David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Ponderação’ tag

A passionalidade e a autoridade na crítica à exploração animal

without comments

Normalmente não é fácil para um vegetariano ou vegano lidar com situações em que as pessoas realmente demonstram pouco interesse em mudar seus hábitos que envolvem a exploração de animais (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

Normalmente não é fácil para um vegetariano ou vegano lidar com situações em que as pessoas realmente demonstram pouco interesse em mudar seus hábitos que envolvem a exploração de animais. Até mesmo simples atos como o de socializar podem parecer não tão auspiciosos quando você sabe que terá de testemunhar pessoas consumindo alimentos que até pouco tempo atrás eram partes de um animal que caminhava, respirava, se alimentava e dormia – e até mais relevante do que isso, tinha sentimentos, anseio de não morrer precocemente.

Realmente não é fácil reconhecer que existe uma desarmonia entre o que você deseja para o mundo e o que o outro deseja, quando este não considera, de fato, que os animais não merecem morrer para serem reduzidos a alimentos e outros produtos. Claro, alguém pode dizer: “Tenho dó dos animais”. Mas se essa pessoa se alimenta deles, há uma evidente inconsonância entre o que ela pensa e faz.

Então para não refletir a respeito de algo que não lhes agrada é comum as pessoas recorrerem aos mais diferentes tipos de escusas e camuflagens da realidade. Sem dúvida, isso conta com o grande contributo da indústria que oferece todo o suporte necessário nessa jornada que perpetua a desconsideração à contumaz coisificação ou objetificação animal. Quero dizer, a indústria te ajudar a não se preocupar com os animais, porque ela te diz o que deve ser considerado e desconsiderado. E isso acontece de forma muito simples – trabalhando e perpetuando a crença de que o “benefício vale o sacrifício”.

Isso é parte majoritária da realidade em que vivemos, historicamente e culturalmente. Por mais que a indústria que comercializa produtos de origem animal venda ilusões, produtos imersos em realidades (des)conhecidas e negligenciadas que proporcionam prazeres efêmeros, as pessoas, principalmente adultos, compram essa ideia porque elas não apenas aceitam essa ilusão como a aprovam e a apreciam. Afinal, foram criadas nesse contexto.

Sim, a maioria dos adultos sabe que ninguém, nem mesmo um animal não humano, morre feliz por uma intervenção alheia à sua própria vontade, mas se as pessoas acreditam que uma morte não foi tão dolorosa há uma tendência ádvena de crer que “os fins justificam os meios”. E quando lidamos com essa consciência, acredito, e aqui simplesmente expresso a minha opinião, que a passionalidade e o exercício de autoridade podem dificultar ou até minar a conscientização quando não pesamos nossos discursos e ações.

De fato, a humanidade é despótica com os animais não humanos. Seria muito melhor se as pessoas entendessem que se alimentar de criaturas sencientes é sempre resultado de uma imposição legitimada, de uma ausência de escolha que não oferecemos ao outro por considerá-lo inferior e submetê-lo ao nosso jugo constante. Porém, tenho a consciência de que se tenho uma perspectiva vegana em relação ao valor da vida animal, não posso rejeitar o fato de que muitos outros não a têm, e esses outros são a maioria; e é com esses que devo dialogar caso eu queira uma mudança realmente significativa.

Nenhuma transformação coletiva, por mais claros que sejam seus benefícios, é alcançada sem que para isso seja necessário mudar a mente das pessoas. Por isso, defendo a posição de que compartilhar sensibilidade, conhecimento e argumentar de forma ponderada sobre a exploração animal, sem os arroubos negativos da passionalidade, é o melhor caminho. Até mesmo diante de piadinhas infames, quando alguém age de forma a subverter a expectativa do interlocutor, o surpreendendo ao não reagir em nível equiparável de vazia provocação, há uma maior possibilidade de consideração em relação ao que foi expressado. Ou será que ser ofensivo seja melhor? Não creio.

Quando falamos com alguém sobre a exploração animal, talvez seja interessante conjecturar previamente a reação do outro. Uma reflexão que considero válida é a seguinte: “Se alguém estivesse falando comigo dessa forma, e eu não tivesse a consciência que tenho, será que eu refletiria sobre isso?” A transformação depende dos meios que usamos para alcançar a consciência do outro, e se isso é eficaz. Não importa se tenho a maior vontade do mundo em relação à libertação dos não humanos explorados e reduzidos a alimentos e outros produtos, porque não é unicamente dessa vontade que depende a conscientização humana em relação à exploração animal.

