David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Crônicas/Chronicles’ Category

Laranjando

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Pintura: Leah Saulnier

Havia um pequeno pé de laranja, onde sempre serenava. Cutucava uma laranja e ela caía rolando sobre o peito. A cheirava, acidoce, e se servia, comia. Antes, raspava as cascas com um punhal e as deitava sobre a terra. Desapareciam com a aragem, ou eram sorvidas pela umidade do solo. Fazia como seu pai, seu avô, seu bisavô. A terra reagia, será que agradecia? Ninguém sabia, mas sempre que anoitecia o solo matizado reluzia, e a terra lavrada persistia insubordinada à luz do dia.

Written by David Arioch

August 28th, 2018 at 1:07 am

A cabeça queimava, mas era a alma que latejava

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Arte: The Art Today

A cabeça queimava, mas era a alma que latejava. Trazia velhas novas lembranças do que não foi. Poderia, poderia, mas não foi – ecoava. Fechava os olhos, um sonho presente que anestesiava e alimentava – também ludibriava.

Assim vive-se várias vidas, não importando distinção, realidade, ilusão. Movia-se para dentro da consciência, mas cuidadosamente atalhando a razão, porque a razão poderia suplantar a unção pela inação. Torpor, não. Perfume, sons, e a ideia de que tudo que se move morre e desmorre.

“O perfume é mais forte que a voz. Ou a voz é mais forte que o perfume. Depende. O tempo dilui o som que da memória arrebata. Ou o perfume que desvanece na celeridade da contra vontade?” – refletia – não sabia. Achava a vida fascinante, estranha, intrigante. Dependia do dia.

Written by David Arioch

August 19th, 2018 at 4:04 pm

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Olhos

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Arte: Juliann Sweet

Enquanto eu assistia a movimentação na rua, uma moça cutucou-me um dos olhos. Não senti nada, mas o olho sim, que incomodado saltou ao chão e a circulou. Ia de um lado para o outro tentando intimidá-la. Cercava, cercava; pulava como bolinha de pingue-pongue.

A moça recuava, e não recuava. O que fazer? O que não fazer? Eu não sentia nada. Em menos de minuto, onde havia uma cavidade nasceu um novo olho. O outro tentou retornar. Uma olhada no meu nariz, uma olhada na minha testa. Ainda bem que não doeu. O novo olho ameaçava sair. Queria lutar, mas não queria perder o lugar.

Movi a cabeça de um lado para o outro, tentando evitar uma briga de olhos. O olho direito, que não tinha nada a ver com a história, também queria brigar. Mas também não queria perder o lugar. Vibravam, vibravam, meus olhos coçavam. Três olhos e dois lugares. E agora? A moça gargalhou e partiu. O velho olho sumiu.

Written by David Arioch

August 19th, 2018 at 3:17 pm

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Yerpakut!

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Arte: Hussain Guevara

Um jovem chegou a Gjirodrecsande. Ao primeiro homem que o recebeu, ele apenas disse: Yerpakut! O homem deu-lhe um soco, ele se levantou e continuou andando. Ao segundo, repetiu a mesma coisa, mas em tom mais enérgico – recebeu dois socos. O terceiro não demorou. Ouviu somente “Yerpa…” e acertou-lhe uma cotovelada no peito, um soco direto no estômago e uma joelhada nas costas.

Caiu agonizando. Observou a barriga arroxeada. Sem vacilar, levantou-se. Tentando não mancar, percorreu cerca de 200 metros e acenou para uma mulher. Ela retribuiu o aceno cordial e ele balbuciou com a boca sangrando: Yerpakut…” A mulher gritou, uma multidão rodeou o rapaz e o espancou. Ele já não tinha forças para ficar em pé.

Rastejou por alguns metros, e um velho rodeado de gatos se aproximou e o abraçou. O rapaz sorriu e, dolorido, dormiu. Pela manhã, mal conseguia falar. O provecto deu-lhe uma caneta e ele escreveu:

Samo ti? [Só você?]

Da, nažalost, moj sin [Sim, infelizmente, meu filho] – respondeu o velho – meneando a cabeça constrangido.

A segurança da ignorância rejeitava e quebrantava tudo que aveludava.

Yerpakut?

Sigurno, Yerpakut! [Certamente, abrace o novo!] – disse o provecto.

