David Arioch – Jornalismo Cultural

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Archive for the ‘Autoral’ Category

Uma declaração de amor

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Sim, sua suavidade incorporava a própria graça da existência

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É sempre difícil se declarar assim para alguém, mas não tenho vergonha de admitir o que sinto por você. Me apaixonei desde a primeira vez que a vi. Foi subitâneo, instantâneo. Ninguém esperava. Você ainda tinha cabelos bem curtos de azeviche. Era reservada e não conseguia velar a timidez. Mas eu pensava em você a maior parte do tempo. A primeira vez que dormimos juntos e a senti acariciando meu rosto e minha boca foi inacreditável, ilimitável. Claro, mesmo com um pouquinho de aspereza de sua parte.

Com o tempo, você se fez cada vez mais presente, e permitiu que nos tornássemos um. Quantas vezes depois de quase um ano amanheci a sentindo em minha boca, percorrendo meus lábios, massageando meu peito? Você fazia tudo no silêncio das sensações; sem falar nada, simplesmente se insinuando como se sua existência se pautasse somente na frugalidade do momento.

Realmente, mergulhamos na mais figadal das experiências insólitas. Você sempre gostou de brincar com minhas reações. Não nego que tive pesadelos em que amarguei o irreal desespero de sua partida. Sim, eu acordava com o rosto úmido, os olhos marejados, receoso em ter de aceitar a famigerada despedida, que por bem jamais aconteceu. Para me animar, você se achegava, se movia de maneira ímpar, extraordinária, como se acompanhasse a aragem serena que invadia a janela de meu quarto.

Você se lembra quando eu confundia sua leveza com o próprio vento nas noites mais frescas? Sim, sua suavidade incorporava a própria graça da existência. Você sempre me fez feliz, um sonhador nesses quase 14 meses em que estamos juntos. Saiba que às vezes ainda fico enciumado quando olham demais para você nas ruas, mas aprendi a aceitar que o seu brilho é independente, único, resplandecente; e que devo tão e somente orgulhar-me de ti.

Sei que sua ternura subsiste em mim depois de compartilhamos tantos momentos inimagináveis. E nada é capaz de abalar isso, nem as manhãs em que você amanhece arredia e indisposta, sem querer ver ninguém. Mas todo bom relacionamento funciona assim, na compreensão do silêncio, no olhar sem ciceronear, na partilha do que deve ser partilhado e no respeito do que deve ser ignorado. Muito obrigado por tudo, Minha Barba.

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Written by David Arioch

February 17th, 2017 at 11:13 pm

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O teste ergométrico

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Como faço todos os anos, fui até a clínica cardiológica fazer o teste ergométrico, e quando terminei ainda tinha pique para ir um pouco além. O técnico me disse que de centenas de pessoas que passam pela clínica anualmente, não mais do que dez conseguem chegar até o final do teste ergométrico. Recebi vários parabéns da equipe da clínica. E há outro ponto a se considerar, o fato de que sou vegano. Enquanto muitos usam a desculpa de que é impossível garantir força, resistência e massa muscular sem carne, laticínios e ovos, eu continuo rendendo muito bem nas atividades físicas; e simplesmente porque eu quero e me empenho para isso.

Written by David Arioch

January 28th, 2017 at 8:24 pm

No estacionamento

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Um dia, no estacionamento do mercado, uma mulher arremessou uma embalagem pela janela. Como ela ainda não tinha saído do lugar, caminhei até lá, inclinei meu corpo, peguei o lixo sem falar nada, coloquei no meu bolso e continuei andando. Olhei brevemente para ela e não me recordo de já ter visto outra pessoa tão constrangida em situação semelhante.

Written by David Arioch

January 21st, 2017 at 1:34 am

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Um autor é responsável somente pelo que produz

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“Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, foi injustamente acusado de ter levado jovens a cometer suicídio na Alemanha (Foto: Reprodução)

Na minha opinião, um autor sempre vai ser responsável pelo que ele produz, não pelo que os outros entendem, por mais subjetiva que seja sua obra. Acho importante ter isso sempre em mente.

Quando escrevo um texto e alguém tenta dar um sentido a ele com o qual eu não concordo, por exemplo, a responsabilidade não é minha. Não tenho controle sobre a concepção de ninguém. Realmente, depois de pronta uma obra ganha vida, mas isso não significa que o autor seja responsável pelas releituras ou ingerências dos outros.

Claro que pode ocorrer um mea culpa, mas muitas vezes ocorre porque provavelmente o autor está fora dos limites do zeitgeist, não quer conflitos ou fez algo de forma não intencional ou possivelmente até subconsciente.