Acredito que preciso sempre ter em mente que se a minha intenção é conscientizar ou sensibilizar quem não vê nada de errado com a exploração animal, devo mostrar um caminho que o leve a aquiescer, a entender por que é importante a abstenção de alimentos e produtos de origem animal. E esse caminho é variável, porque seres humanos não são sensibilizados ou conscientizados pelos mesmos motivos. Até porque pessoas têm suas individualidades, bagagens culturais, histórias de vida, e predisposição ou não a enxergarem os animais como sujeitos de uma vida.

Por tais razões, acho importante ser prudente, provocativo em algumas circunstâncias específicas, porém não ofensivo; o que significa que demando constante controle sobre a passionalidade, os meus impulsos, não permitindo que tenham controle sobre mim. É fácil? Não, porque tudo que diz respeito aos animais objetificados e à nossa impossibilidade de garantirmos que eles vivam sem sofrimento nos toca à sensibilidade e evidencia a nossa impotência em níveis diversos.

No entanto, vale a pena ofender pessoas ou usar termos que façam com que acreditem que há um mundo segregado entre veganos e vegetarianos e não veganos e não vegetarianos? Como isso pode estimulá-las à reflexão? Claro que seres humanos estão em níveis dissemelhantes ou díspares de conscientização, sensibilidade e renúncia, o que significa que há muito a ser estudado e trabalhado. Também reconheço que nem sempre nossas palavras, por melhores que sejam ou mais bem fundamentadas, vão promover qualquer mudança. Mas creio que menos ainda colherão bons resultados aquelas que, como em um exercício de autoridade, estão carregadas de ofensas e vulnerabilidade; e fragilizadas em seus próprios argumentos. Afinal, derramar-se em emoção também pode ser uma forma de negar-se à razão.





 

Os riscos da interpretação pessoal do discurso vegano

without comments

Se formos falar de veganismo, creio que o mais importante é manter o foco nos direitos animais, no abolicionismo animal

Interpretação pessoal do veganismo é uma coisa arriscada dependendo do discurso. Às vezes, vejo pessoas o relacionando com questões que não são prioritárias nesse contexto, ou que nem mesmo têm relação direta com o veganismo. Acho importante ter cautela nesse sentido porque isso em vez de unir pode segregar. Seres humanos são muito diversos e querer uma unidade de pensamento é uma coisa muito difícil. Afinal, somos singulares, temos nossas particularidades, perspectivas de vida, de mundo.

Há veganos com quem a única coisa que tenho em comum é a defesa pelos direitos animais, nada além disso. E pra mim está bom assim, já que essa é a base do veganismo. Fazer as pessoas enxergarem que os animais têm direito a vida não é fácil. Se eu complicar ainda mais isso, não creio que o resultado seria mais positivo. Claro, a não ser que haja abertura para uma discussão mais abrangente envolvendo formas de exploração, o que neste caso seria uma iniciativa pessoal minha.

Eu, por exemplo, venho de uma consciência que desde a minha adolescência foi fundamentada no humanitarismo, mas nem por isso acho que todos devem ser iguais a mim. Sou paciente, e espero que pelo menos aos poucos as coisas melhorem. Acredito que é essencial ter calma e, se formos falar de veganismo, creio que o mais importante é manter o foco nos direitos animais, no abolicionismo animal.

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Written by David Arioch

July 23rd, 2017 at 5:02 am

As pessoas podem criticar naturalmente tudo que me agrada

without comments

Pintura: Jean-Baptiste-Siméon Chardin

As pessoas podem criticar naturalmente tudo que me agrada. Isso não me incomoda, desde que haja respeito e coerência. Estranho e injusto eu seria se rejeitasse isso, já que nada é perfeito, nem aquilo que defendemos como se fosse a nossa própria vida.

 

 





Written by David Arioch

June 24th, 2017 at 6:02 pm

Posted in Reflexões

Tagged with , ,

A dor de uma pessoa é somente dela

without comments

Arte: David Wojnarowicz

Quando me sinto mal, normalmente penso que há pessoas em situação pior que a minha. Faz sentido? Sim. Resolve? Depende. Mas faço questão de fazer uma observação que considero importante. Muitas vezes há uma tendência a se comparar o sofrimento de uma pessoa com o das outras. Isso é justo? Nem sempre, e não deve ser um padrão.

Por isso, sou da opinião de que a dor de uma pessoa é somente dela, e só ela sabe o que isso representa em sua vida. Quando me coloco no lugar do outro, tenho como parâmetro tal reflexão: “A minha dor não é maior nem menor do que a de ninguém, ela é simplesmente a minha dor.” Isso basicamente diz muito sobre o que penso em relação à individualidade do sofrer.

