Archive for February, 2018
Alguém diz: “Cara, ser vegano é ridículo, colocar os animais em um pedestal enquanto muita gente passa fome”
Alguém diz:
— Cara, ser vegano é ridículo, colocar os animais em um pedestal enquanto muita gente passa fome.
— Você sabe que nós também somos animais, certo? E não sei até que ponto você se “aprofundou” no veganismo, mas veganismo não tem nada a ver com colocar animais em um pedestal. O cerne da questão é o direito à vida, algo muito simples. Ou seja, se é possível coexistir pacificamente com outras espécies, por que explorá-las, violentá-las, matá-las? Ainda mais levando em conta que ninguém morre por não consumir carne, ovos, laticínios, mel e outros produtos baseados em animais.
— Mesmo assim isso não significa que o veganismo seja tão relevante.
— Bom, não sei o que você qualifica como relevante, mas matamos por ano mais de 60 bilhões de animais terrestres e mais de um trilhão de animais marinhos. Há inclusive estimativas da Fish Count, uma ONG britânica bastante respeitada, que estima que é possível que estejamos matando até 2,7 trilhões de peixes por ano. Sim, só de peixes. Isso parece irrelevante? Além disso, enquanto os seres humanos consomem cerca de 9,5 bilhões de quilos de alimentos por ano, mais de 61 bilhões de alimentos são destinados anualmente aos animais de criação. Isso parece justo e coerente pra você? Levando em conta que são animais que são mortos e reduzidos a produtos. Se me alimento de animais basicamente ajudo a endossar esses valores que realçam com bastante discrepância as nossas prioridades frente à miséria que testemunhamos e ao mesmo tempo ignoramos porque não diz respeito a nós; logo entendemos que não temos qualquer obrigação em relação a isso.
— Ainda acho que veganos não dão a mínima para as pessoas, cara. Eles se preocupam só com os animais.
— Sim, veganismo é sobre os direitos animais, mas não é difícil entender que a partir do momento que enxergamos os animais como sujeitos de uma vida abrimos um precedente para nos aproximarmos um pouco mais de um mundo com mais justiça social. Afinal, que tipo de mensagem essa luta a favor da não violência passa? Essa luta que questiona o lucro baseado na mortandade? A mensagem de que o dinheiro não é mais importante do que a vida. E a partir do momento que entendemos isso, passamos a questionar nossos valores e a caminhar na contramão das mais diversas facetas da exploração e da selvageria.
— Mas legislação a favor dos animais enquanto precisamos de novas leis em benefício da coletividade humana é o cúmulo.
— Bom, eu não vejo razão para colocar seres humanos e não humanos em posição de antagonismo, já que não existe concorrência nesse sentido. Há espaço para as mais diferentes lutas, sem necessidade de rivalidade. Outra coisa, você conhece assassinos veganos? Eu não. Claro, você pode até citar algum vegetariano, e provavelmente tenham existido assassinos vegetarianos, mas não assassinos que sejam adeptos do vegetarianismo ético. Afinal, não existe ética no assassínio. Você já percebeu também como desde sempre muitos assassinos começaram praticando violência contra pequenos animais? Podemos citar agora Richard Chase, que torturou e matou muitos animais, até que em 1977, enjoado de ferir não humanos, assassinou uma mulher grávida e toda a sua família. Imagine se tipos como esse ou seus pais tivessem sido responsabilizados por isso desde cedo. Será que não teríamos evitado problemas? Será realmente que legislação específica contra esse tipo de violência não é necessária? Em um mundo ideal, claro, não deveríamos infligir privação ou dor aos animais sob qualquer circunstância, mas por enquanto infelizmente ainda é preciso trabalhar com as poucas ferramentas à disposição.
— Tudo bem, mas já conheci veganos que odeiam pessoas.
— Se essas pessoas socializam com outras, mesmo que ocasionalmente, elas não odeiam pessoas. No máximo, podem odiar certos tipos de pessoas. Ainda assim isso não é uma prerrogativa do veganismo, mas sim uma prerrogativa individualmente humana. O veganismo não se volta para o ódio; nem poderia, já que se você odiar as pessoas dificilmente você vai conseguir motivá-las a entenderem como o veganismo pode ser realmente positivo para os animais e até mesmo para elas. Sendo assim, que resultado teríamos? Não sou capaz de estimular ninguém a ouvir ou ler o que tenho a informar sobre o veganismo se eu tiver um comportamento ou discurso violento ou odioso. Por outro lado, as pessoas terem momentos de ódio, de cólera, é normal. Isso não significa que elas acordem anotando em um caderninho quem elas planejam exterminar. E se fizessem isso, claro que não teria qualquer relação com o veganismo, já que o veganismo em si não endossa esse tipo de conduta.
