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Seu Santo contra a matança de animais
No final dos anos 1940, meu avô conheceu uma fazenda de café em Paranavaí onde era proibida a matança de animais. Havia dezenas de casebres, e quem quisesse trabalhar e viver ali era obrigado a aceitar o fato de que não era permitido se alimentar de animais. Qualquer morte de animal era punida com expulsão. O dono da fazenda era conhecido como “Seu Santo”.
Ele andava mancando porque em 1944 levou uma mordida de onça na perna direita, perdendo parte de massa muscular e de massa óssea. No dia do acontecido, a onça saltou sobre uma árvore assim que ouviu o barulho de um Ford movido a gasogênio. Logo dois jovens desceram armados e se posicionaram para abatê-la.
Ciente de que ela seria morta, Seu Santo apenas gritou com os filhos: “Deixa ela. Tá no direito dela. Foi a gente que invadiu isso aqui.” O deitaram na carroceria do caminhão e partiram rumo ao Hospital do Estado. Esse lugarejo existiu por mais de 30 anos, até ser abandonado em decorrência das últimas grandes geadas. Hoje resta apenas quiçaça e uma história que parece recôndita sob a terra fragilizada.
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“Você não pode, você é nortista”
Os nordestinos que chegaram no Noroeste do Paraná até a década de 1950, geralmente atuavam como colonos nas fazendas de café. E como não havia muito lazer na área urbana, e se houvesse também não havia dinheiro o suficiente pra gastar com isso, as festas eram improvisadas no campo. Quando um nordestino convidava uma moça para dançar nos bailes, alguém não raramente interferia e dizia: “Você não pode, você é nortista.”
Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado no dia 5 de junho
Espaço reúne mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí
No dia 5 de junho, o Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí vai ser reinaugurado ao lado da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, na antiga Estação do Ofício. Para comemorar a reabertura, a Fundação Cultural preparou uma programação para pessoas de todas as idades.
Às 14h, começa uma apresentação de roda de capoeira, seguida pela abertura oficial do museu e visita monitorada. “Faremos um passeio pelo acervo da história de Paranavaí. Também vamos oferecer brincadeiras e jogos tradicionais como peteca, amarelinha, cinco marias, ciranda, pula-corda, elástico, dobradura e arte em papel, além de contação de histórias”, explica a coordenadora da Casa da Cultura, Rosi Sanga, que também administra o museu.
Uma biblioteca especial vai ser montada no local, onde o público pode ter acesso ao Cantinho da Leitura e a um sebo com venda de livros usados. “Às 16h, faremos um piquenique coletivo e às 17h30 o encerramento vai ficar por conta do forró pé de serra com a turma do professor de música Glau Ribeiro”, informa Rosi. Uma exposição de obras de arte, um varal literário com obras de escritores paranaenses e declamações de poemas também fazem parte da programação.
Um acervo com 2,8 mil fotos
O Museu de Paranavaí reúne mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí. Há inclusive objetos dos tempos da Fazenda Brasileira, como Paranavaí era conhecida nas décadas de 1930 e 1940, e um acervo com 2,8 mil fotos. Muitas já foram digitalizadas e devem compor o Memorial Digital do Pioneiro. O espaço pode ser visitado de segunda à sexta das 8h às 17h. Para mais informações, ligue para (44) 3422-5018.
A chacina das galinhas
“Se for troca de tiros, a gente derruba ele e quem mais vier”, garantiu José em tom sisudo
Em 1956, o pioneiro José Alves de Souza vivia em um rancho nas imediações da Avenida Tancredo Neves, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, quando chegou em casa e encontrou as suas 15 galinhas mortas. Compradas em menos de uma semana, foram violentamente estraçalhadas e partes das vísceras estavam no chão de terra, misturadas às penas.
“Que diabos aconteceu aqui? Quem fez isso com as minhas galinhas?”, se perguntou José levando as mãos à cabeça. Na semana seguinte comprou mais 15 galinhas e outras vez foram mortas brutalmente. O objetivo de José era criar e vender animais. No entanto, ele não sabia que os cães de caça de Paranavaí tinham o hábito de invadir propriedades para comer as galinhas.
“Na época tinha muitos caçadores na cidade e isso significava muitos cães de caça. Eles eram violentos demais, invadiram uma fazenda e mataram todos os carneiros”, enfatiza. Irritado, José conversou com o irmão e decidiram comprar armas de fogo. Naquele tempo cada caçador tinha de 15 a 30 animais. Um homem conhecido como Nego possuía 26 cães de caça. “Alguns tinham mais de 30. Aquele mundo velho de cachorro acabando com tudo. Não dava pra criar nada”, desabafa.
Um dia o irmão do pioneiro chegou em casa com uma garrucha e duas espingardas. Juntos, treinaram tiro ao alvo no quintal, chegando a acertar caixinhas de fósforo à longa distância. “Quando aparecia cachorro a gente metia bala, até que começaram a sumir. Daí um valentão da cidade, que além de caçador estava concorrendo às eleições de 1956, mandou um dos seus capangas em casa pra dar um recado”, narra.
Numa manhã ouviram alguém batendo palmas e berrando em frente ao rancho. Era um homem forte, de má fama e expressão carrancuda que observava José. “Não mata o cachorro do patrão porque ele é bravo. Ele derrota vocês”, alertou enquanto alisava o gatilho de uma pistola presa à cintura. Sem hesitar, o anfitrião respondeu que seria mais fácil ele e o irmão vencer o invasor. “Se for troca de tiros a gente derruba ele e quem mais vier”, garantiu em tom sisudo. O visitante ficou espantado com a reação de José, de 24 anos, que teve o discurso endossado pelo irmão mais novo.