Acredito que evitar comparações em relação à dor de alguém é importante, porque em vez de ajudar, na tentativa de mostrar a alguém que o seu sofrimento “é inferior ao de outro”, e por isso deve ser assimilado como tal, pode atrapalhar e muito. Nisso subsiste o risco de nivelar a dor do outro por baixo, como se fosse algo insignificante. E como podemos avaliar a dor de alguém quando não partilhamos do mesmo sentimento e experiência em dado momento?

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Written by David Arioch

June 21st, 2017 at 11:33 pm

Considerações sobre a violência

without comments

A violência é uma forma de descontrole

Agressividade, violência, são formas de descontrole. Se você não tiver controle sobre isso, isso terá controle sobre você. E quando você achar que está dominando alguma coisa ao fazer uso da agressividade ou da violência, estará apenas sendo subjugado pelo que te priva da sua própria humanidade, sem que você perceba. As consequências disso podem ser o seu próprio definhamento.

Uma briga escusada que poderia ser evitada, mas que chega às vias da violência física, é sempre uma derrota, tanto para quem vence quanto para quem perde. Para quem perde, porque a violência física dificilmente é esquecida ou deixa de ser materializada em trauma ou grande frustração. Para quem vence, porque suplantado pelo impulso também provou que não teve controle sobre as próprias emoções, assim cultivando uma inimizade que pode perdurar por toda a vida.

Orgulho de bater em alguém. Por que eu teria orgulho de bater em alguém? O que muda o ser humano para melhor é tocar a sua consciência, não o seu corpo. Se bato em alguém, significa que não tenho mais nada a oferecer além dos meus punhos. Ademais, é estranho reconhecer que há quem revele desprezo e raiva por quem defende a não violência.

Sobre violência, faço questão de compartilhar uma história real que vivi aos 19 anos (Faz parte de uma crônica intitulada “Briga de Rua”). Acredito que não existe melhor forma de desarmar alguém do que subverter expectativas.

“Com 19 anos, fui colocado à prova num início de noite na Avenida Paraná, em frente à antiga Imobiliária Gaúcha, onde alguns amigos marcaram um encontro. Na realidade, era uma armadilha de jovens ébrios. Chegando lá, um deles inventou histórias a meu respeito. Me provocou em vão, pois não reagi. Em silêncio, observei as atitudes dos três que me instigavam a brigar. Sem mover os pés da calçada, me mantive calmo num ambiente hostil. Ainda assim, um deles se aproximou de mim e acertou um soco na minha boca.

O sangue escorreu pelos meus lábios espessos. Experimentei a queimadura do corte no canto superior direito. Na mesma posição, passei o polegar direito pelos lábios, vi o sangue denso, levantei meu dedo banhado em carmesim e perguntei: “Cara, por que você fez isso? É uma pena…” Meu amigo Edson quis bater no agressor, só que eu o impedi porque nada naquele momento me causava medo. “A Morte tinha desaparecido de sua frente e em seu lugar via a luz”, refleti, lembrando-me de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Contrariando todas as expectativas, me calei, lavei minha boca em uma torneira instalada no mesmo local e fui em direção à Praça dos Pioneiros, retornando com a roupa avermelhada em algumas partes. Não senti raiva, apenas um misto de pesar e náuseas. Em casa, o sangue foi lavado com lágrimas pachorrentas que já não se repetiam mais. Observava no espelho a abertura no lábio com olhos grandes, então amiudados, e o palato esbraseado pela nebulosa bonomia. Tudo que era palpável no fundo era impalpável. Ao longo de 10 anos, assisti cada um dos envolvidos no episódio aparecer no portão de casa pedindo desculpas.”

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Written by David Arioch

June 18th, 2017 at 8:40 pm

Odioso na internet, manso fora dela

without comments

“Será que o que falo aqui eu seria capaz de falar cara a cara com alguém?”

Odioso na internet, manso fora dela. Existe muita gente assim. O problema é que há pessoas que esquecem que palavras na internet também têm consequências. Por isso acredito que o melhor de tudo é ponderar: “Será que o que falo aqui eu seria capaz de falar cara a cara com alguém?”

Ou: “Será que isso é realmente o que penso ou estou apenas nervoso?” Um bom exercício também é ler o próprio discurso e tentar imaginar como você reagiria se fosse alguém falando da mesma forma com você.





