David Arioch – Jornalismo Cultural

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O garotinho que acreditava que sua casa era uma cidade

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Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros

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Seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy (Foto: David Arioch)

Conheci um garotinho na minha adolescência que acreditava que sua casa era uma cidade, sua rua um estado e Paranavaí um país. Seu nome era Natanael e ele era tão criativo que nominou os cômodos de sua casa como se fossem ruas. Um dia sentou no chão, fez plaquinhas a partir de caixas de papelão e as fixou nas paredes.

Havia a Rua Leão Mágico, Rua Peter Pan, Rua Pequeno Polegar, Rua Pinóquio, Rua do Gato e do Rato e Rua Três Porquinhos. E todas as plaquinhas que cintilavam no escuro por causa da tinta fosforescente traziam uma ilustração. Natanael achava importante mostrar quem eram os homenageados. E se alguém o perguntasse o porquê, ele justificava com grande facilidade.

“Por que você colocou o nome de Leão Mágico neste corredor aqui entre a sala e o seu quarto?”, questionei um dia. Então respondeu que o leão era o maior e mais forte guardião da casa e, como ele tinha o poder de desaparecer e reaparecer onde quisesse, Natanael sempre estaria seguro, assim como seus pais.

Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros, atravessado bairros, estradas rurais e colhido frutas no campo enquanto um ventinho fresco acariciava seu rosto. As fantasias de Natanael eram incentivadas pelos familiares.

Depois de estudar física e eletromecânica, o pai construiu um ventilador especial que simulava o som e a intensidade natural do vento. Já a mãe criou algumas pequenas árvores artificiais e aromatizadas em uma velha despensa e, sobre os galhos que balouçavam como se fossem reais, todos os dias pela manhã ela prendia frutas como maçãs, peras, laranjas e mangas, as preferidas do filho.

As paredes foram pintadas por um tio artista que morava no Rio Grande do Sul e veio a Paranavaí para criar um cenário inspirado na obra Campos de Papoula, do impressionista Claude Monet. Natanael sorria tanto no meio daquele cenário pastoril que sentia até as beiradinhas da boca formigando.

Ele girava em torno das pequenas árvores, se acocorava em um canto, sobre um piso coberto por uma camada grossa de terra que garantia mais realismo ao ambiente, e comia um pedaço de fruta com tanto anelo e satisfação que parecia carregar o que existe de melhor no mundo dentro de si mesmo. Era apenas uma criança, mas dotada de um tipo de sensibilidade encontrada em uma pessoa entre milhões.

Natanael tinha cabelos escuros e lisos, uma pele jamais tocada pelo sol e os olhos grandes, redondos e escuros como jabuticabas gigantes. Vez ou outra, o próprio riso o levava às gargalhadas e quando ele exibia os dentes o ambiente ficava mais iluminado. Sempre descalço, mostrava com orgulho as solas avermelhadas e encardidas dos pés.

Para criar novos cômodos na casa, os pais reduziram o próprio quarto a 1/3 do tamanho original. Também diminuíram a sala e a cozinha. Tudo era feito com a intenção de expandir o mundinho de Natanael que chegava a passar meses dentro de casa. “Hoje vou te levar até a Praça dos Pioneiros pra você brincar no parque. Que tal?”, revelou o pai numa surpresa matutina de sábado.

O homem arqueou os braços formando uma cadeirinha e pediu que Natanael subisse a bordo, escorando as costas em seu peito. A mãe entregou a ele um volante do tamanho de um pires e o pai simulou com a boca o som do ronco de um motor. Reproduziram até os solavancos das lombadas, fazendo o garotinho rir e agarrar o braço do pai como um animalzinho protegido pelo tronco de uma sequoia.

A Praça dos Pioneiros de Natanael era um quarto com escorregador, gangorra, balanço e gira-gira. Todos os brinquedos, tornados os mais belos em seu ideário meninil, foram feitos com peças baratas compradas em um ferro-velho. E sobre sua cabeça, o que mais o emocionava e impressionava, entre tudo que possuía, não era nenhum brinquedo, e sim um sol giratório feito de papelão que ficava suspenso no ponto mais alto da área interna da casa.

