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Calado, o homem que rejeitou a sociedade
Diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado
Calado não é um personagem comum ou conhecido da população de Paranavaí e do Noroeste do Paraná. Na realidade, ouso dizer até que é anônimo. A primeira vez que ouvi falar sobre ele foi no Cemitério Municipal de Alto Paraná, em uma conversa entre meus familiares e outras pessoas já falecidas que chegaram a esta região nas décadas de 1930 e 1940. À época, eu tinha entre 11 e 12 anos e fiquei fascinado, embasbacado com o relato sobre aquela figura quimérica que logo invadiria meus sonhos. Acordado, eu divagava e escrevia, baseando-me no que foi ou poderia ser tal sujeito de características singulares.
A história diz que Calado ou Saru, chamado Maurício, chegou ao Noroeste do Paraná no final do século 19, após ser acusado de se aliar aos maragatos em Paranaguá, durante a Revolução Federalista em 1894. Há quem diga que ele era parente de Gumercindo Saraiva, um dos comandantes das tropas rebeldes que lutavam pela deposição do presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. Mesmo com a morte de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul, em 6 de agosto de 1894, injustamente executado como traidor da pátria, os chimangos (republicanos) intensificaram a perseguição aos que teriam contribuído com os maragatos, independente da consistência das provas.
Com 19 anos, na tarde de 13 de setembro, Maurício estava em casa ajudando o seu pai a recolher as tábuas de um velho rancho que tinham desmontado pela manhã. Antes que pudesse terminar o trabalho, quatro homens invadiram a chácara da família procurando pelo rapaz. Assim que Maurício se apresentou, dois soldados o seguraram pelos braços, o acusando de conspiração contra a república. Vasculharam o quarto do jovem e encontraram uma pequena caixa de madeira dentro de um armário. No interior, havia um lenço vermelho, que caracterizava a vestimenta dos maragatos, e o rascunho de uma carta que supostamente foi entregue em julho de 1894 a Gumercindo Saraiva, líder do movimento.
Nela, o autor dava detalhes sobre a localização de uma fazenda que poderia servir de abrigo para os insurgentes sob comando do almirante Custódio de Mello. As informações selaram o destino de Maurício que tentou explicar que a caixa não pertencia a ele. Desesperados, seus pais choraram e imploraram para que o filho não fosse levado. De nada adiantou. O rapaz foi transportado até uma casa velha e abandonada a quilômetros de distância, onde o obrigaram a entrar em um porão extremamente sujo.
O lugar era úmido, escuro e havia um odor nauseante de ferrugem. Sem enxergar nada, Maurício quase escorregou em uma poça. Quando um dos soldados acendeu a lamparina, o rapaz viu que havia bastante sangue sob seus pés; uma parte ressequida e outra ainda fresca, indicando que não fazia muito tempo que alguém entrou ou saiu gravemente ferido daquele lugar. O oficial que comandava a operação, identificado apenas como Justo, disse com voz plácida e pausada para Maurício assumir a autoria da carta, justificando que assim eles não precisariam machucá-lo.
O rapaz rejeitou a oferta. Por cerca de um minuto, o oficial observou seus olhos sem transmitir qualquer tipo de emoção. Caminhou até uma cadeira recostada num canto bem iluminado e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um cachimbo com um tubo de bambu e um fornilho de barro. Lá mesmo, o sujeito começou a fumar ópio, alheio ao que aconteceria nos próximos minutos.
Enquanto isso, Maurício, mantido nas pontas dos pés com os braços suspensos por uma corda, levava socos e chutes de dois chimangos, mas não o suficiente para feri-lo gravemente. Ainda assim, sentindo severas dores em várias partes arroxeadas do corpo, ele lacrimejava em silêncio e ocasionalmente gritava que era inocente. Quando Justo parou de fumar, e acenou com uma das mãos cobertas pela fuligem de uma lamparina pendurada a centímetros de distância, os soldados se afastaram e saíram do porão.
“Você já ouviu falar no ‘braço de folie?’ É uma técnica muito interessante que um mercenário, um apátrida francês, descobriu na Ásia para conseguir respostas honestas de pessoas que não gostam muito de falar a verdade. É bem eficaz, tanto que até hoje nunca deixei de alcançar meu objetivo. Ah! E é exatamente pela boa aplicação dela que me chamam de Justo”, declarou com voz grave e sorriso tétrico.