Written by David Arioch

June 17th, 2017 at 7:32 pm

Posted in Reflexões

Tagged with , , ,

Não me incomoda saber que há pessoas que não gostam de mim

without comments

Aceito esse fato como parte de uma realidade diversa em que cada um tem suas preferências 

A Man And His Dog, de Rebecca King Tirrell

Não me incomoda saber que há pessoas que não gostam de mim. Não vejo nada de errado nisso. Aceito esse fato como parte de uma realidade diversa em que cada um tem suas preferências e naturalmente acaba por pautar sua vida a partir daí.

Isso é normal, e não me sinto realmente desconfortável em reconhecer que sempre vai existir gente que não simpatiza comigo. Não se pode abraçar o mundo e, se você tenta, provavelmente você se machuca desnecessariamente.

Esse tipo de reflexão me traz lembranças do jardim de infância, quando uma criança chorava porque algum coleguinha não queria brincar com ela porque não gostava dela. Talvez houvesse algum ruído, problema de comunicação, e logo a professora tomava a decisão de intervir para tentar aproximá-los.

Então ela pegava a mão de um coleguinha e o levava até o outro para que apertassem as mãos e se abraçassem. E selava a “união” com algo como: “Agora vocês são amiguinhos!” Funcionava? Sim, mas não todas as vezes. Desde sempre, e por um condicionamento social, acreditamos que se alguém não gosta de nós ou se não gostamos de alguém temos que fazer o possível e o impossível para tentar mudar isso.

Claro que se o problema de gostar ou não gostar envolve ações equivocadas, extemporâneas ou mal-entendidos, é possível fazer algo a respeito. Mas e quando não há? E se uma pessoa simplesmente não gosta de você? Da sua personalidade?

Fomos criados de uma forma a crer que quando uma pessoa não gosta de nós precisamos corrigir isso, descobrir quem está errado. É como se sempre houvesse alguém certo e alguém errado. Então devemos nos esforçar e apresentar motivos para que gostem da gente, nos respeitem e nos amem. Podemos tentar, claro. Mas e se não funcionar?

Devemos seguir em frente, até porque acredito que mais importante do que gostar é respeitar. Isso sim faz uma grande diferença em nossas vidas como seres sociáveis. Afinal, você pode não gostar de uma pessoa, mas deve respeitá-la, porque isso é uma premissa do bom convívio e ninguém sai perdendo.

O mundo pode parecer um lugar estranho, sombrio e realmente duro se você se sentir exaustivamente incomodado toda vez que souber que alguém não gosta de você. Mas a verdade é que ninguém é pior ou melhor que ninguém por não ser apreciado ou por não simpatizar com o outro.

Somos seres complexos, com interesses bem diversos, e usamos isso como referência para nos aproximar ou nos afastar das pessoas em algum nível. Tendo isso em mente, creio que temos que ser cuidadosos para não nos anularmos e também não anularmos os outros nessa tentativa de ser aceito e conquistar a apreciação de alguém.

Ademais, não tenho nenhum problema em apertar a mão e tratar bem quem não gosta de mim, até porque não vejo motivo para agir de outra forma. Acredito que a cordialidade tem importante papel na manutenção da vida. E não existe falsidade nisso, mas apenas a preponderância do respeito que deve ser maior do que nossas antipatias.

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Written by David Arioch

April 23rd, 2017 at 8:33 pm

Reflexões sobre vegetarianismo, veganismo e ponderação

without comments

Eu falando por alguns minutos sobre vegetarianismo, veganismo e ponderação. É um vídeo simples, sem edição, baseado apenas em reflexões espontâneas.

 


Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





Written by David Arioch

April 2nd, 2017 at 7:08 pm

Compreensão e ponderação

without comments

Acredito que a universalização e convergência da compreensão e da ponderação a respeito de algo é uma das coisas mais raras e gratificantes a se alcançar. E você só chega lá quando consegue atravessar barreiras ideológicas, permitindo tocar a mente e o coração das pessoas, fazendo-as se despirem de seus próprios pré-conceitos.

Written by David Arioch

February 8th, 2017 at 10:29 am

Do anonimato à superexposição na internet

without comments

Éramos anônimos e o anonimato era praticamente uma bandeira para nós

160360499

Não tínhamos nome, sobrenome, origem, cidade, estado nem mesmo um país real quando usávamos proxy internacional (Foto: Reprodução)

Sou de uma geração de anônimos na internet. E o que quero dizer com isso? Bom, quando comecei a usar a internet por volta de 1996, eu, assim como a maioria dos usuários, era um anônimo. Não tínhamos nome, sobrenome, origem, cidade, estado nem mesmo um país real quando usávamos proxy internacional. O mais importante não era aparecer, mas sim conhecer e trocar informações, ideias e alguns poucos arquivos.