O veganismo também é uma questão de justiça social
Desde os tempos da Grécia Antiga nos alertavam sobre as implicações do consumo de animais
Desde os tempos da Grécia Antiga nos alertavam sobre as implicações do consumo de animais, e não falo das implicações para a saúde, mas sim das implicações morais. Não tivemos meia dúzia, nem dezenas de pensadores nos alertando sobre isso, mas centenas, talvez milhares ao longo da história.
A literatura que versa sobre as injustiças em relação aos seres não humanos e à necessidade de empatia em relação às outras espécies é extremamente vasta, tanto no campo ficcional como não ficcional. Há muito material relevante nesse sentido. Até mesmo os clássicos estão cheios de referências.
A verdade é que muito disso sempre passou despercebido pela maioria por uma questão de disfunção narcotizante. Ou seja, há uma imersão tão profunda em uma realidade desajustada em relação às outras formas de vida que é mais fácil ignorar ou apenas assimilar como uma alegoria – ou uma historieta que se desvanece da nossa mente com a velocidade de uma página folheada.
“Lembro como se fosse hoje quando levaram meu filho”
— Lembro como se fosse hoje quando levaram meu filho.
— E como a senhora se sentiu?
— Péssima, nunca senti tanta dor.
— Deixaram a senhora se despedir?
— Assim que ele nasceu, nem tive tempo de tocá-lo. Alguém veio e o levou todo lambuzado, fragilizado e confuso para longe de mim.
— A senhora reagiu?
— Claro que sim! Mas eu estava tão fraca…
— Você lembra da aparência do seu bebê?
— Não muito bem. Foi tudo muito rápido. Corri por alguns metros e caí no chão, sentindo gosto de terra na boca. Sinto vergonha por não ter feito mais.
— E como está se sentindo agora?
— É terrível! Nem sei o que estou fazendo aqui.
— Isso já tem quanto tempo?
— Duas semanas.
— Tentou buscar ajuda?
— Quem poderia me ajudar?
— Foi o primeiro?
— Não, o terceiro.
— Está com alguma dor?
— Sim, na minha situação qualquer uma sentiria. Não tenho vontade de viver. Isso não é vida. Existir para servir aos outros, sem ter qualquer tipo de liberdade de escolha. Nascemos condenadas, vituperadas pela ignorância humana.
— Por que diz isso?
— Porque existo apenas para que me suguem o leite; o leite que existe para os filhos que já não tenho, que são mortos e descartados em um lugar que nunca saberei qual é ou onde é. Imagine a dor de jamais reencontrar um filho? Não saber se ele já morreu? Não poder confortá-lo diante da morte? Um bebê, uma pequena criança. Por que meus filhos não valem nada? Só por que são de outra espécie? O que tem de errado em não ser humano?
— Acredito que nada de errado.
— Não parece. Isso não é vida. Viver para ser ordenhada, para que tirem de você um alimento sagrado que depende da gestação de uma criança. Se eu tivesse nascido para alimentar seres humanos, eu teria parido alguns, não concorda? O que me resta? Uma vida dedicada a saciar o desnecessário? A gula humana? Isso, se empanturrem de leite e derivados lácteos. Suguem de mim o máximo possível, até que eu adoeça ou seja considerada inútil quando a produção de leite cair. Logo serei eleita a vaca do ano, premiada com uma viagem só de ida para o matadouro. Não se preocupem, mais tarde vocês poderão me encontrar. Sim, fatiada em forma de hambúrgueres distribuídos nas seções de frios de diversos mercados.
O boi Fujão
Tarde de 1992. Vi um boi correndo por uma das estradas nas imediações da Fazenda Ipiranga. Alguém gritou: “Segura! Segura! Pega! Pega ele!” O boiadeiro seguiu na treita do animal que ziguezagueava confuso, como se não soubesse o que fazer; mas não queria ceder. Era enorme, o maior visto na minha infância. Mais homens foram atrás. Faziam círculos no ar com corda americana.
