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Acordou
Acordou. Não conseguia ficar de pé nem se mover. “Chamem uma ambulância, a situação é grave!” Só babava e rosnava. Raiva? Cachorro? “Alguém mordeu este homem!”, advertiu o paramédico. Não, não tem nenhum animal aqui, a não ser o próprio paciente. É só ele mesmo, segundo a vizinha. Como pode ser tão pesado? Não aparentava mais de 70 quilos, mas parecia impossível levantá-lo. “Que coisa bizarra, estranha…”
“Pois é…vamos tentar de novo” Não, não! Não vai. Chame mais gente. Quatro homens – dois segurando as pernas e dois segurando os braços. Nada de colocar o sujeito na maca, pesado demais. A baba caía apurada e baça no piso de taco. Escorria e corria. Se tinha vida? Ninguém via ou sabia. Bora de novo! O homem tremia, olhos vermelhos, rajadas de fogo, estrias nervosas na esclerótica. Será que vai? Não, não vai.
“Chame mais gente! Não saio daqui enquanto não levar este homem. Missão dada é missão cumprida!” Dez tentando erguer o sujeito. Ranger de dentes, franzir de testa, carantonhas. Vai! Vai! Vai! Não….não vai! “Não é possível uma coisa dessas!” O homem não parava de babar. O chão enturvecia e logo o esputo sumia. Engasgou, engasgou, e agora? Bate nas costas. Isso, nas costas! “Como? Ninguém consegue virar esse sujeito!” Acamado, num esforço sobressaltado rolou e arroxeou. Cinco batidas.
A boca se abriu e o homem vomitou. Expelia sem parar. Minutos e mais minutos. Nada de comida ou bebida, só ódio, cólera, intemperança, jactância, pedaços cevados de ignorância. Que ar pesado, hein? Mau cheiro medonho! “Caramba! Quanta coisa!” “Tragam um balde! Não, um não, o máximo possível”, pediram. Os baldes não deram conta e alguns começaram a derreter. Chegou um carrinho de mão. A rodinha entortou e o pneu murchou. O homem arrotou, coçou a barriga e se levantou.
Yerpakut!
Um jovem chegou a Gjirodrecsande. Ao primeiro homem que o recebeu, ele apenas disse: Yerpakut! O homem deu-lhe um soco, ele se levantou e continuou andando. Ao segundo, repetiu a mesma coisa, mas em tom mais enérgico – recebeu dois socos. O terceiro não demorou. Ouviu somente “Yerpa…” e acertou-lhe uma cotovelada no peito, um soco direto no estômago e uma joelhada nas costas.
Caiu agonizando. Observou a barriga arroxeada. Sem vacilar, levantou-se. Tentando não mancar, percorreu cerca de 200 metros e acenou para uma mulher. Ela retribuiu o aceno cordial e ele balbuciou com a boca sangrando: Yerpakut…” A mulher gritou, uma multidão rodeou o rapaz e o espancou. Ele já não tinha forças para ficar em pé.
Rastejou por alguns metros, e um velho rodeado de gatos se aproximou e o abraçou. O rapaz sorriu e, dolorido, dormiu. Pela manhã, mal conseguia falar. O provecto deu-lhe uma caneta e ele escreveu:
Samo ti? [Só você?]
Da, nažalost, moj sin [Sim, infelizmente, meu filho] – respondeu o velho – meneando a cabeça constrangido.
A segurança da ignorância rejeitava e quebrantava tudo que aveludava.
Yerpakut?
Sigurno, Yerpakut! [Certamente, abrace o novo!] – disse o provecto.
Parta-me a cabeça, mas preserve a deferência
“Parta-me a cabeça, mas preserve a deferência”, esta foi a última frase de um homem em Smederevo chamado Struja, morto em 1413. Ele construiu sozinho um forte subterrâneo para abrigar uma superpopulação de cães perseguidos pelos otomanos. Quando o encontraram, havia mais de 300 animais vivendo com ele abaixo da superfície. Rodeado de cães, Struja os observou e disse:
“Finda minha jornada onde começa a vossa.” Um golpe certeiro de espada ceifou-lhe a vida, arrastando sangue morno pelas pedras. Os otomanos partiram e os cães continuaram ao redor de Struja. Dias depois, quando os otomanos retornaram, não havia mais cães nem o corpo deixado para apodrecer.