 

Written by David Arioch

August 19th, 2018 at 1:25 pm

Morto pode ter cheiro doce?

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Criança, passeando pelo cemitério, passei por um mausoléu e falei com uma senhora que limpava um túmulo: Morto pode ter cheiro doce? Como? Morto pode ter cheiro doce? Doce? Doce! Como? Quem morre, não desaparece, vira doce? Quê, filho? Só depois que me afastei ela notou um balde de pipoca doce no mausoléu ao lado. Ali nunca faltava pipoca – branca, amarela, rosa, vermelha, sortida – um simulacro curioso da vida.

Written by David Arioch

August 4th, 2018 at 5:55 pm

“Juro que pensei que você fosse um velho”

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Pesquisei sobre a história de Paranavaí, do Noroeste do Paraná e do Norte Novíssimo do Paraná com certa assiduidade por dez anos, mas desde 2016, quando comecei a editar o meu primeiro livro de história regional, decidi desacelerar e priorizar outros assuntos. Hoje, participando do evento Cidadania Paraná na Unipar, a convite do Sesc, para falar um pouquinho sobre história local e regional, assim que terminei, ouvi:

— Já ouvi falar muito de você David Arioch, há anos acompanho o seu trabalho, mas juro que pensei que você fosse um velho.

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June 28th, 2018 at 10:56 pm

“Você faz mais alguma coisa além de musculação?”

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Um dia, na academia, um camarada me perguntou se eu fazia mais alguma coisa além de musculação. Achei a pergunta um tanto quanto estranha, mas tudo bem:

— Sim, eu trabalho.
— Sério mesmo?
— Verdade.
— Você trabalha com que?
— Com jornalismo, sou jornalista.
— Ora, nunca imaginaria.
— É? Por quê?
— Por causa da sua aparência. E também achei que você ficasse horas na academia.
— Não. Na realidade, meu treino tem duração de 40 a 50 minutos, às vezes chegando a uma hora. É o suficiente pra me exercitar e ter um shape razoável.
— Realmente não é muito tempo.
— Sim, o dia tem 24 horas, então me resta um bom tempo pra me ocupar com outras atividades, não?
— É…





 

Written by David Arioch

June 10th, 2018 at 7:27 pm

“Você não é o Tora-Tora?”

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Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.

— E aí, rapaz — ele disse.

— E aí — respondi.

— Tudo bem?

— Sim e você?

— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?

— Acho que está me confundindo, camarada.

— Você não é o Tora-Tora?

— Como?

— Tora-Tora!

— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.

— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.

— Entendo.

— Então me desculpe.

— Sem problema.

— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.

— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.

— Qual é a sua religião?

— Sou vegano.

— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?

— Sim…

O cara riu; eu também. Nos despedimos.





 

Written by David Arioch

June 5th, 2018 at 12:41 am

Um encontro casual

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Ontem à tarde, caminhando até a seção de dietética do Guguy (mercado), uma senhora que não conheço começou a falar comigo.

— Que bom te encontrar aqui hoje.
— É? Mas por que?
— Porque eu olho pra você e você transmite uma coisa muito boa.
— Sério?
— Sim, verdade.
— Que bom! Muito obrigado. Fico realmente lisonjeado.
— Não precisa agradecer.

Eu sorri; a senhora sorriu. Caminhei para uma seção e ela para outra.

Written by David Arioch

June 3rd, 2018 at 1:58 pm

Um caminhão tombado, frangos na estrada

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Morrer ou viver? Ou morrer ou morrer? Distante do matadouro, não da violência humana (Foto: Reprodução)

Um caminhão tombado, frangos na estrada. Ninguém via vida, apenas comida. “Ninguém morreu?” “Não, só bicho.” As aves saltaram sobre as caixas de plástico tentando atravessar a rodovia. Morrer ou viver? Ou morrer ou morrer? Distante do matadouro, não da violência humana. Coração? Mais de 300 batidas por minuto. Pedaços de carne em movimento – uma prospectiva prosaica.

Penas voando, pessoas comemorando. “Esse é meu! Esse é meu!” Um olhar invertido num mundo distorcido. Pés amarrados com fios, mais penas no chão. Cinco frangos no mesmo porta-malas, se contorcendo. Risadas. Nenhuma luz, apenas escuridão e o som dos pneus em atrito com o chão. A chegada é celebrada – degolada.