“A gente era peão, sem conhecimento de nada. Não pensava nem em Deus, mas acreditava que ninguém deve abaixar a cabeça pra ninguém. Também sabia que já existia muita maldade no mundo”, relata. Dias depois receberam a visita inesperada do homem que ameaçou matá-los. O sujeito os cumprimentou e perguntou se jogavam carteado. “Catamos um baralho velho e começamos a brincar. Ficamos amigos e depois até a família dele passou a frequentar a nossa casa”, revela.
Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado em abril
Nova sede vai abrigar mais de 600 objetos e 2,8 mil fotos sobre a história local
Fundado em 2007, o Museu de Paranavaí sempre funcionou nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. Porém, a partir da segunda quinzena de abril, o museu começa a atender em um novo espaço – na antiga Estação do Ofício. Atualmente o local está passando por reformas e adaptações feitas pelos colaboradores da Fundação Cultural de Paranavaí.
“Estamos fazendo um trabalho com muito amor e carinho, baseado no improviso e na criatividade”, comenta a coordenadora do Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, Rosi Sanga, que ao longo dos anos conseguiu reunir mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí.
Há inclusive objetos dos tempos da Fazenda Brasileira, como Paranavaí era conhecida nas décadas de 1930 e 1940, e um acervo com 2,8 mil fotos. Muitas já foram digitalizadas e devem compor o Memorial Digital do Pioneiro. “Assim que o Museu for reinaugurado, vamos continuar com nossas exposições. Elas são baseadas em histórias que começam na época dos índios, embora eles não tenham vivido exatamente onde a cidade surgiu. Também falaremos da derrubada da mata, da fase econômica do café e de outros ciclos. O mais interessante é que aqui cada objeto tem uma memória a ser narrada”, revela Rosi.
Uma das paredes do museu já está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí através das pinturas da artista Cecília Tortorelli. Importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização local e regional, o museu possui coleções, objetos do cotidiano, itens numismáticos, documentos e instrumentos de trabalho. Visitar o museu é uma grande oportunidade para entender o surgimento de Paranavaí e o seu desenvolvimento, principalmente nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960.
Outra novidade é que no entorno do museu vai ser criado um canteiro com ervas medicinais usadas nos tempos da colonização. “Do lado de fora, vamos exibir depoimentos de pioneiros sobre essas ervas. Também vamos deixar dois tipógrafos em exposição na parte externa”, enfatiza. A tradicional Sala de Imagem e Som, que funcionava na Casa da Cultura e reunia um bom acervo de materiais e equipamentos de rádio, TV e cinema, também vai funcionar nas dependências do museu.
“A partir da segunda quinzena de abril, se tudo der certo, vamos atender das 8h às 17h, mas caso alguém nos ligue com antecedência, querendo conhecer a exposição, podemos abrir também fora do horário comercial”, declara a coordenadora. O Museu de Paranavaí continua recebendo doações, desde que sejam itens com relevância histórica. Para mais informações, ligue para (44) 3422-5018.
Saiba Mais
O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí é administrado pela Fundação Cultural de Paranavaí.
Paranavaí, a flor dos cafezais
Novo livro do poeta Paulo Marcelo é baseado em poemas sobre a colonização de Paranavaí
Em janeiro deste ano, o escritor Paulo Marcelo Soares da Silva, radicado em Curitiba, me presenteou com o seu novo livro – “As flores dos cafezais”, recém-lançado. A obra de leitura simples e cativante é baseada em uma coleção de poemas, bem-dispostos em ordem cronológica, sobre a colonização e a evolução de Paranavaí desde os tempos da Fazenda Ivaí, que antecede a Vila Montoya, até a atualidade.
O título do livro é uma clara homenagem a Paranavaí, a quem o escritor se refere em seus poemas como flor dos cafezais, já que a cidade se desenvolveu sob o signo do café até o início dos anos 1970, quando a cafeicultura perdeu espaço para a pecuária.
Por meio da poesia, Paulo Marcelo ensina história com uma linguagem de fácil compreensão. Transmite impressões de uma Paranavaí pouco conhecida pelos mais jovens, mergulhada em impressões de um passado longevo, mas rico e bucólico, que aguça a sensibilidade de quem tem e até de quem não tem contato com a cultura regionalista.
“A realidade e o mito se confundem com o passar do tempo. Ao lado do que é real há que se preocupar também com o ilusório. Os sonhos, a magia e o folclore são peças indispensáveis na engrenagem da vida”, defende o escritor que em sonetos petrarquianos conta com paroxismo como nasceu Paranavaí.
No livro, a narrativa poética romantiza fatos da década de 1920. A partir de um soneto homônimo, Paulo Marcelo aborda com preciosismo a chegada de desbravadores, colonos e outros migrantes que se tornaram pioneiros – numa universalização alheia a nomes. O fim de Montoya, o nascimento da Fazenda Brasileira e a escolha do nome da cidade são referenciados com a rima do autor.
“Entre 1950 e 1960 a produtividade cafeeira atingiu seu ápice na região. Afirma-se que em algumas áreas chegou-se a colher 300 sacas em coco por mil pés de café”, introduz o escritor antes de poetizar as brincadeiras em torno dos cafeeiros, assim como as manhãs ensolaradas, as moças do campo, a inocência dos colonos, a alegria durante as colheitas, a fartura e as grandes geadas.
Na obra, alguns personagens, as festas típicas e os cinemas da cidade também são mencionados em versos curtos com digna e nostálgica simplicidade. “Paranavaí é filha dos cafezais. Nasceu numa manhã de muito sol e foi batizada numa tarde de mil cores”, garante o poeta. Em síntese, “Flores dos Cafezais” é um livro de rápida leitura e que não exige demais do leitor, a não ser vontade de peregrinar em emoções e reflexões poéticas, inspiradas em mais de 90 anos de história.
Quem é Paulo Marcelo?
Além de escritor, Paulo Marcelo é bacharel em direito e possui licenciatura em geografia. Participou e foi premiado em muitas edições do Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Também recebeu prêmios de menção honrosa no 15º e 19º Jogos Florais de Barreiro, Portugal, e no 1º Concurso de Romances Juvenis da Academia Paranaense de Letras.