Conforme o pai ou a mãe puxava uma cordinha, a lírica réplica sorria e piscava para Natanael que se sentia “quentinho” diante dele apesar da ausência de luz solar. “Por que o sol não queima o teto, mamãe? E por que ele nunca se põe? Será que não sente falta da casa dele?”, inquiriu. A mãe respondeu que aquele era o Solzinho, filho do Sol, e se mudou para a Terra para crescer junto com ele. “Quando o Solzinho for grande, ele também vai ter que partir. Enquanto isso vocês podem ser grandes amigos”, comentou. Natanael ficou em silêncio.

Ele amava tanto o sol que muitas das suas roupas traziam desenhos com as mais diferentes representações da estrela. Até mesmo o teto do seu quarto tinha um sol próprio que resplandecia na escuridão noturna como uma paródia prodigiosa da lua de de Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès.

Com o pôr do sol, Natanael saía de casa para brincar no quintal. À noite, depois de muito tempo, uma vez o encontrei chorando debaixo do pé de manga, reclamando que não entendia porque o “Sol Maior”, aquele que traz a alegria do dia, não gostava dele. “O ‘Sol Maior’ deixa tudo brilhando. Ilumina tanta coisa, menos a minha vida”, reclamou. Apesar da casual melancolia, sempre melhorava com o despertar do dia.

Quando Natanael ficava muito triste, seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy. Criavam histórias quiméricas sobre seres fantásticos que surgiam com o poente, protegendo pessoas e animais. Para cada quadra, o garotinho dava o nome de uma cidade. “Alto Paraná, Nova Esperança, Presidente Castelo Branco, Mandaguaçu, Maringá, Sarandi…”, dizia, usando como referência um mapa do Paraná que guardava embaixo da cama.

Às vezes, ia além, atravessando o centro e dezenas de bairros, despertando em seu mundo diminuto a sensação de um desbravador atravessando países e continentes. Numa manhã fria e escura de inverno o levaram para conhecer o Bosque Municipal. Natanael ficou chateado porque os animais não apareceram.

Sem saber o que fazer, seus pais o chamaram para ir embora, preocupados com a previsão de que o sol logo despontaria. De repente um macaquinho-prego se aproximou, deu cinco piruetas e guinchou. Lágrimas escorreram pelas maçãs de Natanael que deu ao lugar o apelido de Amazoninha.

Após o aniversário de nove anos, o garotinho teve a oportunidade de ver o sol a céu aberto pela primeira vez. Seus pais conseguiram economizar dinheiro o suficiente para comprar uma roupa especial que o cobriu dos pés à cabeça, evitando as severas agressões do sol.

Hirto, Natanael assistiu extasiado a luz natural que o rodeava. Ajoelhou no quintal de casa por alguns minutos, se levantou e correu em torno das mangueiras e da jabuticabeira. Empolgado, encostou as mãos protegidas por luvas em todos os pontos onde a incidência da luz solar era maior. “Acho que o sol tá começando a gostar de mim. Hoje é o melhor dia da minha vida!”, gritou, acompanhado por Dino, um cãozinho mestiço e serelepe.

Menos de um mês depois, Natanael foi diagnosticado com melanoma metastático, um câncer de pele associado à xerodermia pigmentosa, doença que o acompanhou desde o nascimento e o impedia de se expor ao sol. O garotinho recluso faleceu em casa antes de completar dez anos. “Será que o leão mágico não vem hoje?”, brincou, exprimindo um sorriso fragilizado.

Quando a morte se aproximou como um sono sempiterno, o sol reluziu na janela. Seus pais abriram a cortina e ele sentiu o “quentinho” que pousou sobre a ponta do dedinho. “É talvez o último dia da minha vida. Saudei o Sol, levantando a mão direita, mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada”, escreveu Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em Poemas Inconjuntos.

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Parque de Exposições, alegria e pesadelo para jovens famintos

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“Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado”

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Atravessavam o parque e ouviam o próprio estômago roncando quando sentiam o aroma de comida (Foto: Reprodução)

Dos 10 aos 15 anos, mesmo sem dinheiro, I.O. e mais 10 a 15 amigos, moradores da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, percorriam mais de cinco quilômetros para chegarem ao Parque de Exposições Arthur da Costa e Silva em época de ExpoParanavaí, tradicionalmente realizada no mês de março na entrada da cidade. Sem pagar, entravam pelos fundos, pelas cocheiras, pelas baias, como ele mesmo diz. Iam a pé ou de bicicleta. Quem ia de bike, levava mais dois amigos. Chegavam lá às 15h e ficavam até as 10h do dia seguinte. Jamais se ausentavam à tarde e à noite.

