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Pitágoras, o primeiro filósofo grego a reprovar o consumo de carne e a matança de animais
“Enquanto come as articulações de um cordeiro, você festeja com seus bons amigos e vizinhos”
Dos filósofos da Grécia Antiga, Pitágoras é sempre apontado como o primeiro a questionar e a criticar o consumo de carne e a matança de animais. A ele é atribuída a célebre frase: “Enquanto o ser humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor.” Tal frase foi registrada pelo poeta romano Ovídio, reproduzindo o discurso do filósofo grego.
Embora Pitágoras tenha se aproximado do que seria definido mais tarde como um tipo de vegetarianismo místico, há registros e histórias que revelam que ele realmente se preocupava com os animais não humanos, não apenas com a mácula e com a violência que o consumo de animais poderia causar e estimular. Para o pensador, a abstenção do consumo de animais poderia permitir que o ser humano alcançasse um grau mais elevado de consciência.
Ademais, independente de sua motivação em relação à defesa do não consumo de carne, o filósofo grego que nasceu em Samos séculos antes do surgimento do cristianismo é uma prova do quão é equivocada a crença de que a rejeição ou a crítica ao consumo de animais é uma premissa contemporânea. Esse seu posicionamento, em menor ou maior proporção, influenciou diretamente filósofos e pensadores como Plutarco, Sócrates, Platão, Teofrasto, Empedócles, Ovídio, Séneca e Apolônio de Tiana, entre outros.
Pitágoras chegou a associar o ato de comer carne com uma forma de canibalismo, e naturalmente o ato de matar animais para consumo como assassinato. Para entender essa sua posição basta partirmos da perspectiva de que nós seres humanos também somos animais, portanto, temos um vínculo de parentesco com os animais. Mas ainda assim nos alimentamos de animais.
Ele acreditava que tanto os animais humanos quanto os não humanos têm alma. A sua crença na transmigração de almas, ou seja, na ideia de que seres humanos podem renascer como animais não humanos e vice-versa endossava a sua posição, embora com um viés místico que mais tarde seria rejeitado pelo vegetarianismo ético. Porém, nem por isso, Pitágoras deixou de influenciar o vegetarianismo ético e até mesmo o veganismo como conhecemos hoje, já que à sua maneira, e considerando o contexto da época, ele também questionava a objetificação animal.
“As proibições de Pitágoras contra a matança e o consumo de animais não eram baseadas em superstições, totemismos ou tabu”, afirma a pesquisadora Mary Ann Violin no artigo “Pythagoras – The First Animal Rights Philosopher”, que integra o volume 6 do jornal de filosofia “Between the species”, publicado em 1990. Pitágoras defendia que não é menos bárbaro derramar o sangue de um animal do que o de um ser humano.
O filósofo grego expressou horror pela ideia de colocarmos cadáveres de outros animais dentro de nós. Ele considerava errado nos alimentarmos da “triste carne de animais assassinados”. Como registrado na obra “Metamorfoses” de Ovídio, Pitágoras disse algo como: “Enquanto come as articulações de um cordeiro, você festeja com seus bons amigos e vizinhos.” Pitágoras dizia que os açougueiros eram insensíveis às súplicas de um cordeiro ou bezerro, apesar do fato de seus gritos serem semelhantes aos gritos de um bebê.
Também foi Ovídio quem retratou Pitágoras como um filósofo que suplicava aos seres humanos para demonstrarem compaixão pelo sofrimento de todos os seres sencientes. Além das menções a ele na obra “Metamorfoses”, outro exemplo é uma história narrada pelo filósofo neoplatônico Jâmblico e mais tarde publicada no livro “Life of Pythagoras”, traduzido por Thomas Taylor e lançado em 1818 pela J.M. Watkins, da Inglaterra.
Jâmblico conta que quando Pitágoras estava viajando ao longo da praia de Síbaris para Crotona, ele conheceu alguns pescadores cuja rede ainda estava no mar. Naquele dia, Pitágoras previu o número de peixes que eles pegariam. Intrigados, os pescadores concordaram em fazer qualquer coisa se ele estivesse certo. Quando a rede foi trazida à terra, e os peixes contados, Pitágoras acertou o número exato de peixes e pediu que fossem devolvidos à água. Assim foi feito. Curiosamente, nenhum dos peixes morreu durante a contagem. Pitágoras deu aos homens o dinheiro que eles ganhariam com os peixes e seguiu a sua jornada para Crotona.
