por muitos anos, principalmente até a metade da década de 1990, Paranavaí passou por muitos invernos rigorosos, com temperaturas baixas que duravam até mais de quatro meses. Além disso, nos últimos anos a cidade enfrentou incomuns períodos de estiagem. “Pra mim, ela é a maior árvore de Paranavaí. Tem uma fibra inigualável, não é rachadeira. Só que possui uma madeira diferente, que não é voltada para a construção”, destaca Antonio de Menezes.
Embaixo da cajazeira que continua perseverando diante de todas as adversidades o clima é diferente. Com a porta e as janelas da casa aberta, Tavão aproveita o frescor diário e gratuito proporcionado pela árvore, dispensando ventilador e ar-condicionado. Na sala, sinto um agradável aroma arbóreo que se avulta por todos os cômodos. Em síntese, um pedacinho de mata num espaço há muito tempo urbano. “Aqui é tudo natural”, garante o artesão enquanto faz o acabamento de um armário para cozinha.
Tavão cuida da cajazeira como se fosse um membro da família, até mesmo uma matriarca. Em vez de se adaptar à árvore, é ele quem se adapta à ela. Tanto que tudo no entorno é planejado ou feito cuidadosamente para não interferir no bem-estar da cajazeira que a poucos metros de distância divide o espaço com uma jaqueira, também típica do Norte, e outras espécies mais comuns na região, como o ipê-amarelo. Aproximadamente 1h30 depois, quando observo no tronco os sinais que imitam a vascularização humana, penso apenas que a cajazeira merece o direito de continuar sua jornada silenciosa como maior testemunha da história de Paranavaí.
Curiosidade
Quebra milho era como chamavam os jagunços da região nas décadas de 1940 e 1950.
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