Tentando invadir o Parque de Exposições, uma vez I.O. ficou pendurado de ponta cabeça, preso pelo tênis, até que conseguiu tirar o calçado e entrar correndo descalço. Na fuga, recebeu uma relhada que deixou um vergão enorme nas costas. Não era fácil. Jogavam óleo queimado na área de travessia preferida dos não-pagantes. “Se chegasse com calça branca, logo ficava toda marcada. Dava pra saber quem pulava e quem não pulava. Tinha uns peões bravos que queriam tirar a gente, daí começava a guerra porque ninguém queria sair. Eu era o mais velho e o resto era tudo piazada”, relata I.O.

O jovem conhecia um segurança “gente boa” que liberava a entrada dele e dos amigos. Lá dentro, atravessavam o parque e ouviam o próprio estômago roncando quando sentiam o aroma de comida e viam os visitantes se fartando diante das barracas. “Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado. Você ia lá, catava e comia, não queria saber de nada. Queria encher a barriga – beber e comer”, informa I.O que não se esquece do dia que um cara abriu uma latinha de refrigerante e saiu de perto para falar com alguém.

Malandro, seu primo foi lá, tomou um gole e se mandou. I.O. também ficou com vontade, desceu no embalo e “colou”. “Encostei o bico na lata e tomei um surdão. Aquele dia eu apanhei, hein? O cara vinha e meu primo não falou nada. Rodei na ‘pista’ e saí de lá que nem mendigo – descalço, sem camisa, todo estropiado”, reclama. Há 12 anos sem entrar no Parque de Exposições, I.O. lembra das vezes em que encostava nos cantos das barracas e falava: “Faz um lanche aí, irmão!” Os barraqueiros pensavam que ele iria pagar. Quando enchia de gente, I.O. e sua turma sumiam no meio da multidão. “Comia lanche de todo jeito, servido com toda aquela qualidade”, afirma às gargalhadas.

Também “batia um rango” com as sobras das barracas dos restaurantes. Eram motivados pela coragem – só o que tinham naquele momento. Se algo saísse mal, voltavam com o “couro ardendo”. Um dia uma comerciante flagrou o primo de I.O. de olho em uma batata recheada. Percebendo a expressão de desejo no rosto do adolescente, a mulher disse: “Você quer? Espera que vou te dar!” Todo feliz o garoto pensou que a noite era sua. “Achou que tava fácil. De repente, chegou uns caras, nossa galera ficou encurralada e o ‘couro comeu pra todo mundo’. Era cilada, irmão!”, garante I.O que viu a turma partindo, gente correndo por todos os lados e barraqueiro gritando: “É pra matar, não é pra aleijar não!”

Vendo que o “couro ia estalar”, I.O. conseguiu sumir. Em outra ocasião, escapou de ser espancado por dois brutamontes que correram no seu encalço. “Se pegasse, eles me destruiriam. Agora tudo mudou e nunca mais fui lá. Foi assim durante uns quatro anos da minha adolescência, quando não tinha muita segurança”, argumenta. Hoje o jovem sorri ao se recordar da quantidade de comida e bebida que achavam nas arquibancadas. Até garrafinha de suco que o namorado dava para a namorada e ela não queria. Largavam no canto e a garotada chegava antes do pessoal da limpeza recolher tudo. No último dia de exposição a alegria de I.O. e sua turma era imensa. O motivo era a distribuição de alimentos feita pelos comerciantes que precisavam se desfazer das sobras.

“A primeira vez que nós achamos o caminho não perdemos mais o carreador, era só não esquecer da cara do dono da barraca. A nossa turma era de moleques que passavam o dia sem comer, né? Não era fácil. Minha avó e meu tio me tocavam de casa e eu ficava morrendo de fome. Lá na exposição, você achava carne, pão, cachorro-quente, outros tipos de lanche, um monte de coisa, irmão. Comia com vontade mesmo. Não é mentira não! Sobrava resto de maionese, aquelas coisas, e trazia tudo embora”, enfatiza.

