David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Peixe também sofre

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Foto: Pixabay

Um homem pescava às margens do Rio Paraná quando um menino se aproximou. Não dizia nada, só observava, acompanhando o anzol. Mais de uma hora depois, continuava assistindo o pescador insistindo na captura de um peixe.

Quando já estava cansando, o homem sentiu uma fisgada e puxou a vara com cuidado, sem fazer muita força, pra confirmar se não era ilusão da insolação. Havia um dourado preso ao anzol, e lutava para se livrar da situação.

Usava o corpo todo. Se retorcia com tanta força que a cauda quase encostava na boca perfurada pelo gancho metálico. “Hoje você é meu, é sim, você é meu…”

Depois de muito esforço, quando conseguiu tirá-lo da água, o lançando em um pedaço de lona sobre uma porção descampada, o peixe se debatia e movia a cauda; e não só ele, o menino também.

Sangue escorria pela boca da criança – os olhos foram perdendo o viço e já não conseguia respirar. Segurava a própria garganta e rolava de um lado para o outro na terra.

Desesperado, se jogou no Rio Paraná. O pescador pulou logo atrás e, o puxando pelos cabelos, conseguiu levá-lo de volta à superfície. Engoliu um pouco de água, mas parecia bem.

Olhou em volta por instante e partiu sem dizer palavra enquanto o pescador procurava o dourado em vão.

Da calçada

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Foto: NCRI

Da calçada, o menino observava a comida dentro do restaurante. Entre uma colherada e outra, uma criança chamou a atenção do pai.

O homem reclamou com o gerente “que era difícil se concentrar na comida enquanto alguém assistia com olhos fixos e arregalados”.

Quando o segurança se aproximou, o menino ficou com medo e correu pela rua. Foi atropelado por uma moto. Quebrou as duas pernas – viradas em direção oposta.

Deitado, chorava e sorria, sorria e chorava – dor e alegria. Ainda sentia cheiro de comida – do lado, uma marmita que voou da garupa da moto.

 

 

Tião e Tonho

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Pintura: Jo Frederiks

O menino viu o pai entrando no barracão com uma foice. No cabo, um pedaço de fita isolante. Era com ela que fazia tantos bichos gritarem antes de desaparecerem, deixando um curto rastro de sangue grosso. Tão grosso que se misturava à terra e se transformava num caminho, caminho para lugar nenhum.

Tião se esforçou para chacoalhar a porta de madeira, que rangia, mas não cedia. “Sou fraco demais”, monologou o menino fazendo bico.

— Deixa eu entrar, pai, deixa eu entrar!
— Não! Vá pra dentro com seus irmãos que tenho serviço pra fazer.
— Por favor, pai! Eu imploro. Me deixe, me deixe entrar! Não vou atrapalhar…

Tião sentou no chão de terra e começou a chorar observando o céu anilado.

— Aqui tá azul, mas lá dentro deve tá vermelho. O pai não me engana. Tá fazendo maldade de novo.

Cochilou depois de tanto bater em vão na tábua velha que servia de apoio para as costas. Sonhou que a porta se abriu. O pai acariciava Tonho. Ninguém gritava ou mugia. O silêncio, como o desejo, resplandecia. O boi inclinou a cabeça e Tião deu-lhe um abraço.

Sentia a respiração morna de Tonho, seus olhos escuros e vibrantes. Serenidade e ânsia, pela vida que não se esvaía. O suficiente. De repente, o boi correu em disparada. O pai não conseguiu alcançá-lo. Duas grandes folhas de bananeira caíram sobre o lombo de Tonho e transformaram-se em asas. O boi voou, voou tão alto que desapareceu entre as nuvens.

Tonho acordou com o último mugido. Pungente, abafado, pesaroso. Acabou. Bateu novamente na porta do barracão. O pai abriu.

— Tá, você queria ver, então veja. Não vou mais esconder nada.

O homem saiu com as mãos ensanguentadas.

Cabeça de um lado, corpo do outro. Um no chão, outro na mesa de angelim. É o fim. Baldes de lata cheios de carmesim.

Para o menino, nada mais existia, somente Tonho que repousava a cabeça sobre a terra arenosa e fria.

— Você tá bonito, Tonho. Te vi voando no céu agorinha. Sua boca tá seca. Você deve tá com sede.

Pegou uma pequena bacia branca, colocou água fresca e a derramou sobre a boca do boi. Olhos fixos. Não reagia.

— Entendi. Você tá muito cansado. Amanhã a gente brinca.

 





Mazinho e o menino

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There’s No Place Like Home, de Edwin Henry Landseer

Encontrei uma criança dando um tapa na cabeça de um cachorro na rua. Não foi um tapa muito violento, mas pela reação do cãozinho pareceu tão comum que suspeitei que não era o primeiro. Encostei o carro, desci e caminhei até ele.

— Oi! Tudo bem?
— Oi! Tô bem.
— Legal! Isso é bom!
— Esse cachorro bonito mora com você?
— Mora sim…
— Faz tempo?
— Desde que nasci…
— Qual é o nome dele?
— Mazinho.
— Você gosta do Mazinho?
— Gosto sim, muito.
— Isso é muito bom!
— Você lembra de mim?
— Sim, você visita o Tio Lu.
— Isso mesmo!
— Posso te fazer uma pergunta?
— Pode…
— Você acha que dói apanhar?
— Dói…dói sim…
— Você já bateu em alguém de quem você gosta?
— Não…
— Entendo. Nem no Mazinho?
— Aaaah….bati…
— Você acha que ele sente dor?
— Não sei…acho que sim…
— Ele fica feliz perto de você?
— Fica…
— Então se ele fica feliz, ele também fica triste, e se fica triste significa que tem emoções e sentimentos. E quem tem emoções e sentimentos também sente dor, concorda?
— É…verdade.
— Quando você bate no Mazinho, ele fica alegre?
— Não…
— O que ele faz?
— Ele foge de mim…
— Você gosta quando ele foge de você?
— Não…
— Por quê?
— Acho que porque ele fica com medo de mim.
— E por que ele fica com medo de você?
— Porque quando faço isso ele me acha mau…
— E você é mau?
— Não…
— Então que tal mostrar pra ele o tempo todo que você não precisa ser mau com ele?
— Acho que seria bom…
— Seria sim, e vai ser bom.
— Que tal experimentar?
— Vou fazer isso.
— Promete?
— Prometo.
— O que acha de pedir desculpas e dar um abraço no Mazinho?
— Tá bom…

O menino caminhou até o cãozinho que se escondia atrás de uma cerca em um terreno baldio vizinho. Hesitou com o focinho virado para uma mureta, mas aceitou o abraço. Antes que o soltasse, Mazinho lambeu-lhe a orelha. O menino sorriu e uma lágrima escorreu. “Desculpa, Mazinho…” – disse baixinho.

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O boi e o menino

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Arte: Juan Bosco

Dirigindo pelas estradas de Alto Paraná, perto da Água do Cedro, encontrei um menino andando lado a lado com um boi. Encostei o carro, desci, pedi uma informação e perguntei se ele morava longe. Então o garotinho de nove ou dez anos apontou uma porteira aberta e uma casa de madeira no horizonte à sua direita. A postura e os olhos daquele boi me fizeram suspeitar que havia algo realmente incomum sobre ele.

— E esse boi? Ele mora com vocês?
— Sim, senhor.
— Vocês estão passeando?
— Isso mesmo. Como o senhor sabe?
— É que lá de trás vocês já pareciam companheiros. E agora, de perto, vi que esse boi não tem nenhuma marca no corpo.
— Pra que marcar o bicho, né? Eu que não quero ter o couro marcado. Acho que ninguém quer, né?
— Pois é. Realmente…
— Vocês passeiam sempre?
— Ah, não. Só quando ele quer.
— E como você sabe quando ele quer?
— Ele encosta na porteira, e esfrega a orelha. Meu pai diz que ele faz isso desde criança.
— Desde criança?
— Isso.
— Quantos anos ele tem?
— Ah, ele tem 21.
— Nossa! Incrível!
— É o que todo mundo diz – comentou sorrindo.
— Forte desse jeito? E como ele viveu tanto?
— Não sei dizer não, senhor. Deve ser porque a gente nunca judiou dele, deixa ele bem solto no pasto.
— Isso é bom.
— É sim.
— Vocês nunca pensaram em abater ele?
— Não, senhor. Que isso! O Mestre é da família, é bicho que nem a gente.
— Vocês não comem carne?
— Não. A gente só mexe com horta e pomar. Meu vô, meu pai e minha mãe falam que comer o que não nasce de novo não presta. Tá certo não.
— Ninguém da sua família come carne?
— Não, ninguém.
— Sempre foi assim?
— Não. Foi por causa de uma coisa que aconteceu com o bisa antes do meu pai nascer.
— O que aconteceu?
— Meu bisavô tinha um cemitério no fundo do sítio dele. Um dia, uma vaca entrou lá e empurrou um pedaço de bife dentro de um buraco. Depois ela arrastou a terra com a pata pra cobrir o bife. O bezerro dela tinha sido levado fazia acho que duas semanas. Então o bisa chorou quando viu e prometeu nunca mais comer carne, nem mexer com isso. Essa história a gente escuta desde bem pequeno.

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O menino que matava porcos

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“Mato mesmo!”, confirmou o menino rindo e ouvindo o comentário do sobrinho do meu avô (Foto: Reprodução)

Quando eu tinha oito anos, viajamos para Batayporã, no Mato Grosso do Sul. Lá, conheci outros familiares do meu avô. Mas naquela viagem só uma pessoa me chamou a atenção – um primo de terceiro grau. Ele tinha sete anos e olhos avermelhados.

Na fazenda, o vi de longe, expulsando alguns animais que circulavam pela casa principal. Me falaram que ele matava porcos desde os cinco anos, e que gostava de eviscerá-los com um punhal resguardado por gerações. “Mato mesmo!”, confirmou o menino rindo e ouvindo o comentário do sobrinho do meu avô.

Caminhando pela fazenda, eu evitava ficar sozinho, e sempre olhava ao meu redor, na tentativa de saber se o menino de olhos avermelhados estava por perto. Criança, eu nunca tinha visto ou ouvido falar de alguém que tivesse matado um porco.

Com o cair da tarde, e o sol despontando baixo e avermelhado no horizonte, assim como os olhos do menino, fiquei sabendo que meus pais pretendiam passar a noite na fazenda. Me aproximei de minha mãe e a questionei, garantindo a nossa partida: “Não quero dormir aqui. Se esse menino mata porco, um bicho que não fez nada pra ele, quem garante que ele não é capaz de fazer o mesmo comigo de madrugada?”

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Written by David Arioch

November 25th, 2016 at 1:02 pm

Um crime sem solução

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Mulher foi assassinada na propriedade onde construíram a Escola Elza Caselli

Cenário de um crime nos anos 1950 (Foto: David Arioch)

Nos anos 1950, muitos migrantes chegavam a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, sem qualquer documento de identificação. Então quando acontecia algum homicídio era muito difícil reconhecer a vítima ou criar uma lista de suspeitos. Dependendo da situação, o caso sequer era solucionado. Exemplo foi o assassinato de uma mulher na propriedade onde foi construída a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli.

Certo dia, uma criança que deixou o Ceará e se mudou para Paranavaí com a família estava guiando o gado pelas imediações de uma área erma e silvestre. Ao sentir um mau cheiro que vinha do matagal logo em frente, o garoto, mesmo curioso, não teve coragem de adentrar a mata. Quando chegou em casa contou ao irmão mais velho e pediu que fossem juntos até lá para descobrir a causa de tanto odor.

Segundo pioneiros, à época, o lugar ainda estava coberta por mata virgem, o que justificou o medo do garoto em entrar no local sozinho. Depois de caminharem dezenas de metros, os dois irmãos viram um cadáver já em estado avançado de decomposição. O corpo estava irreconhecível e só foi possível saber que era uma mulher por causa das roupas.

Não havia nenhum documento de identificação junto ao cadáver, somente inúmeras garrafinhas de fortificante Biotônico Fontoura. Hipoteticamente, a mulher era uma jovem migrante de origem humilde que veio a Paranavaí em busca de melhores condições de vida. O corpo foi encontrado poucos dias depois do crime. Suspeita-se que a moça sofreu assédio, não cedeu e acabou assassinada.

À época, o local era coberto por mata virgem (Foto: David Arioch)

Infelizmente, a mulher foi tratada como indigente e logo a polícia desistiu das investigações. O caso jamais foi solucionado. A partir desse assassinato, a população local se uniu e tomou a iniciativa de exigir que todos os moradores de Paranavaí portassem documentos, o que era raro numa época em que muita gente negociava apenas com a garantia da palavra.

Entretanto, quem não concordasse em tirar os documentos não poderia fixar residência na cidade. Anos depois, com o desenvolvimento de Paranavaí, o matagal que um dia serviu como palco de um crime contra uma jovem migrante foi derrubado, dando espaço a Escola Municipal Professora Elza Grassiotto Caselli, no Jardim Farroupilha, nas imediações da “Rodoviária Nova”.

Saiba Mais

O garoto que encontrou o corpo da jovem assassinada é irmão do pioneiro Joaquim Ferreira.