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Conversando com a filha de Manoel Canjerana
No dia 1º de Julho de 2015, entrevistei Nair Alves Silva, filha de Manoel Alves Canjerana, um dos homens mais temidos do Noroeste do Paraná nos anos 1950. Canjerana e Manoel da Rocha, o Macaúba, caíram em uma emboscada em 4 de julho de 1955 e foram assassinados por dois amigos no Bar do Beni, na Rua Marechal Cândido Rondon, no centro de Paranavaí.
O encontro com Dona Nair foi extremamente importante porque contrapõe com provas o fato de que Macaúba não foi morto em Cidade Gaúcha nem teve o corpo abandonado. Na foto, leio a caderneta de trabalho de Canjerana, com anotações de 1954 sobre a sua atuação nas áreas de desmatamento, inclusive dados sobre cada um dos peões por quem se responsabilizava quando trabalhava como fiscal (gato).
O princípio de um fim

As raízes entrelaçadas parecem nutrir um desespero que ofusca a figura da moça (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)
Não posso afirmar que foi intencional, mas o autor conseguiu destacar o princípio de um fim, além de um imenso vazio nesta foto que remete a Paranavaí do final dos anos 1940 e início da década de 1950. As raízes entrelaçadas parecem nutrir um desespero que ofusca a figura da moça mais acima.
Incrível como a última árvore tombada em uma área pode parecer tão frágil e imponente, mesmo depois de sucumbir. Com um traçador, e dependendo da espécie, eram necessários dias para derrubar uma árvore, o que explica também porque algumas eram exibidas como troféus.
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A professora e o troco em balas
Tive uma professora de matemática no ensino fundamental que além de lecionar também era uma autêntica contadora de histórias. Uma vez ela relatou em sala de aula algo que jamais esqueci. Sempre que a professora ia ao mercado ou loja de conveniência de um posto de combustíveis, as operadoras de caixas, seguindo determinações da gerência, lhe devolviam o troco em balas. Ao longo de um ano, ela, que não as consumia, acumulou uma grande quantidade.
Então, depois de estocá-las por um período mais do que considerável, um dia ela saiu de casa com dois sacos de balas e fez compras na mesma loja de conveniência e no mesmo mercado de sempre. Quando chegou ao caixa para pagar pela compra, ela não abriu a carteira. Simplesmente posicionou o saco de balas diante da operadora. A quantidade era mais que suficiente para abater o valor total dos produtos.
Assustada, a moça do caixa perguntou: “O que é isso?” E ela respondeu: “O troco que vocês me deram ao longo de um ano. Me dei o direito de usá-lo agora para pagar pelas minhas compras.” Assustada e sem saber como proceder, a moça chamou o gerente. Apesar da resistência inicial, o sujeito acabou dando razão para a professora que saiu do local sorrindo, fazendo valer o seu direito.
Breve história de Paranavaí
Conheça alguns dos fatos mais importantes de Paranavaí de 1910 até a década de 1980
Em 1910, a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), de propriedade do jornalista e empresário baiano Geraldo Rocha, começou a desbravar o Noroeste do Paraná, nominando Paranavaí e região como Gleba Pirapó.
Em 1926, a Braviaco criou uma estrada com 110 quilômetros de extensão ligando a Fazenda Ivaí, que se tornaria a Vila Montoya, ao Porto São José, com a finalidade de promover transações comerciais com Guaíra e Porto Mendes, no Oeste Paranaense, e Argentina para onde o café produzido seria transportado. Pelo mesmo caminho foi enviado todo o equipamento necessário para a viabilização de uma serraria, empreendimento determinante para a construção da sede da Fazenda Ivaí, atual Paranavaí.
A década de 1920 é apontada como a mais difícil para os moradores da colônia pelo fato de terem vivido isolados no meio da mata, correndo o risco de serem atacados por animais selvagens. Além disso, o difícil acesso a outras localidades complicava mais ainda a situação. Até mesmo a carne consumida na Fazenda Ivaí vinha de muito longe, era comprada no Mato Grosso do Sul, para onde um encarregado e alguns peões viajavam enfrentando uma série de desventuras para trazer a boiada em um barco a vapor.
Em 1928, a Vila Montoya, baseada na monocultura cafeeira, ganhou contornos de cidade. A colônia oferecia tudo que era necessário à sobrevivência dos mais de seis mil moradores. No entanto, o único acesso ao distrito era a estrada do Porto São José, na divisa com o atual Mato Grosso do Sul. Todos que iam para Montoya usavam a mesma via, que servia também para ligar a colônia ao Porto Ceará e a Presidente Prudente, no Oeste Paulista, segundo o livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva.
Em 1930, foram trazidas à Fazenda Brasileira cerca de 1,2 mil famílias de migrantes para trabalharem nas lavouras de café sob regime de colonato. O trabalho foi interrompido inesperadamente um ano depois. Após a Revolução de 1930, o título de propriedade da Gleba Pirapó foi cassado, o que comprometeu o desenvolvimento de Montoya.
Em 8 de abril de 1931, ano em que a extinta Vila Montoya foi nominada como Fazenda Brasileira, o interventor federal do Paraná, o general Mário Tourinho, assinou um decreto retomando as terras da localidade e autorizou o início dos loteamentos.
Também na década de 1930, quem precisava viajar para outras cidades do Paraná era obrigado a atravessar a divisa com o Estado de São Paulo, embarcar em um trem que percorria a antiga Estrada de Ferro Sorocabana até Ourinhos, e de lá partir para Tibagi, no Centro Oriental Paranaense, a quem o distrito de Montoya pertencia.