Espertos, os garotos conheciam muito bem o sistema de distribuição de energia elétrica do Parque de Exposições, tanto é que ocasionalmente davam um jeito de desligar a chave geral. Enquanto a energia não voltava, comiam cocada que pegavam direto das barracas. “Tinha moleque que passava a mão em pingente, cordinha. O que der tempo no escuro é a hora [risos]. Quem iria ver alguma coisa naquele breu?“, declara I.O. rindo.

Quando Vico planejou a própria morte

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Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos

Na Avenida Lázaro Vieira, o gato continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Não me esqueço de um amigo que quando éramos adolescentes planejou a própria morte. Naquele tempo eu o chamava de Vico porque ele era fã do filósofo italiano Giambattista Vico. “A razão é a consciência do ser, não o conhecimento dele. A partir do nosso raciocínio, podemos ter conhecimento da nossa existência, mas não o conhecimento total de quem realmente somos”, dizia meu amigo inquiridor que cada vez mais parecia o filósofo que tanto admirava.

Vico, assim como seu mestre homônimo, levava uma vida frugal. Rendido ao desejo do saber, pouco se interessava em socializar. Era casto por natureza e da vida aspirava o entendimento do que definia como pequenas coisas existenciais. Quando andávamos pelas ruas com a simples motivação de respirar o mundo e sentir a vibração da vida que habita a singeleza, parávamos, sentávamos no meio-fio e fazíamos anotações.

No centro de Paranavaí, algumas pessoas riam e de longe zombavam do nosso comportamento julgado extemporâneo. E nós ríamos também, sem precisar abrir a boca e mostrar os dentes. Afinal, a fantasia é a memória dilatada e para sorvê-la é preciso convidá-la. E a nós estrambótica era a deletéria incompreensão, menos digno de zombaria e mais de comiseração. Escrevíamos sobre pessoas, animais, plantas e objetos. E todas as constatações eram discutidas livremente em um grupo pequeno que fundamos através da internet com o nome de Caballaria.

Principalmente nos finais de tarde, observar a vida ao longo de uma hora era um exercício recompensador, porque era o único período do dia em que nos tornávamos alheios a nós mesmos, nossas fragilidades, falhas e cegueiras. “Olha esses moleques à toa! No meu tempo, não tinha essa vagabundagem juvenil”, comentou um senhor engravatado de meia-idade levando a amante para almoçar em um restaurante na Rua Manoel Ribas.

Observávamos sem reagir às críticas e piadas que ouvíamos com certa frequência. Não faria sentido estar lá para intervir, mas tão somente inferir. Do contrário, tudo deixaria de ter um propósito. A maior lição subentendia a missão de nos tornarmos aquilo que nos furtava a atenção. Num primeiro momento, éramos como voyeurs. E creio que aos olhos que nos miravam, não passávamos disso, embora não nos incomodasse sobretudo. A verdade é que logo não existíamos apenas dentro de nós, mas também fora, não mais reduzidos aos ocos limites da nossa canhestra individualidade.

Em pouco tempo o barulho trivial e a movimentação rotineira de carros, motos, caminhões e pessoas não mais equacionavam nossa concentração. Sentados, ouvíamos tudo se perdendo em meio a um barulho tão difuso e pleonástico que o próprio som cotidiano se tornava irrelevante. Não exigia mais respostas dos nossos sentidos. E ficávamos lá, atentos ao que chamávamos de Orquestra do Mouco, nada mais que o silêncio que soava como o próprio rearranjo da natureza. E assim como as coisas mais simples e implícitas da vida, ele ganhava formas ocasionalmente pouco perceptíveis.

Lugares, pessoas, animais e objetos requeriam de nós um exercício diário de elucubração e compreensão. Eles mudavam diante de nós e nós mudávamos diante deles, provando que um olhar desatento poderia nos entorpecer. Acreditávamos que se tudo que víssemos a cada dia transparecesse comum ou ordinário era porque nos faltava habilidade para ir além. Em síntese, o pouco da percepção corria o risco de se confirmar como um danoso arquétipo da insipiência, isso porque ele nos empurrava para as armadilhas das nossas limitações.