Pitágoras era um pensador à frente do seu tempo, tanto que entre seus alunos e seguidores haviam mulheres, ex-escravizados e bárbaros. De acordo com o biógrafo Diógenes Laércio, Pitágoras libertou um jovem chamado Zalmoxis e fez dele seu amigo. Sua escola de filosofia fundada em Crotona se destacava pela organização e pelas regras relativas à conduta prática e moral.
Segundo Mary Ann Violin, Pitágoras se negou a fazer distinção da carne e do sangue de animais humanos e não humanos. O filósofo costumava contar aos seus alunos e seguidores sobre uma era de ouro em que os lábios das pessoas não estavam “contaminados com sangue”. Enfatizava que era um tempo sem violência, em que todos viviam em paz. E foi exatamente pela repulsa à violência contra seres humanos e não humanos que quando Pitágoras e seus seguidores se reuniam em sacrifício aos deuses, eles apenas queimavam incensos e ofereciam mudas de carvalho a Zeus, louro a Apolo, rosa a Afrodite e videira a Dionísio. “Muitos contos milagrosos foram contados sobre Pitágoras e seu relacionamento com os animais”, escreveu Mary Ann no artigo “Pythagoras – The First Animal Rights Philosopher”.
Para o pesquisador Nathan Morgan, autor de “The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism”, publicado em 2010 pela Encyclopaedia Britannica, Pitágoras foi o primeiro filósofo do ocidente a deixar um legado vegetariano. “Ele sentiu que o consumo de carne era insalubre e fazia com que os humanos guerreassem uns com os outros. Por estas razões, ele se absteve da carne e encorajou os outros a fazerem o mesmo”, declarou Morgan.
Na biografia “Life of Pythagoras”, Jâmblico pontua que Pitágoras exortou os políticos de seu tempo a absterem-se do consumo de carne. Pois, se eles estavam dispostos a agirem com justiça em seu mais alto grau, era indiscutivelmente importante incumbi-los a não ferirem nenhum dos “animais inferiores”. Conforme palavras de Pitágoras registradas pelo filósofo neoplatônico, como eles poderiam persuadir os outros a agirem com justiça, se eles próprios provavam que se entregavam a uma avidez insaciável que consiste em devorar esses animais que nos são aliados? Pois, por meio da comunhão da vida estão, por assim dizer, unidos a nós por uma aliança fraterna.
Já a Stanford Encyclopedia of Philosophy, destaca que Pitágoras defendeu o vegetarianismo com base na sua crença na metempsicose, ou seja, na crença de que um mesmo espírito, após a morte do antigo corpo habitado, retorna à existência material, podendo reencarnar como ser humano ou não humano. Logo todos os animais devem ser respeitados. Também cita que Eudoxus de Cnido registrou que além de Pitágoras se abster de alimentos de origem animal, ele evitava proximidade com açougueiros e caçadores. A Stanford Encyclopedia of Philosophy informa ainda que, consoante Porfírio, Pitágoras sugeriu que devemos evitar consumir qualquer animal como se fôssemos consumir seres humanos.
A ética pitagórica que reprovava o consumo de animais teve um importante papel enquanto moral filosófica entre os anos de 490 a 430 a.C. O objetivo de Pitágoras, conforme registros de seus biógrafos e seguidores, era estimular a consciência do respeito à vida independente de espécie. O filósofo grego reconhecia as diferenças entre animais humanos e não humanos em relação ao raciocínio e à consciência. Por outro lado, via similitude principalmente em relação à senciência. O fato dos animais não verbalizarem suas necessidades, não deveria ser motivo para fazer deles um alvo fácil para a humanidade, na perspectiva pitagórica.
Incisivo em seu posicionamento, Pitágoras reprovava o sacrifício de animais e proibia que seus alunos ou seguidores tomassem parte nessa prática que considerava espúria. Acredita-se que o filósofo grego tenha decidido se abster do consumo de animais aos 19, 20 anos, passando a priorizar especialmente o consumo de ervas. Contudo, há divergências sobre como eram de fato os seus hábitos alimentares.