Cheguei a ter contato com pessoas por anos sem jamais saber quem eram de verdade; como eram fisicamente, quantos anos possuíam, o que faziam para sobreviver, entre outras coisas, até porque, dependendo, isso pouco importava. Éramos anônimos e o anonimato era praticamente uma bandeira para nós. Fotos dos usuários eram raras. E isso não fazia muita diferença.

Em alguns aspectos, acho que existíamos mais para o conhecimento, o conteúdo, do que para as relações interpessoais. Palace, ICQ, mIRC, fóruns, usávamos o que existia na época. Acredito que éramos feitos de linhas, estilos, linguagens, narrativas e trocas de arquivos. Em salas, tópicos e janelas privadas, poderíamos conversar hoje e então nunca mais. O vínculo era possível, mas não essencial. Desrespeito, intolerância e balbúrdia eram coibidos com o mais icônico BAN.

Não havia tanta exposição. Ninguém precisava aparecer se não quisesse, nem por isso seria tachado de coisa alguma. Muito pelo contrário, era a mais comum das práticas daqueles tempos. Aos poucos esse mundo foi desaparecendo, pelo menos diante de um novo onde os usuários de internet se tornaram mais transparentes, mais vaidosos, alcançáveis e até mesmo presas de um universo ruidosamente curioso.

56e96aaae4b01fe390e91e8b_1_v1

Ninguém precisava aparecer se não quisesse, nem por isso seria tachado de coisa alguma (Foto: Reprodução)

Houve uma metamorfose e hoje vivemos a contramão do anonimato. Há uma superexposição como jamais imaginada nas décadas anteriores. E isso é encarado como algo natural. Muita gente parece não se importar em ter o cotidiano integralmente registrado na internet. O que faz em horários bem específicos, onde come, o que compra, o que ama, o que odeia, quando sai, com quem sai, quais ambientes frequenta.

É possível criar uma agenda de rotinas a partir das informações que as pessoas disponibilizam nas mídias sociais. Acredito que aí subsiste o perigo da superexposição, já que não conhecemos todas as pessoas que recebem essas tantas informações compartilhadas. Sim, você está sendo apenas você, porém e se ser você implica de algum modo em uma consequência negativa para si mesmo e para outros? Ainda valeria a pena?

Em mídias sociais, todos os dias me deparo com conteúdo ofensivo ou formulado de forma bastante equivocada. Não consigo deixar de pensar em como isso pode ser perigoso. Nossa opinião pode reverberar coisas que nem imaginamos dependendo da forma como elaboramos um texto.

Acredite, muitas vezes a maneira como escrevemos pode gerar interpretações inimagináveis se não formos cuidadosos com as palavras. Não é à toa que pessoas são demitidas, amizades e casamentos são desfeitos, entre outras consequências. Afinal, somos responsáveis pelo que publicamos.

Há inclusive muitos casos de ameaças, brigas e assassinatos em decorrência de discursos, opiniões ou “críticas” e críticas publicadas na internet. Então por que não tentar ser mais comedido? Até porque quanto mais ódio disseminamos, mais ódio atraímos. Não é possível conquistar sorrisos sendo avesso à pluralidade.

Na minha opinião, a ponderação deve ser a base de toda produção textual divulgada em mídia social. E faço tal afirmação porque tenho certeza que a maioria não se sente bem gerando inimizades ou perdendo a admiração de pessoas que apenas têm alguns pontos divergentes dos seus.

Não se trata de ser imparcial, até porque a imparcialidade é um mito, mas sim de tentar ser justo e ter sempre em mente que o outro não merece ser ofendido por você apenas por pensar diferente. Há que se ter o entendimento também de que mesmo quando você publica um texto obtuso ou ofensivo e se arrepende e o deleta, isso não significa que ele deixou de existir.

Assim como sabemos que não existe fora no mundo, eu acredito que o mesmo acontece no ciberespaço. Na internet, deletar não significa fazer o conteúdo desaparecer completamente. E volto a endossar que a forma como escrevemos é a porta de entrada para o conteúdo que queremos transmitir. Ser arrogante, desrespeitoso, visceralmente satírico ou desdenhoso desqualifica até mesmo textos bem embasados, desestimulando a reflexão.

 

 

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar: