David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Crônica’ tag

A lição de Dabo

without comments

Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals

Meu pai sempre me contava a história de um senhor sérvio de Novi Pazar que ele conheceu por essas bandas na década de 1960, ainda garoto. Seu nome era Dalibor, mas como poucos sabiam pronunciá-lo, logo deram-lhe o apelido de Dabo. Era um senhor de meia-idade, olhar quiescente e barba ruça que pouco falava português. Nunca reclamava de nada para ninguém, e tinha maneira ímpar de demonstrar respeito diante das contrariedades.

Dabo não se alimentava de animais; consumia mormente o que plantava em sua chácara nas imediações do Parque Ouro Branco. Alguns o chamavam de estrambótico, esquisito, místico e “fruteiro”. Ele não se importava – nunca. Nem se abespinhava diante das provocações. Às vezes, jogavam pedaços de animais mortos em seu pomar, entre os apolíneos pés de mirtilo.

Antes de colher aqueles corpos mortos, ele sempre se ajoelhava, encostava a ponta do nariz na terra virgem e se desculpava enquanto mantinha uma das mãos sobre o corpo desfalecido – ou parte do que um dia foi um corpo. O ritual se repetia – um de cada vez. Então recolhia os animais e os sepultava.

Os episódios se repetiam e, em vez de reclamar ou denunciar os autores, logo transformou parte da chácara em um cemitério de animais. Alguns vizinhos começaram a se queixar, mesmo na inexistência de mau cheiro ou qualquer laivo cadavérico. Em uma noite de outono, convidaram Dabo para um grande churrasco em um sítio vizinho. Ele não rejeitava convites – nunca.

Quando a fumaça da churrasqueira começou a subir, ele a observou e se afastou a passos suaves. Depois de 15 ou 20 minutos, perguntou se alguém sabia a quantidade de carne que seria assada naquela ocasião e que tipo de carne.

Agradeceu e retornou para casa. Caminhou até o cemitério de animais e acendeu uma vela para cada quilo de carne. Havia muitas; as labaredas ganharam vida e iluminaram o céu da chácara. Tudo ao redor era escuridão. A fumaça da churrasqueira mirada ao longe vanesceu-se de súbito.

Muitas pessoas se aproximaram e o assistiram. Dabo, de olhos fechados, nem se moveu. Continuou de joelhos honrando a vida e a morte. Abriu a boca por um momento e disse: “Svetlost poštovanja je bombardovanje volje” – “A luz do respeito é o bombardeio da vontade.”

 





 

Tem ovo, leite, mel? “É só um bolo!”

without comments

Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals

— Bora comer um bolo ali, irmão.

— Agradeço, mas estou satisfeito.

— Vai fazer desfeita mesmo?

— O que tem nesse bolo?

— O de sempre.

— Tem ovo, leite, mel?

— É só um bolo!

— Fico realmente grato pela consideração, mas vou declinar.

— Ô louco, irmão! Vai sacanear mesmo?

— Não, de modo algum, o respeito prevalece.

— Mas recusar assim é patifaria.

— Será? Veja bem, escrevo sobre a exploração de animais diariamente porque faço franca oposição a isso. Creio que sacana eu seria em ter a postura que tenho e me alimentar de algo de origem animal, mesmo que esporadicamente. Ética é ética, irmão. Não faço concessão por um prazer, mesmo que ocasional.

— Xaropão mesmo, hein? As pessoas vão se afastar de você, cara. Isso ferra a vida social de qualquer um.

— E uma vida social deveria ser baseada na obliteração de outra vida social? Quero dizer, se socializo me alimentando de animais, isso significa que contribuo para arruinar outras vidas e outras relações sociais. Claro, não humanas, mas ainda assim relações sociais, já que nos alimentamos de seres sociáveis. Vale a pena? Nossa interação deveria depender do fim dos outros? Deveríamos socializar com a morte? A morte é socializável? Porque se a morte é reconhecida como um essencial socializável o derramamento de sangue pode ser considerado uma virtude, já que une pessoas em torno de uma mesa farta que não existiria sem mortes. Você acredita nisso? Matar é uma virtude?

