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Alguém diz: “Você está tentando impor o veganismo ao não servir alimentos de origem animal”
Uma amiga me contou que uma criança, filho de sua prima, gostaria de passar um final de semana em sua casa. Então a mãe disse que o garoto come carne e que ela deveria prepará-la no almoço e no jantar do menino. Ela explicou que não faria isso, porque não entra carne em sua casa; e que o garoto estaria muito bem nutrido se alimentando da mesma forma que ela, com boa diversidade vegetal. Ou seja, sem nada de origem animal.
A mãe ficou encolerizada e disse que ela estava tentando impor o veganismo para ela e para o filho, e que ela não partilha desses princípios. O primeiro equívoco desse diálogo está bem claro: não há imposição, levando em conta que a anfitriã é vegana, logo vai contra a filosofia de vida dela oferecer carne mesmo que ela não consuma. Afinal, veganismo está muito além do que consumimos; trata-se de um imperativo moral, algo que se aplica a todos os aspectos de nossa vida, inclusive nas nossas relações com os outros.
Nesse contexto, qual mensagem passamos quando fazemos alguma exceção? Que é permitido tomar parte na exploração animal ou incentivá-la em determinadas circunstâncias, desde que não tomemos parte no consumo direto? Se fizermos isso, quem sabe da próxima vez alguém nos convide para ajudar a abater algum animal. Claro, podemos minimizar esse impacto simplesmente não comendo, certo? Realmente, ponderemos, será que não há nada de errado em financiar exploração e morte de criaturas sencientes mesmo quando não consumimos os produtos que derivam dessa exploração?
Tento sempre ser polido e cortês no diálogo sobre a exploração animal, mas isso não significa um tipo alheado de condescendência. De fato, não preparo nem compro nada de origem animal para ninguém. Então posso ser visto como intransigente, mas de uma intransigência em prol de algo chamado justiça. Em circunstância nenhuma ofereço algo de origem animal a alguém, mesmo que tal pessoa se considere uma “apaixonada” por qualquer alimento de origem animal. E isso não é desrespeitoso, é uma manifestação consentânea, sensata, de franca oposição à exploração animal.
Acredito que é esse posicionamento que leva à reflexão, ao entendimento do que fazemos e porque defendemos o que fazemos. A flexibilização dessa conduta pode ser temerária, porque não apenas transmite uma mensagem errada de permissividade, como permite interpretações erradas em relação à rejeição à exploração animal. Não ignoro também que a ideia da exceção e da seletividade abriram precedentes para que explorações pontuais no passado se tornassem explorações massivas. Por isso, sim, sou da opinião de que a exceção pode ser uma armadilha de legitimação ou perpetuação da arbitrariedade.
Ademais, não é imposição um vegano se negar a servir alimentos de origem animal a um convidado. Em certa ocasião, Tolstói, já vegetariano, ofereceu uma faca e uma galinha viva diante da mesa de jantar para que sua tia a matasse caso quisesse comê-la. Claro que ela não o fez. Pode parecer duro, não? Mas a sua eficaz mensagem foi mais do que simbólica e se espalhou pela Rússia. Tolstói não servia animais em sua casa de bom grado.
Não podemos ignorar que na realidade a imposição é defendida e perpetuada por nós quando nos alimentamos de animais, já que as vítimas não têm poder de escolha quando são reduzidas a fontes de produtos, alimentos ou quaisquer outros fins sem relação com suas reais necessidades. Ser vegano não é uma imposição a ninguém, e a recusa em tomar parte na coisificação ou objetificação animal pode ser uma mensagem desconfortável para quem não é de que o que fazemos com criaturas não humanas perpassa pela nossa nociva transigência e displicência. Até porque tem quem olhe uma pessoa que não se alimenta de animais e instantaneamente ache isso incomum, estúrdio, afrontoso.
A existência de veganos em si é vista como uma crítica para muita gente, mesmo que esses veganos nem abram a boca. O fato deles existirem e fazerem o possível para não tomar parte nessa exploração já é um vilipêndio para quem não é capaz de ver que nisso subsiste em essência uma luta por uma forma ancha de respeito que é negligenciada por tanta gente. No meu entendimento, a verdade é que isso diz muito sobre o ser humano, e a sua resistência em, muitas vezes, reavaliar o estado atual das coisas.
Ser uma antítese ou um contraponto à zona de conforto das pessoas é sempre um exercício de chamamento para a mudança. Esse chamamento pode despertar evocações, emoções e sentimentos inesperados e mesmo negativos em quem não está aberto ao diálogo e menos ainda a mudar a sua perspectiva em relação ao direito à vida não humana. O que não significa que não possa se tornar algo positivo no futuro.
A ideia de um novo universo de possibilidades, de se abrir para um novo mundo, é chocante para tanta gente. Porque como seres humanos temos uma tendência a defender hábitos e costumes mesmo quando deletérios: “Se significa vidas que findam, que assim seja, desde que eu me satisfaça.” Costumamos equacionar apenas os prós que nos tocam, mas não os contras que aos outros derrotam.
Comer animais, uma opção baseada na imposição
Quando uma pessoa é questionada sobre o motivo pelo qual se alimenta de animais, é bem comum ela dizer que se trata de uma opção, uma escolha. Quero dizer, parte-se da ideia de que o alimento de origem animal está disponível, logo basta optar por comprá-lo ou não, comê-lo ou não, de acordo com as suas preferências. Seguindo essa premissa, é perceptível que há uma escolha condicionada à oferta.
