Archive for the ‘Histórias’ tag
A vida tem um cheiro estranho
Com nove ou dez anos, encontrei um senhor em frente de casa, subindo a rua e carregando apenas uma pequena mala. Ele disse: “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho….tem sim….a vida tem um cheiro estranho…”
Parou e me observou enquanto eu acariciava o pelo do Happy. “Você não concorda comigo?”, perguntou. “Não sei.” “Tem sim, meu jovem, um cheiro muito estranho.” “Que cheiro é esse?” “Depende, o que você comeu hoje, o que você fez hoje, com quem você falou hoje?”
“Estou vendo você e esse cachorro aí. O cheiro dele em você, e o seu cheiro nele. Vejo que você estava brincando e se sujou um pouco também.” “Mas a gente toma banho e acaba não ficando cheiro nenhum disso, né?”
“Não é bem assim, o cheiro que desaparece é o cheiro que deixa vestígio no corpo, mas há um cheiro que é aquele que acumulamos ao longo da vida. Somos sortidos de cheiros. E você sabia que o cheiro pesa?” “Como assim?” “Sim, o cheiro pesa.” “Como o cheiro pesa?”
“Ora, imagine carregar tanto cheiro desde o momento em que nasce até o dia em que se morre. Por quantos lugares você passou, quantas pessoas conheceu, quantas situações viveu…tudo isso tem cheiro…que se transformam num pequeno universo de cheiros que nos habita, irreconhecíveis para a maioria. Imagine se colocássemos todos esses cheiros em uma garrafa, nem eu nem você conseguiríamos carregá-la, por certo.”
“Mas isso não faz mal pra saúde?”, questionei. O homem coçou a barba e riu. “Pode fazer mal tanto quanto pode fazer bem. Tudo depende da origem do cheiro, da emoção, sentimento ou experiência que trouxe esse cheiro. O cheiro surge tanto pela intenção quanto pela reação e associação. Os bons são levinhos e os ruins podem ser bem pesados. Mas também podem se transmutar e o bom pode ficar ruim e vice-versa. Então recomendo evitar a condenação sem razão. Seja paciente.”
“Ué, mas não tem jeito de se livrar do cheiro?” “Para o bem ou para o mal, não tem, porque de alguma forma o cheiro somos nós e nós somos o cheiro.” “Humm….” “O que você pode fazer é se esforçar mais para encontrar os cheiros bons ou que pareçam bons, assim quando você acumular cheiros ruins, sejam eles transmutáveis ou não, você terá uma vantagem gerada pelas buscas anteriores ou recorrentes.”
“Isso parece difícil…” “Sim, não é fácil, mas vale a pena, porque com o tempo os cheiros ruins que se acumulam drenam nossa energia. Imagine como seria ficar sem fazer as coisas que você gosta porque não restou muitas forças…”
“Parece terrível…” “Pois saiba que sim, muito…” “E o senhor sabe quanto cheiro já acumulou?” “Ninguém sabe, e é importante não saber, para não se acomodar. Mas estou aqui e é isso que importa, não é mesmo?”
“É…acho que sim.” “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho…tem sim…a vida tem um cheiro estranho…”, disse o homem antes de partir e deixar a pequena mala vazia ao lado do Happy. Nela, uma frase: “Guarde bem os seus cheiros.”
“Suas histórias são reais?”
No ano passado, em uma escola, um estudante me perguntou se as histórias que escrevo são reais. Respondi o seguinte:
— Pode ser que sim, pode ser que não. Na realidade, acho que não faz a menor diferença. Uma história para ter poder sobre a mente humana, ou para instigar alguma emoção ou sentimento, não precisa ser real. Nós que precisamos ser verdadeiros em relação ao que sentimos ou ao que acreditamos quando escrevemos ou lemos. Se você lê uma história totalmente real, mas já tem uma predisposição a não acreditar no que lê, naturalmente aquilo já vai ser interpretado com ressalvas por você. Ou seja, penso que a leitura depende basicamente do quanto abrimos nossas mentes e nossos corações.
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Minhas histórias sobre Paranavaí e seus personagens
Compartilho histórias sobre Paranavaí e seus personagens porque pesquisei e escrevi sobre isso ao longo de dez anos. Assim que entrei na verdadeira fase adulta, e influenciado pelo regionalismo literário e pelo jornalismo literário que teve e tem grande peso na minha vida, fui levado por esse caminho. Inclusive sou grato por ter conquistado alguns prêmios em decorrência disso, embora eu nunca tenha gostado de competição.
Desde criança, sou muito curioso. E sempre estranhava quando eu perguntava o nome de uma via, alguém respondia, mas não sabia dizer quem era aquela pessoa que foi homenageada com nome de rua. Mas acredito que a minha curiosidade em relação ao passado, tempos longínquos em que nem mesmo meus pais tinham nascido, começou com minhas visitas ao cemitério na infância.
Eu passava horas percorrendo túmulos, lápides e gavetas lendo datas e tentando imaginar como era o mundo daquelas pessoas. Também fui influenciado pelos contadores de histórias da minha família, como meu falecido avô. Bem distante de coisas como bairrismo, ufanismo ou coisa do tipo, sou apenas alguém que reconhece que todo lugar, independente de tamanho, tem muitas histórias; mas narrá-las de algum modo vai depender sempre da boa vontade humana.
Gosto da oralidade como fonte de escrita, porque posso ter contato com muitas bibliotecas em forma de gente. E claro, antes que elas partam e levem consigo todas as páginas que foram seus olhos, suas experiências, suas vidas. Afinal, sempre que um caixão se fecha, livros são enterrados.
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“Não tão preparando nenhuma maldade não, né, fio?”
No centro, encontrei um amigo que eu não via há um bom tempo. Assim como eu, ele também está bem barbudo.
— Mano, leio as histórias da sua barba. Você passa por cada uma, hein? Por que comigo não acontece nada? Ninguém me confunde nem com mendigo, cara.
— Cara, pra ser sincero, não tenho a mínima ideia.
De repente, passou uma velhinha segurando um guarda-chuva.
— Vocês são muito bonitos. São irmãos? Não tão preparando nenhuma maldade não, né, fio?
— Não, que isso, minha senhora…Aqui só tem gente de bem.
— Então tá bom, assim ninguém fica feio, e ninguém precisa juntar os pedaços de ninguém.
Quando a senhorinha se afastou, o amigo arreganhou os dentes:
— Vou andar mais vezes com você, mano.
E foi embora todo feliz por ser chamado de terrorista pela primeira vez.
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Que tudo que você não fala ganha vida “na sua cara”
Quando eu era criança, acredito que por volta dos oito anos, um dia a professora, uma freira, me chamou diante da turma na Escola São Vicente de Paulo e perguntou o que mais gosto de fazer:
— Gosto de escrever.
— O que você escreve, David?
— Histórias…
— Que tipo de histórias?
— Das coisas que vejo na rua, na “cara das pessoas”…
— Como assim na “cara das pessoas”?
— É que a “cara das pessoas” é feita de histórias.
— De que tipo?
— Do tipo que elas não querem contar. Então eu imagino o que é e escrevo…
— Mas isso não é ser mentiroso?
— Não…
— Me explique melhor…
— Se você prestar atenção, muitas vezes a “cara das pessoas” diz aquilo que elas não querem contar.
— E o que elas não querem contar?
— Acho que muita coisa. Meu avô fala que trazemos “na cara” as histórias que não contamos.
— E o que isso significa pra você?
— Que tudo que você não fala ganha vida “na sua cara”.
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As histórias do vovô
Meu avô, pai de minha mãe, faleceu no final de fevereiro. Desde criança, nunca o chamei de vô, mas sim de vovô. Ele foi o último dos meus avós a partir. Já não tenho mais nenhum. Não escrevi a respeito no dia do falecimento, isto porque acho que na data em que uma pessoa próxima morre os sentimentos e as lembranças de quem fica não estão na mais perfeita sinergia.
Normalmente estão em estado de transição da irrealidade para a realidade, e o que se pode escrever nesse estado pode não representar exatamente o que se quer. E comigo sempre foi assim. Gosto de escrever sobre alguém quando estou no meu estado sereno de avaliação das coisas.
Antes do vovô falecer, antes mesmo de imaginarmos que isso aconteceria, a nossa convivência se tornou diária por quase dois anos. Gravei horas e mais horas de bate-papo com ele. Sentávamos em “cadeiras de área”, como ele dizia, ao lado das pimenteiras e de outros alimentos orgânicos que ele cultivava. Abelhas o visitavam todos os dias no mesmo horário, e ele nunca se incomodava. Muito pelo contrário, comemorava.
Decidi registrar tudo que ele narrava porque isso é importante, porque os idosos são os livros da cultura oral. A matéria do vovô poderia desaparecer, mas não a essência do que ele tinha a oferecer. Ele não era um ser humano perfeito, assim como também não sou, mas foi com ele que aprendi a amar histórias e contá-las.
Ele era uma biblioteca ambulante, um memorialista. Desde a minha infância, devo ter passado milhares de dias sentado ao seu lado ouvindo histórias de um passado remoto, que quase ninguém conhece porque não foi registrado nos livros. Quero dizer, pelo menos até eu decidir conservar suas palavras.
Hoje, digo que o vovô foi o maior contador de histórias que conheci na minha vida, e quando o vi dentro de um caixão, com o corpo gelado e a tez rija, eu já sabia que ele não estava mais lá, mas sim dentro de todos aqueles que resguardaram suas histórias.
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Escrever, uma coisa que faço o tempo todo
Escrever é uma coisa que faço quase o tempo todo há anos, inclusive mentalmente. Não é porque não tenho uma caneta, um notebook ou um PC ao alcance das mãos que não estou escrevendo. Você chega a um ponto da vida em que sua própria mente se transforma em um caderno ou uma tela, até porque não existe maior exercício de produção do que a atenção, a capacidade de absorver o que as pessoas e o mundo te apresentam. O que agrada quem escreve é isso, no fundo tudo tem potencial para virar uma história, tenha ela poucas ou muitas linhas. E se uma pessoa fala mais do que ouve, ou simplesmente não se esforça o suficiente para enxergar além do óbvio, acredito que pouco ela tem para escrever.
“Tinha que desviar dos cipós pra não cair”
Gabriel Schiroff e as antigas histórias do distrito de Graciosa
Em 1951, quando o produtor rural Gabriel Schiroff se mudou com a família para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, Graciosa ainda não era uma colônia. À época, ninguém chegava ao futuro distrito sem percorrer um precário e estreito carreador. “A gente tinha que se defender das perobas e desviar dos cipós pra não cair da carroceria do caminhão. Paranavaí era distrito de Mandaguari e lembro que sua área ia da beira do Rio Paranapanema até o Rio Ivaí”, relatou sorrindo o pioneiro que perdeu as contas de quantas vezes teve de descer do veículo para abrir caminho entre a mata virgem.
A viagem de Santa Catarina até Paranavaí foi difícil, mas Schiroff afirmou ter valido a pena porque as pessoas se divertiam e sabiam lidar da melhor forma possível com as adversidades. “Todo mundo vivia mais alegre e gostava mais de trabalhar. Se contar tudo que passamos nos anos 1950, muitos dos jovens de hoje em dia não acreditariam”, comentou. No mesmo período da chegada dos Schiroff, o distrito recebeu cerca de 50 famílias de outras regiões do Paraná e de Santa Catarina. A população era composta basicamente por sulistas de origem europeia, o que deu a colônia uma característica de comunidade germânica.
No início a Família Schiroff começou a se dedicar à lavoura. Em seguida construíram uma farinheira e decidiram comercializar em Paranavaí tudo que produziam. “Todo dia a gente vendia dois caminhões carregados de farinha de mandioca para a Casa Estrela, em Paranavaí”, contou Gabriel. A família também se empenhava na cafeicultura e na serraria a vapor, chegando a cortar madeira para toda a população do Distrito de Graciosa.
Francisca Schiroff, esposa de Gabriel, começou a lecionar no povoado em 1952, meses antes do médico José Vaz de Carvalho ser eleito como o primeiro prefeito de Paranavaí. “Logo vieram muitos padres da Alemanha pra Paranavaí, então surgiu a ideia de construir um seminário em Graciosa”, explicou o pioneiro. Nos anos 1950 a modesta economia do povoado era baseada na agricultura, bovinocultura e suinocultura, pois o comércio se concentrava no centro de Paranavaí, onde havia grande demanda por produtos orgânicos e de origem animal.
A população de Graciosa demorou para começar a lucrar com as produções porque a colônia se situava em meio à mata nativa, numa região ainda isolada e pouco visitada. Além disso, nem todos tinham condições de ir até a cidade vender os próprios produtos. “O bom era que tinha bastante madeira, então a gente trabalhava até aos domingos. Duas pessoas levavam metade de um dia para derrubar uma árvore com quase dois metros de tronco. Era preciso derrubar com machado porque não existia motosserra”, destacou.
Em 1952, quando as residências do distrito ainda eram de tábuas e pau-a-pique, Gabriel presenciou um pouso forçado de um avião que perdeu a rota de Londrina até Nova Esperança. “Ele rodou várias vezes aqui por cima, até que acabou o combustível e aterrissou em uma rua. Paramos o trabalho na mata e fomos lá ver se estava tudo bem. Só havia duas pessoas e ninguém se feriu. À tarde, arrumamos gasolina pra eles em Paranavaí. Depois o pessoal empurrou o avião e eles seguiram viagem”, contou. Na década de 1950 era muito comum aparecerem aviões perdidos em Paranavaí, normalmente porque o piloto errava o percurso. Mas em todas as situações, por mais difíceis que fossem, a população sempre conseguia auxiliar os viajantes.
Naquele tempo, sem a conscientização ambiental da atualidade, os moradores de Graciosa encaravam as onças como grandes ameaças. Por isso aconteciam caçadas frequentes e o desfecho quase sempre culminava na morte do animal. Um dia o falecido pioneiro José Venturini Schiroff tinha montado uma armadilha para pegar paca e quando voltou viu alguns rastros de onça. Mais adiante, encontrou os restos do seu cachorro comido pelo animal. Revoltado, chamou um vizinho, reuniu alguns cães caçadores e adentrou a mata. Em poucos minutos foi surpreendido pelos cachorros voltando correndo, arrepiados e latindo.
Mesmo sem os cães por perto, se aprofundaram na floresta até verem uma árvore um pouco torta. “A onça estava lá em cima se preparando para dar o bote. Meu irmão e os dois vizinhos deram três tiros. A acertaram e ela caiu morta. Era uma onça pintada de mais de 80 quilos”, revelou Gabriel Schiroff.
Observação do Autor
Em 2006 e 2007, tive a oportunidade de conversar diversas vezes com o pioneiro e produtor rural Gabriel Schiroff, que sempre foi muito atencioso não apenas em me conceder longas entrevistas no Sítio Nossa Senhora Aparecida, como também me mostrando todo o acervo histórico preservado pela família desde os tempos da colonização (há inclusive arquivos que datam das décadas de 1900 e 1910). Gabriel e a esposa, a pioneira e professora Francisca Schiroff, são importantes personagens de Paranavaí e de Graciosa.
Pesquisando sobre história regional desde 2006, e entrevistando centenas de pessoas, posso acho justo afirmar que o acervo particular da Família Schiroff sobre a história de Paranavaí é um dos maiores já vistos. A relação cultivada com o passado, a partir dos mais diversos tipos de registros, demonstra não apenas um grande amor dos Schiroff pelas coisas desta terra, mas também um anseio de preservar e valorizar a identidade local. Infelizmente o pioneiro Gabriel Schiroff faleceu em 27 de julho de 2012 em decorrência de graves problemas de saúde. No entanto deixou um legado de muitas histórias que enaltecem a bravura daqueles que aqui chegaram nos tempos mais inóspitos.