Numa dessas longevas observações, uma vez um filhote de bem-te-vi caiu em cima da minha mochila posicionada na calçada, atrás das minhas costas. Não vi nem ouvi nada, mas senti a repentina aragem que tocou minha nuca como um sopro. Quando me virei, um gato siamês estava prestes a abocanhar o filhote. Consegui afastá-lo com as mãos apesar da sua ruidosa resistência. Percebendo que o passarinho não apresentava ferimento, escalei a árvore e o coloquei novamente no ninho antes de partir.

Depois, caminhando perto da Igreja São Sebastião, notei que o farto felino continuava nos acompanhando e se ocultando entre os arbustos. Só que era barulhento demais para passar despercebido. Perto da Sanepar, ele pendurou na minha mochila, fugindo de um cão grande e mestiço, com características de rottweiler, que tentou atacá-lo. Então o cachorro recuou assim que Vico lhe lançou um grande biscoito canino. Ele sempre carregava petiscos para animais dentro da mochila.

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas. E o cachorro maior veio logo atrás, remansoso e mantendo os olhos em nossos passos. Mais adiante, outros cães e gatos endossaram a marcha. Contei doze animais. De repente, para minha surpresa, um jovem no quintal da própria casa arremessou com violência uma grande manga verde contra nossos seguidores. Errou o alvo e atingiu Vico na cabeça.

Ele caiu de frente com o corpo estendido sobre o asfalto e os braços abertos. Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos pelos cabelos castanhos, e as mãos e pernas levemente raladas. Os cães começaram a uivar e os gatos se esfregaram na cabeça e no dorso de Vico. Desesperado, o agressor adolescente levou as mãos à cabeça e correu para dentro de casa.

Me aproximei do portão, bati palmas e vi o rapaz escondido logo abaixo da janela. “Você matou meu amigo, cara! Sua brincadeira tirou a vida dele! Como você atira manga na cabeça das pessoas que passam perto da sua casa? Qual é o seu problema?”, questionei energicamente. Dois cães se aproximaram da grade, como se quisessem invadir a casa. O garoto não respondeu, mas ouvi seu choro suprimido e ele balbuciando consigo mesmo que seu pai iria matá-lo.

No chão e cercado por animais, Vico ainda não se mexia. O cão grande e mestiço tentou empurrá-lo em vão com o focinho. Alguns curiosos assistiam de longe, indecisos em se aproximar. Cinco minutos após a queda, ele se levantou e sorriu apesar das escoriações e do galo na cabeça. Dei uma gargalhada e seguimos nossa caminhada.

Atraídos pela ração e pelos petiscos que vazavam por um pequeno furo proposital no fundo da mochila, os animais começaram a se dispersar quando perceberam que já não restava mais alimento. Subindo a Avenida Distrito Federal, notamos que a turma se foi – ficou apenas a dupla. Chacoalhei a minha mochila também vazia, onde eu guardava o caderno em um compartimento menor, e sorri. “Amanhã eles voltam. Eles sempre voltam”, comentou Vico.

Uma pequena história de Natal

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Quanto mais eu andava pelo local, mais me sentia circulando pela loja do avô de Nell Trent

"Sem jeito, mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado" (Foto: Arquivo Pessoal)

“Sem jeito, mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado” (Foto: Arquivo Pessoal)

Aconteceu em Paranavaí quando eu tinha 14 anos. Caminhando pela Rua Pernambuco na véspera de Natal, a chuva caía fina sobre o movimentado centro da cidade. Eu olhava para o céu túrbido e não entendia como a água que tocava meu corpo podia ser morna enquanto a que umedecia minha cabeça impactava um curto frio intervalado e solene.

Fiquei intrigado e enxerguei um propósito. As gotas que se chocavam contra o meu couro cabeludo e minha testa, escorrendo entre meus olhos, deslizando pelo meu nariz e perfazendo os contornos de minha boca, antes de saltarem do meu queixo até o meu peito, reduziam a minha sonolência e me enviavam sinais de alerta, como se exigissem minha atenção por onde eu passasse.