Em 1933, o interventor Manoel Ribas visitou a Fazenda Brasileira. Para facilitar o contato com outras colônias e cidades do Paraná, além de diminuir a influência paulista na localidade, Ribas pediu que o engenheiro civil Francisco Natel de Camargo iniciasse a abertura de outra estrada que começava em Arapongas, no Norte Central do Paraná, se ligando à Estrada Boiadeira. Entretanto, a colonização da Brasileira só voltou a ser intensificada em 1935.
Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Estado do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. Bandeira e o administrador da colônia, Hugo Doubek, fizeram o trabalho de demarcação territorial da colônia a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. Pelo fato da colônia ter surgido sob a égide da cafeicultura, as principais ruas e avenidas foram traçadas visando o escoamento das produções, não o desenvolvimento urbano.
O nome Paranavaí surgiu apenas em 1944, por sugestão do engenheiro Francisco de Almeida Faria que destacou a necessidade de batizar a cidade com nome único. Pouco tempo depois, a partir do neologismo que é uma junção dos Rios Paraná e Ivaí, surgiu a Colônia Paranavaí. Logo muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem.
A partir de 1946, a colonização na região de Paranavaí ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama, de acordo com dados do IBGE. À época, o que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado.
Entre os anos de 1940 e 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, espanhóis, japoneses, franceses, suíços, húngaros, sírios e libaneses, além de povos de outras etnias. Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina.
Em 14 de dezembro de 1951, com o empenho do primeiro vereador de Paranavaí em Mandaguari, Otacílio Egger, que teve ajuda do pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, a colônia conquistou a emancipação política por meio da lei estadual nº 790. No entanto, foi necessário esperar mais um ano para a elevação de Paranavaí a município, após a eleição que elegeu o médico José Vaz de Carvalho como prefeito de Paranavaí. Ele obteve 2702 votos contra 1607 do adversário Herculano Rubim Toledo. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Paranavaí contava com 22.260 habitantes em 1951. À época, Mandaguari tinha 15.434 e Maringá possuía 8.898 moradores.
Em 14 de dezembro de 1952, quando Paranavaí se tornou município, a população local somava 25.520 habitantes, segundo o IBGE.
Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores. A cidade teve uma evolução exemplar. Era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
Nos anos 1980, a pecuária já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí. De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, uma reação ao que aconteceu em 1969, quando a última e mais grave geada dizimou 80% da produção cafeeira. A diversificação de culturas surgiu tardiamente em Paranavaí, marcada por investimentos mais maciços em citricultura e mandiocultura. Desde então a economia local passou por uma nova pluralização. Exemplo disso é o fato de que na atualidade os setores de prestação de serviços, construção civil e comércio também respondem por importante parcela da geração de renda e empregos em Paranavaí.
Morro Três Irmãos era usado por criminosos

Muitos moradores de Terra Rica se recusam a frequentar o local quando escurece (Foto: Cláudia Lanziani)
Na década de 1950, o Morro Três Irmãos, em Terra Rica, mais conhecido como Três Morrinhos, era usado por criminosos como refúgio. No local, dizem que foram assassinadas muitas pessoas. Uma senhora que ainda mora na cidade me contou que nos tempos da colonização de Terra Rica, o tio dela torturou, matou e escondeu o cadáver de um homem em uma caverna de difícil acesso no terceiro morro. Outros pioneiros relataram que dependendo do dia, quando se passa perto do morro à noite, é possível ver uma “luzinha” seguindo os passantes. Por tal motivo, muitos moradores de Terra Rica se recusam a frequentar o local quando escurece.
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Um dia de foca
Visivelmente encolerizada, a mulher pensou que fomos lá para prejudicá-los, criar um factoide
Ser jornalista já me permitiu passar por muitas situações insólitas. Uma delas surgiu em Querência do Norte, no extremo Noroeste do Paraná, em 2006. Na manhã daquele dia, que pouco importa a data específica, o meu amigo e jornalista Cleber França saiu de Maringá, passou em Paranavaí e juntos fomos para Querência a bordo de um Renault Clio prata, acostumado a circular pelos terrenos mais inóspitos da região.
Sem dúvida, era um carro que surpreendia pelo viço, chegando a voar por metros em áreas de estradas ruins, onde muita gente só trafegaria de caminhão ou caminhonete. A verdade é que ele parecia acostumado a nos transportar pelos mais diferentes destinos da região, em busca de curiosidades, personagens e histórias pitorescas.
No caminho para Querência do Norte encontramos animais silvestres mortos na estrada, o que me parecia sempre trágico, principalmente quando os filhotes cercavam o pai ou a mãe que nunca mais veriam, emitindo gemidos vigorosos ou fragilizados. O som não transformava nada ao seu redor. Sequer parecia mover a tiririca que brotava no canto do asfalto tórrido. Ainda assim a iteração da cena não a tornava menos adventícia. Talvez fosse reles para tantos outros, não para mim que via cada morte animal como um exemplo da nossa displicência e efemeridade existencial.
Bom, continuando. Chegamos em Querência por volta das 9h30. Era um dia quente, dando a impressão de um Sol maior e mais baixo, e não havia muitas pessoas circulando pelas pacatas ruas da cidade, onde os cantos dos pássaros se misturavam aos sons de rodas, latidos e miados. No centro, fomos até uma lanchonete e pedi informações sobre onde poderíamos encontrar um líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da cidade, considerado um dos mais antigos do Paraná.