Na primeira tentativa, o peão da dianteira fez do laço um colar malquisto no pescoço do boi. Breve gemido. Outros quatro também o laçaram em sequência e saltaram dos cavalos. Cinco homens e um esforço tremendo. Suas vontades não se comparavam a do boi que os arrastou como papel ao vento. Um deles bateu a cabeça contra um pedregulho e sangrou, sangrou. Nem levantou – só rolou. Outro peão recuou. A perseguição continuou.
“Você vai pro matadouro, bichão!”, gritou, levantando o punho e mostrando uma mão coberta por luva de couro. O boi parou e assistiu a movimentação levantando poeira em sua direção. Destemor. Os cavalos empacaram. Não queriam continuar. Gritos. Nada. Espora na carne? Sim, sangue dimanando. Nenhum efeito. É, os bichos se entendiam. Troca de olhares, comandos ignorados.
“Vambora, seu filho da puta!”, berrou um deles chicoteando o dorso do cavalo com tanta raiva que babava. O cavalo? Nem reagia, anestesiado, modorrado. Pés no chão. A situação mudou. O boi abaixou a cabeça, levantou e correu em direção aos peões. Mano a mano, cabeçada violenta no estômago do primeiro o lançando em uma vala. Se juntaram para pegá-lo.
“Vou te furar, seu merda!”, berrou o mais afoito correndo em direção ao boi. “Não faça isso, seu babaca! Se matar esse bicho aqui você vai pra rua!”, repreendeu o chefe dos peões. “Agora é uma questão de honra!” O boi nocauteou mais um – cabeça com cabeça. Descuido, canivete de castração no lombo.
O sangue vertia – mas ele não cedia. Arremessou o chefe dos peões contra uma árvore. Caiu sentado com as pernas abertas e a boca sangrando: “Suma da minha frente!” Fujão, nome dado em 1992, desapareceu na poeira da contenda. Adotado por Geraldo, filho de Seu Santo, faleceu no mês passado, 27 anos – 25 distante da violência humana.
Sobre aparência
Deixo barba porque gosto, sabe? Tudo que fiz na minha vida em relação à minha aparência foi porque eu quis. Opiniões dos outros não me influenciam a mudar nada em relação à minha aparência. Quem me conhece há muito tempo sabe que já tive várias faces, e quando eu tiver vontade, de fato, mudarei. Mas não porque alguém disse que eu deveria mudar. Falar que estou feio de tal forma não significa nada para mim. Nunca vou entender por que as pessoas têm essa mania em tentar ditar como os outros devem parecer ou não.
Ter barba, não ter barba; ter músculos, não ter músculos; manter cabelos curtos ou longos – ou raspar tudo. Cada um sabe de si. O mais importante é entender e respeitar que a aparência de uma pessoa, desde que não seja consequência de algo nocivo, quem deve ter o direito de determinar como deve ser é ela, e somente ela. Mudanças, até mesmo físicas, podem ser até resultado de mudanças internas. Então acho legal quando temos o cuidado de não ofender as pessoas por suas escolhas em relação à sua aparência. O meu gosto nem o seu deve pautar a vida de ninguém. Pessoas têm suas próprias predileções, e podem tranquilamente antagonizar as minhas ou as suas.
Por que você não se alimenta de animais?
— Por que você não se alimenta de animais? O que existe de tão errado nisso?
— Você já viu um boi, uma vaca e um bezerro pastando livremente? Um peixe serpenteando pelas águas? Um porco rolando na relva? Uma galinha ciscando sem pressa?
— Algumas dessas coisas, sim.
— O que você acha disso?
— É divertido, bonito de ver.
— Pois então. Se eu fosse um animal, provavelmente eu não ficaria feliz de ser privado dessas coisas que me trariam algum tipo de satisfação. Se me alimento de animais, não consigo ignorar minha culpa sobre aqueles que são privados de uma vida natural. Eu não gostaria de nascer, viver e morrer para atender supostas necessidades dos outros. Seria como viver sem um propósito próprio.
— Mas animais são criados com essa finalidade. Você não os veria se não fosse por causa da demanda por produtos de origem animal.