Até então eu caminhava como um tipo peculiar de sonâmbulo incorrigível. Tinha dormido menos de cinco horas e sentia meus olhos cálidos, defessos e afogueados. Meu reflexo nas vitrines das lojas revelava um aspecto enleado e abstrato. Ouvia vozes agudas, suaves, graves e oscilantes por todos os lados, mas não identificava palavras. “Será que estão falando realmente português?”, ecoava a questão que despontava da minha consciência.

Misturado à gotejada de chuva, ora violenta, ora calma, que caía dos galhos das árvores que sombreavam a estreita calçada, o inopinado cheiro da terra molhada na Rua Minas Gerais me sopitava. Os piscas-piscas ligados coloriam as gotas que retomavam a natural transparência quando se soltavam de seus hospedeiros de plástico e de vidro. A verdade é que eu percebia somente o que cintilava ou amplificava meus sentidos.

Pessoas falavam comigo. Eu não sabia quem eram ou o que diziam. Confuso, eu me limitava a sorrir na medida do possível, sem mostrar demais os dentes. Me sentia muito cansado e meus olhos turvos e amiudados pouco me ajudavam a lidar adequadamente com a interação humana naquela manhã.

Depois de muito caminhar, cocei meus olhos com sofreguidão e parei diante de um espelho de uma lojinha de antiguidades. “Ah! Agora estou melhorando de verdade. Logo mais vou me sentir 100%”, concluí. Uma senhora simpática me convidou para conhecer o local. A entrada era estreita, mas o espaço interno se alongava de maneira tão convidativa e misteriosa que tive um abrupto anseio de passar horas ali.

Entre fragrâncias de cravo, baunilha, âmbar, sândalo e almíscar, distribuídas em vários pontos do antiquário, conduzindo o visitante a se sentir como parte de uma realidade dividida em fragmentos, com olências que ciceroneavam os objetos, a dona da loja perguntou se eu gostaria de ver algo em especial. Respondi que não e ela me deixou bem à vontade, explicando antes que dedicou muitos anos de sua vida comprando e reunindo objetos das décadas de 1910 a 1970.

“Sabe, meu pai faleceu há mais de 30 anos. Ele era um colecionador de coisas que as pessoas consideravam ultrapassadas ou de pouco valor. ‘Como algo que marcou um período, exigiu do ser humano dias e até meses de esforço pode algum dia ser visto como insignificante? Não há nada no mundo que mereça tal depreciação’, dizia ele”, comentou Marta, a dona do antiquário antes de se afastar para atender uma cliente que procurava um caixinha de música.

Quanto mais eu andava pelo local, mais me sentia circulando pela loja de antiguidades do avô de Nell Trent, imortalizada por Charles Dickens. Por um momento, também me recordei do filme “A Felicidade Não Se Compra”, de Frank Capra. Bom, no meu caso e naquele momento, comprava sim. Porém a realidade era uma suplantadora de desejos. Abri minha carteira ruça e surrada, contei as notas e as moedas que balouçavam dentro do meu bolso e rapidamente tive certeza de que nada ali se encaixava no meu orçamento.

A tristeza me atingiu sobremaneira. Me fez transpirar, umedecendo minhas mãos e as poucas notas de baixo valor que eu observava cabisbaixo. As moedas perderam o brilho, como se fossem impotentes, inutilizadas pela circunstância. De longe, Marta notou o momento em que eu rapidamente me encolhi para guardar o dinheiro e sair do antiquário.

Ela me interrompeu e perguntou se não apreciei nada. Titubeante, disse que gostei sim. “Ué, e por que não vai levar nada?” Hesitei por alguns segundos e me senti encurralado como um animalzinho indefeso. Notando no seu rosto uma expressão reconfortante de benevolência, acabei confidenciando que não tinha dinheiro para comprar nada em sua loja. “Como não? Quanto você tem aí?” A contragosto, minhas mãos tremiam vaporosamente quando tirei as notas e as moedas do bolso. Marta sorriu e pediu que eu mostrasse qual dos objetos mais me agradou.

Caminhei até o fundo da lojinha de antiguidades e sem jeito mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado de madeira que custava mais do que o dobro das minhas economias. “Pra quem você vai dar? É um belo presente de Natal! Você tem bom gosto!”, avaliou Marta, me fazendo corar. Expliquei que seria para minha mãe. Então ela perguntou se havia mais alguma coisa em meu bolso. Retirei um pedaço de papel branco que trazia um pequeno poema de minha autoria chamado “Criança de Faiança”.

Marta o leu com atenção, sorriu e, para minha surpresa, declarou que a “obra” cobria o restante do valor. Antes de sair, pediu que eu autografasse o poema e a ajudasse a colocá-lo em uma moldura dourada de inspiração barroca. “Agora temos um quadro de bom valor”, enfatizou.

Nos despedimos e ela me acompanhou até a entrada da lojinha, onde a vi sorrindo graciosamente até o momento em que desapareci do seu campo de visão. Segui animado pela Rua Getúlio Vargas e voltei para casa assistindo o sol clareando a manhã nebulosa, secando o asfalto e iluminando o cenário, os veículos, as pessoas e os animais, cobertos pelo mesmo manto morno e cadenciado.

No mês seguinte, chamei minha mãe para conhecer o antiquário. Quando chegamos lá, não havia mais nada no lugar, somente uma placa de aluga-se. “Um vislumbre de rostos passageiros flagrados pela luz de uma lâmpada ou pela janela de uma loja é frequentemente melhor para os meus propósitos do que a sua total revelação à luz do dia”, escreveu Dickens em “A Loja de Antiguidades”.

Um velório animado

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Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher 

Capela Mortuária de Paranavaí, onde o episódio aconteceu na minha adolescência (Foto: David Arioch)

Capela Mortuária de Paranavaí, onde o episódio aconteceu no início da minha adolescência (Foto: David Arioch)

No início da minha adolescência, quando alguém importante para os professores do Colégio Unidade Polo falecia, eles tinham o costume de convocar os alunos para o velório antes da última aula. O objetivo era realizar uma homenagem póstuma, reafirmar a importância do falecido, mesmo que os estudantes não o conhecessem.

Um dia, ao final do intervalo, a orientadora se aproximou da porta da nossa sala, pediu autorização para a professora, e disse que uma senhorinha aposentada, que trabalhou anos como zeladora do colégio, morreu em decorrência de um ataque cardíaco. “Ela está sendo velada na Capela Mortuária, ao lado do cemitério. Então vocês vão sair mais cedo hoje para se despedir dela”, disse. Fiquei um pouco confuso porque eu não sabia quem era a falecida. Eu não estudava lá há tanto tempo e me questionei sobre como iria me despedir de alguém que eu nunca tinha visto. A mesma preocupação foi partilhada por outros colegas de classe. Um deles levantou a mão e gritou: “Ué, sei nem quem é a tiazinha. Como vou dar tchau pra ela assim?”

Muitos dos alunos não conseguiram se conter e gargalharam. O silêncio voltou com o olhar sisudo e reprovador da professora que lançou uma régua contra a mesa, exigindo respeito. “Será que vocês não entendem que uma pessoa morreu? Isso não tem graça! É inconsequente rir de uma situação tão dolorosa”, reclamou depois de amiudar os olhos, franzir a testa e cerrar os dentes. Quando chegou a hora de deixar a sala, a professora explicou que poderíamos levar nossas bolsas e mochilas. Estávamos autorizados a ir embora dez minutos antes do horário normal de encerramento das aulas. Foi o suficiente para que os estudantes se entreolhassem com sorrisos dúbios e maliciosos.

Logo que coloquei os pés no corredor, notei que havia muita gente. Todos os alunos foram convocados para a despedida, mas existia um grande contraste entre os mais jovens e os mais velhos. A notícia, que trazia poucas lembranças aos estudantes do então primeiro grau, consternou principalmente os do segundo grau, que estudavam no colégio há mais tempo. Apesar disso, um intenso burburinho atravessou o pátio central, por onde sons de pisadas ecoavam com a violência de uma marcha descompassada.

“O que você achou daquele filme Homens de Preto?”, “’O Coro Vai Comê’, do Charlie Brown Jr., é dá hora! Saca coé, né, mano?” “Domingo a gente vai chegar lá nos Três Morrinhos de bicicleta, tá a fim de ir?” “Po, véi, queria tá em casa assistindo Carmen Sandiego!” Entre conversas aleatórias, percebi que pouco se falava sobre a falecida. Em meio ao barulho, atravessamos a área descoberta que dividia o nosso pavilhão e a ala administrativa do colégio.

