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Cachorro também cansa de não existir
Revirava o lixo quando levou o primeiro golpe no dorso. Teria vomitado se tivesse comido bem, mas só conseguia expelir uma pequena porção de plástico mole com raspas de goiabada e água da chuva que bebeu minutos antes de quedar na calçada de tijolinhos.
Quase ninguém via, sabia, menos ainda contava as dezenas de cicatrizes pelo corpo seviciado. Cinco anos nas ruas não são cinco dias, e continuar em pé deveria ter feito dele um ícone de resistência à violência. Tinha perdido um olho há mais de ano quando tentava atravessar a língua por um portão para comer um pedaço de pão francês caído no chão.
Não teve tempo de ver a ponta da vara de pesca atravessando o olho como agulha. Correu gritando o que ninguém ouvia. Já não funcionava e apodrecia, até que um dia, o olho caiu. Dizem que ficou observando o olho morto com o que restava – passava a pata com estranheza. Suave no desconhecimento. Não entendia o que entendia.
Mais de 20 companheiros mortos em menos de um ano. Atropelamento, envenenamento, espancamento. Talvez mais. Turma morria e renascia. Alguém teve a ideia de chamar de “Bando dos Sem” – sem casa, sem comida, sem atenção, sem nome, sem vida. Às vezes, quando encontravam outros famintos, se desse briga, dependendo do dia, alguém morria, não por maldade – por fome.
Logo estava sozinho de novo – a cinomose levou os dois últimos companheiros. Ninguém sabe como sobreviveu. Dizem que já teve casa, foi vacinado e abandonado com alguns meses de idade porque a criança “que o ganhou enjoou”. Terreno baldio murado, mato alto – pareceu um bom lugar para o papai descartar um jovenzinho. “Alguém o adotaria”. Conclusão da abstenção de culpa. Ninguém quis.
Ainda revirava o lixo quando se levantou e recebeu o segundo, terceiro, quarto e quinto chute. Pela primeira vez, não correu nem reagiu. Deitou no chão e a violência seguiu. “Cachorro também cansa de não existir”, picharam de branco no chão, onde sem nome, e por pouco, jazia um cão.
Em frente ao pet shop (Mãezinha)
Em frente ao pet shop uma cadelinha faminta assistia dois filhotinhos chorando dentro de uma gaiola. Seus olhos iam de um lado para o outro. Às vezes, ameaçava se aproximar, mas via um par de sapatos à curta distância e logo se afastava. Medo de chute. Insistia.
Observava os dois cãezinhos, até que um deles começou a morder a gaiola. Se aproximou, ignorando quem entrava e quem saía e lambeu as grades, tentando alcançá-los. Quando um deles se achegou para receber carinho foi expulsa a vassouradas.
No dia seguinte, retornou. Assistia no cantinho, do lado de fora do pet shop, os dois filhotinhos chorando. Entrou na loja mais uma vez, encostou a língua na gaiola e um deles fechou os olhos enquanto recebia lambidas interrompidas por vassouradas.
Foi assim por quase duas semanas, até que um dia retornou pela manhã e os filhotinhos não estavam lá. Nem a fome que a levou pela primeira vez ao pet shop parecia incomodá-la mais. Se encolheu num canto e, mesmo quando uma chuva forte atravessou os limites da marquise da loja, continuou no mesmo lugar.
Toda molhada e quase arrastada pela enxurrada, só mirava a gaiola vazia. Não chegou a ganhar um nome, mas podemos chamá-la de Mãezinha. Continuou retornando ao pet shop, e cada vez mais magra. Aproximação e expulsão – sequência de todo dia.
Mais cãezinhos chegavam, choravam e partiam; e ela, que queria cuidar de todos eles, manteve a rotina por pelo menos mais três meses – com sol ou chuva. Um dia, o dono de um bar, vizinho do pet shop, estranhou sua ausência.
Fechou mais cedo e saiu para procurá-la. Não foi muito longe até encontrar Mãezinha dormindo agarrada a um cachorrinho encardido – os dois sem vida – ela e um bichinho de pelúcia que levou do pet shop.