— Você tem razão, mas aqueles que vivem merecem gozar de uma vida sem exploração, privação ou sofrimento. Os animais que são reduzidos à comida depreciam a vida bem menos do que nós. Jamais deixariam de lutar diante da iminência da morte. Isso não é um exemplo de vontade de viver? Maior prova disso é que no chamado bem-estarismo os enganamos antes de matá-los. E claro, para parecermos mais humanos aos nossos olhos. Quero dizer, sou um sujeito tão bom que não o mato violentamente, apenas dissimulo uma situação antes do golpe final. Penso que enganar um ser vivo para matá-lo sem que supostamente ele sofra também é triste, porque é uma forma de traição, já que o animal segue seus comandos em confiança. Você já viu um animal oferecer alguma parte do corpo para que você a retalhe? Se um dia eles deixarem de existir, não será algo tão aberrante, penso. E por que seria? A vida deve seguir seu curso natural, e não existe nada de natural, por exemplo, em manipulação genética para atender caprichos humanos. Muitas vezes os animais nem se reconhecem como animais por causa da interferência humana. Tornam-se seres confusos, deslocados de sua própria vocação. Isso não é triste e preocupante?
— É…acho que faz sentido.
— Imagine se alguém o criasse e o colocasse para trabalhar o dobro do que você trabalharia normalmente, em sua capacidade natural. Como você se sentiria?
— Não concordo com essa comparação, é desleal.
— Tudo nos parece desleal quando observamos os outros como se estivessem abaixo dos nossos pés. Nos recusamos a exercer a empatia ou o reconhecimento do valor da vida animal porque isso exige uma revisão de valores. E também porque isso significa mastigar com a boca aberta e olhos esgazeados diante de um espelho convexo que mostra quem somos e o que fazemos; que revela a face que negamos na nossa relação com os animais.
O dilema do chouriço
Alexandre Dumas escreveu no “Grand Dictionnaire de Cuisine”, de 1873, que o chouriço de porco tem, em todo o caso, todas as más qualidades desse animal, e a maneira como é preparado o torna ainda mais indigesto. Permita-me discordar. Creio que o chouriço carrega a tradição sedimentada na centelha da barbárie, e esta não diz respeito às “péssimas qualidades” do suíno, mas sim do ser humano, embora isso não signifique que o faça amiúde conscienciosamente.
E a indigestão talvez seja conchavo da ferocidade e da teimosia projetando franca manifestação. Esqueça! Deixe me perguntar. Você já foi a uma pequena fábrica de chouriço? Ah! Normalmente o animal não é seviciado, morto e destrinchado tão distante do local onde se prepara o embutido – uma iguaria à base de gordura, sangue e pedaços de carne temperados com uma pequena diversidade vegetal. Vísceras! Vísceras! Entranhas! Cabidelas! Sortidas! Fornidas! Envolvidas…Tudo aquilo que nos enoja em seu estado natural, cruento, porém honesto.
Não parece-te um ritual? O sangue como elemento axial; aquele sangue soalheiro que verte como calor de água termal e torrente de bica de mina – sem igual. A tradição diz que é mais saborido quando colhido enquanto o animal respira, barafusta-se, agoniza e luta pela vida no tenro desconhecimento da impossibilidade. Quiçá, entrementes perguntaste: “Por que então me alimentaste? Me abraçaste? Deste-me um nome? O que fui para ti?” Pobre animal, nunca imaginou que a mão que afaga é a mão que apaga. Quem se importa? Quem come, pretere, omite, anui? Hã? Será? Veras?
Se o porco for morto sobre a mesma mesa em que o chouriço é preparado? Sem dúvida, sabor sui generis! “Tremendo!”, berram os lambe-beiços. Imagine só. Lanham as tripas do porco para embalá-lo em novas ou velhas tripas – orbiculares, unímodas. Talvez dele mesmo, talvez d’outros. Ou talvez artificiais caso o freguês não queira ter contato nu-a-nu com as “tripas” da vítima. Ah, alegórica sensibilidade…Claro, pelo menos não manualmente, no rostir de dedos. Já garganta abaixo é outra história, pois não?
Capitán, o cão que dormia no túmulo do seu ex-tutor desde 2007
Em Villa Carlos Paz, na Argentina, o cão Capitán, um cão mestiço, parte pastor alemão, chamava a atenção. O animal descobriu sozinho em 2007 onde o seu companheiro humano foi enterrado, e desde então dormia ao lado do túmulo. Infelizmente, esta semana Capitán foi encontrado morto a poucos metros do Cemitério Municipal de Villas Carlos Paz em decorrência de insuficiência renal. Aos 16 anos, ele já havia perdido a visão de um olho e tinha dificuldades para caminhar.
Capitán, encontrado por Miguel Guzmán em 2005, foi criado como um irmão de seu filho Damián. À época, a mãe Verónica Moreno não gostou muito da ideia porque já imaginava como seria trabalhoso cuidar futuramente de um animal de grande porte. Em 24 de março de 2006, Miguel faleceu, e não demorou para Capitán começar a vasculhar a casa, procurando pistas de Guzmán. Cheirou cada cômodo da residência e mais tarde desapareceu.