Segundo a obra “Life of Pythagoras”, de Jâmblico, Pitágoras passou a defender invariavelmente a abstinência do consumo de animais, justificando ser uma rejeição determinante para alcançar até mesmo a paz. Argumentava que aqueles que consideravam errada e desnecessária a morte de animais não humanos eram os mesmos que reprovavam a morte de pessoas e o surgimento das guerras. Pitágoras qualificava a guerra como um grande matadouro, e se tal matadouro banalizava a vida humana, mais ainda desvalorizava a vida não humana.
De acordo com Jâmblico, o filósofo grego de Samos relatou que só aquele que reconhece a comunidade de elementos que envolve os seres humanos e os animais é capaz de estabelecer em maior grau uma comunhão com aqueles que compartilham uma alma afim e racional. Advertiu também que a justiça é introduzida pela associação com outras pessoas, enquanto a injustiça é resultado da insociabilidade e negligência humana no que diz respeito a muitas coisas, inclusive o desinteresse ao que não nos parece conveniente.
Embora a história de Pitágoras esteja às voltas com inúmeras controvérsias, até pelo fato de sua vida e obra terem sido narradas e registradas por seus alunos e seguidores, é inegável que chama a atenção reconhecer que há 2,5 mil anos um filósofo fez oposição ao consumo de animais. No entanto, não é difícil encontrar pessoas questionando sobre o motivo pelo qual essa parte da vida de Pitágoras foi tão negligenciada pela história. Afinal, ele é mais conhecido como matemático, e basicamente pela associação de seu nome ao Teorema de Pitágoras.
Sobre isso, uma observação que talvez seja necessária é a de que Aristóteles fez franca oposição ao seu discurso contra a matança de animais. E como Aristóteles enquanto filósofo obteve muito mais êxito no Ocidente, inclusive endossando uma consciência antropocêntrica que reconhecia os animais apenas como seres disponíveis ao uso humano, a filosofia de Pitágoras acabou obscurecida e relegada a um universo menor. Já Aristóteles, que rejeitou a racionalidade animal não humana, ajudou a formar parte da base da atitude cristã ocidental, defendendo assim que criaturas sencientes não humanas poderiam sim ser privadas de justiça e da própria existência, já que isso beneficiaria uma espécie superior, ou seja, a espécie humana.
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Entre os vegetarianos, Pitágoras foi um nome de grande relevância até o século 19, tanto que até então os protovegetarianos e vegetarianos eram chamados de pitagóricos.
Pitágoras nasceu em Samos em 570 a.C e faleceu em Crotona ou Metaponto em 495 a.C.
Referências
Violin, Mary Ann. Pythagoras – The First Animal Rights Philosopher. Between the Species. Páginas 122-125 (1990).
Iamblichus. Thomas Taylor. The Life of Pythagoras. J.M. Watkins. London (1818).
Morgan, Nathan. The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism. Encyclopaedia Britannica (2010).
Ovid. Metamorphoses. Oxford World’s Classics. Oxford University Press (2009).
Wynne-Tyson, Jon. The Extended Circle: A Dictionary of Humane Thought. Penguin Group (1990).
Pythagoras. Stanford Encyclopedia of Philosophy (2005-2014).
Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das desigualdades
A redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa
Um dos fundadores da filosofia ocidental, o filósofo ateniense Sócrates ficou conhecido principalmente pela sua contribuição no campo da ética e da epistemologia. Suas crenças e ideias tornaram-se mundialmente famosas por meio de seus diálogos e discursos registrados por seus discípulos Platão e Xenofonte. Embora não seja possível afirmar se Sócrates foi vegetariano ou protovegetariano, na obra “A República”, escrita por Platão, está clara a sua preocupação sobre as consequências do consumo de carne e da exploração animal, além das implicações desse hábito na saúde humana.
Na página 77 de “A República”, Sócrates comenta com Glauco que levando em conta a forma como as pessoas viviam nas cidades, logo seria considerada imprescindível a criação de gado de todos os tipos. “Mas, levando este tipo de vida, teremos necessidade de muito mais médicos do que antes”, diz Sócrates a Glauco, que concorda com a associação do consumo de carne com o surgimento de problemas de saúde.