Vagando de uma esquina à outra
Desconcertados, com olhos perdidos, vagando de uma esquina à outra, revirando os sacos de lixo que logo mais os catadores recolheriam. Àquela hora da tarde, sempre uma oportunidade. Tudo ficava ao chão; era a chance de encontrar alguma coisa comestível que pudesse aplacar a fome.
Quando alguém se aproximava, os sacos de lixo viravam esconderijos, pelo menos para os pequeninos. Os maiores só tinham tempo de correr (os mais agitados) ou se encolher em vão (os mais assustados).
Um deles trazia no dorso o carimbo doloroso de uma sola. Se pudessem, acho que gostariam de ter dois olhos que pudessem mirar coisas diferentes – a comida e quem se aproxima. É difícil escolher entre comer ou correr, porque das duas ações dependem a sobrevivência.
Os mais fracos vão resfolegando na correria – imunidade baixa que se intensifica. As costelas à mostra revelam mais do que fome – medo, terror, desamor. A miséria estimula solidariedade entre alguns e violência entre outros. Personalidades distintas, assim como o peso do trauma.
Passam-se os olhos de lá pra cá, e de cá pra lá. Dizem que falta tempo ou dinheiro. “Não é problema meu nem seu” – mantra da omissão. Os corpos vão se acumulando e apodrecendo em qualquer lugar. O mau cheiro revela mais sobre nós do que sobre eles.
Hoje havia dois misturados aos entulhos em uma caçamba – dizem que foram atropelados de madrugada enquanto rasgavam sacos de lixo numa esquina.
“Você faz mais alguma coisa além de musculação?”
Um dia, na academia, um camarada me perguntou se eu fazia mais alguma coisa além de musculação. Achei a pergunta um tanto quanto estranha, mas tudo bem:
— Sim, eu trabalho.
— Sério mesmo?
— Verdade.
— Você trabalha com que?
— Com jornalismo, sou jornalista.
— Ora, nunca imaginaria.
— É? Por quê?
— Por causa da sua aparência. E também achei que você ficasse horas na academia.
— Não. Na realidade, meu treino tem duração de 40 a 50 minutos, às vezes chegando a uma hora. É o suficiente pra me exercitar e ter um shape razoável.
— Realmente não é muito tempo.
— Sim, o dia tem 24 horas, então me resta um bom tempo pra me ocupar com outras atividades, não?
— É…
“Você não é o Tora-Tora?”
Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.
— E aí, rapaz — ele disse.
— E aí — respondi.
— Tudo bem?
— Sim e você?
— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?
— Acho que está me confundindo, camarada.
— Você não é o Tora-Tora?
— Como?
— Tora-Tora!
— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.
— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.
— Entendo.
— Então me desculpe.
— Sem problema.
— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.
— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.
— Qual é a sua religião?
— Sou vegano.
— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?
— Sim…
O cara riu; eu também. Nos despedimos.
Um encontro casual
Ontem à tarde, caminhando até a seção de dietética do Guguy (mercado), uma senhora que não conheço começou a falar comigo.
— Que bom te encontrar aqui hoje.
— É? Mas por que?
— Porque eu olho pra você e você transmite uma coisa muito boa.
— Sério?
— Sim, verdade.
— Que bom! Muito obrigado. Fico realmente lisonjeado.
— Não precisa agradecer.
Eu sorri; a senhora sorriu. Caminhei para uma seção e ela para outra.
Você é um daqueles verdinhos?
Na fila do mercado, eu, uma camiseta verde do Type O Negative e uma boina. Uma senhorinha se aproximou e se posicionou atrás de mim aguardando a vez. Expliquei que ela não precisava ficar na fila porque pela idade ela tem preferência no caixa especial.
— Não, filho, eu gosto de ficar aqui. Tenho saúde e não tenho pressa.
— Que bom — respondi com o meu típico sorriso tímido.