— Ah, cara! Não é bem assim… Vamos pegar leve.

— Então vamos colocar de outra forma. Você gosta de miúdos de animais? Coraçãozinho de frango ou galinha, por exemplo.

— Até que curto, com cervejinha e limão vai muito bem.

— Você sabe quantos coraçõezinhos você come tomando a sua cervejinha?

— Não sei, mas como bem.

— Cada coraçãozinho de frango ou galinha pesa em média 10 gramas. Será que você come pelo menos 200 gramas? Se sim, e ponderando essa referência, isso significa que você se alimenta de 20 frangos ou galinhas em uma “socialização”. Será que é radical dizer que em cada bandeja de miúdos, por exemplo, estamos diante de uma hecatombe, uma chacina de aves? Um quilo de coraçõezinhos significa até cem aves mortas.

— Caramba! Agora você me assustou.

 





 

Um vegano no churrasco

without comments

Foto: Reprodução

— Boa tarde
— Boa tarde…
— Então você é o tal do cara que não consome carne, ovos, leite e tal?
— Bom, não sei se podemos dizer que sou o tal cara, já que há mais pessoas como eu, que não se alimentam de animais. Acho mais justo dizer que sou apenas “um dos caras”.
— Sei.
— Mas nem uma linguicinha de vez em quando para socializar com os amigos? Ninguém vai ficar sabendo, só entre nós.
— Acho que é bem possível socializar com os amigos sem a “linguicinha”. Bom, se bem que posso preparar Bucanera também, caso alguém queira.
— Bucanera? Que diabos é isso?
— É a minha linguiça vegetal e consideravelmente saudável.
— Sei. Mas se é vegetal não é linguiça, né? E saudável? Isso tá muito errado, cara!
— Por que não?
— Por que não vem de bicho, ora!
— E a páprica, o alho, a cebola e a pimenta que dão o sabor à linguiça são provenientes de quais animais?
— O que isso tem a ver? Não vamos distorcer as coisas. Linguiça é linguiça e ponto.
— Você tem razão. Sou um linguiceiro veganamente contraventor.
— O quê?
— Continuarei chamando de linguiça.
— Não! Não! Não! Ninguém morreu, ora! Ninguém morreu! Ninguém foi despedaçado! Você não juntou nem pagou para que alguém embalasse vísceras, cartilagens, miúdos, sangue, pedaços suculentos de gordura – deliciosos sebinhos em uma apetitosa tripa de porco. Sua linguiça nem mesmo deve ter uma quantidade de sódio que ultrapassa a ingestão diária de um adulto.
— Entendo. Que sabor magnificente tem a carne em seu estado natural, não é mesmo? Apague o fogo da churrasqueira. Por que perder tempo temperando tudo com ingredientes vegetais? Pra que fogo? Que tal simplesmente comer direto da fonte? Não pouparíamos tempo e trabalho? Imagine o deleite de socializar dilacerando uma vida com os próprios dentes. Poderíamos rasgar e comer partes ainda quentes de um animal com seu coração pulsando ruidosamente. Imagine toda a adrenalina, serotonina e endorfina desencadeadas pelo prazer dessa deliciosa violência. Afinal, não é pra isso que temos os nossos caninos? Nossas garras? Nossa agilidade felina?
— Que nojo, cara! Você é bem sinistro. Olhe, nada contra você, mas você é um tipo bem radical.





 

“Vixi, mano! Vegano?”

without comments

Pintura: Tom Nuggent

Voltando para casa, encostei o carro rente ao meio-fio e atendi uma ligação. De repente, um cara em outro carro, e do outro lado da rua, esticou o pescoço para fora. Ele parecia levemente (ou não) embriagado.