Sócrates também critica o hábito dos pastores da época de treinarem os cães para auxiliá-los no trabalho com os rebanhos de carneiros, reconhecendo que esse costume poderia endurecer a natureza dos animais, excitando a intemperança dos cães e tornando-os seres brutos. “A fome ou qualquer hábito vicioso os levaria a fazer mal aos carneiros e a tornarem-se iguais aos lobos [que apenas agiam instintivamente] dos quais os deveriam proteger”, declarou o filósofo ateniense na página 147 de “A República”. A observação de Sócrates revela uma preocupação com o fato da humanidade subverter a natureza animal para benefício próprio.
Na segunda parte de “A República” Platão apresenta Sócrates como um sujeito preocupado com as implicações morais do abate de animais, embora ele demonstre que, primariamente, o que o incomodava era a possibilidade de que o consumo de animais pudesse corromper cada vez mais a humanidade, a distanciando de sua natureza justa e complacente. “Esse hábito de comer animais não exigiria que abatêssemos animais que conhecemos como indivíduos, e em cujos olhos poderíamos olhar e ver-nos refletidos, apenas algumas horas antes de nossa refeição?”, questiona, ao que Glauco responde prontamente: “Esse hábito exigiria isso de nós.”
A coisificação dos animais não humanos é apontada por Sócrates e Glauco como algo capaz de impedir a humanidade de alcançar a felicidade. “E, se seguirmos esse modo de vida, não teremos de visitar o médico com mais frequência?”, questiona o filósofo, que recebe a confirmação de Glauco: “Teríamos tal necessidade.” Sócrates prevê ainda que o hábito de comer animais e criá-los com a finalidade de vendê-los transformaria o ser humano em alguém não somente ambicioso, mas ganancioso a ponto de espoliar propriedades vizinhas para ampliar suas pastagens:
“Se nosso vizinho seguir um caminho semelhante, não teremos que ir à guerra contra o nosso próximo para garantir maiores pastagens? Porque as nossas não serão mais suficientes para o nosso sustento, e nosso vizinho terá a mesma necessidade e entrará em guerra conosco?” Glauco corrobora o receio do ateniense ao confirmar que sim, deixando subentendido que a humanidade se tornaria mais suscetível à decadência e às tentações de uma sociedade imersa em desigualdades. Para Sócrates, a redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa – e um distanciamento cada vez mais crescente da forma mais genuína de felicidade.
Essas reflexões de Sócrates envolvendo a exploração animal e o consumo de carne vão ao encontro do estudo da virtude. Ele dizia que é mais importante a busca do desenvolvimento humano do que a busca pela riqueza material – um dos principais motivos da exploração de animais enquanto produtos. Sócrates acreditava tanto nisso que nem mesmo quando foi sentenciado à morte por questões políticas, segundo as obras “Apologia” e “Críton”, de Platão; e pessoais, de acordo com Xenofonte, cogitou curvar-se ao júri ou fugir em vez de enfrentar a injusta condenação. Nascido em 470 a.C., Sócrates, que preferiu à morte ao exílio, faleceu em 399 a.C, depois de ser obrigado a ingerir cicuta após 30 dias preso.
Referências
Platão. A República. Nova Fronteira (2014).
Platão. A República – Parte II. Escala Educacional (2006).
The Republic of Plato. Translation by F. Sydenham and T. Taylor, revised by W.H.D. Rouse. With introduction by Ernest Barker. London – Methuen (1906).
Kofman, Sarah. Socrates: Fictions of a Philosopher (1998).
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Platão e a crítica ao consumo de carne
O filósofo grego qualificava a carne como um luxo capaz de levar os seres humanos à decadência
Não é possível afirmar que o filósofo grego Platão tenha sido um protovegetariano, já que não há registros fidedignos de seus hábitos alimentares. Porém, em sua obra “A República”, escrita no século 4 a.C., há claros indícios de que o discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles reconhecia a importância de um estilo de vida pacífico. A exemplo de Sócrates, Platão idealizava uma cidade onde as pessoas não se alimentassem da matança de animais, o que alguns pesquisadores interpretaram mais tarde como uma reação ao fato de que à época o consumo de carne já estava muito vinculado ao status dos cidadãos.
Embora também dissesse que tudo existia para o benefício humano, o filósofo grego que era adepto da frugalidade via a abstenção do consumo de carne como um caminho contrário aos excessos e à guerra. De acordo com o pesquisador Nathan Morgan, autor de “The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism”, Platão qualificava a carne como um luxo capaz de levar os seres humanos à decadência. “Ele foi influenciado por conceitos pitagorianos, mas não foi tão longe quanto Pitágoras. Não é clara a forma como ele se alimentava”, pondera Morgan.
Por outro lado, aquele que é considerado por muitos como pioneiro da filosofia ocidental enfatizava a importância da razão, mesmo que isso significasse sacrificar a sensação ou a percepção. Por isso, há quem diga que Platão pode ter contribuído negativamente para o entendimento que Aristóteles teria mais tarde sobre o valor da vida animal não humana; já que a concepção e o enaltecimento de razão enquanto logos naturalmente excluíam seres não humanos.
Contudo, em “A República”, sua obra mais famosa, e inspirada nos diálogos de Sócrates, Platão escreveu que em uma sociedade ideal as pessoas prepararão farinha de cevada e de frumento, cozinharão esta e amassarão aquela. Colocarão seus estupendos bolos e os seus pães em ramos ou folhas frescas e, deitadas em camas de folhagem, feitas de teixo e de murta. “Regalar-se-ão com seus filhos, bebendo vinho, com a cabeça coroada de flores, e cantando louvores aos deuses; passarão assim agradavelmente a vida juntos e regularão o número de filhos pelos seus recursos, para evitar os incômodos da pobreza e os temores da guerra”, registrou na página 76 de “A República”.
E continuou – citando um diálogo de Sócrates com Glauco: “Eles terão sal, azeitonas, queijo, cebolas e esses legumes cozidos que se costumam preparar no campo. Como sobremesa, terão figos, ervilhas e favas; assarão na brasa bagas de murta e bolotas, que comerão, bebendo moderadamente. Assim, passando a vida em paz e com saúde, morrerão velhos, como é natural, e legarão aos filhos uma vida semelhante a deles.”
Na obra, Platão deixa subentendido que um estilo de vida baseado em excessos mina a justiça e potencializa a injustiça. Valendo-se do discurso de Sócrates, ele discorre que a verdadeira cidade deve ser sã – moderada e voltada para a simplicidade. Não pode ser tomada pelo arrebatamento da excitação, do consumo desenfreado. “Parece que muitos não se satisfarão com esse padrão de vida simples e com esse regime: terão leitos, mesas, móveis de toda a espécie, pratos requintados, essências aromáticas, perfumes para queimar, cortesãs, variadas iguanas, e tudo isto em grande quantidade. Portanto, já não podemos considerar apenas necessárias as coisas a que nos referimos no começo: moradias, vestuários e calçados; teremos de levar em conta a pintura e a arte de bordar, procurar ouro, marfim e materiais preciosos de todas as qualidades. Não é isso?”, questiona.
Fundador da primeira instituição de ensino superior do Ocidente, Platão deixou como legado outras obras que ficaram conhecidas como os “diálogos da maturidade”: Fédon, Fedro, Banquete, Menexêno, Eutidemo e Crátilo. Nascido em Atenas em 427 ou 428 a.C, o filósofo grego faleceu em 347 ou 348 a.C.
“Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança”, escreveu Platão nas páginas 55 e 56 de “A República”.
Referências
Platão. A República. Nova Fronteira (2014).
https://ivu.org/history/greece_rome/plato.html
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Montaigne: “Há um dever geral da humanidade em relação aos animais, que têm vida e sentimento”
“E com que devoção e respeito vejo a própria imagem da amizade, tão pura, nos animais!”
O francês Michel de Montaigne foi um dos mais importantes filósofos e humanistas do Renascimento, e entrou para a história como o criador do gênero literário ensaio, situado entre o poético e o didático. No século XVI, inspirado pelo grego Plutarco, a quem via como um mestre, ele criticava a irracionalidade e o preconceito humano em relação às outras espécies. Seu trabalho, muito avançado para a época, influenciou pensadores como Friedrich Nietzsche, René Descartes, Jean-Jacques Rousseau e Isaac Asimov.
Vegetariano, Montaigne sempre defendeu os animais através de suas obras. Em “Ensaios”, publicado em março de 1580, considerado um dos livros não ficcionais mais influentes de todos os tempos, o pensador declarou acreditar que foi pelo massacre dos animais selvagens que o ferro tingido de sangue esquentou pela primeira vez. “E com que devoção e respeito vejo a própria imagem da amizade, tão pura, nos animais!”, escreveu.
Se aprofundando na história e na relação da humanidade com as outras espécies, o francês conta que antes do surgimento do cristianismo, os turcos realizavam muitas obras de caridade em benefício dos animais, inclusive construíram hospitais para espécies não humanas.
Os romanos tinham um serviço público para a alimentação dos gansos. Já os atenienses, por volta de 490 a.C., ordenaram a libertação das mulas e dos burros após a construção do Templo Hecatompedon, permitindo que eles circulassem por qualquer lugar, sem restrição. No mesmo período, os agrigentinos seguiam a tradição de enterrar com dignidade os seus animais. Muitos monumentos suntuosos foram erguidos para homenageá-los.
“E duravam, visíveis, por vários séculos adiante. Os egípcios enterravam lobos, ursos, crocodilos, cães e gatos em lugares sagrados. Embalsamavam seus corpos e ficavam de luto. Címon [estadista e general ateniense] fez uma sepultura honrosa para os jumentos (…). O político Xantipo mandou fazer uma tumba para seu cão num promontório, na costa do mar, o qual desde então conservou esse nome”, narra Michel de Montaigne.
O filósofo defendia que a humanidade deve justiça aos seus e benevolência às outras criaturas. E no relacionamento entre humanos e animais há uma obrigação do primeiro em zelar pelos demais. “Não temo confessar a ternura de minha natureza tão pueril que me leva a não conseguir recusar ao meu cão a festa que me oferece fora de hora”, confidencia em “Ensaios”.
E foi estudando o trabalho de Plutarco que Montaigne descobriu que não era exatamente a figura caricata do gato ou do boi, por exemplo, que os egípcios, enquanto politeístas, adoravam. O que eles amavam nesses animais era a imagem das faculdades divinas materializadas em suas diversas qualidades, como paciência, singeleza e vivacidade. Além disso, viram que os animais eram incapazes de suportarem a clausura, e isto representava a liberdade que amavam mais do que qualquer faculdade divina.
Por outro lado, o filósofo observou que a religião dos antigos gauleses, povo celta que deu origem aos franceses, incutiu a ideia de valores diferentes para os animais. Eles acreditavam que como a alma é eterna e passível de mudar de um corpo para o outro, o destino de cada um dependeria de sua conduta. “As almas dos cruéis entrariam nos corpos dos ursos, as dos ladrões nos corpos dos lobos, e as dos mentirosos nos corpos das raposas. E depois de vários anos e, através de mil figuras, seriam chamados às suas formas humanas originais, uma vez que teriam sido purificados pelo Rio Lete [que tinha Hades com guardião, o deus do mundo inferior e dos mortos]”, cita Montaigne.
Os gauleses levavam a sério a crença de que os homens valentes poderiam renascer como leões, os voluptuosos como porcos, os covardes como cervos ou lebres e os maliciosos como raposas. “Eu, inversamente, o que tenho de bom o tenho pelo acaso do meu nascimento (…). A inocência que há em mim é uma inocência inata, de pouco vigor e sem arte. Entre os vícios, odeio cruelmente a crueldade, tanto por natureza como por julgamento, como sendo o extremo de todos os vícios”, enfatiza.
Uma das cenas que mais marcou a vida do pensador foi o testemunho da degola de um frango. Além disso, Michel de Montaigne não suportava ouvir os gemidos das lebres frequentemente atacadas por cães de caça. “A caça é uma forma violenta de prazer. Os que devem combater a volúpia a usam de bom grado, mostrando que ela é totalmente viciosa e irracional”, critica.
O filósofo aponta o século XVI como um período de exemplos inacreditáveis de legitimação da crueldade, intensificados principalmente pelas guerras. O passado, segundo ele, não era pior que o presente. Ainda assim, o pensador não conseguia se acostumar com tanta violência. E quanto mais animais eram mortos, mais bárbaro o homem se tornava, ampliando a morte dos seus.
“Eu mal era capaz de me convencer, antes de tê-lo visto, que pudessem existir almas tão ferozes que cometessem assassinatos por prazer – retalhar e cortar os membros de alguém, aguçar o espírito para inventar torturas inusitadas e mortes novas, sem inimizade, sem proveito, e só para o fim de gozar do agradável espetáculo, dos gestos e movimentos lastimáveis, dos gemidos e dos gritos (…)”, lamenta.