— Filho, olhei pra você e pra sua cesta, diferente o que vi, admito. Você é um daqueles verdinhos?
— Como?
— Um daqueles verdinhos.
— Me desculpe, mas não sei, senhora. O que é um verdinho?
— Que não come carne, leite, ovo…
— É por aí. Acho que vou um pouquinho além inclusive.
— Olhe só, que honra! Um verdinho de verdade!
— É, acho que sim — comentei, entregue a um sorriso encalistrado.
— Olho esses carrinhos e cestas, só consigo pensar em uma coisa. Você sabia que antigamente não existia toda essa comilança de carne? Muita gente do meu tempo, criada em sítio, chegava a ficar até um ano sem comer carne. E vivia bem, realmente bem, com muita energia, lavourando.
— Isso é bom.
— Papai e mamãe deixaram a Polônia durante a guerra e eles viram tanto sangue e morte naquele lugar que quando chegaram ao Brasil falaram que iriam criar os filhos longe de qualquer tipo de morte. Dito e feito. Tenho 78 anos e não como carne desde os cinco anos quando chegamos aqui em 1944.
— Que história interessante. Se a senhora quiser me contar um dia em detalhes, posso transformar em alguma coisa.
— Quem sabe — ela respondeu sorrindo.
— Seria muito legal — comentei.
— Olhe, o conteúdo da minha cestinha é parecido com o da sua. Estamos apenas em um espectro diferente de gerações, pelo menos nesta vida — disse sem desvanecer o sorriso.
— Não duvido — comentei sorrindo.
— É, sempre enxergo um verdinho de longe.
— Por causa da minha camiseta? — questionei com um sorriso enviesado.
— Não — respondeu rindo.
— Hum…
— Meu pai dizia que os nossos melhores hábitos são sempre translúcidos diante dos nossos olhos e dos olhos dos outros quando existe boa vontade. Claro, desde que nós e os outros queiramos enxergar — explicou a senhora antes da despedida.
“Cara, a Páscoa já foi”
Passei casualmente nas Americanas e vi que havia uma grande quantidade de ovos de Páscoa da Choco Soy de vários sabores. Eles estavam vendendo por R$ 35. Não me importo com ovos de Páscoa, mas por um instante olhei para um funcionário e falei:
— Cara, a Páscoa já foi, vendam por R$ 5 cada ovo que levo todos que sobraram. Me comprometo a distribuir a maior parte para a criançada da Vila Alta.
— Não podemos, amigo. O gerente não está aqui agora, mas acho que pode reduzir o preço nos próximos dias.
— Tudo bem, talvez eu passe aqui depois.
— Mas por que seu interesse nesses ovos? Ah, nem precisa responder. Aposto que você é vegano.
— Por que acha isso?
— Acho que só veganos fazem isso.
Sentada em um banco de praça
Me dá sua carteirinha de vegano!
Saindo da academia, já cansado, pernas esmorecendo pela destruição marota do treino de segunda, atravessei a rua e tão logo desativei o alarme do carro, um cara sentado em uma mureta saltou e gritou:
— Porra, cara! Tô aqui na espreita faz hora. Você é vegano! Tá andando de carro por que?
— Porque preciso. Preciso estar em vários lugares diariamente e tenho pouco tempo livre. Por enquanto é o jeito.
— Precisa porra nenhuma! Isso não é vegano, caramba! Parece um refém do sistema com esse papinho pós-história.
— É mesmo?
— É, me dá essa merda dessa carteirinha aí!
— Que carteirinha?
— Sua carteirinha de vegano, ora!
— Não tenho carteirinha.
— Como não?
— Não tenho.
— Olhe, cara, dessa vez vou te liberar, mas só porque seus pneus são da Michelin.
— Obrigado, irmão. Não sei o que eu faria sem a minha carteirinha.
— Tá! Tá! Tá! Tá liberado! Vai vegano!
Fiz um V com os dedos médio e indicador da mão direita e ele retribuiu enquanto comia uma goiaba.