Quando Goethe publicou “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, houve uma onda de suicídios na Alemanha. Ele nunca desejou que ninguém se suicidasse. E dizer que ele era responsável porque sua obra levou o romantismo alemão às raias do extremismo é de um sensacionalismo mais do que obtuso.

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Written by David Arioch

January 21st, 2017 at 1:20 am

A ilusão do highlander

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Sempre que vejo pessoas na rua arrumando confusão, seja no trânsito ou em qualquer outro lugar, ou se colocando em situações desnecessárias de perigo, me recordo de quando eu era criança e assisti Highlander pela primeira vez. Eu realmente sonhava com a imortalidade. Afinal, quem iria contestar uma criança, tirar dela o direito de sonhar?

Claro que isso não durou muito tempo, porque a maturidade se encarregou de desfazer esse sonho, de mostrar que a finitude não existe só para os outros, mas também para mim. Porém, quando vejo pessoas arriscando a própria vida por nada, penso que provavelmente elas se veem como highlanders.

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January 20th, 2017 at 11:09 pm

A lata na avenida

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Saí para correr há pouco e, durante o percurso, do outro lado da avenida, vi um rapaz arremessando uma lata para fora do carro enquanto o semáforo abria. Havia mais três ou quatro caras com ele.

Não nego que me deu uma súbita vontade de pegar aquela lata e devolver para ele, mas sempre pondero que nunca sabemos que tipo de pessoa podemos encontrar.

Jamais entenderei o que leva alguém a fazer isso, sendo que é tão fácil descartá-la no lixo ou levá-la para casa. Suspeito que até nessas pequenas ações deploráveis há pessoas que buscam chamar atenção.

Written by David Arioch

January 20th, 2017 at 11:06 pm

A morte de Élcio Caetano

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Élcio Caetano: “Quero que todos vejam e tenham orgulho de mim” (Foto: David Arioch)

O artesão Élcio Caetano faleceu ontem durante uma cirurgia. O conheci em 2014 e fiz uma matéria contando sua história. Ele ficou paraplégico há mais de dez anos, depois de levar um tiro. Entrou em depressão quando descobriu que não poderia mais andar, mas perseverou e encontrou no artesanato uma forma de superação.

O visitei muitas vezes para saber como ele estava e também para tentar ajudá-lo com o apoio dos amigos João Henrique de Andrade e Luzimar Ciríaco Andrade. Em novembro de 2014, ele foi homenageado na Câmara Municipal de Paranavaí em sessão solene em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra.

Naquela noite, busquei ele em casa. Foi um dos momentos em que o vi mais feliz, sorrindo e empolgado com a possibilidade de ter sua trajetória elogiada por tanta gente. Durante a solenidade, Élcio discursou brevemente, e sua leveza em forma de palavras deixou claro que nem suas limitações físicas o impediam de amar a vida.

Na mesma semana, ele colocou o diploma de personalidade negra de 2014 em um ponto bem visível da parede da sala, para que todos pudessem vê-lo e entender como aquele momento foi significativo em sua vida. “Daí eu não tiro nunca mais. Quero que todos vejam e tenham orgulho de mim”, justificava sorridente.

Élcio gostava de produzir arte com materiais recicláveis e objetos que as pessoas descartavam como se fossem lixo. Também fazia pão para vender, um ofício casual que aprendeu com a mãe. Jamais ficava à toa, mantinha-se sempre ocupado.

“Naquele estado [referindo-se à depressão ao saber que não andaria mais], o ócio é perigoso porque a pessoa acaba tendo muitas ideias que não são saudáveis”, me dizia. O encontrei muitas vezes cruzando ruas e avenidas com sua motoneta adaptada. Com as mãos no guidão e o vento acariciando o rosto, ele se via menos limitado, mais livre.

No ano passado, por problemas burocráticos, ele perdeu o Benefício da Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/LOAS), e o governo ainda exigiu que Élcio devolvesse os R$ 70 mil que recebeu ao longo dos anos. Ele ficou um bom tempo sem receber o seu salário mínimo, sua principal fonte de renda.

E a depressão vencida há muito tempo, retornou quando ele reconheceu que mal tinha o que comer. Como devolveria R$ 70 mil? E mais uma vez, ele contou com o apoio de amigos e de pessoas que realmente se preocupavam com o seu bem-estar.

Quando o governo percebeu que ele era um sujeito honesto, que tinha direito de continuar com o benefício, também foi firmado um compromisso de repassar a ele todos os salários que não recebeu durante o bloqueio do LOAS. Infelizmente, ontem, poucos meses depois, Élcio Caetano faleceu durante uma cirurgia, ainda jovem, crente de que logo estaria de volta para continuar produzindo sua arte.