Tem contos publicados pela Empresa Tipográfica Casa Portuguesa, de Lisboa, em Portugal, e Casa da Cultura dos Trabalhadores da Quimigal, de Barreiro, também em Portugal. Ademais, é autor de “O Lendário Capitão”, de 2012, e “Xondó e o Furto da Vassoura”, de 2013. O livro “Encantamento”, de 2015, contém ilustrações do próprio escritor e traz um conto sobre a história de um casal que se apaixonou em Paranavaí nos tempos da colonização.
Saiba Mais
Caso queiram adquirir o livro, vocês podem entrar em contato com o autor através do e-mail pmmssi@yahoo.com.br.
Soneto que integra o livro e faz referência ao pássaro que empresta seu nome a uma das áreas históricas de Paranavaí:
O Canto do Surucuá
Voa o lindo passarinho
Ao vento que vem lá,
No quadro, tudo mais belo,
Ao canto do Surucuá
As dores vão se afastando,
Em busca d’outro lugar…
Levando mágoas prá longe,
O canto do Surucuá
Segue o moço a cavalo,
Batendo o peito por ela
(Um amor que vai buscar)
Na fazenda, a donzela
Suspira, lá da janela
Ao canto do Surucuá
Casa de secos & molhados de Carlos Faber em 1944
Tamanduá que perseguiu um grupo de padres em 1953
Nefaltzi Vallató
“Reveste-lhe o âmago um mausoléu, nuvens turvas que no decantar de suas lágrimas expropriam o céu”
Na década de 1910, antes do surgimento das cidades do Noroeste do Paraná, já havia um núcleo populacional a poucos quilômetros da fronteira do Paraná com o então Mato Grosso. Era um lugarejo isolado, mas muito bem organizado e com boa infraestrutura, onde ninguém poderia entrar sem autorização de uma companhia de colonização conhecida como Sulina – O Braço Armado do Norte Sulista. A colônia foi fundada por um grupo de magnatas que tinha como conselheiro um suposto profeta chamado Ausenbaum. O homem defendia que as tradicionais sociedades urbanas definhariam até 1930. Também pregava que o fim do mundo estava próximo.
À época, vivia no povoado um jovem questionador na faixa dos 20 anos e estatura mediana. Seu nome era Nefaltzi Vallató e ele tinha o atípico costume de passar horas do dia em um cemitério clandestino que começava onde terminava a colônia – local em que seus pais foram enterrados dois anos antes, em 1913. Por causa desse hábito, um dia o jovem foi abordado por dois guardas. Um deles sorriu e o cumprimentou. Nefaltzi retribuiu a cordialidade, porém se manteve circunspecto. O mais baixo, um homem chamado Marino, que se dizia um poeta do acaso, chamou-lhe a atenção e o questionou: “Rapaz, sorria! De que adianta nutrir sentimentos negativos na alvorada se é no resguardar da madrugada que a serpente deve ser alimentada?”
Nefaltzi, que desde a morte dos pais nunca sorria com facilidade, respondeu: “Por que ultrajar a verdade? Por que demonstrar emoções inexistentes e obscurecer as verdadeiras? Confuso és, pois dentro de ti reveste-lhe o âmago um mausoléu, nuvens turvas que no decantar de suas lágrimas expropriam o céu. Por que abrir a boca e expor os dentes se for arbitrariedade aos sentimentos?” Impaciente e ofegante, Marino pediu que Nefaltzi virasse de costas. Algemou-lhe as duas mãos e o levou até o pequeno escritório da Polícia Independente de Sulina. No local, o rapaz foi formalmente autuado por desacato. Sileno, o único investigador contratado pela companhia, abriu um inquérito, prevendo que a polícia poderia ser vista como bonapartista.
Vallató preservou o mesmo semblante – de um rosto pictórico, assim que Sileno o inquiriu sobre o desrespeito ao guarda. Sem compreender com clareza, abaixou a cabeça, coçou a palma da mão, se levantou e disse: “Por que muitos cavalgam na luz se sabem que enxergam apenas no escuro? O galope com destino à refração enobrece alguém? Saiba, senhor, não sei onde nasce ou morre a razão, mas acredito que é no ranger dos dentes que se admite a intransigência ou a intemperança”, comentou Nefaltzi que ainda refutou a acusação e perguntou se poderia fazer outro comentário.
O investigador concordou e Vallató discursou: “Se acordas pela manhã e beijas a fronte de seu primogênito, não o faz para congratular-se como benemérito de Lemúria, e sim porque no desabrochar de uma relação o sentimento tenro privilegia a sinceridade, autodoação. Pena que seja limitado e defasado, tanto quanto o princípio da isonomia que, embora registrado na Magna Carta, destoa da realidade em tempos modernos. Penso em nós como selvagens, logo que nascemos e abrimos os olhos, somos impelidos a enxergar o mundo sob a hierarquia de Lupus – somos todos animais engolindo a mesma cauda, a nossa e a dos outros. Antropofagia! É isso que praticamos todos os dias!”
Nefaltzi se calou por segundos, até que o investigador, tornado meândrico, o interrogou sobre a relação de seu discurso com a autuação. Estático, justificou: “Nenhuma! Principalmente se enxergas o mundo como uma extensão do próprio quintal!” Irrequieto, Sileno levantou-se e pediu a ele que o acompanhasse até a sala do delegado Abílio. Foi recebido cordialmente, embora a fisionomia do homem transmutou-se ao saber o motivo da visita. Sileno reclamou que o rapaz se recusava a colaborar durante o interrogatório, então indagou se Abílio poderia cuidar do caso. Apesar da feição carrancuda e da sudorese repentina, o delegado concordou, dispensou Sileno e pediu que Vallató se sentasse.