A família pensou que o cão tivesse sido morto ou adotado. Só descobriram o paradeiro de Capitán quando Damián foi visitar o pai no cemitério e encontrou o cachorro ao lado do túmulo. “Ele começou a ladrar de uma maneira que dava a impressão de que estava chorando”, contou Verónica que tentou levá-lo para casa, mas ele se recusou; preferiu continuar ao lado de Miguel.
De acordo com a vendedora de flores Marta, Capitán chegou ao Cemitério de Villas Carlos Paz em janeiro de 2007, quando encontraram o cão com uma pata da frente quebrada. “Percebemos que ele amava o seu tutor porque jamais deixou o cemitério”, testemunhou. Até hoje, ninguém sabe explicar como Capitán achou o túmulo de Miguel. O homem faleceu no hospital e de lá foi levado para uma casa funerária bem longe de onde morava.
Não havia um dia em que Verónica e Damián visitavam Miguel e não encontravam Capitán junto ao túmulo. Algumas vezes o cão acompanhava a família até em casa, mas sempre retornava ao cemitério. “Lá é a casa dele agora. Admito que antes eu não gostava tanto do Capitán. Isso mudou assim que percebi o amor que ele tem pelo meu marido. Desenvolvi um carinho muito grande. Sinto que o Capitán está com Miguel”, afirmou Verónica Moreno.
Damián desistiu de levar o cão para casa quando percebeu que não adiantaria. Não importava para onde Capitán ia, ele sempre retornava ao cemitério. “Todos os dias, às seis horas em ponto, ele se deitava em frente ao túmulo. É uma lição de preservação das memórias daqueles que partem. Incrível como os animais nos ensinam isso de modo tão fiel”, comentou o administrador do cemitério, Héctor Baccega, que todos os dias contava com a companhia do cão em suas andanças.
Referência
La Voz, de Córdoba, Argentina.
A lição de Dabo
Meu pai sempre me contava a história de um senhor sérvio de Novi Pazar que ele conheceu por essas bandas na década de 1960, ainda garoto. Seu nome era Dalibor, mas como poucos sabiam pronunciá-lo, logo deram-lhe o apelido de Dabo. Era um senhor de meia-idade, olhar quiescente e barba ruça que pouco falava português. Nunca reclamava de nada para ninguém, e tinha maneira ímpar de demonstrar respeito diante das contrariedades.
Dabo não se alimentava de animais; consumia mormente o que plantava em sua chácara nas imediações do Parque Ouro Branco. Alguns o chamavam de estrambótico, esquisito, místico e “fruteiro”. Ele não se importava – nunca. Nem se abespinhava diante das provocações. Às vezes, jogavam pedaços de animais mortos em seu pomar, entre os apolíneos pés de mirtilo.
Antes de colher aqueles corpos mortos, ele sempre se ajoelhava, encostava a ponta do nariz na terra virgem e se desculpava enquanto mantinha uma das mãos sobre o corpo desfalecido – ou parte do que um dia foi um corpo. O ritual se repetia – um de cada vez. Então recolhia os animais e os sepultava.
Os episódios se repetiam e, em vez de reclamar ou denunciar os autores, logo transformou parte da chácara em um cemitério de animais. Alguns vizinhos começaram a se queixar, mesmo na inexistência de mau cheiro ou qualquer laivo cadavérico. Em uma noite de outono, convidaram Dabo para um grande churrasco em um sítio vizinho. Ele não rejeitava convites – nunca.
Quando a fumaça da churrasqueira começou a subir, ele a observou e se afastou a passos suaves. Depois de 15 ou 20 minutos, perguntou se alguém sabia a quantidade de carne que seria assada naquela ocasião e que tipo de carne.
Agradeceu e retornou para casa. Caminhou até o cemitério de animais e acendeu uma vela para cada quilo de carne. Havia muitas; as labaredas ganharam vida e iluminaram o céu da chácara. Tudo ao redor era escuridão. A fumaça da churrasqueira mirada ao longe vanesceu-se de súbito.
Muitas pessoas se aproximaram e o assistiram. Dabo, de olhos fechados, nem se moveu. Continuou de joelhos honrando a vida e a morte. Abriu a boca por um momento e disse: “Svetlost poštovanja je bombardovanje volje” – “A luz do respeito é o bombardeio da vontade.”