— Ô, mano, que barba da hora. Empresta aí.
— O quê?
— A barba. Empresta aí.
— E como seria emprestar a barba?
— Corta um pedaço aí e joga pra cá.
O rapaz abriu o porta-luvas e mostrou um tubo de cola.
— Olhe aqui, problema resolvido.
Esfregou um pouco de cola nas maçãs e sorriu.
— Não posso fazer isso. Não faz o menor sentido — respondi.
— Eu pago, irmão. Não é de graça não. Olhe aqui, po. Já estou com o rosto branco.
— Por que você fez isso, cara? Isso é perigoso. É tóxico, e pra piorar essa cola nem deve ser vegana.
— Quê?
Silêncio. Começou a gemer e a tremer como se estivesse tendo uma convulsão.
Desci do carro para socorrê-lo.
— Rá! Te peguei! — gritou e começou a gargalhar.
Minha barba se encolheu como um pequeno arbusto massageando o meu pescoço.
— Não vai topar mesmo?
— Já disse. Não tenho interesse, mas obrigado.
— Caramba, mano! Você é mau!
— É que sou vegano. Toda vida importa pra mim, inclusive a da minha barba.
— Vixi, mano. Vegano? Mexo com essas coisas não. Valeu!
Deu partida no carro e foi embora com o rosto cheio de cola.




 

Written by David Arioch

February 16th, 2018 at 11:48 pm

Faltou carne no açougue (versão reduzida)

without comments

Diante do balcão, Luiz acenou para o açougueiro Nino e pediu um quilo de coxão mole.
— Não tem, o senhor me desculpe.
— Como assim? Nunca faltou coxão mole aqui.
— Então me vê alcatra.
— Também não tem.
— Pode ser patinho.
— Também não.
— O que você tem de carne aí, afinal?
— Nada.
— Nada?
— Isso mesmo.
— Então por que diabos o açougue está aberto?
— Aqui vai ser açougue ainda, mas sem carne. A gente iria fechar até receber a mercadoria, mas o patrão mandou deixar aberto, pra freguesia ir se acostumando.
— Se acostumando com quê?
— Com a falta de carne.
— Você é louco? Açougue sem carne não é açougue.
— Vossa opinião.
— Como?
— Isso mesmo.
— Isso não existe, amigo. Nunca me acostumaria com isso. Onde já se viu açougue sem carne?
— Se o senhor diz, mas tem gente que não está reclamando da mudança.
— Eu não sou os outros.
— Ok…
— Logo mais chega bastante variedade de frutas, legumes, verduras. O senhor gosta de batata beauregard? Chega hoje mesmo.
— E daí, amigo? Por acaso, eu lá quero saber disso?
— Mais opções para o seu paladar, para a sua saúde e para a saúde dos bichos.
— Você acha que tenho cara de quem vai parar de comer carne?
— Aí não sei. Cara não costuma dizer muita coisa, a não ser quando alguém abre a boca, né?
— Você tá de sacanagem comigo, rapaz! Você acha que sou coelho pra comer folha?
— Não, mas dizem que é boa fonte de minerais, fibras e vitaminas.
— Não interessa! Não vim aqui pra isso. Meu negócio é carne, proteína de verdade! Olhe, rapaz, diga ao seu patrão que nunca mais piso os pés aqui. Vocês perderam um cliente de longa data.
Nino ficou em silêncio e assistiu a partida do freguês enquanto uma de suas mãos percorria o balcão com uma flanela. Luiz hesitou por instante. Parou sobre a soleira, bateu com zanga a sola da botina, apontou o dedo cominador em direção ao balcão sem carne, mordeu os lábios inferiores e logo desapareceu.
— Esse aí é capaz de matar um por causa de um pedaço de carne – monologou Nino na sua típica fleuma.
De volta aos afazeres, abriu uma caixa recém-chegada e começou a mimosear uma porção de maçãs. Ele sorria para elas, e elas sorriam para ele – maçãs felizes – com carinhas e tudo o mais.
Vocês vão fazer alguém muito feliz – comentou Nino admirando o rubor das maçãs.





 

Onde você vai?

without comments

Saindo do Teatro Municipal, passei em uma loja de conveniência. Na saída, observei uma coruja que me assistia. “A noite é sua”, disse a ela.

— Onde você vai? — perguntou uma moça dentro de um carro estacionado.
— Quê? — respondi.
— Onde você vai.
— Vou pra casa.
— Por quê?
— Porque sim.
— Quer carona?
— Não, obrigado. O meu carro está logo ali — expliquei.
— Venha aqui.
— Não entendi.
— Rapidinho, querido.
— Você me conhece?
— Claro.
— Como?
— Já ficamos juntos há algum tempo.
— Acho que não.
— Ficamos sim.
— Não creio, tenho boa memória.
Fiquei em silêncio.
A moça abriu a bolsa, tirou o celular e mostrou algumas fotos.
— Não entendi.
— Nós lá em casa.
— Quê?
— A nossa festinha.
— Tudo bem, mas não sou eu na foto.
— Isso não vem ao caso.
— Como não? Você disse que sou eu.
— Mas é você. Tenho mais uma coisa pra te mostrar.
— Hã?
— Que isso?
— É seu — afirmou segurando um pequeno tufo de barba que mais parecia um pedaço de Assolan envernizado.
— Isso não é minha barba.
— Claro que é, querido. Você está me chamando de mentirosa?
— Não, mas por que está guardando isso?
— Lembrança.
— Hum…
— Tá. Então, vamos tomar alguma coisa?
— Não posso. Tenho que acordar cedo.
— Nossa, você é chato, hein? Por acaso, você é antissocial?
— Sinceramente? Acho que não tenho como negar.
Silêncio.
— Você pareceu bem comunicativo e desinibido aquele dia em casa. Quando você dormiu, cortei um pedacinho da sua barba. Nem percebeu, né?
— Tenho certeza de que não sei onde você mora.
— Eu, você, Cláudia e Roberta. Tem certeza que não se lembra?
— Quê?
— Vai ficar de palhaçada? — insistiu a mulher.
— Não, mas preciso ir. Me desculpe, mas não sou quem você imagina.
— Tudo bem, querido. Mas vou continuar de olho em você.
— Você é muito gentil. Tenha uma boa noite.

Sem olhar para trás, entrei no carro e minutos depois me dei conta de que eu estava sendo seguido. Mantendo os vidros fechados, estacionei e observei a aproximação de um carro pelo retrovisor. Alguém cutucou o vidro com as pontas dos dedos.

— Boa noite, desculpe o incômodo. Você pode me dizer qual é o melhor caminho para o Jardim Oásis?





Written by David Arioch

November 19th, 2017 at 8:43 pm

“Vixi, mano! Vegano?”

without comments

Pintura: Tom Nuggent

Voltando para casa, encostei o carro rente ao meio-fio e atendi uma ligação. De repente, um cara em outro carro, e do outro lado da rua, esticou o pescoço para fora. Ele parecia levemente (ou não) embriagado.

— Ô, mano, que barba da hora. Empresta aí.
— O quê?
— A barba. Empresta aí.
— E como seria emprestar a barba?
— Corta um pedaço aí e joga pra cá.
O rapaz abriu o porta-luvas e mostrou um tubo de cola.
— Olhe aqui, problema resolvido.
Esfregou um pouco de cola nas maçãs e sorriu.
— Não posso fazer isso. Não faz o menor sentido — respondi.
— Eu pago, irmão. Não é de graça não. Olhe aqui, po. Já estou com o rosto branco.
— Por que você fez isso, cara? Isso é perigoso. É tóxico, e pra piorar essa cola nem deve ser vegana.
— Quê?
Silêncio. Começou a gemer e a tremer como se estivesse tendo uma convulsão.
Desci do carro para socorrê-lo.
— Rá! Te peguei! — gritou e começou a gargalhar.
Minha barba se encolheu como um pequeno arbusto massageando o meu pescoço.
— Não vai topar mesmo?
— Já disse. Não tenho interesse, mas obrigado.
— Caramba, mano! Você é mau!
— É que sou vegano. Toda vida importa pra mim, inclusive a da minha barba.
— Vixi, mano. Vegano? Mexo com essas coisas não. Valeu!
Deu partida no carro e foi embora com o rosto cheio de cola.