Descemos em direção ao estacionamento, onde os mais endiabrados escorregavam pelo gramado, penduravam nas costas dos amigos e lançavam suas mochilas sobre os colegas. Antes de deixarmos o portão do estacionamento, a algazarra foi contida por três ou quatro professores que repreendiam os baderneiros com palavras de ordem e ameaças de punição. Caminhamos mais uma quadra até chegar à Capela Mortuária Municipal. Na esquina, olhei para trás e vi que a fila se afunilou. Metade dos estudantes foram embora. Parte virou à esquerda da Rua Miljutin Cogei e parte à direita. Outros correram pela Rua Professora Enira Braga de Moraes em direção ao Ginásio Noroestão, um dos territórios preferidos dos matadores de aula.

Eu, desde sempre desabituado a frequentar velórios, recusei o pedido de alguns amigos que me chamaram para ver de perto quem era a falecida. Fiquei do outro lado da Rua Paraíba, com as costas no muro branco observando a movimentação intensa dentro e fora da capela. “E se mandarem a gente falar alguma coisa? Perguntar como a conheci? Pode ser até que algum doido me confunda com um parente e peça pra carregar o caixão. Imagine só, os outros me olhando com estranhamento e raiva, como se eu fosse um impostor? Não quero isso não!”, refleti, preferindo manter-me no anonimato.

Mas o distanciamento não durou muito tempo. Uma professora me viu do outro lado da rua e me levou até a capela. Ainda assim me mantive o mais afastado possível, atrás de uma grande pedra que algumas pessoas usavam como assento. Perto da multidão, eu ouvia cochichos dos mais diversos tipos. Comida, lazer e futebol figuravam entre as pautas comuns. “O que tem pra comer lá na sua casa, Roberta? Será que sua mãe fez bolo?”, perguntou um estudante com sorriso enviesado. Notei que o nível da conversa oscilava de acordo com a distância do caixão. Os mais lamentosos o cercavam enquanto os mais indiferentes mantinham-se afastados, preocupados com as trivialidades cotidianas.

Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher mesclado que se enfiou entre as minhas pernas e começou a uivar. O som era tão agudo e caricato que ninguém pensou na possibilidade de existir um bicho que uivasse com tamanha trampolinagem. Não, nenhuma pessoa fez questão de ver se havia algum cachorro. A atenção, as caretas e as expressões de raiva e desprezo, até por parte de quem pouco se importava com o velório, se voltaram para mim. “Caramba! Tem gente achando que sei dar esses uivos bizarros! Sacanagem!”, me lamentava.

Sem esconder o constrangimento, dei alguns passos para trás, virei o rosto corado, cocei os olhos e reagi com um sorriso amarelo, sem dizer palavra. Um professor se aproximou e disse: “Poxa, David! Você é um cara tão tranquilo. O que tá acontecendo contigo? Quer bater um papo na orientação?” Respondi que não fiz nada e fui ignorado. E para piorar, o bichinho voltou mais três vezes, uivando em intervalos e se afastando. Ninguém via o pinscher porque ele se enfiava entre os arbustos que cresciam livremente na esquina da capela.

Ameacei ir embora, mas seria pior. Como eu provaria que não fiz nada? Então optei por ficar pelo menos mais alguns minutos. De repente, quando algumas pessoas conversavam em torno do ataúde, alguém pisou de mau jeito e caiu sobre o caixão, o derrubando e fazendo a tiazinha rolar pelo piso. Em meio ao alvoroço, o pinscher correu uivando. Agarrou uma das pernas da falecida com as duas patas da frente e começou a roçar freneticamente o seu pênis diminuto.

Os familiares e amigos da zeladora ficaram horrorizados. Os demais se esforçavam para conter os risos. E o bichinho, elevado à protagonista de uma tragicomédia, não hesitava em mostrar os dentes a qualquer um que tentasse afastá-lo daquela perna rechonchuda. Me senti mal pela tiazinha, mas fui embora satisfeito em provar que aquele uivo caricato não era artifício de um adolescente gaiato.

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