Desinteressado em fazer mistério, o oficial caminhou até outro canto do porão, retirou algumas flores amarelas de um saco e começou a macerá-las vagarosamente com um pilão, combinando com outros dois ou três ingredientes desconhecidos. “Meu rapaz, veja que dádiva de flor! Se chama ranunculus e pode ser tão bela aos olhos quanto deletéria ao corpo. Há de concordar comigo em breve”, comentou.
Justo avaliou a viscosidade da pasta, caminhou até Maurício, deu alguns tapinhas em suas costas e esfregou nas axilas do rapaz a mistura que tinha a consistência de um unguento. Em segundos, sentiu a pele esquentando. Um minuto depois, todos os pelos da área afetada caíram e suas axilas queimaram como se alguém as tocasse com um ferrete. “Enquanto sentia a pele em carne viva e se balançava, na tentativa de resfriar as queimaduras, ele continuava afirmando que era inocente. Disse à minha avó que a princípio o cheiro da mistura ajudava a amenizar a dor insuportável”, conta Arminda Gervasi, sobrinha-neta de Maurício.
Justo também esfregou um pouco do “braço de folie” nas costas do rapaz que não suportou as dores e acabou desmaiando. A sensação era terrível, dando a impressão de que seus músculos dorsais foram dilacerados. Horas mais tarde, Maurício estava deitado em uma cama dentro de um barracão de estocagem de erva-mate. Acordou e não entendeu o que aconteceu. No seu corpo não havia sinais de queimadura, apenas da violência física cometida pelos dois soldados. Quando ouviu o som da buzina de um navio, percebeu que estavam nas imediações do porto.
O seu algoz continuava ao seu lado, observando sua reação. Supostamente o rapaz seria levado em um navio da Marinha para ser julgado no Rio de Janeiro. Porém, o oficial da escolta mudou de ideia ao ter certeza que Maurício não mentiu. “A verdade é que não vamos levá-lo a lugar nenhum. A ordem que recebi é para matá-lo e abandonar o seu cadáver num buraco qualquer. Só que minha experiência me convenceu de que você é inocente. Como não posso admitir falhas, deixarei você viver sob duas condições: suma deste lugar e nunca mais procure seus pais. Se eu souber que não acatou minha ordem, voltarei e matarei toda a sua família. Agora vá! Desapareça da minha frente!”, ordenou o homem.
Confuso, assustado e tremendo, o rapaz saiu porta afora e correu mancando por mais de dois quilômetros até encontrar uma floresta onde se escondeu entre os arbustos. Sujo, faminto e ofegante, Maurício observou ao longe seus pais cabisbaixos na entrada de casa. Contrariando o oficial da escolta, caminhou furtivamente até eles e relatou tudo que aconteceu desde que foi levado de casa.
“Não posso ficar. Fiz um acordo com aquele homem e ele prometeu que viria atrás de mim e de toda nossa família se eu não cumprisse sua ordem. Vim só pra me despedir e avisar que entrarei em contato em no máximo um ano”, prometeu. Abraçados com o filho, os pais choraram novamente e pediram que ele passasse pelo menos mais uma noite em casa antes de partir. Temendo o pior, Maurício recusou. Aceitou só os curativos, a mala preparada pela mãe e um saco com alimentos, principalmente pães e frutas. Também se despediu da irmã Sophia que à época tinha dez anos.
Enquanto caminhava a passos rápidos, o jovem manteve o olhar em direção aos pais. A mãe, Maria, uma costureira baixinha e de mãos aveludadas, estava com o rosto rubro e os olhos túrgidos de tanto lacrimejar. O pai, Nestor, um magro sapateiro de estatura mediana que se dedicava tanto ao trabalho que trazia no rosto duas pequenas manchas indeléveis de graxa, acenava com uma das mãos enquanto usava a outra para acariciar o ombro da esposa, na tentativa de confortá-la. Prestes a desaparecer através do nevoeiro, Maurício ouviu o eco da voz de sua mãe gritando que o amava, lembrança que o acompanharia por toda a vida.