Com olhar esfíngico, o estudante também interpelou Abílio sobre o motivo da acusação. “Meu jovem, você foi trazido até a minha sala porque temos a melhor das intenções, por que não contribui e ainda faz o possível para dificultar o nosso trabalho?”, queixou-se. Nefaltzi prosseguiu em silêncio, roçou o piso de madeira com a sola do sapato e disparou: “Transgressão, será? Hum…parece-me um aparato ardiloso. Sabes o motivo, não é mesmo? Pois bem, é volátil, não é substancial nem equânime. Eu e o senhor sabemos que a verdadeira transgressão é aquela que mascara o capricho de poucos em detrimento de muitos. Isso me lembra um vizinho que resolveu derrubar uma árvore porque não lhe forrava mais o quintal com bons frutos.”
Irascível, o delegado se retirou da sala e pediu a Sileno que formalizasse o pedido de prisão preventiva. Na noite daquele dia, Vallató foi preso após o parecer favorável do juiz Bacelar. Marcaram o julgamento para a semana seguinte. Nefaltzi rejeitou o direito à defesa. Durante a curta audiência, Bacelar questionou se o jovem tinha algo a declarar, logo que o promotor deu por encerrado o caso. Com a mesma feição peculiar, soergueu-se modestamente, olhou para o juiz e argumentou:
“O que significa ser culpado ou inocente? A culpa pode nascer da inocência, assim como a inocência pode ser rebento da culpa. Creio que dispendem tempo demais com os lacônicos e esquecem dos binômios. De qualquer modo, ficarei grato se o meritíssimo senhor juiz responder a pergunta que farei agora: ‘Por que o homem refugia-se nos ditames da sociedade quando macula a própria integridade com a ignorância da inverdade?’” O magistrado torceu o nariz, não respondeu e anunciou o veredicto. Vallató, que não tinha mais família na colônia, foi condenado a dez anos de prisão. A pena começou a ser cumprida numa área erma e privada situada a sete quilômetros ao leste de Sulina.
No dia seguinte, encaminhado ao seu destino, Nefaltzi teve o dorso amarrado por uma longa corda de cânhamo que o desceu até a Boca Apuara, um buraco com cinquenta metros de profundidade, úmido e sobrenaturalmente oxigenado, o que evitava que os transgressores morressem asfixiados. Quando Vallató foi deixado na Apuara, não havia nenhum outro condenado vivendo ali – estava sozinho. Nos primeiros meses, Marino e alguns amigos do rapaz percorriam o trajeto a pé até chegarem ao local. Lá, gritavam-lhe o nome e pediam que recostasse à lateral direita para não ser machucado pelo atrito com os alimentos lançados ao buraco.
Desde a condenação, Nefaltzi nunca mais falou, embora ao longo das visitas sinalizasse que estava bem, entoando sons primitivos com o auxílio de uma ocarina que carregou escondida no bolso no dia da transferência. Três anos depois do confinamento, ninguém mais se lembrava dele. Por eventualidade, um rapaz, Titu Csendes, que há muito tempo deixou a colônia com a família, retornou para ver de perto a situação do amigo. Csendes, ao gritar em vão durante horas diante da Boca, ficou desesperado e resolveu pedir ajuda no escritório policial e na sede administrativa de Sulina. Enviaram três guardas. Um deles desceu até o buraco e se assustou ao encontrar Nefaltzi morto, com o corpo sujo pelo solo vermelho.
O guarda se surpreendeu com a pouca profundidade da Apuara. Depois que retiraram o cadáver, usaram um enorme rolo de fita métrica para mensurá-la. A Boca de cinquenta metros estava com menos de quinze. Houve grande comoção e espalhou-se pelo lugarejo um boato de que o mundo chegaria ao fim em poucos dias. Antes do enterro de Nefaltzi Vallató, ninguém percebeu que o interior da sua boca tinha vestígios de terra vermelha. Do lado de seu corpo, antecipando o próprio fim, o jovem escreveu uma frase usando a face da pequena ocarina: “Alimento-me da boca para a qual servi de alimento.” Ninguém entendeu ou se importou.
Curiosidade
Quando comecei a pesquisar sobre a história de Paranavaí em 2006, há dez anos, escrevi o meu primeiro conto inspirado no tema – “Nefaltzi Vallató”. Hoje, depois de tanto tempo, o divulgo pela primeira vez.
Calado, o homem que rejeitou a sociedade
Diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado
Calado não é um personagem comum ou conhecido da população de Paranavaí e do Noroeste do Paraná. Na realidade, ouso dizer até que é anônimo. A primeira vez que ouvi falar sobre ele foi no Cemitério Municipal de Alto Paraná, em uma conversa entre meus familiares e outras pessoas já falecidas que chegaram a esta região nas décadas de 1930 e 1940. À época, eu tinha entre 11 e 12 anos e fiquei fascinado, embasbacado com o relato sobre aquela figura quimérica que logo invadiria meus sonhos. Acordado, eu divagava e escrevia, baseando-me no que foi ou poderia ser tal sujeito de características singulares.
A história diz que Calado ou Saru, chamado Maurício, chegou ao Noroeste do Paraná no final do século 19, após ser acusado de se aliar aos maragatos em Paranaguá, durante a Revolução Federalista em 1894. Há quem diga que ele era parente de Gumercindo Saraiva, um dos comandantes das tropas rebeldes que lutavam pela deposição do presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. Mesmo com a morte de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul, em 6 de agosto de 1894, injustamente executado como traidor da pátria, os chimangos (republicanos) intensificaram a perseguição aos que teriam contribuído com os maragatos, independente da consistência das provas.
Com 19 anos, na tarde de 13 de setembro, Maurício estava em casa ajudando o seu pai a recolher as tábuas de um velho rancho que tinham desmontado pela manhã. Antes que pudesse terminar o trabalho, quatro homens invadiram a chácara da família procurando pelo rapaz. Assim que Maurício se apresentou, dois soldados o seguraram pelos braços, o acusando de conspiração contra a república. Vasculharam o quarto do jovem e encontraram uma pequena caixa de madeira dentro de um armário. No interior, havia um lenço vermelho, que caracterizava a vestimenta dos maragatos, e o rascunho de uma carta que supostamente foi entregue em julho de 1894 a Gumercindo Saraiva, líder do movimento.
Nela, o autor dava detalhes sobre a localização de uma fazenda que poderia servir de abrigo para os insurgentes sob comando do almirante Custódio de Mello. As informações selaram o destino de Maurício que tentou explicar que a caixa não pertencia a ele. Desesperados, seus pais choraram e imploraram para que o filho não fosse levado. De nada adiantou. O rapaz foi transportado até uma casa velha e abandonada a quilômetros de distância, onde o obrigaram a entrar em um porão extremamente sujo.
O lugar era úmido, escuro e havia um odor nauseante de ferrugem. Sem enxergar nada, Maurício quase escorregou em uma poça. Quando um dos soldados acendeu a lamparina, o rapaz viu que havia bastante sangue sob seus pés; uma parte ressequida e outra ainda fresca, indicando que não fazia muito tempo que alguém entrou ou saiu gravemente ferido daquele lugar. O oficial que comandava a operação, identificado apenas como Justo, disse com voz plácida e pausada para Maurício assumir a autoria da carta, justificando que assim eles não precisariam machucá-lo.
O rapaz rejeitou a oferta. Por cerca de um minuto, o oficial observou seus olhos sem transmitir qualquer tipo de emoção. Caminhou até uma cadeira recostada num canto bem iluminado e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um cachimbo com um tubo de bambu e um fornilho de barro. Lá mesmo, o sujeito começou a fumar ópio, alheio ao que aconteceria nos próximos minutos.
Enquanto isso, Maurício, mantido nas pontas dos pés com os braços suspensos por uma corda, levava socos e chutes de dois chimangos, mas não o suficiente para feri-lo gravemente. Ainda assim, sentindo severas dores em várias partes arroxeadas do corpo, ele lacrimejava em silêncio e ocasionalmente gritava que era inocente. Quando Justo parou de fumar, e acenou com uma das mãos cobertas pela fuligem de uma lamparina pendurada a centímetros de distância, os soldados se afastaram e saíram do porão.
“Você já ouviu falar no ‘braço de folie?’ É uma técnica muito interessante que um mercenário, um apátrida francês, descobriu na Ásia para conseguir respostas honestas de pessoas que não gostam muito de falar a verdade. É bem eficaz, tanto que até hoje nunca deixei de alcançar meu objetivo. Ah! E é exatamente pela boa aplicação dela que me chamam de Justo”, declarou com voz grave e sorriso tétrico.
Desinteressado em fazer mistério, o oficial caminhou até outro canto do porão, retirou algumas flores amarelas de um saco e começou a macerá-las vagarosamente com um pilão, combinando com outros dois ou três ingredientes desconhecidos. “Meu rapaz, veja que dádiva de flor! Se chama ranunculus e pode ser tão bela aos olhos quanto deletéria ao corpo. Há de concordar comigo em breve”, comentou.
Justo avaliou a viscosidade da pasta, caminhou até Maurício, deu alguns tapinhas em suas costas e esfregou nas axilas do rapaz a mistura que tinha a consistência de um unguento. Em segundos, sentiu a pele esquentando. Um minuto depois, todos os pelos da área afetada caíram e suas axilas queimaram como se alguém as tocasse com um ferrete. “Enquanto sentia a pele em carne viva e se balançava, na tentativa de resfriar as queimaduras, ele continuava afirmando que era inocente. Disse à minha avó que a princípio o cheiro da mistura ajudava a amenizar a dor insuportável”, conta Arminda Gervasi, sobrinha-neta de Maurício.
Justo também esfregou um pouco do “braço de folie” nas costas do rapaz que não suportou as dores e acabou desmaiando. A sensação era terrível, dando a impressão de que seus músculos dorsais foram dilacerados. Horas mais tarde, Maurício estava deitado em uma cama dentro de um barracão de estocagem de erva-mate. Acordou e não entendeu o que aconteceu. No seu corpo não havia sinais de queimadura, apenas da violência física cometida pelos dois soldados. Quando ouviu o som da buzina de um navio, percebeu que estavam nas imediações do porto.
O seu algoz continuava ao seu lado, observando sua reação. Supostamente o rapaz seria levado em um navio da Marinha para ser julgado no Rio de Janeiro. Porém, o oficial da escolta mudou de ideia ao ter certeza que Maurício não mentiu. “A verdade é que não vamos levá-lo a lugar nenhum. A ordem que recebi é para matá-lo e abandonar o seu cadáver num buraco qualquer. Só que minha experiência me convenceu de que você é inocente. Como não posso admitir falhas, deixarei você viver sob duas condições: suma deste lugar e nunca mais procure seus pais. Se eu souber que não acatou minha ordem, voltarei e matarei toda a sua família. Agora vá! Desapareça da minha frente!”, ordenou o homem.
Confuso, assustado e tremendo, o rapaz saiu porta afora e correu mancando por mais de dois quilômetros até encontrar uma floresta onde se escondeu entre os arbustos. Sujo, faminto e ofegante, Maurício observou ao longe seus pais cabisbaixos na entrada de casa. Contrariando o oficial da escolta, caminhou furtivamente até eles e relatou tudo que aconteceu desde que foi levado de casa.
“Não posso ficar. Fiz um acordo com aquele homem e ele prometeu que viria atrás de mim e de toda nossa família se eu não cumprisse sua ordem. Vim só pra me despedir e avisar que entrarei em contato em no máximo um ano”, prometeu. Abraçados com o filho, os pais choraram novamente e pediram que ele passasse pelo menos mais uma noite em casa antes de partir. Temendo o pior, Maurício recusou. Aceitou só os curativos, a mala preparada pela mãe e um saco com alimentos, principalmente pães e frutas. Também se despediu da irmã Sophia que à época tinha dez anos.
Enquanto caminhava a passos rápidos, o jovem manteve o olhar em direção aos pais. A mãe, Maria, uma costureira baixinha e de mãos aveludadas, estava com o rosto rubro e os olhos túrgidos de tanto lacrimejar. O pai, Nestor, um magro sapateiro de estatura mediana que se dedicava tanto ao trabalho que trazia no rosto duas pequenas manchas indeléveis de graxa, acenava com uma das mãos enquanto usava a outra para acariciar o ombro da esposa, na tentativa de confortá-la. Prestes a desaparecer através do nevoeiro, Maurício ouviu o eco da voz de sua mãe gritando que o amava, lembrança que o acompanharia por toda a vida.
Assim que deixou Paranaguá, o rapaz encontrou um grupo de tropeiros e os acompanhou até chegar a Sorocaba, em São Paulo. De lá, partiu a pé e sozinho para Tatuí e Avaré, também no interior paulista. “Trabalhava só pra sobreviver. Seu objetivo era ficar longe e ao mesmo tempo sentir-se perto dos pais. Não parava em lugar algum porque seu sonho era voltar ao Paraná, de uma forma que não comprometesse sua família”, enfatiza Arminda, neta de Sophia.
Maurício chegou no início de 1896 à Fazenda da Prata, da Família Alcântara, onde mais tarde surgiria a cidade de Jacarezinho, no Norte Pioneiro do Paraná. Lá, se ofereceu para trabalhar na derrubada de mata. Na incursão pela floresta, ficou impressionado com as belezas da flora e da fauna. Era a primeira vez que sentia-se bem desde que saiu de casa.
Sempre que perguntavam seu nome e origem, ele mentia, preocupado com a possibilidade de ser perseguido pelos republicanos. Evitava falar do passado e não gostava de conversar mais do que o necessário. Às vezes, dormindo na colônia da fazenda ou em algum acampamento perto da mata, onde passava meses trabalhando, acordava sobressaltado, suando frio e soluçando. “Nunca mais foi o mesmo. Tinha fortes dores de cabeça e de estômago, delírios ocasionais e um medo constante de morrer, agravado por uma ansiedade sem fim. Sonhava com a família todos os dias, só que decidiu nunca mais procurar ninguém por receio de represália”, revela a sobrinha-neta.
Avesso à violência, quando presenciava brigas entre peões, Maurício virava as costas e se afastava com o corpo trêmulo. O som de cada soco ou chute trazia nefastas recordações das sessões de tortura em Paranaguá. A agonia e o estado de desespero só eram amenizados com a leitura de um livro que o acompanhava desde os 15 anos – “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis, que ganhou dos pais no Natal de 1890.
“Antes de falecer em decorrência de um câncer de tireoide, minha avó ainda falava com os olhos cheios de lágrimas das muitas vezes que seu irmão sentou perto da cabeceira para ler uma das histórias desse livro antes dela dormir”, confidencia Arminda emocionada. Maurício tinha predileção pelos contos “A Teoria do Medalhão”, A Sereníssima República”, “O Alienista” e “O Espelho”, decorando-os integralmente antes de completar 16 anos.
Respeitado pelo patrão, e tratado com desprezo e indiferença por gatos (fiscais) e colegas de trabalho – homens brutos do sertão, o rapaz teve a paz abalada numa noite amena de outono. Cochilando com as costas escoradas numa árvore, deu um grito alarmado quando um sujeito embriagado o segurou pelo colarinho da camisa, o questionando sobre o paradeiro de uma quantia em dinheiro guardada embaixo de um toco. “Por favor, me deixe em paz. Eu não sei de nada. Me solta! Me solta!”, pediu Maurício, de acordo com Arminda Gervasi.
Ignorando a negativa, o homem desferiu um soco no rosto e outro no estômago do rapaz que de tão espaventado teve uma repentina crise de diarreia. Entre goles de cachaça e muita gritaria, os peões já bêbados apontavam os dedos para Maurício e gargalhavam, numa zombaria sem limites. Sem dizer palavra, ele se levantou, caminhou até a barraca onde guardava seus pertences, juntou as próprias roupas em um saco e desapareceu mata adentro, sob o olhar displicente do fiscal que entornava uma garrafa de aguardente. Aquelas pessoas nunca mais o veriam.
Sem se importar com o que poderia lhe acontecer, o jovem se distanciou cada vez mais da sociedade e da civilização, entregando a própria vida aos acasos do desconhecido. “Ele já não queria mais viver junto de outras pessoas. O que aconteceu naquela noite foi o estopim”, garante a sobrinha-neta.
No dia 27 de março de 1896, Maurício entrou na floresta para não mais retornar. Sem medo do próprio fim, começou uma jornada despretensiosa de descobertas e autoconhecimento. Durante o dia, atravessava quilômetros de mata fechada e quando anoitecia se abrigava sobre as árvores. Com o tempo, aprendeu a escalar as mais altas e robustas, que lhe permitiam uma visão privilegiada das cercanias.
Apesar das dificuldades, seu organismo então fragilizado aprendeu a se adaptar a uma alimentação baseada em frutos e vegetais. Algumas vezes, após ingerir algo completamente desconhecido, passou tão mal que pensou que fosse morrer. “Ele era muito mais forte do que imaginava. Em poucos dias, já se sentia saudável. Talvez fosse um sinal, um chamado da natureza, de que nasceu para aquela vida. Acho que outras pessoas não sobreviveriam”, avalia Arminda.
Com o tempo, o rapaz abandonou roupas e pertences, menos um relógio de bolso que prendeu no braço – presente dos pais. Sem rumo, atravessou centenas de quilômetros de mata nativa. Só interrompeu o percurso por volta de 1898, quando encontrou uma onça-pintada caída, quase morta, com o sangue escorrendo sobre pedras musgadas às margens de um riacho.
Ainda acordada, observou Maurício a arrastando alguns metros mata adentro. Ele a deitou sobre a relva e estancou com folhas e raízes um grande ferimento na barriga do animal. Cuidou da onça por dez dias e, apesar de parecer assustada e confusa, ela não o encarou como ameaça, sequer mostrou os dentes ou apontou as garras.
Para Maurício, já não era algo surpreendente. A floresta tornou-se um lar e, de algum modo, seus velhos habitantes o aceitavam. Nem mesmo os índios de etnias caingangue e caiuá que encontrou pelo caminho o tratavam como invasor. Muito pelo contrário. Até o convidavam a participar de algumas celebrações, e foi numa dessas ocasiões que o batizaram como Saru, palavra tupi-guarani que significa Calado em português.
Meses depois, o rapaz reencontrou a onça de quem salvou a vida. Empoleirada numa árvore, ela saltou quando o viu. Se aproximou, observando os olhos de Saru, e deixou que ele deslizasse rapidamente as mãos pelo seu dorso. Cabeludo, barbudo, de estatura mediana e magro, o jovem ostracista de pele oliva aprendeu a ser mais silencioso do que os mais leves e menores animais que atravessavam a mata nativa. Vivendo sozinho, só interagia com quem se aproximava dele, o que talvez justifique porque sobreviveu tanto tempo na floresta. “Ele chegou a ser picado por cobras. A sua salvação foi o tratamento dos índios caiuá”, informa Arminda.
Em 1898, Calado já vivia em uma área onde surgiria a cidade de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Numa manhã, cansado de viajar sem rumo e de dormir ao relento, começou a construir uma casa no topo de uma gameleira. Dias depois, levou um susto numa madrugada quando notou que havia um animal pressionando as patas contra a lateral da casinha. Cuidadoso, se aproximou e viu que era a onça que o visitou em outra ocasião.
Segundo relato de Arminda, Saru saltou da árvore e seguiu o animal até uma área dominada por cedros, ipês e aroeiras, onde árvores menores ofereciam muitos frutos desconhecidos. A onça a quem Calado deu o nome de Sophia, em homenagem à irmã, conviveu com ele por mais de 15 anos. Por volta de 1914, um pequeno grupo de invasores que chegou à região, provavelmente vindo do estado de São Paulo, para avaliar a qualidade do solo, matou Sophia e Toriba, um de seus filhos, a tiros. Os dois brincavam às margens de um riacho.
Assim que ouviu um estampido, Calado atravessou até o local do ataque e observou os quatro homens armados se aproximando de seus amigos mortos. Um deles sorriu, cutucou a onça com a bota e comemorou: “Nunca imaginei que seria tão fácil matar um bicho selvagem no seu próprio habitat.” Saru guardou para si a fúria que o dominou naquele momento e esperou anoitecer.
Quando os quatro montaram acampamento e se reuniram em torno de uma fogueira, ele assistiu um dos homens ir até uma mina buscar água. Assim que o sujeito retornou, Calado atirou castanhas em várias direções. Também imitou rugidos de onça e escalou a árvore mais próxima. Preocupados, recolheram suas armas e tentaram localizar a origem do barulho, se afastando do acampamento. Silencioso, Calado saltou perto da fogueira, abriu cada cantil e dentro despejou “sono de abaité”, um veneno de origem indígena baseado em batracotoxina, uma secreção extraída das costas de rãs e besouros.
Pela manhã, ao retornar ao acampamento, os quatro invasores tinham tomado a água do cantil e estavam mortos. Semanas depois, outros homens chegaram ao local procurando os desaparecidos. No entanto, concluíram que as mortes foram uma consequência natural da falta de atenção dos desbravadores que talvez tivessem comido frutos venenosos.
Ainda abalado com a morte de Sophia e Toriba, Saru enterrou os dois no ponto mais elevado da floresta, onde frequentemente os animais menores passavam o dia brincando. A cerimônia atraiu a atenção dos outros descendentes da onça-pintada. Ele também notou a presença de antas, pacas, quatis, veados, tatus, jaguatiricas, lobos-guará, gatos-do-mato, bugios e aves. Coincidentemente ou não, parecia uma reunião.
Embora tenha vivido mais alguns anos sem contato com seres humanos, Calado sabia que isso não duraria para sempre. Cerca de dez anos depois, ouviu barulhos cada vez mais frequentes de pessoas abrindo picadões. “Pra ele, o mais importante era que ninguém interferisse na vida selvagem, não matasse os animais. A floresta ainda era grande e ele reconhecia que era possível viver longe da civilização, mesmo com a chegada dos desbravadores”, assinala Arminda.
Desde a morte de Sophia e Toriba, Saru se colocou na posição de guardião da mata nativa de uma grande área onde surgiriam as cidades de Paranavaí e Alto Paraná. Os remanescentes dos índios caiuá nada poderiam fazer a respeito, já que a maioria vivia a mais de 100 quilômetros de distância, próximos do Rio Paraná e do Rio Paranapanema. Beirando os 50 anos, Calado pouco sofreu com a ação do tempo. Facilmente poderia ser confundido com um homem de pouco mais de 30 anos.
Corria pela floresta com extrema agilidade e se exercitava todos os dias sobre as árvores – tanto que ao longe era facilmente confundido com um animal. Vivia como alguém que nasceu e cresceu em território selvagem. Em contraponto, acreditava que quando uma vida era ceifada por motivo banal cabia a ele fazer justiça. E foi assim que Calado puniu entre as décadas de 1920 e 1950 muitos caçadores que invadiram a mata noroestina com a intenção de matar onças por diversão ou para extrair o couro que seria vendido a algum curtume. “Ele tinha o hábito de se abrigar dentro de tocos de árvores, de onde ele observava a movimentação dos invasores”, assegura a sobrinha-neta.