Written by David Arioch

November 15th, 2017 at 10:44 am

Treinando no escuro

without comments

Subi a escadaria da academia, montei a barra para fazer rosca direta e comecei a treinar no escuro. Sim, não havia energia elétrica por causa do forte temporal. De repente, notei um cara me observando. Um olhar fixo e incivil. Sempre que eu me distraía, ele desaparecia.

Logo retornava. Continuava me assistindo. Movia os braços e fazia esgares ocasionais. Desconfortável, não nego. Estava bem escuro, e o sujeito continuava na mesma posição, movimentando os braços e contraindo os músculos. Um olhar grave, indômito. Movia a cabeça e sorria, não um sorriso comum. Um sorriso do tipo macarrônico.

“O que esse cara quer?” pensei. Deixa pra lá. Juntei 12 halteres ao redor do banco onde eu estava e continuei treinando. O sujeito também sentou e começou a me imitar. “Que isso?”, “O que está acontecendo aqui?” ‘O que tem de errado com esse cara?”, me questionei.

Ele só não me seguia quando eu ia até o bebedouro encher a minha garrafa de água. Mas continuava no mesmo lugar, me observando sem parar. Ele não se importava que eu soubesse. Sim, não fazia a menor diferença. Folgado.

No escuro, ocasionalmente a janela permitia que a pequena incidência de luz lançasse um brilho insólito sobre o espelho; um lume fortuito, intermitente. Era como se sua presença se desvanecesse com a luz. Dizem que o escuro é o refúgio dos casmurros. Deve ser.

Vez ou outra, eu caminhava até a janela, sentia o frescor, observava os galhos das árvores balouçando, desviava os olhos e retornava. Ok. Deitei no banco e comecei a fazer tríceps testa. Muito bom, assim não vejo ninguém, a não ser a barra e o movimento dos meus braços. Terminei, me levantei e ele continuava lá. “Po, ainda por aqui?”, pensei. Que seja!

Fiz rosca francesa com barra e caminhei até o outro lado da academia. “Aqui não tem ninguém. Claro que hoje não tem quase ninguém na academia, mas especialmente aqui estou só”, ponderei satisfeito. É isso aí! Olhei para o lado e o sujeito já tinha se antecipado. Ele sorriu; outro sorriso satírico, dicaz. Deve ter pensado: “Idiota, achou que fugiria de mim?”

“Que isso? Será que não posso treinar em paz?”, monologuei no escuro, desinteressado em abrir a boca. Fiz minhas séries de tríceps corda, fechando com drop-set. Antes de deixar a polia, a energia elétrica retornou por um instante. Observei o sujeito. Era o meu próprio reflexo no espelho.





Written by David Arioch

November 4th, 2017 at 12:06 am

Como será a sua última noite?

without comments

Será que está com fome ou sede? Amanhã seu coração vai deixar de bater

Fico imaginando como será a sua última noite. Se sua respiração está normal. Será que está com fome ou sede? Amanhã seu coração vai deixar de bater. Não sei a hora, só sei que será amanhã. Qual é o seu estado emocional? Não tenho a mínima ideia, mas não tenho dúvida de que é o de uma criatura senciente, consciente e inteligente.

Seus olhos fixos, uma pequena réplica do sol no final da tarde, não vão muito longe, provavelmente nunca foram, porque nunca permitiram. Seja observando entre fendas ou não, sua vida sempre valeu pouco. Sim. Não sabe que se alimentarão de seu corpo, um corpo desenvolvido apenas para atingir um objetivo bem específico – servir como produto.

Sei que seu coração bate muito mais do que o meu, mas só até amanhã. Triste. Mero aperitivo. Não há de restar nada nos próximos dias. Suas penas, seus pés, seus olhos. Um coração servido com sal e limão sobre a mesa. Nada, nada, nada. Sua morte é a reafirmação de uma existência curta, facciosa. A maioria não se importa. Talvez alguém esteja rindo do que escrevi. É assim. O condicionamento embruteceu o ser humano há muito tempo, mas é importante ter esperança. Não vale a pena desacreditar, porque é pior. Um caminho sem volta.

Está escuro aí? Frio? Calor? Existe aragem? Sente fome? sede? Já perguntei, me desculpe. Ciscou hoje? Que pergunta! Não deve haver espaço para isso, pelo menos não para a maioria. É, não creio que esteja confortável aí. Será que você tem algum tipo de intuição? Dizem que suas penas mudam sutilmente quando você pressente a morte. Será verdade?

Quem mata, provavelmente não observa seus olhos. É como se você não os tivesse. Não veem a luz que emana deles, um pedaço de sol se esforçando para não ser suplantado pela chegada da noite. A sua noite é diferente, porque você não renasce no dia seguinte. Turvação e libitina. Você simplesmente desvanece, como se nunca tivesse existido. Um frango dos 16 milhões que serão mortos amanhã.





Written by David Arioch

November 2nd, 2017 at 12:43 am

Bravo

without comments

Arte: Dana Ellyn

— A gente se divertia todos os dias.
— Quem?
— Eu e o Bravo. Quando queria brincar, ele sempre esfregava o focinho macio no meu joelho.
— É, não o conheci, mas imagino como você deve estar se sentindo.
— Ele era muito inteligente. Reconhecia sons, identificava todo mundo que chegava. Adorava música. Eu colocava Mogwai pra ele ouvir antes de dormir todos os dias. Se acostumou e já não dormia sem ouvir “Take Me Somewhere Nice” pelo menos uma vez a cada noite.
— Ele chegou a machucar alguém?
— Não, nunca.
— É, então foi um animalzinho muito bom.
— Crescemos juntos praticamente, mas ele ficou grande bem rápido.
— Entendo.
— Ele adorava quebra-cabeças. Tinha um de 15 peças, segurava cada peça pela alcinha branca e encaixava certinho nas lacunas. Tinham formas de frutas, sua comida preferida.
— Sério isso?
— Sim…
— Nunca vi bicho nenhum fazer algo assim.
— Aprendemos muito com ele.
— Um dia minha mãe colocou muita água na panela de pressão, uma vizinha a chamou e elas começaram a conversar. Esqueceu completamente da panela. O Bravo foi até ela e avisou do jeito dele que tinha algo de errado. Fez um bom barulho. Minha mãe o acompanhou e quando chegou até a cozinha a água estava transbordando sobre o fogão. Havia água quente pra todo lado.
— Outra vez ele sentiu um cheiro estranho. O gás estava vazando. É, se não fosse por ele nem sei se estaríamos aqui hoje.
— Ele morreu com que idade?
— 17 anos. Passei parte da minha infância e toda a minha adolescência com ele.
— Que amizade legal.
— Às vezes eu encostava a cabeça na barriga dele e cochilávamos assim. Ninguém se incomodava. Nem eu nem ele.
— Acordava antes de mim. Por volta das 6h, vinha me chamar para ir para a escola. Era melhor do que eu em identificar as horas. Muito melhor — disse rindo.
— Você teve um amigão.
— O melhor.
— Seus olhos eram bem expressivos, como olhos humanos. Eu achava que ele era o único, mas a verdade é que ele era como um representante de todos. Sei que ele veio para nos ensinar que devemos ver ele em todos os outros. Não se trata de ser especial, se trata de entender que se vemos algo de especial em um, somos capazes de ver nos outros também.
— Realmente, cachorros são incríveis.
— São sim. Mas Bravo não era cachorro. Era um porco que livramos da morte em um matadouro.