Archive for the ‘Mercado’ tag
Você é um daqueles verdinhos?
Na fila do mercado, eu, uma camiseta verde do Type O Negative e uma boina. Uma senhorinha se aproximou e se posicionou atrás de mim aguardando a vez. Expliquei que ela não precisava ficar na fila porque pela idade ela tem preferência no caixa especial.
— Não, filho, eu gosto de ficar aqui. Tenho saúde e não tenho pressa.
— Que bom — respondi com o meu típico sorriso tímido.
— Filho, olhei pra você e pra sua cesta, diferente o que vi, admito. Você é um daqueles verdinhos?
— Como?
— Um daqueles verdinhos.
— Me desculpe, mas não sei, senhora. O que é um verdinho?
— Que não come carne, leite, ovo…
— É por aí. Acho que vou um pouquinho além inclusive.
— Olhe só, que honra! Um verdinho de verdade!
— É, acho que sim — comentei, entregue a um sorriso encalistrado.
— Olho esses carrinhos e cestas, só consigo pensar em uma coisa. Você sabia que antigamente não existia toda essa comilança de carne? Muita gente do meu tempo, criada em sítio, chegava a ficar até um ano sem comer carne. E vivia bem, realmente bem, com muita energia, lavourando.
— Isso é bom.
— Papai e mamãe deixaram a Polônia durante a guerra e eles viram tanto sangue e morte naquele lugar que quando chegaram ao Brasil falaram que iriam criar os filhos longe de qualquer tipo de morte. Dito e feito. Tenho 78 anos e não como carne desde os cinco anos quando chegamos aqui em 1944.
— Que história interessante. Se a senhora quiser me contar um dia em detalhes, posso transformar em alguma coisa.
— Quem sabe — ela respondeu sorrindo.
— Seria muito legal — comentei.
— Olhe, o conteúdo da minha cestinha é parecido com o da sua. Estamos apenas em um espectro diferente de gerações, pelo menos nesta vida — disse sem desvanecer o sorriso.
— Não duvido — comentei sorrindo.
— É, sempre enxergo um verdinho de longe.
— Por causa da minha camiseta? — questionei com um sorriso enviesado.
— Não — respondeu rindo.
— Hum…
— Meu pai dizia que os nossos melhores hábitos são sempre translúcidos diante dos nossos olhos e dos olhos dos outros quando existe boa vontade. Claro, desde que nós e os outros queiramos enxergar — explicou a senhora antes da despedida.
No estacionamento do mercado
“Ô irmão, vi que você é forte, será que pode me tirar uma dúvida?”
No mercado, um funcionário se aproximou.
— Ô irmão, vi que você é forte, será que você pode me tirar uma dúvida?
— Posso sim. Pode perguntar.
— Então, é que estou fazendo musculação e queria umas dicas.
— Dicas de que exatamente? Musculação ou alimentação?
— Os dois.
— Você já segue alguma dieta?
— Sim.
— Treina há quanto tempo?
— Tem pouco mais de três meses.
— Você procura dica de suplementação para ganho de massa muscular?
— É…
— Imaginei. Vou ser honesto contigo. A princípio, não vejo necessidade de suplementação, até porque você já está seguindo uma dieta. Mas se você estiver com dificuldade para consumir a quantidade de proteínas que seu organismo demanda, uma boa pode ser a inclusão de algum suplemento proteico.
— E o que você me indica?
— Cara, vou ser sincero. Sou vegano, então naturalmente não vou te indicar nada de proteína animal. Minha sugestão é proteína isolada de soja, de arroz, de ervilha, que é o que eu consumo. Mas suplementos devem ser consumidos de acordo com as suas necessidades individuais. A isolada de soja tem um bom custo/benefício, é só você comparar com o preço das proteínas de origem animal. E não é difícil encontrar proteína vegetal não transgênica, apesar do que muita gente diz. Proteínas vegetais também fornecem boa quantidade de aminoácidos essenciais, são de fácil digestão, muitas não contêm aditivos químicos, o que significa que costumam ser mais “naturais”, e dependendo do tipo há a vantagem de serem hipoalergênicas.
— Muito bom saber disso. Não conhecia essas proteínas, só ouvia falar de whey. E vou ver melhor esse negócio de veganismo.
— Pois é. Existe muita publicidade sobre whey protein. Mas há opções vegetais que não deixam a desejar em nenhum aspecto.
— Legal mesmo. Obrigado!
“Nossa, o seu carrinho é o mais lindo que já vi! Quanto verde, quanta cor”
Depois de levar meu irmão para fazer uma prova em Maringá, passei em um mercado para comprar algumas coisas. No caixa, a atendente fez uma observação:
— Nossa, o seu carrinho é o mais lindo que já vi! Quanto verde, quanta cor, e não tem quase coisas industrializadas. O que mais se vê por aqui são carrinhos cheios de carne, coisas prontas, enlatados e muita bobagens, essas coisas.
Fiquei lisonjeado, mas admito que essa observação me fez pensar depois: “Estamos imersos em uma cultura onde um ‘carrinho colorido’ chama a atenção porque não faz parte da realidade comum.”
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A senhorinha da fila
A maioria das pessoas se irrita com filas. Acho que sou estranho, pois não reclamo, quero dizer, não quando tenho algum tempo livre. Na última vez, fiquei cerca de 40 minutos na fila do caixa rápido. Irônico, não? Três pessoas sorriram pra mim na fila, o que significa que notaram muito bem minha presença. Quem sabe, até mais do que eu gostaria no meu anseio de parecer invisível, um voyeur. Brincadeira. Ou talvez não.
Na fila do caixa rápido, que atravessava o setor de hortifruti e de frios, notei um carrinho à minha frente, mas ninguém o estava guiando.
— A senhora sabe de quem é esse carrinho? — perguntei a uma moça acompanhada da filha que sorria timidamente.
— Não! Não sei. Quero dizer, de uma senhora aí, mas eu que não vou empurrar.
Empurrei o carrinho mais à frente, para acompanhar a fila, e uma senhora se aproximou:
— Obrigada! Fui pegar uma coisinha ali – justificou com um sorriso largo.
— Tudo bem – respondi.
Atrás de mim, três homens conversavam. Um deles parecia o Casagrande, tanto no aspecto físico quanto no tom de voz grave e ansioso, que não permitia folga nem para recuperar o fôlego. Falavam de lanches, violência, desenvolvimento urbano, pedágio, estradas, entre outras coisas.
— Londrina está cheia de mafiosos. Você não é mafioso, né? Sou doido de perguntar isso, porque se for, tu não vai deixar eu chegar nem na porta do meu carro depois dessa.
Os outros dois riram.
A senhorinha abandonou o carrinho outra vez. A moça e sua filha olharam pra mim, talvez aguardando alguma reação enérgica de minha parte.
Continuei no mesmo lugar, assistindo um rapaz alto e extremamente magro analisando uma bandeja de morangos. Ele nem piscava; deslizou os dedos pelo invólucro, e mudou a bandeja de posição inúmeras vezes. Talvez procurando algum resquício de podridão entre as frutas.
Um garotinho acompanhando o pai na fila pediu chocolate, e o pai respondeu que não, que ele já havia comido ontem, e o trato é um chocolate por semana.
À minha frente, a mesma moça de antes oferecia um desses bolinhos recheados e industrializados para a filha. E a menina se mostrava desinteressada.
— Vou pegar um doce bem gostoso pra você.
— Não ligo, mãe.
— Ah, você vai adorar.
E assim nasce uma criança condicionada a gostar de doces industrializados.
Um pouco mais à frente, um homem muito parecido com o Eduardo Cunha atraía olhares curiosos. Mas ninguém dizia nada.
— Eu que não queria estar na pele desse senhor.
Alguém comentou que Paranavaí é um buraco. Outro rebateu:
— Se é um buraco, então você pulou dentro, porque você também mora nele.
Levei cotoveladas de pessoas que andavam como se estivessem pogando em uma roda punk. Nem percebiam que me atingiam. “Sem problema!” Deve ser pressa ou o costume da pressa. Ela toma conta das pessoas até quando não estão fazendo nada. Vez ou outra, eu saía da fila para que alguém atravessasse até o outro lado. Uma senhora agradeceu, os outros não. “Tudo bem!” Cerca de 20 minutos depois, o rapaz continuava observando os morangos. O vi movendo os lábios.
— Acho que esse cara fala com os morangos. O que será que o morango disse pra ele? — me perguntei.
A senhorinha continuava abandonando o carrinho e enchendo uma cestinha sobre ele. Kiwi, batata, abacate, manga, limão, cenoura, berinjela, caqui. Foi tudo que vi ela indo e voltando para colocar no carrinho desde que entrei na fila. Alguns a reprovavam. Eu não me importava. Nem o cara logo atrás, distraído conversando com seus amigos.
A moça e a filha seguiam incomodadas com a mulher. A menina olhava para mim de tempo em tempo, como se ainda aguardasse uma reação minha ou dissesse com os olhos:
— Po, você não vai fazer nada mesmo? Nem falar nada?
— Não, não vou – eu não disse.
A fila crescia, crescia, sem parar. Já estava com o dobro do tamanho.
Perto da minha vez no caixa, a senhorinha chamou-me a atenção:
— Filho, esqueci mais uma coisinha, você pode cuidar aqui pra mim?
— Posso sim. Tudo bem.
Logo despareceu entre as bancas.
— Cara, como você tem paciência. Como você aguenta tudo isso? — questionou a moça.
Apenas dei um sorriso enviesado.
A senhorinha passou pelo caixa e ficou parada em uma das entradas do mercado. Assim que paguei e caminhei em direção à saída, ela chamou-me a atenção:
— Olhe, filho. Isso aqui é pra você. Muito obrigada mesmo – disse sorrindo e me entregando uma caixinha de figos orgânicos e selecionados.
— Que isso! Poderia ser eu no lugar da senhora. Não é necessário.
— Eu insisto, por favor.
— Tudo bem. Muito obrigado pela gentileza – respondi timidamente.
A observei caminhando em direção ao carro, onde havia um jovem casal em roupas bem surradas. A moça carregava um bebê.
— Deus abençoe a senhora.
— A senhora é uma boa pessoa.
— Imagina…
— Querem uma carona?
— Não. A gente vai pegar o ônibus aqui na frente. A gente conseguiu o dinheiro da passagem com um moço antes de falar com a senhora.
— Então tá bom. Fiquem em paz.
— A senhora também.
Ela entrou no carro carregando apenas uma sacola. As outras foram entregues ao homem que caminhou até a parada de ônibus com a companheira e o bebê.
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O policial e a criança
No mercado, vi uma cena que me chamou a atenção enquanto eu estava na fila do caixa rápido. Um policial militar escolhia alguns pães quando um garotinho, acompanhado do pai e da mãe começou a sorrir efusivamente. Consegui ver seus olhos cintilando mesmo eu não estando tão perto.
A mãe e o pai cumprimentaram o policial e falaram que a criança sempre teve grande admiração por policiais. Dava para ver no rosto do garotinho que a figura do policial para ele é a de um herói. Acanhado, mas lisonjeado, o rapaz fardado balançou a cabeça e disse poucas palavras. Nem precisaria dizer nada. A expressão compenetrada e sisuda de antes desapareceu com a chegada do menino.
O sorriso da criança o desarmou. E ele também começou a sorrir sem parar, olhando para a criança e vez ou outra mirando os pais com seus olhos encalistrados. O menininho pediu para dar um abraço no policial e ele concordou. Agachou e envolveu a criança nos braços por alguns segundos.
Mesmo depois que o casal e o filho partiram, o policial continuou sorridente, passou por mim sem conseguir velar o sorriso. Continuava tímido, translúcido, feliz e provavelmente agradecido por um presente inesperado que o impediu de retomar a expressão circunspecta.
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“Mããããe, olha que lindo aquele boi!”
No açougue do mercado, uma criança ficou eufórica ao ver um quadro de um boi sorrindo.
— Mããããe, olha que lindo aquele boi!
— É sim, querida.
A criança coçou a cabeça, olhou para os lados e estranhou o fato de que ninguém mais estava admirando o mesmo quadro que ela. Praticamente invisível.
— Por que será que ele parece tão feliz?
— Não sei, filhinha.
— Já sei, mãe!
— O quê, filha?
— É porque ainda não mataram ele, né?
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Na banca de caqui
Saí da academia e passei no mercado. Enquanto eu selecionava caqui em uma banca de canto, uma mulher se aproximou e fez o mesmo. De repente, o marido ou namorado dela se achegou.
— Vá lá ver se tem salsinha, cebolinha, essas coisas. Deixe que escolho as frutas.
— Mas você nunca escolhe as frutas.
— Vá lá, deixe que me viro aqui.
— Tá bom!
— Camarada, essa fruta que você pegou está passada – comentei.
— Ah, cara! Não preciso da sua ajuda.
— Ah sim. Tudo bem.
Me afastei e caminhei em direção ao caixa.
“Não, Peru. Você não pode ficar aqui”
Um cachorro entrou no mercado. Circulou por várias seções até encontrar um velhinho e uma velhinha. Enquanto alguns riam e outros achavam aquilo um absurdo, o senhor baixinho apontou o dedo para o cãozinho e disse:
— Não, Peru. Você não pode ficar aqui. Quem sabe, no futuro, quando toda a gente deixar de ser preconceituosa. Eles não sabem como você é limpinho e educado. Mas não há como explicar isso, não é mesmo? Quem vai dar razão pra gente? Ninguém ou quase ninguém. Logo nos encontramos lá fora, tudo bem? Não vamos demorar.
Depois de ouvir as palavras do velhinho, Peru balançou o rabinho, se afastou e saiu por onde entrou.
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Por que você fez isso?
No mercado, enquanto eu lia cuidadosamente o rótulo de um produto, notei uma mulher bem perto de mim. Muito perto mesmo, tanto que por pouco não senti a respiração dela junto do meu pescoço. Então me afastei um pouco e continuei lendo. Ela se aproximou mais uma vez. Achei melhor caminhar até o outro corredor. Impossível. Levei um beliscão na bunda.
— Que isso? O que foi isso?
— Conheço essa barba, esse bumbum, esse corpão, de longe.
— Como é? Quem é você?
— Ah, vai fingir agora, é? Vai ficar de brincadeirinha?
— Nem te conheço, moça. Por que você fez isso?
— Ah, para, né? No ano passado você gostou.
— Nunca te vi, como tu diz uma coisa dessas?
— Ah, nem vem. Aquela vez você gostou e muito.
— Moça, creio que você está me confundindo com alguém.
— Não estou não…
— Tem certeza? Então diga qual é o meu nome.
— Ah, para, né, Yusuf?
— Yusuf? Quem é Yusuf aqui? Meu nome é David.
— Vai mentir o nome agora?
Tirei a minha CNH da carteira e mostrei meu nome. Pensei: “Agora tudo se resolve!“
— Então por que no ano passado você disse que seu nome era Yusuf?
— Quê? Eu nunca disse isso. Nunca disse porque realmente nunca a vi.
— Olha, cara, sei que faz tempo, que depois a gente não se viu mais, mas vamos parar de sacanagem.
— Como assim? Você beliscou a minha bunda e eu que estou de sacanagem?
De repente, uma amiga dela se aproximou.
— Berta, olha quem eu encontrei aqui. É o Yusuf, lembra dele?
— Paula, esse não é o Yusuf. O Yusuf está morando em Ankara, na Turquia.
— Tá de brincadeira comigo?
— Claro que não.
— Sério mesmo?
— Claro que sim.
— Desde quando?
— Desde o ano passado.
— Hummm…
— Olha, moço, nem sei o que dizer, só sentir. Mil perdões pela confusão…
— Moço, desculpe a minha amiga. Ela não é muito boa com fisionomias.
— Tudo bem…
— Mas toma cuidado, viu? Tem mais gente que pode te confundir com o Yusuf.
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