Quando uma jovem onça-pintada foi morta às margens de um córrego no início da década de 1930, onde surgiria o Jardim Ouro Branco, em Paranavaí, Calado extraiu-lhe as garras e as fixou em um tipo grosso de luva confeccionada à mão. Antes de usá-la, as deixou por uma noite embebidas no “sono de abaité”. De manhã, Saru se ajoelhou no chão, e diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado. De longe, reconhecia a intenção dos homens, se eram inimigos ou não.
Ele justificaria mais tarde que os caçadores traziam uma energia pesada e sufocante que ameaçava o equilíbrio da vida e a vitalidade soberana da floresta. “Meu tio-avô matou mais de 20 caçadores. Os corpos eram abandonados nos carreadores para que a família tivesse direito de enterrar o falecido. Ninguém nunca desconfiou que aquelas mortes pudessem ser causadas por um homem. Achavam que era coisa de onça mesmo”, narra Arminda Gervasi.
Guardião da floresta, Calado encarava como um ritual de justiça os matadores de onças sentirem a própria carne sendo penetrada pelas garras dos felinos que mataram. Entretanto, ao contrário do que imaginavam na época, as mortes eram causadas pelo “sono de abaité” e não pelos golpes, mais simbólicos do que fatais. Caçadores temidos em diversas regiões do Brasil sucumbiram diante das artimanhas de Saru.
Em 1937, Sophia, irmã de Maurício, viajou à Fazenda Brasileira com o marido para comprar uma propriedade rural. Enquanto se distraía caminhando por um carreador, ela observou ao longe um homem nadando em uma lagoa de águas cristalinas. Curiosa, se afastou do marido que conversava com um corretor de imóveis e andou em direção ao desconhecido. “Quer que pegue suas roupas? Onde elas estão?”, questionou Sophia. Quando o homem que serpenteava entre os peixes virou o rosto em sua direção, ela caiu de joelhos no chão, com as mãos tapando o nariz e a boca. Sophia chorou como uma criança ao notar nos olhos expressivos daquele homem de 62 anos o olhar vívido do irmão que partiu com 19 anos.
Sem dúvida, Maurício tinha envelhecido, mas ainda parecia mais jovem que Sophia. Calado ou Saru, que abandonou a identidade de Maurício, não conseguiu articular palavra. Ficou imóvel, com as mãos trêmulas enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto já molhado. Ao ver que não havia roupas por perto, Sophia correu até o carro do marido, abriu uma mala e pegou uma calça, uma camisa e um par de sapatos. Então sugeriu que Maurício os vestisse.
Apesar da falta de hábito, ele concordou com o pedido da irmã. Saru, que então mais do que nunca justificava o nome dado pelos índios, passou uma semana com Sophia. Somente no terceiro dia começou a conversar normalmente e contou-lhe tudo que viveu desde que deixou Paranaguá em 1894. Sophia, mais chorosa do que falante, ouviu tudo atentamente. Não cobrou notícias do irmão, pois sabia que ele tinha seus próprios motivos. Maurício foi tomado por uma confusão de sentimentos ao saber que seus pais adoeceram e faleceram em 1931 em decorrência de pneumonia.
Também foi Sophia quem informou que as falsas provas de que ele contribuiu com os maragatos foram plantadas por um antigo amigo chamado Arthur. Apaixonado pela jovem Teodora que sonhava em se casar com Maurício, o rapaz decidiu afastá-lo para sempre de sua amada, mesmo sabendo que Maurício não tinha intenção alguma de ser mais do que amigo da moça, muito menos desposá-la. “Essa informação não teve grande efeito sobre ele, que já não se importava tanto com o mundo civilizado. Somente as memórias familiares o arrebataram de forma surpreendente”, esclarece Arminda.
Sophia e o marido tentaram convencer Maurício a se mudar para Curitiba, onde ela vivia há mais de 20 anos. Ele declinou a oferta, a abraçou e argumentou que nada mais o interessava no mundo dos humanos. Antes de partir, Sophia levou as duas mãos ao rosto do irmão e recitou um trecho de “O Espelho”, de Machado de Assis, um dos contos preferidos de Maurício:
“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.”
Os dois sorriram, se despediram e Maurício correu em direção à floresta, onde, antes de desaparecer completamente, cumpriu um dos seus rituais mais sagrados – se livrou das roupas, o que significava se despir da civilização. Sophia e o marido não compraram nenhuma fazenda em Paranavaí, mas retornaram mais vezes procurando em vão o paradeiro de Maurício tornado Calado.
Entre as décadas de 1960 e 1980, alguns pioneiros e moradores de Paranavaí e Alto Paraná juraram tê-lo visto caminhando pelas estradas da Fazenda Ipiranga e Água do Cedro, além de áreas de mata do Jardim Ouro Branco e Jardim São Jorge. “Uma vez, voltando de viagem, parei no Cemitério de Alto Paraná pra dormir. Tenho certeza de que o vi atravessando tranquilamente por trás das árvores. Isso foi em 1976”, confidencia o pioneiro Júlio Galhardo.
O aposentado Amâncio Bonavero também afirma que viu Calado na área rural de Paranavaí em 1993, com base na descrição que lhe passaram nas décadas anteriores. Se o sujeito correndo pelo campo realmente era Saru, isso significa que ele estava vivo e saudável aos 118 anos. “Tem gente que acredita que o Calado ainda não morreu. Eu sou um desses. Acho que não o vemos mais porque hoje, mesmo de longe, ele ainda evita contato com pessoas. Quem sabe esse seja o motivo da sua longevidade”, deduz Bonavero sorrindo.
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