No ano seguinte, um homem com as mesmas características de Struja foi visto atravessando o Danúbio em um barco com centenas de cães. Os otomanos só localizaram a embarcação uma semana depois. Não havia ninguém: “Morro porque não morro. A vida que me habita não me pertence. E se sua força não delega o bem, às vezes a sorte vem” – escreveu em uma pedra deixada no barco.
Vidas não valem nada
Vidas não valem nada, concluí quando saí do matadouro após uma visita no mês passado. O magarefe posicionou a pistola contra a cabeça de um boi dócil e disparou. Um tiro absterso e silente. O dardo penetrou o crânio do animal e o fez deitar no chão. Barulho intenso. Tive a impressão de que algo estava explodindo. E não estava? O mundo de um animal que naquela tarde não imaginava que não veria a noite ou um novo dia. Não chorava feito criança, embora corpulento e desgracioso tremia como um recém-nascido – (in)voluntariamente, batendo de um lado para o outro dentro de uma caixa de tijolos. Morto? Sim ou não, depende de quem vê. O magarefe não viu os olhos embaciados do boi. Não, aquilo era perigoso. Limpou a pistola, sem prestar atenção no bicho e ajeitou os fones de ouvido por baixo do abafador:
Sentada em um banco de praça
A parábola de Janko
Janko viajava de vila à vila, cidade à cidade. Mesmo sem residência fixa, não carregava malas nem sacos. Afirmava que não tinha história, que o presente era o que deveria ser considerado. Dormia ao relento do alheado relento, nos alcantis ou no topo das árvores, onde poderia sentir a flama da comunidade. Chegava sempre silente. Em poucos minutos, mudava uma vida.
O olhar da chegada não era o mesmo da partida – não de Janko, dos outros. Quem usava animais, se alimentava deles ou ignorava suas necessidades abjurava tal hábito tão logo partisse. “O que aquele pobre diabo fez com você?” “O que ele disse?”, perguntavam aqueles para quem Janko era apenas intrujão.
“Sou vida ao mesmo tempo que sou morte. Me diga você enquanto estamos diante um d’outro.” Janko não falava alto nem vozeava. Trazia uma expressão desabafada da realidade; uma honestidade tão inaudita que não lhe era esforço algum exteriorizar lascas de vidas pregressas, ulteriores ou amealhadas pela derrida da vida. Vidas que poderiam ter sido suas ou não.
Olho, cheiro e dor de boi, de vaca, de galinha, de porco, de cabra e de peixe, sim é o que a gente vê e sente nele. “Unanimidade? Não. “Rábula, chicaneiro, pilantra”, glosavam. Janko não reagia – aquiescia – precisava de minutos. Mudou a cidade. Fecharam açougues, matadouros, curtumes, selarias e criadouros.
A cidade faliu? “Não, emergiu”, alguém berrou. Um antigo morador recém-chegado replicou: “Esse sujeito quebrou a cidade. O que vamos fazer com esses animais?” Cuide deles que a rarefação não toca mais esse chão, advertiu Janko. “Como? Não se cria o que não traz retorno”, “Seria a vida um escambo, um negócio?” “A terra é rica, vocês têm autossuficiência”, “Mas precisamos lucrar”, “Por que e para quê?”, questionou antes de partir.
Sem conseguir convencer ninguém a explorar os animais livres, o velho morador, o único a quem Janko não mostrou os olhos fadados, deitou uma cabra e a degolou com as quatro patas amarradas. Quando retornou para recolher o sangue do animal, levou um susto: “O que é isso? Cadê a cabra?” “A cabra sou eu, você, todos nós”, respondeu Janko com os membros amarrados antes de fenecer.
Boi marcado para morrer
A boiada desceu do caminhão, mas alguns animais sentiram um cheiro nauseoso e acidulce. Resistiram a entrar em um corredor estreito por onde ninguém retornava. Um dos campônios começou a assobiar para sopitar e docilizar os bovinos. Os bois serenaram. O primeiro da fila manteve um olhar hirto e esfíngico em direção ao paroleiro. Nenhuma palavra, nenhum sinal. Se distanciou dos companheiros e seguiu rumo à caixa enquanto os outros aguardavam a metros de distância.
Assim que Milovan levantou a marreta para golpear o boi, ele recuou. O animal abriu a boca e cuspiu um pedaço de papel. Nele, havia uma frase: “O assobio da morte é a lorpa tirania do mais forte.” O homem fitou os olhos do boi e arredou:
— Sim, sei que você vai matar a mim e aos meus companheiros. Não vou resistir — disse o boi.
— Quê? Como você tá falando?
— Isso não importa. Vou te contar a história de Djordje, o Carrasco de Negotin, um sujeito bamba. Assim como você, ele também vindimava a mando dos outros. Até que um dia, quando se aposentou depois de matar animais como eu e meus companheiros ao longo de 30 anos, Psoglav apareceu para cobrar uma dívida.
— Que dívida?
— As vidas que ele tirou. Para cada animal que ele matou, Psoglav levou um de seus descendentes. E quando não restou mais nenhum deles, ele o perdoou e disse que seus últimos anos seriam de reparação.
O Carrasco de Negotin perguntou por que punir ele e não quem o pagou:
— Todos são penalizados, no meão ou na cessação da vida. Quem te pagou deixou de existir há muito tempo, você sabe. Além disso, não comprou apenas seus serviços, mas também a supressão da sua vocação humana. Você não teria morrido de fome se não tivesse aceitado esse trabalho. Eu o conheço. Em algum nível, você aprendeu a gostar do que fazia, um tipo de acromania e, mesmo que não tivesse gostado, nada impedia-te a partida. A existência pautada na morte é estéril, baldada, mesmo para quem não a enxerga.
Djordje aquiesceu e Psoglav se desvaneceu. O boi abaixou a cabeça, toldou os olhos e aguardou a marretada. Milovan a colocou no chão e ajoelhou-se. O animal saiu da caixa e caminhou em direção à saída. O corredor alvoreceu e a boiada desapareceu.
Aos animais a liberdade
Sonhei que bilhões de animais criados para consumo no mundo todo escutavam isocronicamente um som jamais ouvido antes; um tipo de chamamento que fazia com que nada temessem, apenas reconhecessem a sua força em evidência por uma subitânea expansão da consciência.
Arrebentavam gaiolas, grades, correntes, atravessavam pastos e cidades. Se articulavam como nunca, como seres sociais que são. Fugiam de matadouros e laboratórios. Não podiam mais ser tocados, mas simplesmente observados. Aos seres humanos, incapazes de se moverem por um artifício romanesco, restava o direito e a obrigação de assistir tudo como meros espectadores.
A cada passo dos sobreviventes em direção à vida, os seres humanos eram presenteados com flashes da libitina, do decesso, da ortotanásia, da morte; não da própria morte, nem de mortes humanas, mas da finitude dos familiares daqueles animais que remanesceram. Os olhos de uma vaca que corria em celeridade, mesmo com os úberes morrudos e quase tocando o chão, projetavam titânicos hologramas de crianças mortas. Todos os seus filhos executados ao longo de anos de ordenha.
Uma galinha sem bico e com olhos cor de terra projetava o exato momento de sua debicagem, calvário que perdurou por semanas. Na cumeeira, no ponto mais alto de muitas cidades, havia projeções colossais de pintinhos sendo triturados em máquinas. Não paravam de cair, não paravam de morrer. Lembranças de um passado hodierno.
Pessoas tentavam cobrir suas cabeças, temendo que o sangue das pequenas criaturas pudesse lavar suas ignorâncias, insipiências. O obnóxio apedeutismo sufocaria. Mas o ser humano é recalcitrante. Pessoas de todas as idades persistiam; tentavam vendar os olhos, seus e dos outros. Não era mais possível abrenunciar a realidade.
Aqueles que privaram os filhos da verdade também amargaram consequências; as crianças não foram poupadas. Por que seriam? Os animais corriam, e os hologramas se expandiam. A morte evidenciada visceralmente por todos os lados, sem romantismo, sem subversão conscienciosa. A verdade avançava. O céu virou um painel.
Cenas de peixes sufocados em tralhas e devolvidos (ou não) ao mar agonizavam, incapazes de sobreviver por mais do que minutos sempiternos. O fim chegaria, mas custaria. Oceanos, mares e rios cuspiam a humanidade, seus barcos, suas bargas e tralhas. Porquinhos soluçavam pendurados sobre grilhões. Era o último registro do último matadouro. Caprinos e ovinos saltavam sobre os carros; amassavam latarias e corriam.