Porém, se compramos e consumimos um alimento que foi gerado por um animal ou que custou a vida de um animal, indubitavelmente a nossa opção está atrelada a não escolha do outro, uma desconsideração de seus interesses, logo uma arbitrariedade. Afinal, esse consentimento é inexistente. Sendo assim, não há como negar que as nossas opções ou escolhas existem como consequência do que impomos aos outros.
Tal injunção comumente envolve condicionamento, supressão, privação, sofrimento ou morte, já que é impossível, por exemplo, consumir partes de um animal sem que isso envolva violência ou morte. E morrer precocemente, sem dúvida alguma, não está entre os anseios de um animal privado de uma vida natural e criado simplesmente para atender interesses econômicos. Claro, interesses incentivados por um ávido mercado consumidor.
E não podemos negar que isso não se resume aos animais reduzidos a pedaços de carne. O mesmo pode ser dito sobre qualquer forma de exploração animal. Só para citar outro exemplo, pensemos na galinha e na vaca condicionadas a produzirem um número x de ovos e litros de leite por dia. Em que circunstância elas autorizaram a exploração de leite e ovos? Em que momento disseram que estão disponíveis para o nosso consumo?
Se nos apropriamos do que elas produzem, o fazemos simplesmente porque queremos, certo? Assim, evidentemente, o que importa são as nossas vontades; e essas vontades resultam de interesses fundamentados principalmente em condicionamento, herança cultural, hábitos alimentares e paladar. E tudo isso ajuda a fortalecer a capciosa e equivocada ideia de que animais existem simplesmente para nos servir.
Afinal, não somos nós que os condicionamos e os forçamos a atenderem as nossas expectativas? Não somos nós que os modificamos geneticamente para que eles correspondam aos nossos interesses econômicos e alimentares? O fato de não haver um código de comunicação em comum também reforça a crença na ideia de que comer animais é meramente “questão de opção”.
Isto porque a não verbalização favorece o falseamento da realidade sobre o comportamento animal e suas correlações com o meio e com outras espécies quando o que está em jogo são os nossos interesses econômicos e alimentícios. Um exemplo disso, quem nunca viu um animal sofrendo e, de repente, alguém tentou justificar que isso não era verdade? Valendo-se da asserção que envolve a subjetividade da comunicação não humana.
Não vejo como negar que quando comemos animais ou consumimos produtos baseados em animais, nos voltamos somente para nós mesmos. Ou seja, para os nossos interesses. O que existe sou eu, a minha vontade imperativa, e o que deve prevalecer é o meu desejo que abrenuncia tudo que não diz respeito à minha individualidade, ao meu prazer, à minha satisfação por mais efêmera que seja.
Um sujeito, por exemplo, que analisa um menu de uma lanchonete e escolhe um x-bacon, está optando por um alimento em vez de outro; e o seu rol de opções se limita à disponibilidade naquele cardápio. Ele não vai refletir sobre o fato de que a sua opção não existiria sem que alguém fosse privado de uma escolha.
No entanto, para que ele possa consumir aqueles pedaços de bacon no lanche, um animal teve de morrer, considerando o óbvio – que bacon são tiras extraídas das laterais, da traseira ou até mesmo da barriga de um suíno. O seu favorecimento está no fato de que ele não precisa testemunhar todo o processo que envolve a morte do porco, e a redução de partes do seu corpo a tiras de bacon.
Tudo está ao seu alcance de forma palatável, atrativa, simplificada e até mesmo romântica, bastando apenas consumi-lo; sem nem mesmo a necessidade de direcionar os seus olhos para o que come, já que o paladar é facilmente satisfeito por um estímulo sensorial baseado no aroma e no sabor. E são exemplos como esse que perenizam a cavilosa ideia de que se alimentar de animais é meramente uma questão de opção.
É muito fácil defender essa ideia quando não temos qualquer contato com a impossibilidade de escolha que compõe o cenário inclemente e prosaico da realidade animal não humana. Sendo assim, quando falamos em consumo de alimentos ou produtos de origem animal enquanto opção, escolha, estamos também deixando claro que não interessa a ausência de escolhas que não dizem respeito a nós. Em síntese, subsiste uma defesa consciente ou inconsciente da arbitrariedade e da iniquidade em relação à vida animal não humana.
Comer animais, sobre o impacto de nossas escolhas: a opção baseada na arbitrariedade
Uma situação que diz muito sobre a nossa política
Depois de ler uma matéria sobre o secretário estadual acusado de ter mantido dois funcionários fantasmas em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em 2014, quando atuava como deputado estadual, lembrei de uma história que um amigo me contou há algum tempo.
A sua prima foi convidada para trabalhar como assessora de um deputado na Alep, só que o que ela não imaginava era que 50% do seu salário teria de ser entregue ao deputado, provavelmente para o “caixinha” da próxima campanha ou talvez para ajudar a financiar o partido.
Constrangida com a situação e também em ser conivente com tal improbidade, ela optou por pedir exoneração do cargo. Não tenho dúvida alguma de que a prática seja muito comum. O problema é que não há tantas notícias sobre o assunto porque muitos ainda são coniventes. Enfim, uma lástima que endossa o fato de que há muita gente capaz de abrir mão da honra e da dignidade por causa de dinheiro.