Então um senhor simpático, usando sandálias, bermuda e camisa, parou de polir as garrafas de cachaça e sugeriu que deixássemos o assunto de lado, alegando que desconhecidos, principalmente jornalistas, poderiam ser hostilizados. “Procure outra história porque essa daí acho que não vai prestar. Vai por mim”, disse o homem sem piscar, mantendo um sorriso enviesado e um olhar fixo em nossa direção. Agradecemos e saímos da lanchonete.
A verdade é que nosso objetivo principal era coletar informações sobre a realidade dos produtores de arroz irrigado. No entanto, como éramos movido pela abelhudice dos focas, jornalistas recém-formados, queríamos fazer muito mais. Em poucas horas, fomos aos portos Natal, Felício e 18. Entrevistamos proprietários e funcionários de balsas, além de ribeirinhos e pescadores. À tarde, voltamos para a área urbana de Querência do Norte e conversamos com alguns produtores de arroz. Todos foram bem receptivos.
Antes de nossa partida, conhecemos um personagem aparentemente bonachão, um agricultor de meia-idade que no passado ocupou posição de destaque no MST da cidade. Ele nos convidou para ir até uma cooperativa fotografá-lo com um saco de arroz. Chegando lá, entramos em um enorme barracão de estocagem, onde havia centenas de sacos bem posicionados. Para ser fotografado, sugerimos que o homem sorrisse, mostrando o conteúdo do saco e também deixando o cereal escorrer entre seus dedos.
Depois de fotografá-lo várias vezes, quando estávamos saindo do barracão fomos interrompidos pela diretora da cooperativa. “O que vocês pensam que estão fazendo?”, questionou. Respondemos que fomos convidados por um senhor bigodudo que se apresentou como sócio da cooperativa. Assim que olhamos para o lado, o homem entrou em seu carro e partiu sem dar explicações.
Visivelmente encolerizada, a mulher pensou que fomos lá para prejudicá-los, criar um factoide. Chamou a atenção de seis ou sete homens que estavam mais próximos e, esbravejando, ordenou: “Tranquem todas as saídas! Eles não vão sair daqui tão cedo!” Na sequência, ouvi o som retumbante do denso portão de ferro se fechando, com a trava já acionada. Dei um sorriso amarelecido e, mesmo tentando velar a tensão, estremeci, sentindo uma perna mais leve que a outra.
Alguns caras à nossa volta nos observavam com desprezo e chalaça, inclusive pressionando as próprias mãos, num gesto de intimidação. Quando tentei explicar quem éramos e o que fazíamos ali, ela disse que não interessava. “Sei muito bem que trabalho vocês fazem. Já recebemos gente como vocês há poucos dias. Única coisa que quero é essa câmera fotográfica”, exigiu olhando diretamente para o Cleber que a segurava com as duas mãos, como se embalasse o próprio filho.
Ele se negou a entregar a câmera e a mulher caminhou em nossa direção. Balançou os braços no ar e ordenou que as fotos fossem apagadas. Com receio de perder todo o nosso trabalho, não deixamos ela tocar no equipamento. Contudo, concordamos em deletar as fotos da cooperativa diante dela. Embora ainda irritadiça, algum tempo depois ela concordou em abrir o portão.
“Olhe a placa do carro e o adesivo no vidro traseiro. Nunca estivemos aqui. A senhora nos confundiu com alguém,” justifiquei, tentando amenizar a situação pela última vez. Sem interesse em dialogar, a mulher apenas recomendou: “Só digo mais uma coisa. Se sair uma foto daqui em algum jornal, pode ter certeza que vou atrás de vocês. Ah, se vou!”, prometeu.
Diante de tanta intransigência, apenas nos calamos e deixamos aquele lugar. Lá fora, rimos pateticamente, como se o medo jamais tivesse nos alcançado. E não evitei de me recordar da profética recomendação do dono da lanchonete ao saber que a diretora da cooperativa também fazia parte do MST. Nem esqueci da expressão do agricultor falsamente bonachão que talvez estivesse rindo de nós e não para nós nas fotos, antevendo a confusão.
Um caso de amor ao artesanato
Há quase 60 anos, Leonor Delgado encontrou no artesanato uma grande fonte de prazer
A professora Leonor Patuci Delgado tem uma relação de amor com o artesanato que se aproxima dos 60 anos. Tudo começou na infância, quando descobriu o prazer de trabalhar com crochê, tricô e, mais tarde, biscuit e decoupage.
A artesã Leonor Delgado já produziu milhares de peças. São principalmente obras de porcelana fria e decoupage que estão espalhadas pelo Paraná, São Paulo, Santa Catarina e Estados Unidos. “Já fui professora e comerciante, mas hoje me dedico 100% a esse trabalho”, afirma Leonor enquanto sorri e aponta centenas de obras bem dispostas em um grande expositor.
O perfeccionismo de Leonor está embutido em cada uma das peças, independente do tamanho e dos materiais usados. “O biscuit é o que mais gosto de fazer, mesmo que demore mais. É algo que me acalma e me dá muito prazer”, garante a artesã que encara a atividade não apenas como um costume diário, mas um fazer artístico que a cada dia dá novo fôlego a sua vida.
De acordo com Leonor, pioneira do biscuit em Paranavaí, todo artista deve ter um estilo próprio, mas a máxima é sempre a busca pela perfeição, algo que pode até mesmo partir do uso das cores que devem estar sempre vinculadas ao tema. “Gosto de produzir obras relacionadas ao universo infantil. Por isso, adoro criar bonecas, portas de maternidade, porta-fraldas, abajures, lixeiras, potes, saboneteiras e quadros”, acrescenta.
Os trabalhos mais demorados da artista são os quadros com biscuit em alto relevo, porque exigem um bom tempo para a criação dos personagens. “Tenho de fazer a cabecinha, pintar os olhinhos, enfim, tudo é feito aos poucos”, conta. O interesse pelo artesanato surgiu quando Leonor ainda era uma garotinha que se divertia criando bonequinhas com bucha vegetal, caminhõezinhos com latas de óleo e vaquinhas com maxixe.
“Aos 10 anos, aprendi macramé [técnica de dar nós em cordas ou cordões], crochê, tricô e bordado a máquina. Foi algo natural porque todo mundo na minha família tem alguma relação com o artesanato”, declara a artista que também faz fusão de decoupage com biscuit.
Com a experiência adquirida ao longo de décadas, a artesã Leonor Delgado decidiu dar aulas. “Ensino biscuit e decoupage para turmas pequenas, com no máximo cinco pessoas. A faixa etária é bem diversificada, desde alunas de nove anos até 60”, reitera. Para se ter boas noções de porcelana fria, por exemplo, é preciso dedicação de quatro a cinco meses. As despesas com o curso variam.
“Mas nem tudo precisa ser comprado. Podemos usar qualquer coisa que tenha uma boa forma geométrica, como tampinhas, tubos de PVC, toalhinhas de plástico, pedaços de tapete de carro, latas e frascos de vidro”, exemplifica. Se tratando de biscuit, há uma infinidade de objetos que em vez de irem para o lixo podem ser transformados em belas peças de apreciação, sejam funcionais ou decorativas.
Saiba mais
Tudo que é produzido pela artesã Leonor Patuci Delgado é feito sob encomenda. Os pedidos mais comuns são voltados para nascimentos de bebês, aniversários, casamentos e batismos.
Serviço
Interessados podem entrar em contato com a artesã ligando para (44) 3423-2777 ou (44) 9104-1502.
Nestor e Pompeu
Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente

Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado (Foto: Helder Shiroshima)
A primeira vez que vi Nestor e Pompeu eu tinha cerca de oito anos. Foi num terreno baldio na esquina de casa, na Rua Pernambuco, onde em meio à capoeira que crescia livremente havia um tanque velho e uma torneira encardida de plástico. Nestor, um rapaz de não mais que 35 anos e estatura mediana, banhava seu cachorro mestiço que imóvel o observava esfregando-lhe o dorso com um pedaço carcomido de sabonete.
Depois do banho, Nestor enrolou Pompeu em uma toalha branca já amarelecida e forrou o chão com um lençol azul-celeste que tirou da mochila. Com as costas escoradas na parede vizinha, sentou e começou a assear Pompeu, tentando reduzir ao máximo a umidade do corpo do cãozinho pardo até então silencioso. O que mais me chamou a atenção naquele dia foi o fato de que a comunicação entre os dois era baseada em olhares, não em palavras. Os dois se entendiam na completude da ausência de diálogos. Quando Nestor sorria, o dorso de Pompeu tremia e o seu rabo chicoteava o ar em regozijo.
Me intrigava a expressão de serenidade, traduzida em um tipo peculiar de satisfação, daqueles dois seres que adotavam todo lugar ou lugar algum como morada provisória. Nestor usava um surrado par de sandálias amendoadas de borracha, uma camiseta bege de algodão e uma calça jeans azul com barras que não chegavam a tocar-lhe os calcanhares, lembrando um tipo pula-brejo. Pompeu tinha porte mediano, aspecto saudável e feições tão expressivas que chegava a parecer um ser humano. Tudo que Nestor comia, ele dividia em partes iguais com Pompeu. A comunicação entre os dois pouco parecia a de espécies diferentes. Juntos, se completavam de maneira singela e curiosa.
Um dia, enquanto chovia, observei Pompeu a metros de distância, saltando no ar com a boca aberta, engolindo a água fria da chuva. Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente – como se impulsionasse o próprio corpo para golpear o nada ou o vazio do alheamento humano. “Simbora, Pompeu, já brincou bastante. Tu vai ficar doente. Vem pra cá!”, disse Nestor ao notar como o focinho do companheiro tornara-se tão fino e pândego por causa da chuva.
Do outro lado da rua, um gatinho abandonado na sarjeta miava tão alto e esganiçado que Pompeu correu até ele mantendo as orelhas em pé para assimilar melhor o som. Assustado, o filhotinho acinzentado e molhado se encolheu diante de uma boca de lobo por onde a água escorria em direção à completa escuridão. Entre um olhar para Pompeu e outro para o bueiro caliginoso, se retraiu ainda mais, inclinando a cabeça em direção ao peito, e aceitou seu destino sem miar outra vez. Pompeu então o segurou pelo couro entre a região do pescoço e do dorso e o carregou até uma cobertura improvisada no terreno baldio na esquina de casa.
Lá, o cão manteve o gatinho aninhado entre suas patas, aquecendo seu corpo trêmulo e diminuto, castigado pela água fria, mas que para ele, um animalzinho nascido há pouco tempo, talvez fosse tão gelada que lhe amofinasse até os ossos. “Vejo que tu fez nova amizade”, comentou o lacônico Nestor ajeitando o boné sobre a própria cabeça. O novo integrante da família recebeu o nome de Curumim em um batismo selado com um pouquinho de ração canina transformada em mingau e servida em uma tampa plástica.
No dia seguinte, pela manhã, corri até a esquina para ver se continuavam no mesmo lugar. Sem graça e sem querer, fiquei frente a frente com Nestor. Ele estava saindo para buscar mais ração. “Ei, amigo! Vou ter que dar uma saidinha. Você pode ficar de olho naqueles dois?”, pediu. Sem dizer palavra, movimentei a cabeça em concordância e caminhei até Pompeu e Curumim que dormiam agarrados um ao outro. Sem mover as patas, Pompeu levantou um pouco os olhos e voltou a dormir, assim como Curumim. Talvez minha presença não significasse risco algum a eles, concluí.
Sentado no chão, tirei o meu boneco Comando Travessia (Hawk) do bolso e comecei a brincar, sem fazer muito barulho, simulando uma incursão por um curto trecho de gramínea. Tudo parecia tranquilo. Eu ouvia o som tênue da brisa que contrabalanceava com o sol que cobria o centro do terreno, iluminando o pouco verde fulgurante e rasteiro que balouçava pejoso.
De repente, senti coceira na mão esquerda. Quando olhei o chão onde me apoiei, vi um bando de formigas enfileiradas transportando alimentos por um trajeto em que a ausência de sol talvez tornasse a jornada menos tortuosa. Apenas mudei de lugar e continuei em silêncio. Olhei para a rua e assisti os passantes nos observando com olhares curiosos e inquisidores. Entre passos céleres e vagarosos, alguns sorriam enquanto outros se protegiam sob feições carrancudas. Carros, motos e caminhões subiam e desciam nas mais distintas velocidades. A pressa de uns, por bem, não era de todo contagiante.
Nestor retornou depois de hora e meia, trazendo mais ração em uma sacola da Casa Moreira. Pompeu comia sem alarde. Observava o entorno e engolia vagarosamente. Afoito, Curumim lambuzava até as orelhas e as patas sobre a pastinha de ração com água. Após uma gargalhada expansiva, destacando bem os dentes, Nestor comentou:
“Curumim é como esses carros e essas pessoas que vimos passar agorinha há pouco. Têm pressa pela simples e ingênua motivação de ter. Não sabem na verdade o porquê e mesmo que soubessem não faria diferença. Não há que se ter pressa para nada. O que a pressa já trouxe de bom? A pressa na verdade diz muito sobre nossas falhas. Curumim ainda é bebê e na idade certa há de aprender. É uma pena que poucos se importam com isso hoje em dia.” Na época, não entendi muito bem, mas achei bonito o discurso.
Nestor possuía cabelos longos e traços indígenas, embora eu desconhecesse sua origem. Seus olhos castanhos eram sempre serenos, mesmo quando alguém o confrontava ou ofendia, o que não era tão raro. Alguns o desprezavam justificando que ele vivia na rua e não tinha trabalho fixo, logo não poderia ser “homem de bem”. O fato de não pedir esmolas pouco pesava na consciência de seus críticos. Nestor não se incomodava. Gozava de seu próprio código de vida, tanto que só aceitava algo se pudesse retribuir.
Mais tarde, numa noite amena, brincando de cabra-cega na varanda de casa com meu irmão e dois amigos, ouvi um barulho vindo da rua. Pedi para minha mãe me deixar ir lá fora ver o que estava acontecendo. Ela autorizou que eu saísse por poucos minutos. Corri até a esquina e encontrei Nestor ensanguentado com as costas escoradas na parede chapiscada do terreno baldio. O sangue, misturado às lágrimas, escorria de seu rosto trigueiro e ele gemia em silêncio, com os braços arroxeados envolvendo Pompeu que emitia um uivo abafado, afônico e lastimoso. Curumim fazia o mesmo, protegido por Pompeu.
Minutos antes, três homens encostaram um Opala preto, desceram e, carregando pedaços de pau, caminharam até Nestor. “Olha, vagabundo, se reagir, a gente mata o cachorro e o gato. Outra coisa, mande eles ficarem quietos senão a coisa vai feder mais ainda pro seu lado, seu índio de merda!”, esbravejou um homem de mais de 45 anos, apontando para o revólver de calibre 38 na cintura, acompanhado dos dois filhos que participaram da selvageria. Assim que Nestor amarrou Pompeu e Curumim com o lençol azul-celeste, tantas vezes usado para servir de abrigo, os três começaram a golpeá-lo.
Caiu desnorteado no chão, ouviu pessoas gritando e viu num átimo anuviado os três agressores correndo em direção ao Opala e partindo bruscamente. Nestor não morreria mais naquele dia. Passado um mês, sentiu-se muito bem após receber atendimento hospitalar e contar com os cuidados da vizinhança que o acolheu com mais desvelo do que nunca.
Algum tempo depois, não sei ao certo quanto, Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado, caído na calçada. Vítima de assalto, recebeu uma facada no pescoço. Sem pensar duas vezes, Nestor tirou a própria camiseta, fez um torniquete, colocou o rapaz em seus ombros e caminhou até o Pronto Socorro da Santa Casa de Paranavaí. Sua força era prodigiosa. Pesando em torno de 70 quilos, transportou sem dificuldade uma pessoa de 85.
A vítima chegou ao hospital com a tez lívida e jamais teria sobrevivido sem a compassiva intervenção do desconhecido. Ao avisarem que o rapaz não corria mais risco de morte, Nestor deu um breve sorriso veraz e caminhou até a saída do hospital. Logo uma médica o alcançou e disse que uma pessoa queria muito falar com ele. “Foi esse rapaz que salvou seu filho”, revelou ela. Constrangido, o pai da vítima agradeceu, sem olhar diretamente nos olhos de Nestor que sequer piscava diante do homem, observando com bonança e acuidade sua reação.
“Tens aqui seu filho, tão importante para ti como são os meus para mim. Lá fora existe vida em cada centímetro de nossos passos. Não há nada neste mundo que nunca tenha sido tocado pela vida. Ela é sempre maior do que tudo que tocamos e vemos, mesmo quando cegos ou desassistidos pela compreensão. Desconheço algo de maior valor, imagino que também pense assim o senhor. Afinal, o que resta ao homem se não tiver ele o direito de respirar, de caminhar ou de existir onde quiser e como quiser?”, declarou Nestor antes de desaparecer na noite enluarada e estrelada que principiava o fim de um longo período de cerração.
O homem, aflito ao ver Nestor no hospital, foi o responsável por atacá-lo no terreno baldio na esquina de casa. E o rapaz fora de perigo era seu filho, um dos que desferiu-lhe alguns golpes nas costas com um pedaço de pau. “Ajudai-me, óh Manitu, a não julgar meu semelhante antes que eu tenha andado sete dias com suas sandálias”, diz uma oração sioux.
Sabrina, o nascimento de uma mulher
Sorriu como nunca e notou no próprio olhar um brilho diferenciado, de alguém redescobrindo o mundo

“A Alana que tem a mesma idade que eu me ajudou muito. Ela que me batizou com o nome de Sabrina” (Foto: Arquivo Pessoal)
Sabrina tinha 16 anos quando experimentou pela primeira vez um vestido. Se sentiu bonita e realizada diante de um espelho que mostrava não apenas o seu reflexo, mas quem ela realmente era no seu íntimo até então velado. Sorriu como nunca e notou no próprio olhar um brilho diferenciado, de alguém redescobrindo o mundo que lhe parecia negado pela possibilidade de viver uma das mais pungentes formas de preconceito – a homofobia.
Com a mesma idade, começou a fazer programas escondida da mãe. Muitos clientes procuravam sexo enquanto outros pagavam apenas pela companhia. Se aconchegavam em seus braços, conversavam, desabafavam, choravam ou simplesmente se extasiavam com um pouco de calor humano. Outros iam além nos pedidos mais inusitados. “Teve um cara uma vez que pediu pra eu penetrar um pepino na bunda dele”, conta rindo.
Quando Sabrina completou 18 anos, a mãe descobriu tudo. Então a jovem explicou que fazer programas é uma forma de trabalho, justificando que quer alcançar seus objetivos o mais rápido possível para futuramente ter uma vida normal. “Tive experiências muito boas com clientes, mas também algumas estranhas, como ser paga para assistir a pessoa ficar se drogando. Ofereciam pra mim, só que nunca gostei disso”, diz.
Com 1,80m, 60 quilos, pele oliva, cabelos longos e bem alinhados, um rosto fino cuidadosamente maquiado e expressivos olhos pretos, Sabrina chama atenção por onde passa e não nega as transformações que viveu nos últimos anos para ser quem é hoje. “Tenho três litros de silicone no bumbum e nas pernas. Sou uma garota em fase, com seios pequenos. Em breve vou colocar uma prótese de silicone”, garante sem esconder a empolgação seguida por um riso fácil.
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, Sabrina integra uma irmandade de 15 jovens que fazem programas. Sempre que necessário, uma protege a outra, principalmente quando aguardam clientes em algumas das esquinas mais movimentadas da cidade. “Tenho amigas que ainda continuam na rua, mas eu já não faço isso com frequência”, informa a jovem que tinha como ponto um dos cruzamentos da Avenida Distrito Federal.
Com clientes fixos, que atende ocasionalmente, e perfis em mídias sociais como Tinder e Badoo, Sabrina não vê necessidade de tanta exposição nas ruas para conseguir dinheiro. “Estou há quatro anos nesta vida. Também fiz programas ao longo de quatro meses em Ponta Grossa [no Centro Oriental do Paraná] por indicação de amigas que me falaram muito bem de lá. Foi ótimo! Conheci várias meninas”, narra com tom de voz vibrante.
Quando não está trabalhando, Sabrina leva uma vida bem tranquila e caseira. Desinteressada em festas e baladas, prefere assistir TV, limpar a casa da mãe, conversar com familiares ou bater papo pelo Whatsapp. “Sim, penso em casar e ter filhos depois que estiver totalmente feita”, confidencia Sabrina que nasceu homem, porém nunca se sentiu como um.
Desde criança já gostava de “coisas de mulher”, só que por receio de sofrer com a homofobia se obrigava a reprimir seus anseios para atender convenções sociais. “Nunca me vi como homem e nunca gostei de nada de homem. Resolvi me assumir pra todo mundo no ano passado, com 19 anos. Estou lutando para ter o que não tenho, o que quero. Odeio a minha parte masculina”, desabafa.
O reconhecimento da identidade feminina veio acompanhado de uma cerimônia realizada pelas amigas da jovem. “A Alana que tem a mesma idade que eu me ajudou muito. Ela que me batizou com o nome de Sabrina. O batismo foi uma forma de simbolizar o carinho dela por mim, de dizer que sempre posso contar com ela”, enfatiza.