Aos animais a liberdade, à humanidade o reconhecimento da fealdade. Mais adiante, animais telúricos desapareciam através de tocos de árvores transformados em troncos que se alargavam e funcionavam como portais. Nas águas, os não humanos atravessavam crateras, furnas e lapas quiméricas que repeliam os indesejados. Do outro lado, na terra, na água ou no céu, não havia humanidade, somente reciprocidade semeada pela vontade.
O Velho Barbanço, os animais e os gaiatos
Uma vez por semana alguns pequenos gaiatos invadiam a propriedade do Velho Barbanço e davam estilingadas no porco, no boi, na vaca, na cabra, na ovelha, em dois cordeiros e uma galinha que circulavam livremente. A visão do velho não era atilada, mas a sua audição sim. Crentes de que jamais aquele homem de idade avançada os surpreenderia, os petizes aproveitavam – gargalhavam, penduravam sobre a mangueira e até mesmo estercavam perto do comedouro dos animais.
Remansado, o Velho Barbanço apenas aguardou, na sua característica odara. As horas não diziam nada, porque os tarecos nunca invadiam o local no mesmo horário. Então o velho descobriu uma forma de surpreendê-los. Instalou um fio sob a terra que começava na porteira e percorria a mangueira frontal. Se alguém se aproximasse, um sino era acionado na sala, e quem estava fora nada ouvia.
Um dia, os moleques pularam mangueira adentro e observaram o entorno, asseverando-se de que não havia ninguém por perto. Com a confirmação, prepararam as primeiras estilingadas.
— Estilingue poderia ser uma coisa boa se não a usassem para o mal — disse uma voz roufenha sobre eles.
Espaventados, os quatro gaiatos observaram o Velho Barbanço sentado sobre um dos galhos mais massudos de uma sibipiruna acima deles. Não imaginaram que um dia seriam flagrados. Apesar da idade avançada, o velho saltou da árvore e seus pés tocaram o chão com a lenidade de uma lebre.
— Por que vocês incomodam esses pobres animais? Por que feri-los? Por que tirar-lhes a paz, que é uma das poucas coisas que buscam em suas vidas? Eles vivem bem menos do que nós, e não merecem tal maldade. Agora venham.
Os tarecos hesitaram, se entreolharam, mas seguiram o velho. Barbanço mostrou os curativos que fez em cada um dos animais feridos. Um deles ainda gemia expectando convalescença.
— Eles sangram e sentem dor como eu e você. Imagine se fosse cada um de vocês no lugar deles. Agradaria?
— Não… — responderam encalistrados.
— Podem não parecer tão inteligentes ou sábios pra vocês, mas eles são sim. Sabe por que sei disso? Porque eles buscam mais a paz do que nós. Sabem o que um animal desses faz quando ninguém o machuca? Ele é condescendente, leniente. Entendem o que isso significa? Que ele não conhece o mal como nós conhecemos, não é inerente à sua natureza. Até quando fazem algo de errado, não o fazem por pura maldade, mas por alguma motivação quase sempre alheia à nossa compreensão.
— Hum…mas o senhor come eles, né? — questionou o gaiato menor.
— Na realidade, não, filho.
— Como não?
— Que sentido teria eu livrá-los da dor que vocês causam a eles e entregá-los ao açougueiro? Isso seria muito pior do que o que vocês fizeram. Não se abraça mirando carcaça.
— Ah! Isso é estranho. Nunca conheci quem não comesse carne — comentou outro.
— Pois então está conhecendo agora.
— Isso é diferente.
— É uma reação comum.
— Humm…
— Acredito que quando ferimos alguém, e não nos importamos, estamos mandando uma mensagem de que nem todas as vidas são importantes, e que podemos chegar ao extremo de escolher quem merece viver e quem merece morrer.
— Mas não é isso que já fazemos hoje? — questionou um petiz.
— Sim, e isso te agrada?
— Agora não.
Senhor Boiada
Um caminhão que levava o gado para o matadouro tombou na estrada. Nenhum dos animais se feriu gravemente. As pessoas se aglomeravam em torno dos bois tentando capturá-los e levá-los para casa. Um senhor desceu do carro armado e gritou: