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Chernobyl, a história dos cães que não envelhecem
“Os olhos do cachorro brilham quando Igor agarra um graveto e joga na árvore”
No dia 26 de abril de 1986, o reator da Unidade 4 da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu e espalhou materiais radioativos no meio ambiente. Em reação a esse desastre, a antiga União Soviética estabeleceu uma Zona de Exclusão de 30 quilômetros ao redor da usina e garantiu a evacuação de mais de 120 mil pessoas de Pripyat, no norte da Ucrânia, e das vilas vizinhas. Ninguém pôde levar nada, nem mesmo os animais de estimação, que foram obrigatoriamente abandonados, mesmo com a resistência dos moradores.
No livro “Chernobyl Prayer: A Chronicle of the Future”, publicado pela Penguin Classics em 2016, a autora Svetlana Alexievich relata que os cães latiam e uivavam tentando entrar nos ônibus que partiam de Pripyat, mas os soldados do Exército Soviético os chutavam para longe. “Eles correram atrás dos ônibus por muito tempo. Famílias desoladas fixaram notas em suas portas: ‘Não mate nossa Zhulka. Ela é uma boa cadela.’” De nada adiantou. Os esquadrões da morte exterminavam todos os animais que encontravam.
Porém, como havia muitos cães, dispersos por toda Prypiat e por outras aldeias que faziam parte da Zona de Exclusão, uma parcela significativa sobreviveu, inclusive migrando para as florestas, onde desenvolveram uma capacidade singular de sobrevivência. Claro, com o tempo esses cães tiveram seus descendentes, e são esses animais que hoje povoam Chernobyl e toda a Zona de Exclusão. Eles criaram a sua própria comunidade e vivem principalmente entre os de sua espécie. No entanto, ocasionalmente têm contato com trabalhadores ou visitantes.
Há alguns anos, um homem foi contratado para capturar e matar os cães de Chernobyl, sob a alegação de que não havia recursos para cuidar dos animais. Ele se recusou a fazer esse serviço. Atualmente, só na área da Usina Nuclear de Chernobyl há mais de 250 cães que vagam o dia todo. Quem trabalha na localidade, e está acostumado com a presença canina, geralmente reserva uma parte de sua refeição para alimentá-los.
Os cães de Chernobyl tiveram de deixar as florestas da Zona de Exclusão porque começaram a ser perseguidos e mortos por matilhas de lobos. Também se tornou cada vez mais difícil encontrar alimentos. Em 18 de fevereiro deste ano, o jornal britânico The Guardian publicou na reportagem “Meet the dogs of Chernobyl – the abandoned pets that formed their own canine Community” que há 300 cães vivendo na Cidade de Chernobyl.
Já a estimativa da organização não-governamental Clean Futures Fund, que ajuda cidades afetadas por acidentes industriais, é de que há mais de 250 cães vivendo em torno da usina nuclear, outros mais de 225 cães na Cidade de Chernobyl e centenas de cães nos postos de controle de segurança e em outras localidades da Zona de Exclusão.
“Os cães de Chernobyl são desnutridos, foram expostos à raiva por causa de predadores selvagens [como lobos]”, garante a Clean Futures. Em Chernobyl, a expectativa de vida dos cães é bastante reduzida por causa da exposição à radiação. A maioria tem no máximo quatro ou cinco anos. Poucos ultrapassam os seis anos de vida. Para piorar, há aqueles que enfrentam o rigoroso inverno ucraniano, que chega a 30 graus negativos, sem um abrigo apropriado.
Por outro lado, os cães que moram perto dos postos de controle têm cabanas feitas pelos guardas de Chernobyl. Com o tempo, eles aprenderam também que a presença humana pode significar sempre uma chance de ganhar comida. Prova disso é que vários podem ser vistos na entrada do Café Desyatka, onde normalmente esperam receber dos clientes um pouco de borscht, uma tradicional sopa de beterraba.
“Hoje os cães de Chernobyl confiam nos trabalhadores da estação para se manterem vivos. Alguns os levam para dentro e cuidam de seus ferimentos. Mas eles também correm o risco de exposição à raiva ao interagir com os cães”, informa a Clean Futures.
Há poucos meses, a jornalista britânica Julie McDowall viajou para a Zona de Exclusão da Ucrânia. Ela narra que quando estavam nos bosques atrás da Usina Nuclear de Chernobyl, um cachorro correu em sua direção – um animal magrinho, com pelos tigrados e olhos amarelos. Igor, o guia, tocou o focinho dele com a mão:
“Eles resistem na neve e a água gelada balança das árvores. Os olhos do cachorro brilham quando Igor agarra um graveto e joga na árvore. Distraído, o animal o persegue e nosso pequeno grupo está livre para se mover. Mas o cão reaparece e joga o graveto aos pés de Igor. Ele joga novamente. O cachorro traz de volta.”
O nome do cãozinho, que tentava mastigar as bolas de neve arremessadas por Igor, segundo Julie, é Tarzan. Ele é mais um dos que passam o dia vagando pela Zona de Exclusão desde que sua mãe foi morta por um lobo. Quem cuida dele são os guias que levam os visitantes para Chernobyl. É uma dura realidade, considerando que os cães de Chernobyl vivem não apenas entre humanos, mas também entre animais como alces, linces, lebres e lobos, animais que acabaram adotando Chernobyl como lar após a evacuação de 1986.
Saiba Mais
O que ajuda a levar um pouco de alento aos centenas de cães de Chernobyl é o trabalho da ONG Clean Futures Fund, dos Estados Unidos, que montou clínicas na localidade para lidar com emergências e doenças como raiva, parvovirose, cinomose e hepatite, além de estabelecer um programa de vacinação e castração.
Referências
Alexievich, Svetlana. Chernobyl Prayer: A Chronicle of the Future. Penguin Classics (2016).
Clean Futures Fund. Dogs of Chernobyl.
Um motorista embriagado
Em novembro de 2014, eu estava em frente a um mercado quando um motorista bateu à esquerda do meu carro e seguiu ziguezagueando pela rua. Quando vi o amassado pelo retrovisor, fui atrás dele. Sinalizei para que parasse e ele encostou o seu Corcel II bem deteriorado, com o escapamento arrastando no asfalto.
Desci e caminhei em sua direção. Embriagado, o sujeito mal falava. Sua esposa também desceu e expliquei que ele bateu no meu carro. Constrangida, a mulher se desculpou enquanto o marido fazia caretas, ria e tamborilava as mãos sobre o capô do carro. Ele parecia não se importar com a situação. No banco de trás, uma garotinha de tranças, com três ou quatro anos, assistia tudo em silêncio, segurando uma bonequinha inteiriça de plástico duro, dessas mais baratas.
A esposa do motorista me deu o número do seu telefone e implorou para não chamar a Polícia Militar. Na realidade, eu nem tinha essa intenção. Ela sugeriu que eu entrasse em contato para passar o orçamento do conserto. Antes de ir embora, perguntei de onde eles eram e o que faziam. “A gente mora e trabalha na roça dum homi aí, ‘samo lavrador’. Tamu ino visita o túmulo da minha mãe. Pedi pra ele não beber, mas é teimoso demais. Cê pode ligar qualquer hora”, se justificou constrangida.
Nunca liguei. Só assisti o sujeito serpenteando o carro e desaparecendo dois quarteirões abaixo enquanto a fumaça do escapamento ocultava o veículo. A sinuosidade de suas vidas talvez fosse representada pelos traços sulcados no rosto daquela mulher precocemente envelhecida. Meu prejuízo material nem de longe se aproximava do seu padecimento existencial.
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A cabeça dura e seus privilégios
Ter a cabeça bem dura tem seus privilégios. Saí da academia e, como não demoraria para o sinal do semáforo ficar verde, dei uma corrida até o outro lado da rua. O problema é que não vi uma placa na esquina e bati minha cabeça nela. Com o impacto, a placa chegou a envergar antes de voltar ao normal. Quando olharam para a minha barba, ninguém teve coragem de rir. Eu? Segui meu caminho com a cabeça intacta.
31 de outubro de 2016.
Um dia e duas escapadas da morte
Escapei da morte duas vezes hoje. Fui para a casa do meu irmão em Cianorte hoje de manhã, conhecer a minha terceira sobrinha que nasceu esta semana. No caminho, perto de Rondon, uma caminhonete ultrapassou em local proibido e veio em minha direção. Só consegui evitar o choque porque joguei meu carro fora da pista, num descampado. E depois disso, o motorista seguiu seu caminho, sem se importar com o acidente que poderia ter custado a morte de várias pessoas.
Há pouco, na volta para casa, perto de Paraíso do Norte, eu dirigia tranquilamente, quando de repente um cachorro grande e preto invadiu a pista. Desviei e o carro começou a ziguezaguear pelo asfalto. Não consegui deixar de pensar no pior. No mínimo, eu me chocaria contra uma árvore ou capotaria em direção ao acostamento.
Ainda bem que meu carro é estável. E enquanto eu tentava recuperar o controle dele, só pensei na possibilidade de algum veículo vir na mão contrária, onde fui parar depois de segundos de terror. Repentinamente, o carro parou no meio da pista, esfumaçando e cheirando a pneu queimado. Fiquei tão atordoado que só quando desci do veículo me dei conta de que eu estava no centro da rodovia. O cachorro preto já tinha desaparecido. Não sei pra onde.
Depois dirigi até o acostamento, saí do carro e fiquei observando as inúmeras marcas na pista. Um motorista que vinha logo atrás veio conversar comigo, para saber se estava tudo bem. Realmente gente boa. Quem passar pelo mesmo local amanhã cedo, provavelmente pode suspeitar que alguém morreu naquele ontem, ou seja, hoje.
Acidente numa noite de outono
As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu não enxergava
Em junho de 2013, eu retornava para casa quando uma caminhonete preta em alta velocidade bateu no para-choque traseiro do meu carro na Avenida Parigot de Souza. Com o impacto violento e o som dos estilhaços, levei um baita susto. Só tive tempo de me esforçar para tentar manter o controle da direção, evitando que o veículo se chocasse contra uma carreta estacionada a poucos metros da entrada da Rua John Kennedy.
Depois do acidente, fiquei com a impressão de que bati em uma caçamba. Olhei para o meu irmão e perguntei se ele estava bem. Como ninguém tinha se machucado, desci do carro e não consegui entender o que aconteceu. Era como se não existisse mais nada diante de mim além da noite tenebrosa de outono. As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu, desorientado, não enxergava naquele momento por causa da neurastenia.
Não vi casas, muros, pessoas, animais, nada. Só reconheci o som da minha própria mente, mais ruidosa do que nunca. Enleado, não me dei conta do estado do meu carro. Na esquina, a caminhonete continuava parada e dentro dela vi somente uma sombra sob o vidro escuro quase fechado. Me senti muito mal e, rendido a um desespero progressivo, notei meu corpo ligeiramente alheio à minha mente. Com pernas cambaleantes, voltei para o carro. Então meu irmão gritou que o motorista da picape fugiu. “Vamos atrás dele, David! Ele vai fugir!”, disse.
Liguei a chave do carro com a mão trêmula. Atravessei mais quatro quarteirões da Parigot de Souza quando a caminhonete a mais de 100 quilômetros por hora desapareceu no horizonte da Avenida Tancredo Neves. Com a visão turva, sem qualquer possibilidade de ver a placa, parei o carro ao final da Parigot, desci e levei às mãos ao rosto que ardia como se eu tivesse chocado a minha própria face contra o asfalto.
Meus sentimentos não estavam claros – tristeza, desalento e descrença no que vivi. Eu sentia tudo e ao mesmo tempo nada. Havia um vazio que me queimava por dentro como se meu interior fosse habitado pela mais excruciante das úlceras. “Será que estou acordado?”, pensei e pisquei com força três ou quatro vezes antes de entrar no meu carro novo ainda sem placa, comprado uma semana antes. Recebi algumas propostas de seguro na concessionária e fiquei de decidir qual escolheria no dia seguinte. Era tarde demais.
Sem música, voltei para casa ouvindo o som estrepitoso do veículo. Era agonizante, e o barulho se intensificava a cada quarteirão como panelas e talheres pendurados que balouçam com a incidência do vento. Meus olhos se encheram de lágrimas e o cheirinho de novo se desvaneceu. Dezenas de curiosos a pé e dentro de automóveis olhavam com atenção, na tentativa de interpretar o acontecido e talvez propagar suas versões de predição.
Chegando em casa, abri o portão e coloquei o carro para dentro. Não queria que vizinhos e passantes se aproximassem porque provavelmente multiplicariam boatos – a história mudaria de acordo com o anseio do narrador. Na garagem, vi como ele estava avariado, mais danificado do que eu pensava. Enquanto eu caminhava ao redor do carro, tentava entender por que o motorista da caminhonete fugiu e não assumiu a responsabilidade pela batida. Aquilo era o pior de tudo.
“Como ele conseguiu assistir tudo e ir embora como se nada tivesse acontecido? Que tipo de consciência uma pessoa assim pode ter? Será que é possível dormir bem? Talvez eu esteja enganado e ele me procure amanhã. Preciso ter calma…”, inferi. Em poucos minutos, ouvi vozes em frente ao Corpo de Bombeiros, inclusive uma referência à batida no cruzamento da Avenida Parigot de Souza com a Rua John Kennedy. Fui até lá. Havia bombeiros e outras pessoas.
Um dos homens disse que bati no carro dele e fugi. Notei olhares repreensíveis. Entre voz remansosa e agitada, tentei explicar que fui atingido por uma caminhonete e, em meio à escuridão, quando meu irmão mostrou que o responsável pelo acidente fugia, só pensei em ir atrás dele. Não imaginei que tivesse atingido outro carro. Por causa do impacto seco que não visualizei, achei que fosse uma caçamba.
E, assim como qualquer outra pessoa motivada pelo desespero, tentei anotar pelo menos a placa do veículo do causador. Não consegui. Ele saiu ileso e só quem me conhecia acreditou na minha história. Apesar de tudo, concordei em ir com o proprietário do outro carro até o 8º Batalhão da Polícia Militar na manhã do dia seguinte registrar o boletim de ocorrência.
Contei e escrevi exatamente o que vivi. No caso dele, não sei qual foi sua versão. Porém, só eu, meu irmão e o motorista da caminhonete estávamos naquela rua no momento do acidente. O carro atingido estava estacionado na rua. Não havia mais ninguém por perto. Retornei ao local na mesma manhã para avaliar seu prejuízo e levei um funileiro que eu considerava de confiança para fazer o orçamento.
Na primeira noite, acordei de madrugada e fui até a garagem me certificar dos danos. Sim! Era tudo verdade! Tive pesadelos por algumas noites. E envolviam situações em que eu tentava me aproximar da caminhonete preta e ela se desvanecia como se fosse a própria neblina arredia da madrugada caliginosa.
Meu coração palpitava com ferocidade conforme a picape se distanciava. Num desses rompantes oníricos, a picape se entranhou nas profundezas da terra e o asfalto se fechou impedindo a minha entrada. Outra vez minha imaginação fez uma associação com Christine, O Carro Assassino, de John Carpenter.
Passei duas semanas em vão tentando localizar a caminhonete. Percorri mais de 20 funilarias, pedi ajuda de amigos. Nada adiantou. Recorri até ao sistema de monitoramento de câmeras da prefeitura. Infelizmente, cobria somente a região central.
Aceitei a minha derrota e desisti. Como precisei de um bom tempo até reunir o dinheiro para custear o conserto do outro carro atingido na batida, o proprietário ficou impaciente, achou que eu não pagaria e recorreu a um advogado. Um dia, recebi uma proposta de acordo de um escritório de advocacia.
E o que mais me chamou a atenção era que lá constava que atingi seu carro enquanto eu disputava racha com outro veículo. Só consegui sentir um misto de tristeza e constrangimento, tanto que tive de reler três vezes para crer. Eles acusavam alguém com 29 anos, que nunca recebeu nenhuma multa por excesso de velocidade, de ser participante de rachas.
E para piorar, eu soube por meio de parentes que alguns de seus familiares estavam espalhando calúnias sobre mim. Ok. Não quis checar a veracidade disso. Somente lamentei e logo deixei de me importar. Dentro do prazo que me ofereceram, efetuei a transferência do dinheiro e evitei falar abertamente sobre o assunto com outras pessoas. Quando questionado, parei de me justificar e deixei cada um com suas interpretações. Afinal, minha consciência é a minha, não a dos outros.
Do motorista da caminhonete, eu jamais soube coisa alguma. Só imaginei como deve ser horrível conviver com a preocupação de que sempre que algum carro igual ao meu se aproximar, ele há de suspeitar que eu esteja lá dentro e, no seu ideário desconhecido, o culpando pelo acontecido. E quem garante que o causador do acidente não seja um conhecido?
A experiência não foi totalmente ruim. Endossei a crença do que eu não gostaria de ser ou fazer com os outros. Acredito que se o dinheiro se tornar mais importante do que a minha capacidade de empatia, provavelmente deixo de ser quem sou, perdendo a minha identidade e tornando-me um refém da empáfia.
E fui colocado à prova no ano seguinte. Em novembro de 2014, eu estava em frente a um mercado quando um motorista bateu à esquerda do meu carro e seguiu ziguezagueando pela rua. Quando vi o amassado pelo retrovisor, fui atrás dele. Sinalizei para que parasse e ele encostou o seu Corcel II bem deteriorado, com o escapamento arrastando no asfalto.
Desci e caminhei em sua direção. Embriagado, o sujeito mal falava. Sua esposa também desceu e expliquei que ele bateu no meu carro. Constrangida, a mulher se desculpou enquanto o marido fazia caretas, ria e tamborilava as mãos sobre o capô do carro. Ele parecia não se importar com a situação. No banco de trás, uma garotinha de tranças, com três ou quatro anos, assistia tudo em silêncio, segurando uma bonequinha inteiriça de plástico duro, dessas mais baratas.
A esposa do motorista me deu o número do seu telefone e implorou para não chamar a Polícia Militar. Na realidade, eu nem tinha essa intenção. Ela sugeriu que eu entrasse em contato para passar o orçamento do conserto. Antes de ir embora, perguntei de onde eles eram e o que faziam. “A gente mora e trabalha na roça dum homi aí, ‘samo lavrador’. Tamu ino visita o túmulo da minha mãe. Pedi pra ele não beber, mas é teimoso demais. Cê pode ligar qualquer hora”, se justificou constrangida.
Nunca liguei. Só assisti o sujeito serpentando o carro e desaparecendo dois quarteirões abaixo quando a fumaça do escapamento ocultou o veículo. A sinuosidade de suas vidas talvez fosse representada pelos traços sulcados no rosto daquela mulher precocemente envelhecida. Meu prejuízo material nem de longe se aproximava do seu padecimento existencial.
Caminhão cai em buraco na Vila Alta
Há dois meses, eu e o artista plástico Luiz Carlos Prates de Lima visitamos a Secretaria de Infraestrutura de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, para alertar sobre a iminência de acidentes na Vila Alta, na periferia da cidade, envolvendo bueiros sem grades e o surgimento de grandes buracos.
Naquele dia, foi assumido um compromisso de visita ao bairro, o que acabou sendo postergado por tempo indeterminado. Infelizmente, a ajuda não chegou a tempo e uma das consequências foi registrada hoje à tarde – a queda de um caminhão dentro um buraco.
Desde que o bairro recebeu asfalto, o que sem dúvida é uma grande e merecida conquista dos moradores, existe uma grande controvérsia envolvendo a responsabilidade sobre a via que leva diretamente à Farinheira Cassava.
É a única sem asfalto e uma das mais importantes do bairro. A estrada ladeada pelo Bosque Municipal de Paranavaí é apontada como a de maior tráfego da Vila Alta e acredito que o acidente poderia ter sido evitado com um acordo prévio entre poder público e farinheira.
Joseph Figlock, o homem que salvou um bebê da morte duas vezes
1937 – Em Detroit, nos Estados Unidos, um homem chamado Joseph Figlock estava andando pela calçada quando um bebê caiu da janela de um apartamento no quarto andar. Por sorte, Figlock conseguiu segurá-lo antes que se chocasse contra o chão. Um ano depois, a mesma criança caiu novamente da janela e, mais uma vez, Joseph Figlock que passava pelo local a salvou. A história foi publicada na revista Time em 17 de outubro de 1938.
Uma lição sobre vida e morte em dia de chuva
Encontrei o céu mais esbraseado do que nunca, como se estivesse prestes a sangrar sobre nossas cabeças
Presenciar um grave acidente de trânsito era uma das experiências mais chocantes na vida de uma criança, pelo menos até a metade da década de 1990. Mas que poderia muito bem ser transformada em uma grande lição de vida. Falo por experiência ao me recordar de um episódio que vivenciei em abril de 1994, quando ainda não existia internet no Brasil.
Era um final de manhã ameno, marcado por uma borrasca que lavou completamente a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, no Jardim Progresso, arrastando um restolho de areia grossa abandonado em uma construção perto de casa. Aproveitando o declive da água, crianças corriam e sentavam rente ao meio-fio, posicionando barquinhos de papel e plástico, além de pilotos acrobatas com os braços colados nos guidões dos jet skis. As embarcações à base de folha de caderno venciam a disputa facilmente. Desciam com tanta celeridade que pareciam movidas à vela. Um momento de glória dos brinquedos mais rudimentares e seus módicos donos que após a brincadeira depositavam os intactos campeões dentro de sacolas de mercado.
Na tarde daquele dia comentei com meu irmão Douglas que eu não via a hora de lançarem o álbum de figurinhas da Copa do Mundo, uma apreensão que fazia divagar incansavelmente, a ponto de nos reunirmos com quatro amigos para tentarmos adivinhar quais seriam as escalações. Além do Brasil, nossa atenção se voltava para as seleções da Bélgica, Romênia, Bulgária, Suécia, Irlanda e Noruega, países sobre os quais pouco sabíamos. “A Transilvânia fica na Romênia e a Romênia é um país pequeno. Será que o Gheorghe Hagi é parente do Drácula?”, perguntei num tom sincero e pascácio. A resposta veio em forma de nenhuma palavra e muitas gargalhadas.
Horas depois, quando estávamos sentados na calçada conversando sobre a construção de uma tirolesa que nos permitisse atravessar a rua por meio das árvores, meus pais chamaram eu e meu irmão para irmos a Campo Mourão. Saímos de Paranavaí no final da tarde, com o testemunho altaneiro de um céu índigo transmutado em escarlate, principiando o adormecer do sol. Na BR-376, perto da entrada de Alto Paraná, abri a janela do carro e senti uma brisa fugaz massageando meu pescoço com a canícula de um bafejo. O que me pareceu muito atípico num dia com temperatura média de 20 graus.
Julguei por precipitação que talvez fosse culpa do escapamento de um fenemê azul com rodas desalinhadas que transportava uma carga fedegosa de lixo orgânico. Trafegando com malemolência, o caminhoneiro seguia sua jornada, ignorando buzinas, faróis altos, palavrões e gestos obscenos. Na carroceria trazia um adesivo luminescente aos desavisados: “Quem em caminho leva pressa, em caminho chão tropeça.” Ao ultrapassar o caminhão que se lançou ao acostamento para permitir a nossa passagem, meu pai acionou a buzina rapidamente e disse: “A paciência é amarga, mas seu fruto é doce.” Achei a frase curiosa, engraçada e divertida. Anos mais tarde, descobri que o autor era o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau.
Antes da escuridão selar o horizonte, tentei localizar o sol. Encontrei o céu mais esbraseado do que nunca, como se estivesse prestes a sangrar sobre nossas cabeças. Com a compleição de uma série de asfaltos bifurcados em lugar algum e uma sequência de rotundas da PR-317, o limiar da noite trouxe também a cerração, a insolência e a perdição dos incautos. Veículos dos mais diversos tamanhos e com placas de cidades do Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais entranhavam-se no desconhecido sem poltronaria.
Minha mãe, sempre inimiga da pressa nas estradas, combinava muito bem com meu pai. Ele desprezava fervorosamente o ímpeto juvenil dos motoristas que independente de idade serpenteavam como se não existissem faixas ou qualquer tipo de limite. Que tresloucados! Não reconheciam a fealdade de suas ações porque eram vilões travestidos de heróis por falhas de semântica e paroxismo. Ignoravam a veemência da chuva e aceleravam pela vacilante rodovia estadual como se estivessem numa Autobahn. Com o rosto perto da janela, monologuei: “1…2…3…4…5…6…7…8…9…10…11…12…13…carros ultrapassando a gente em 30 segundos. Que loucura!”
Dois patinaram na pista e por pouco não se chocaram contra um caminhão-tanque. Pelo vidro embaçado, onde as gotas se arrastavam até as canaletas, senti a fúria dos pneus que ricocheteavam água sobre o para-brisas do nosso carro. E para piorar, vez ou outra meu pai tinha de recuar para dar espaço a algum motorista que não conseguia concluir a ultrapassagem. Raramente alguém agradecia. O beneficiado só aguardava uma nova oportunidade de se despedir jogando água suja sobre o nosso capô. Assim a ansiedade velada dinamitava meu corpo com a mesma ferocidade da água que envergava galhos e arrastava as ramas com a cumplicidade da aragem.
Campo Mourão me parecia cada vez mais distante e eu cada vez mais inquieto. Não conseguia evitar de pensar que dentro de tantos veículos não havia somente seres humanos. “Só pessoas ali? Acho que não! Deve ter algo bem além disso!”, refleti. Então imaginava monstros empertigados, com a tez cinza e macilenta. Na minha divagação quimérica, seus corpos se inclinavam ao volante sem qualquer indício natural de lucidez. Os olhos parcialmente opacos reluziam o temor de ser ultrapassado por alguém mais lesto e astuto.
O som vertiginoso dos pneus em atrito com a água da chuva, se intensificando como se quisesse descobrir do que eram capazes aqueles seres, fazia o coração dos mais obcecados trepidarem. A proximidade de alguns veículos era ameaçada por oscilações subversivas dos roncos dos motores. A verdade é que se rendiam sem ressalvas a um capcioso senso de invencibilidade. Como se sentiam imortais! No banco do motorista, eu só enxergava bocas abertas, dentes afilados e verdolengos, que serviam de porta de saída para gosmas espessas e ácidas que caíam diretamente sobre os pedais dos aceleradores. Ao mesmo tempo magnetizavam os pés, impelindo-os a correrem mais e mais, numa sanha infindável e espinoteada. Aquilo me arrepiava sobremaneira. Meus olhos intumesciam, trazendo lembranças fortuitas de filmes como Christine, The Hearse e Maximum Overdrive.
Quase chegando ao nosso destino, fomos surpreendidos por uma torrente que percorreu um paredão de pedras com tanta violência que quem estivesse absorto ou distraído seria facilmente arrastado para fora da rodovia. Por sorte ou pelo acaso, não testemunhei nenhum acidente. Em Campo Mourão deixamos minha mãe em um hotel no centro, onde ela ficaria uma semana para resolver pendências profissionais. Nos despedimos por volta das 21h e retornamos para a estrada. A chuva tinha se dissipado e os motoristas pareciam mais cordatos. Notei uma tranquilidade tão sublime que ao descer dois dedos do vidro da janela percebi pela primeira vez naquele dia o sortido frescor das árvores conduzido pelo vento. Conseguia ouvir até o ramalhar das mais seivosas.
A quietude não durou muito tempo. Perto de Peabiru, um automóvel em alta velocidade passou sibilando e quase rasurando o nosso carro. Mais adiante o motorista perdeu o controle da direção na pista escorregadia e invadiu a contramão. Ciente da iminente tragédia, um caminhoneiro tentou desviar. Tarde demais. O impacto foi tão grande que até o ônibus que vinha logo atrás foi jogado para fora da pista. Meu pai parou o carro no acostamento e desceu para oferecer ajuda. Havia muito sangue no asfalto. Pessoas agonizavam, choravam e gritavam. Alguns estendiam os braços pelas janelas do ônibus e balbuciavam os próprios nomes e os de seus familiares. Antes de falecer, um passageiro preso entre as ferragens do ônibus suplicou para que salvassem seu filho desacordado ao seu lado: “Pelo amor de Deus, me deixem aqui! Tô condenado já. Nem sinto direito meu corpo. Não liguem pra mim. Peguem meu filho. Ele tem só cinco anos! Por favor, eu imploro!”
Em poucos minutos, tive dificuldade em associar a experiência com a realidade. Me vi em um pesadelo, tormento kafkiano, principalmente quando os voluntários e os bombeiros enfileiraram alguns corpos no acostamento. Eram pessoas que, assim como tantos viajantes, estavam rindo, sonhando e fazendo planos há poucos minutos. De repente, não tinham mais vida. Seus pés descalços me pareciam tão frágeis encostados nos feixes de gramíneas. Seus olhos miravam o céu sem vê-lo, incapazes de sentir a sua plenitude.
Uma moça com cerca de 20 anos usava maquiagem que deve ter exigido muito tempo de dedicação. Restou-lhe a metade, ocultando algumas imperfeições superficiais nas formosas maçãs do rosto, tão comum e natural na juventude. Seus lábios ainda preservavam o vermelho do batom que se confundia com um filete de sangue quase seco no canto da boca. Um idoso também falecido teve de ser retirado do ônibus junto com a esposa. Os dois mantinham as mãos entrelaçadas. Em respeito ao casal, ninguém ousou separá-los. Será que alguém imagina que um dia há de deitar no acostamento de uma rodovia? Sobre um chão áspero e pedregoso…esperando a hora de ser enterrado. Quantos passageiros e motoristas não passaram por aquele lugar sorrindo e cantando?
Como havia só uma ambulância no local e muitas pessoas estavam em estado grave, correndo risco de morte, meu pai se dispôs em transportar um rapaz ensanguentado com severos ferimentos na cabeça e algumas vértebras quebradas. Apesar da dor, o homem me observava com olhos amiudados e um sorriso fraterno. Não dizia nada, não gemia nem se desesperava, mesmo com o rosto coberto pelo sangue que ele ocasionalmente observava no retrovisor. O acerejado no entorno de seus olhos contrastava com a lividez da pele. Também ajudamos uma moça. Com cortes em várias partes do corpo, inclusive um grande ferimento na perna direita e uma larga mancha púrpura no rosto fino que se escondia entre os cabelos longos, ondulados e escuros, ela se mostrava mais agitada e feria a si mesma com as unhas da mão esquerda. Seria um ato de desvario? Não. Era o temor de perder a sensibilidade da mão direita.
Na Santa Casa de Campo Mourão os dois foram recebidos prontamente. O rapaz que usava uma jaqueta preta me olhava ao longe conforme a enfermeira o empurrava em uma cadeira de rodas. A moça sorria pra mim com ternura enquanto apoiava um braço sobre a muleta e o outro em um enfermeiro. Ficamos no hospital até receber as primeiras informações sobre o estado de saúde dos dois. O rapaz não corria risco de morrer, mas sim de nunca mais andar. A moça também estava em situação delicada. Tinha poucas chances de recuperar os movimentos da mão direita.
Nunca soube seus nomes, de onde eram, o que faziam. Jamais nos despedimos. Sei apenas que quando a chuva se lança sobejamente sobre as rodovias, orvalhando todas as formas de vida e enternecendo os prazeres da existência, ela muitas vezes prenuncia o destempero e a soberba de quem não se importa em ver a venusta translucidez da água substituída pela consternação do vermelho. E assim como ponderava o caminhoneiro, segue-se a sina de quem em caminho leva pressa, em caminho chão tropeça.
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Um homem marcado pela tragédia
Quando a riqueza material ofusca a importância da vida
Na infância, meu avô me contou uma história que jamais esqueci. É sobre um homem que teve a vida transformada por uma sucessão de tragédias em 1958 e 1959. Até o ano passado, sempre me questionei se o que ouvi quando criança era verdade ou não. A confirmação chegou até mim há alguns meses, quando encontrei uma sobrinha do protagonista desta sinistra e pitoresca história.
Hésio Oscar Azeredo era um investidor de grandes posses que vivia com a família em uma fazenda a pouco mais de 20 quilômetros da área urbana de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Passava o tempo todo ocupado, tentando encontrar novas formas de multiplicar os lucros. Havia época em que dormia menos de três horas porque achava que repousar mais o impediria de alcançar seus objetivos. “Ele tinha uma boa família e era uma boa pessoa, mas colocava o dinheiro e a ambição acima de tudo”, diz a sobrinha Maria Aparecida Lorelli.
Hésio Oscar era filho único de um falecido casal de multimilionários que até as primeiras décadas do século XX administrava investimentos de capital estrangeiro no Brasil. Ainda jovem, já possuía propriedades rurais em sete estados, além de fazendas no Paraguai e Argentina. Algumas eram maiores do que muitas cidades do Brasil. Também investia em beneficiamento de grãos e cereais, telefonia e transportes fluviais. Era muito influente, tanto que na sua biblioteca particular, um ambiente inspirado no gabinete do presidente dos Estados Unidos – o Salão Oval, deixava em destaque uma grande foto em que aparecia ladeado pelo ex-presidente Dwight Eisenhower.
“A moldura do quadro era de ouro maciço. Poucas pessoas podiam entrar lá. Somente alguns familiares conheciam o lugar. Meu tio ainda pedia que por discrição ninguém falasse sobre o que viu lá dentro”, declara Maria que na infância e adolescência teve três oportunidades de visitar o local. Apesar do apego aos bens materiais, o investidor era considerado pelos empregados como um patrão rigoroso, mas justo. Fazia questão de acompanhar de perto todos os seus negócios. Ainda assim, muitos boatos se espalhavam sobre o Tymbara, apelido que um místico colono de origem kaingang deu a Hésio Azeredo. “Era o único índio da nossa turma. Ele inventou esse apelido e não explicou o significado. Só que ninguém nunca teve coragem de chamar o ‘Dr. Hésio’ de Tymbara, então isso ficava mais entre a gente”, comenta o ex-colono aposentado Inácio Durval Reis que naquele tempo era mais conhecido como Mizim.
Em 1957, já circulava entre os colonos um boato de que Azeredo se referia ao dinheiro como se fosse um tipo de deidade. “Falavam que ele tinha um altar cheio de dinheiro e que não saía de lá sem se ajoelhar e rezar pra ganhar mais um punhado a cada dia”, conta Mizim, acrescentando que talvez tenha sido apenas conversa fiada de gente à toa.