Se assumindo como transexual, a jovem começou na mesma época a pesquisar sobre terapia de reposição hormonal e cirurgia de redesignação sexual (CRS). “Nunca me vi como travesti e meu desejo é ser tratada como mulher. Para alcançar meu objetivo, comecei consumindo hormônios como Climene, Mesigyna e Perlutan. Ah! Estou feliz porque em fevereiro vou pra outra cidade aumentar meus seios”, comemora.
Sabrina também tem planos de fazer cirurgia plástica no nariz, com a intenção de afiná-lo e diminuí-lo, e concluir a cirurgia de mudança de sexo antes dos 25 anos. “Quem é trans não é feliz do jeito que nasceu e corre atrás do que quer. Eu mesma tenho certeza do que quero. Ainda não me sinto bem do jeito que sou. Não estou satisfeita”, confessa.
“Olha o veado! Olha o veado!”, grita ocasionalmente algum encrenqueiro em tom de deboche quando vê Sabrina. Ela simplesmente ignora – continua em silêncio e desvia o olhar. Sem se importar com a opinião alheia, desconsidera qualquer piada ou ofensa. “Até hoje o máximo que fizeram foi provocar, xingar e caçoar. Graças a Deus, ninguém foi além disso”, garante.
Por outro lado, na contramão da homofobia, a jovem passou por muitas situações que fazem da sua vida uma gratificante jornada, principalmente quando circula por algum lugar e as pessoas observam com bons olhos a sua transformação.
“Tem gente que faz você se sentir bonita só com o olhar. Recebo muitos elogios, e assim vou me sentindo uma garota mais realizada. Passei a maior parte da minha vida sem saber o que é ser desejada e isso mudou. Você se sente bem consigo mesma quando começa um relacionamento e vê que um cara gosta de você pelo que você é”, afirma sorrindo.
“Não sinto desejo por mulher”
Sabrina sempre teve o apoio da mãe que lidou muito bem com a situação quando soube da homossexualidade do filho – antes de se tornar transexual. “Ela só ficou muito preocupada com a parte de transgênero. Tinha medo da reação do povo, sabe? Como a sociedade iria reagir. Fui sincera e falei que era assim que me sentia bem e iria ser feliz. Então ela acabou entendendo. Hoje minha família me aceita como sou”, conta a jovem de Paranavaí, onde vive desde que nasceu.
O que endossa a identidade sexual de Sabrina é o fato de que ela nunca se interessou por mulheres. “Nunca aconteceu. Não sinto tesão, desejo ou atração. Não sinto nada por mulher. Sempre gostei de homem. Só que pra gente namorar é complicado. Não é fácil pra pessoa assumir isso e tive várias decepções, desentendimentos, mas a gente consegue levar”, pondera.
A jovem que se define como simpática, extrovertida e ao mesmo tempo estressada e casca grossa admite que hoje é mais reservada porque foi muito magoada. “Sou fácil de se lidar. Só não gosto mais de mostrar demais meus sentimentos. Me dou bem com todo mundo, nunca fui de briga. Não gosto disso. E não nego que às vezes me acho um pouquinho. Isso acontece porque gosto de me sentir bonita”, revela com uma voz bem feminina e descontraída, seguida por um riso efusivo.
Sobre homens, Sabrina diz que o mais importante é o jeito do cara. Ser educado, simpático e carinhoso está entre os predicados de maior relevância. “Não ligo muito pra sexo. A maioria dos homens liga. Acho que legal mesmo é o cara saber tratar uma pessoa. E claro que se ele te trata bem, ele vai ser bem tratado”, argumenta, numa referência incidental da ética da reciprocidade, também conhecida como regra de ouro.
Depois de abandonar o colégio no ensino médio, Sabrina pretende voltar a estudar em 2017. No entanto, reclama que os colégios de Paranavaí não estão preparados para receber jovens na mesma situação que ela. “Eles evitam falar disso nas escolas. O preconceito sempre existe. Nunca tive problemas porque sempre ignorei quem tentava me ofender. Seria bom ter algum tipo de orientação nesse sentido. Ser homossexual não é opção, não é nenhum bicho de sete cabeças. Você nasce assim e não pede mais do que compreensão e respeito”, defende.
Frases de Sabrina
“Há jovens de Paranavaí se prostituindo em muitas cidades e estados do Brasil”
“Para quem é travesti ou trans, a parte de apoio é muito difícil. Seria bom se isso mudasse”
“Acho que temos uma boa união entre transgêneros em Paranavaí. Nos vemos como iguais. Isso faz a gente se sentir mais segura”
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Uma pequena história de Natal
Quanto mais eu andava pelo local, mais me sentia circulando pela loja do avô de Nell Trent
Aconteceu em Paranavaí quando eu tinha 14 anos. Caminhando pela Rua Pernambuco na véspera de Natal, a chuva caía fina sobre o movimentado centro da cidade. Eu olhava para o céu túrbido e não entendia como a água que tocava meu corpo podia ser morna enquanto a que umedecia minha cabeça impactava um curto frio intervalado e solene.
Fiquei intrigado e enxerguei um propósito. As gotas que se chocavam contra o meu couro cabeludo e minha testa, escorrendo entre meus olhos, deslizando pelo meu nariz e perfazendo os contornos de minha boca, antes de saltarem do meu queixo até o meu peito, reduziam a minha sonolência e me enviavam sinais de alerta, como se exigissem minha atenção por onde eu passasse.
Até então eu caminhava como um tipo peculiar de sonâmbulo incorrigível. Tinha dormido menos de cinco horas e sentia meus olhos cálidos, defessos e afogueados. Meu reflexo nas vitrines das lojas revelava um aspecto enleado e abstrato. Ouvia vozes agudas, suaves, graves e oscilantes por todos os lados, mas não identificava palavras. “Será que estão falando realmente português?”, ecoava a questão que despontava da minha consciência.
Misturado à gotejada de chuva, ora violenta, ora calma, que caía dos galhos das árvores que sombreavam a estreita calçada, o inopinado cheiro da terra molhada na Rua Minas Gerais me sopitava. Os piscas-piscas ligados coloriam as gotas que retomavam a natural transparência quando se soltavam de seus hospedeiros de plástico e de vidro. A verdade é que eu percebia somente o que cintilava ou amplificava meus sentidos.
Pessoas falavam comigo. Eu não sabia quem eram ou o que diziam. Confuso, eu me limitava a sorrir na medida do possível, sem mostrar demais os dentes. Me sentia muito cansado e meus olhos turvos e amiudados pouco me ajudavam a lidar adequadamente com a interação humana naquela manhã.
Depois de muito caminhar, cocei meus olhos com sofreguidão e parei diante de um espelho de uma lojinha de antiguidades. “Ah! Agora estou melhorando de verdade. Logo mais vou me sentir 100%”, concluí. Uma senhora simpática me convidou para conhecer o local. A entrada era estreita, mas o espaço interno se alongava de maneira tão convidativa e misteriosa que tive um abrupto anseio de passar horas ali.
Entre fragrâncias de cravo, baunilha, âmbar, sândalo e almíscar, distribuídas em vários pontos do antiquário, conduzindo o visitante a se sentir como parte de uma realidade dividida em fragmentos, com olências que ciceroneavam os objetos, a dona da loja perguntou se eu gostaria de ver algo em especial. Respondi que não e ela me deixou bem à vontade, explicando antes que dedicou muitos anos de sua vida comprando e reunindo objetos das décadas de 1910 a 1970.
“Sabe, meu pai faleceu há mais de 30 anos. Ele era um colecionador de coisas que as pessoas consideravam ultrapassadas ou de pouco valor. ‘Como algo que marcou um período, exigiu do ser humano dias e até meses de esforço pode algum dia ser visto como insignificante? Não há nada no mundo que mereça tal depreciação’, dizia ele”, comentou Marta, a dona do antiquário antes de se afastar para atender uma cliente que procurava um caixinha de música.
Quanto mais eu andava pelo local, mais me sentia circulando pela loja de antiguidades do avô de Nell Trent, imortalizada por Charles Dickens. Por um momento, também me recordei do filme “A Felicidade Não Se Compra”, de Frank Capra. Bom, no meu caso e naquele momento, comprava sim. Porém a realidade era uma suplantadora de desejos. Abri minha carteira ruça e surrada, contei as notas e as moedas que balouçavam dentro do meu bolso e rapidamente tive certeza de que nada ali se encaixava no meu orçamento.
A tristeza me atingiu sobremaneira. Me fez transpirar, umedecendo minhas mãos e as poucas notas de baixo valor que eu observava cabisbaixo. As moedas perderam o brilho, como se fossem impotentes, inutilizadas pela circunstância. De longe, Marta notou o momento em que eu rapidamente me encolhi para guardar o dinheiro e sair do antiquário.
Ela me interrompeu e perguntou se não apreciei nada. Titubeante, disse que gostei sim. “Ué, e por que não vai levar nada?” Hesitei por alguns segundos e me senti encurralado como um animalzinho indefeso. Notando no seu rosto uma expressão reconfortante de benevolência, acabei confidenciando que não tinha dinheiro para comprar nada em sua loja. “Como não? Quanto você tem aí?” A contragosto, minhas mãos tremiam vaporosamente quando tirei as notas e as moedas do bolso. Marta sorriu e pediu que eu mostrasse qual dos objetos mais me agradou.
Caminhei até o fundo da lojinha de antiguidades e sem jeito mostrei a ela um velho bauzinho acastanhado de madeira que custava mais do que o dobro das minhas economias. “Pra quem você vai dar? É um belo presente de Natal! Você tem bom gosto!”, avaliou Marta, me fazendo corar. Expliquei que seria para minha mãe. Então ela perguntou se havia mais alguma coisa em meu bolso. Retirei um pedaço de papel branco que trazia um pequeno poema de minha autoria chamado “Criança de Faiança”.
Marta o leu com atenção, sorriu e, para minha surpresa, declarou que a “obra” cobria o restante do valor. Antes de sair, pediu que eu autografasse o poema e a ajudasse a colocá-lo em uma moldura dourada de inspiração barroca. “Agora temos um quadro de bom valor”, enfatizou.
Nos despedimos e ela me acompanhou até a entrada da lojinha, onde a vi sorrindo graciosamente até o momento em que desapareci do seu campo de visão. Segui animado pela Rua Getúlio Vargas e voltei para casa assistindo o sol clareando a manhã nebulosa, secando o asfalto e iluminando o cenário, os veículos, as pessoas e os animais, cobertos pelo mesmo manto morno e cadenciado.
No mês seguinte, chamei minha mãe para conhecer o antiquário. Quando chegamos lá, não havia mais nada no lugar, somente uma placa de aluga-se. “Um vislumbre de rostos passageiros flagrados pela luz de uma lâmpada ou pela janela de uma loja é frequentemente melhor para os meus propósitos do que a sua total revelação à luz do dia”, escreveu Dickens em “A Loja de Antiguidades”.