E levando em conta esse tipo de experiência, Montaigne escreveu que julgava incoerente as opiniões mais moderadas de raciocínio que tentavam apontar as semelhanças entre os seres humanos e os animais. “Quando tentam compará-los a nós, sem dúvida rebaixo muito nossa presunção e renuncio de bom grado a essa imaginaria realeza sobre as outras criaturas. Mesmo se esse não fosse o caso, há todavia um certo respeito que nos liga e um dever geral da humanidade em relação aos animais, que têm vida e sentimento”, pondera.
O pensador jamais conseguiu entender onde o ser humano busca motivação para perseguir e matar um bicho inocente, que além de não ter defesas, não causa mal a ninguém. “E o cervo que comumente, sentindo-se sem fôlego e sem força, e não tendo outro remédio, se vira e se rende a nós mesmos que o perseguimos, pedindo-nos piedade por suas lágrimas, sangrando e, lembrando, por seus queixumes, um suplicante. Isso sempre me pareceu um espetáculo muito desagradável. Não pego animal vivo a que não restitua liberdade. Pitágoras fazia o mesmo, comprando-os dos pescadores e dos passarinheiros para libertá-los”, assinala.
Platão, em sua perspectiva da Era de Ouro, destaca que uma das maiores conquistas da humanidade foi o estabelecimento da comunicação com os animais, a capacidade de reconhecer as verdadeiras qualidades não humanas. Nesse período, foi validado o valor da inteligência animal, garantindo à humanidade o privilégio de traçar um futuro próspero e harmonioso. “É preciso mais provas do que isso para condenar a imprudência humana em relação aos animais?”, questiona Michel de Montaigne.
Para o pensador, as índoles sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade. Ele cita como exemplo da decadência humana a emergência dos espetáculos de mortes de animais na Roma Antiga. A ânsia por sangue e violência cresceu, e mais tarde surgiram os gladiadores. Ou seja, a violência do homem contra o homem é um desdobramento da barbárie iniciada com a suplantação dos animais.
“A própria natureza (temo) fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, avalia Montaigne.
Um homem à frente do seu tempo
O ensaísta inglês William Hazlitt expressou admiração por Michel de Montaigne, declarando que, distante do fanatismo e do pedantismo, ele foi o primeiro autor que teve a coragem de dizer como se sentia enquanto ser humano. Não era pedante e nem fanático.
À época, seu ensaio, recheado de anedotas e reflexões pessoais não foi bem recebido pelos leitores. Consideraram sua obra deficiente, talvez porque Montaigne tenha revolucionado a literatura não ficcional ao incluir-se como matéria do seu próprio livro, gerando desconforto nos leitores mais conservadores. Mais tarde, Montaigne acabou por ser considerado um dos melhores escritores do seu tempo.
Seu comentário mais famoso e cético é: “Que Sçay-je?”, que significa O que eu sei? em francês da Idade Média. Até hoje Montaigne é considerado um autor moderno, isto porque examinava o mundo através dos próprios olhos, conciliando bagagem cultural, observação e experiência. E a partir daí, formulava juízo sobre tudo. Séculos após sua morte, foi considerado o autor mais acessível do Renascimento. Depois de unir narrativa pessoal e sabedoria intelectual, montaigne se tornou uma referência da literatura moderna não ficcional.
Saiba Mais
Michel de Montaigne foi um político, jurista, filósofo e humanista francês. Para ele, a educação de qualidade só é possível quando a formação de indivíduos privilegia o discernimento moral aliado à prática.
Montaigne, que só teve o seu trabalho devidamente reconhecimento após sua morte, também foi influenciado pelo jônico Pitágoras, pelo ateniense Sócrates e pelo neoplatônico Porfírio.
O pensador nasceu no Castelo de Montaigne em 28 de fevereiro de 1533 e faleceu no mesmo local em 13 de setembro de 1592.
Referências
Montaigne, Michel de. Rosa Freire D’Aguiar. Os Ensaios. Penguin – Companhia das Letras (2010).
The Autobiography of Michel de Montaigne. Marvin Lowenthal. David R. Godine, Publisher (1999).
Williams, Howard. The Ethics of Diet (1883). University of Illinois Press (2003).
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