Há quem diga que uma cozinheira da fazenda jurou ter visto paredes forradas com notas de cem dólares em alguns dos cômodos da casa principal. “Todo mundo ouvia falar. Só que não conheço ninguém que testemunhou isso. Sei que tinha cômodos da casa que o ‘Dr. Hésio’ não permitia a entrada de ninguém, nem das empregadas”, enfatiza Reis. Embora as lembranças não estejam mais tão frescas na memória, Maria se recorda com carinho da tia Clara e dos primos Tadeu e Joaquim. “Eram bem espertos e adoravam correr pelo campo. Na fazenda, perto de uma bica de mina, tinha um morrinho coberto por uma grama bem verdinha onde eles adoravam escorregar e rolar. Às vezes eu e uma babá cuidávamos dos dois”, comenta.
Tadeu, de cabelos negros que chegavam a azular com a incidência do sol vespertino, era bem comunicativo e agitado. Já Joaquim, de cabelos loiros, era calmo e parcimonioso. Os dois sofriam de heterocromia. “Tadeu tinha um olho preto e um azul. Joaquim possuía um olho preto e um verde. Por causa disso, eu ficava sabendo de muitas bobagens ditas pelos mais ignorantes”, lembra Maria Lorelli. Hésio Azeredo pouco participava do cotidiano familiar. Assistia ao desenvolvimento dos filhos como um espectador desatento. Tinha o hábito de viajar antes do amanhecer, retornando apenas semanas mais tarde e normalmente de madrugada. A pressa era tanta que nem se despedia dos filhos. Se o lucro fosse muito alto e exigisse mais tempo fora de casa, não se importava em se ausentar por alguns meses. Uma vantagem é que o empresário sempre teve pessoas de sua confiança para garantir o bom andamento dos seus muitos empreendimentos.
Criado em uma família que há várias gerações se dedicava a multiplicar riquezas, Azeredo foi o primeiro a romper o ciclo, e não por vontade própria, mas por uma sucessão de acontecimentos que transformaram sua vida. Em dezembro de 1958, após uma séria discussão com o marido, Clara chamou os dois filhos e disse a eles que iriam passar alguns dias na casa da avó em Curitiba. “Ajudei eles a arrumarem as malas e os acompanhei até o aeroporto da família, onde um avião e um piloto estavam sempre à disposição”, relata Maria. No último momento, apesar da resistência em deixá-los partir, Hésio Oscar achou que contrariar a mulher poderia piorar a situação. No início da noite, se arrependeu amargamente ao receber a notícia de que o piloto Julião Martins Bastina sofreu um mal súbito e perdeu o controle da aeronave. O avião que caiu na região dos campos gerais foi encontrado por um caminhoneiro que viu uma criança ensanguentada acenando e gritando por socorro.
“A tia Clara, o Joaquim e o piloto não resistiram aos ferimentos. Acho que morreram na hora do impacto. O Tadeu sobreviveu por um milagre. Ele teve só escoriações e não precisou ficar internado”, destaca Maria Aparecida. A maior parte do sangue sobre o corpo do garoto era do irmão e da mãe que o envolveu nos braços instantes antes da queda. Pelo menos por dois meses após o enterro, a tragédia fez de Azeredo um homem incomunicável, agressivo e ostracista. Não tinha vontade de ver ninguém, nem mesmo o filho sobrevivente. Depois retornou à rotina sem avisar ninguém. E não aceitava que falassem das mortes da mulher e do filho, negando a si mesmo a partida dos dois, mesmo tendo participado da cerimônia fúnebre.
Sem saber como lidar com a vida pessoal, até mesmo esquecendo que tinha família, se afundou ainda mais em trabalho. Esqueceu muitas vezes que Tadeu continuava morando na mesma casa. “O pai dele tinha atitudes de alguém que perdeu tudo. Em vez de se basear naquele exemplo para mudar de vida, fez exatamente o contrário. Fiquei muito nervosa com a situação”, desabafa a sobrinha. Isolado por Hésio Oscar, Tadeu começou a agir como se o irmão Joaquim continuasse com ele. Maria Lorelli foi a primeira a perceber que o primo divagava e tinha alucinações. Parecia falar com outras pessoas, mesmo quando estava sozinho. Quem o via de longe, pensava que havia alguém acompanhando o garoto.
“Ele corria lá pelos lados das plantações. Se embrenhava no meio do cafezal e brincava de se esconder. Lembro que perguntei se tinha mais alguém com ele. Me respondeu que era o irmão. Achei que fosse uma traquinagem inocente, nem comentei com ninguém”, revela Mizim. Episódio semelhante se repetiu uma semana mais tarde, quando Tadeu estava sozinho no quarto, escondido e cochichando dentro do guarda-roupa. Com a insistência dos mais próximos, Azeredo concordou em procurar um tratamento psiquiátrico para o filho. Tadeu foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático. Mesmo com acompanhamento médico, o estado do garoto só piorou. Embora se preocupasse com a situação, Hésio preferia deixá-lo aos cuidados de familiares e empregados.
Um dia, quando se machucou ao saltar sobre uma cerca, a perna de Tadeu começou a sangrar. Ele se aproximou do pai e disse: “Por que o senhor não gosta de mim? É por que o que sai do meu corpo é um líquido vermelho sem valor? Mas e se fosse amarelo e brilhante como ouro?” Azeredo não respondeu. Surpreso, se calou e abraçou o filho, clamando por perdão. A cena foi testemunhada ao longe pela prima Maria. Na semana seguinte, três dias antes de completar 12 anos, Tadeu foi encontrado deitado na própria cama, abraçado a uma foto em que ele aparecia brincando com a mãe e o irmão. Havia um pequeno frasco de estricnina ao seu lado. Tadeu estava morto e com os olhos fechados, como se estivesse se preparando para dormir. Quando viu o filho de pijama e sem vida, Hésio saltou pela janela do quarto que ficava no andar superior. O impacto provocou apenas um corte na cabeça, escoriações e um desmaio que durou cerca de duas horas. Ao acordar, teve uma cefaleia intensa que desapareceu só no fim da noite.
Maria Lorelli tentou conversar com o tio sobre a necessidade de velar e enterrar Tadeu, mas Hésio não quis dialogar. Deixou claro que não precisava da ajuda de ninguém, assumindo o compromisso de fazer tudo sozinho. Só exigiu que dois empregados levassem um enorme refrigerador horizontal, que estava na maior despensa da casa, até um quarto ao lado do seu. Mandou que todos saíssem, tomou Tadeu nos braços e o carregou para a sua suíte. Chaveou a porta do quarto e disse aos familiares que retornaria em algumas horas. Antes que alguém fizesse alguma pergunta, entrou em um jipe Land Rover e desapareceu na escuridão, retornando antes do amanhecer, acompanhado de um húngaro misterioso e com um forte sotaque a quem chamava de Gazda. Transferiram Tadeu para o quarto ao lado da suíte e não permitiu que ninguém entrasse no local.
No dia seguinte pela manhã, Azeredo estava mais calmo e convidou parentes e amigos mais próximos para participarem de enterro do filho no cemitério particular da família. Estranharam a atitude porque Hésio nem mesmo havia planejado o velório. Por comiseração e até por medo de uma má interpretação, ninguém cogitou questioná-lo por não deixar ninguém ver Tadeu antes de fechar o caixão. Algumas das pessoas que participaram da cerimônia, segundo Maria Lorelli, comentaram que Azeredo parecia mais lúcido e provavelmente, após o rompante de desespero, logo entraria na fase de aceitação. Quando todos os parentes foram embora, Azeredo dispensou parte dos empregados, justificando que como estava sozinho não precisava mais de tantas pessoas trabalhando na casa principal. Maria insistiu em continuar com o tio por mais alguns dias, mesmo ciente de que talvez não fosse mais bem-vinda. “Desconfiei de algo estranho acontecendo porque o tal húngaro que ninguém conhecia ficou na casa quase uma semana. Além disso, ele não parecia o tipo de pessoa com quem o tio costumava negociar”, argumenta.
Algumas horas antes de Gazda partir, Maria o ouviu cochichando algumas palavras ininteligíveis a Hésio. Sem motivo para prolongar a estadia, a jovem partiu para Curitiba, onde ingressou no curso de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nas férias, Maria sempre passava alguns dias na fazenda do tio para saber como ele estava e também para reviver lembranças do tempo em que ajudava a tia Clara e os primos Tadeu e Joaquim. Azeredo estava mais comunicativo e não viajava com muita frequência. Na realidade, raramente deixava a fazenda. A propriedade do empresário se tornou o seu mundo, tanto que as negociações diminuíram consideravelmente. Em 1962, apenas nove dos empregados continuaram trabalhando na propriedade. Era o suficiente para manter a operacionalização das atividades locais.
No final daquele ano, por intermédio dos pais, Maria ficou sabendo que Hésio, sem dar explicações, desfez de grande parte dos imóveis e empresas que possuía. Mas a surpresa maior veio em janeiro de 1963, quando Maria encontrou a fazenda abandonada. As plantações estavam morrendo e não havia ninguém no campo. Na casa principal, a sobrinha sentiu um forte mau cheiro vindo da cozinha, onde muitos alimentos estragaram há bastante tempo. Maria também se deparou com móveis cobertos por lençóis brancos. Nada disso pareceu tão estranho quanto uma bem disposta e linear trilha de notas de cruzeiro que começava no cemitério particular da família e terminava no quarto de Hésio Azeredo.
Maria Lorelli seguiu as notas e quando abriu a porta do quarto viu o tio deitado na cama abraçado com o filho Tadeu. Mesmo sem vida, o garoto estava com a aparência do dia em que foi encontrado morto. “Como participei do enterro dele três anos antes, pensei que eu estivesse louca. Até a expressão no rosto de Tadeu ainda era a mesma”, comenta. Após o susto, Maria viu que Hésio também estava morto. Ao lado do corpo, somente um frasco quase vazio de estricnina. Preocupada com a repercussão, a família de Maria evitou comentários e fez o possível para impedir que a história fosse divulgada. Até mesmo no registro de óbito consta que a causa da morte foi um ataque cardíaco. O caixão onde supostamente colocaram o corpo de Tadeu em 1959 sempre esteve vazio. O substituíram por outro e realizaram uma nova cerimônia fúnebre para pai e filho. Desta vez, com a participação de cinco pessoas. Antes de morrer, Hésio Azeredo deixou um testamento destinando 80% da fortuna para orfanatos, asilos e entidades sociais que cuidavam de crianças de rua.
O restante foi dividido entre sete familiares e dois irmãos de criação. Em um bilhete queimado no mesmo dia em que foi lido, Hésio explicou brevemente que o húngaro Gazda era um artista da matéria humana que lhe proporcionou, mesmo que por pouco tempo e com certo requinte ilusionista, se comunicar e se despedir do filho de uma maneira que ninguém jamais entenderia. Anos depois, Maria Lorelli ouviu novamente falar de Gazda em São Paulo. Então soube que o homem misterioso foi um dos mais revolucionários taxidermistas do Leste Europeu, onde trabalhou para czares, aristocratas e líderes socialistas. Se mudou para o Brasil nos anos 1940, fugindo da perseguição nazista aos ciganos.
Curiosidade
Tymbara é uma palavra de origem tupi-guarani que significa “aquele que enterra”.
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La Mancha Negra
Na Venezuela, um dos grandes perigos para quem trafega pelas rodovias é a Mancha Negra, espécie de lodo com a consistência de uma goma de mascar. Embora o governo venezuelano tenha gastado milhões de dólares em pesquisas, até hoje não se tem certeza de sua origem nem de como se livrar dela.
A primeira aparição da Mancha Negra foi em 1987, na principal via que dá acesso ao Aeroporto Internacional de Caracas. Naquele ano, a mancha se estendeu por uma área superior a 50 metros, e com o passar dos anos se espalhou ainda mais, surgindo em outras regiões. Uma estimativa do Governo da Venezuela destaca que desde 1992 mais de 1,8 mil pessoas morreram ao perder o controle do veículo depois de passar pela Mancha Negra.