Saiba Mais

Élcio Caetano era morador do Conjunto Dona Josefa, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.

Written by David Arioch

January 20th, 2017 at 12:18 pm

Considerações sobre o discurso “bandido bom é bandido morto”

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Crítica em forma de imagem que tem circulado sobre o assunto na internet 

Um problema que surge quando você se manifesta contra o discurso “bandido bom é bandido morto” é que há pessoas que “entendem” que você passa a mão na cabeça de assassinos, pedófilos, estupradores e outros sujeitos que cometem os piores crimes. Quando alguém diz que é contra o “discurso bandido bom é bandido morto”, normalmente o que a pessoa quer dizer é que não se deve nivelar todos os crimes e que todos eles devem ser punidos de acordo com a prática.

Conversando tranquilamente com um sujeito que defende o discurso “bandido bom é bandido morto”, ele me disse que independente de crime todos os criminosos merecem a “vala”. Achei tal comentário visceral, ainda mais levando em conta as minhas experiências de anos em contato com pessoas que cometeram os mais diversos delitos, além de laranjas, usuários de drogas, alcoólatras e andarilhos. Inclusive conheço e escrevi histórias de jovens que abandonaram o mundo do crime.

Expliquei que sou da opinião de que a justiça não deve ser feita por ele nem por mim, mas por quem tem competência e autoridade para tal, e obviamente que respeitando a legislação vigente. Penso que se as leis são falhas, também temos culpa, porque chegamos a esse ponto por uma questão de permissividade de nossa parte.

Irritado com minha observação, o sujeito retrucou que gostaria de ver minha reação quando um bandido matasse algum de meus familiares ou invadisse minha casa. Realmente sou privilegiado por nunca ter sido vítima de assalto, mas não consigo entender como uma pessoa pode torcer pelo mal do outro simplesmente por não partilhar da mesma opinião.

Devo ser vítima de algum ato bárbaro, cruel, para ter a mesma opinião que a sua? Devemos desejar que todos aqueles que não compartilham desse discurso sejam mortos, tenham familiares violentados e assaltados, só para que, num cenário hipotético, sejam forçados a mudarem de opinião e o outro se sinta satisfeito em sua razão?

Precisamos buscar a reafirmação de nossas crenças na hostilização do outro? Como isso pode não ser propagar mais violência? Se você sente raiva de mim por não concordar com o discurso generalizado “bandido bom é bandido morto”, e me deseja algum mal, o que te incomoda não é apenas a criminalidade, mas também a contrariedade, que surge inclusive na figura de muitas pessoas honestas, que nunca cometeram nenhum crime e desejam o melhor para os outros.

Written by David Arioch

January 19th, 2017 at 1:18 am

Humanize a criança que você colocou no mundo

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Não a deixe enclausurada no universo dos bichos domésticos (Arte: Donald Zolan)

Se você colocou uma criança no mundo, a humanize por meio da cultura, da arte. Apresente o mundo da cultura popular, da literatura, do cinema, da música, do teatro e das artes plásticas. Não há maior exemplo de diversidade do que a arte.

Sensibilize vossa criança antes que ela seja embrutecida por vias desconhecidas. Desde cedo, a estimule a se tornar uma pensadora, não uma repetidora de discursos fragilizados. Mostre que ela não está sozinha no mundo, que ela pode se reconhecer no outro, assim como o outro é capaz de se ver nela.

A leve também para conhecer os menos favorecidos. Desperte nela o entendimento de que o ser humano, independente de posição social, tem sua história e seu valor para além dos descaminhos.

Sobre os animais, não a deixe enclausurada no universo dos bichos domésticos. Mostre que todo animal tem aptidão para viver à sua maneira, e não cabe a nós julgá-los sob os enganosos augúrios da nossa superioridade e racionalidade.

Deixe claro que é na inaptidão da fala que eles se mostram mais cordiais e mais sensíveis do que nós, até porque, diferentemente do ser humano, desconhecem a pesporrência.

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Written by David Arioch

January 17th, 2017 at 2:15 pm

Veganismo, exploração e conscientização

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Arte: Austen Mikulka

Não acredito que o veganismo nos isenta de tomarmos parte em todos os tipos de exploração, até porque isso ainda é impossível. A maior diferença subsiste no fato de que reconhecemos que a exploração animal existe e nos empenhamos em fazer algo para evitar contribuir com isso.

De um modo ou de outro, estamos sempre nos submetendo a um sistema exploratório. É inegável, mas a possibilidade de mudança só surge a partir do momento que o problema é combatido por um número cada vez mais crescente de pessoas. Não sou purista, nunca fui, e tenho plena consciência de minhas limitações.





Written by David Arioch

January 16th, 2017 at 1:11 pm