Assim que deixou Paranaguá, o rapaz encontrou um grupo de tropeiros e os acompanhou até chegar a Sorocaba, em São Paulo. De lá, partiu a pé e sozinho para Tatuí e Avaré, também no interior paulista. “Trabalhava só pra sobreviver. Seu objetivo era ficar longe e ao mesmo tempo sentir-se perto dos pais. Não parava em lugar algum porque seu sonho era voltar ao Paraná, de uma forma que não comprometesse sua família”, enfatiza Arminda, neta de Sophia.
Maurício chegou no início de 1896 à Fazenda da Prata, da Família Alcântara, onde mais tarde surgiria a cidade de Jacarezinho, no Norte Pioneiro do Paraná. Lá, se ofereceu para trabalhar na derrubada de mata. Na incursão pela floresta, ficou impressionado com as belezas da flora e da fauna. Era a primeira vez que sentia-se bem desde que saiu de casa.
Sempre que perguntavam seu nome e origem, ele mentia, preocupado com a possibilidade de ser perseguido pelos republicanos. Evitava falar do passado e não gostava de conversar mais do que o necessário. Às vezes, dormindo na colônia da fazenda ou em algum acampamento perto da mata, onde passava meses trabalhando, acordava sobressaltado, suando frio e soluçando. “Nunca mais foi o mesmo. Tinha fortes dores de cabeça e de estômago, delírios ocasionais e um medo constante de morrer, agravado por uma ansiedade sem fim. Sonhava com a família todos os dias, só que decidiu nunca mais procurar ninguém por receio de represália”, revela a sobrinha-neta.
Avesso à violência, quando presenciava brigas entre peões, Maurício virava as costas e se afastava com o corpo trêmulo. O som de cada soco ou chute trazia nefastas recordações das sessões de tortura em Paranaguá. A agonia e o estado de desespero só eram amenizados com a leitura de um livro que o acompanhava desde os 15 anos – “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis, que ganhou dos pais no Natal de 1890.
“Antes de falecer em decorrência de um câncer de tireoide, minha avó ainda falava com os olhos cheios de lágrimas das muitas vezes que seu irmão sentou perto da cabeceira para ler uma das histórias desse livro antes dela dormir”, confidencia Arminda emocionada. Maurício tinha predileção pelos contos “A Teoria do Medalhão”, A Sereníssima República”, “O Alienista” e “O Espelho”, decorando-os integralmente antes de completar 16 anos.
Respeitado pelo patrão, e tratado com desprezo e indiferença por gatos (fiscais) e colegas de trabalho – homens brutos do sertão, o rapaz teve a paz abalada numa noite amena de outono. Cochilando com as costas escoradas numa árvore, deu um grito alarmado quando um sujeito embriagado o segurou pelo colarinho da camisa, o questionando sobre o paradeiro de uma quantia em dinheiro guardada embaixo de um toco. “Por favor, me deixe em paz. Eu não sei de nada. Me solta! Me solta!”, pediu Maurício, de acordo com Arminda Gervasi.
Ignorando a negativa, o homem desferiu um soco no rosto e outro no estômago do rapaz que de tão espaventado teve uma repentina crise de diarreia. Entre goles de cachaça e muita gritaria, os peões já bêbados apontavam os dedos para Maurício e gargalhavam, numa zombaria sem limites. Sem dizer palavra, ele se levantou, caminhou até a barraca onde guardava seus pertences, juntou as próprias roupas em um saco e desapareceu mata adentro, sob o olhar displicente do fiscal que entornava uma garrafa de aguardente. Aquelas pessoas nunca mais o veriam.
Sem se importar com o que poderia lhe acontecer, o jovem se distanciou cada vez mais da sociedade e da civilização, entregando a própria vida aos acasos do desconhecido. “Ele já não queria mais viver junto de outras pessoas. O que aconteceu naquela noite foi o estopim”, garante a sobrinha-neta.
No dia 27 de março de 1896, Maurício entrou na floresta para não mais retornar. Sem medo do próprio fim, começou uma jornada despretensiosa de descobertas e autoconhecimento. Durante o dia, atravessava quilômetros de mata fechada e quando anoitecia se abrigava sobre as árvores. Com o tempo, aprendeu a escalar as mais altas e robustas, que lhe permitiam uma visão privilegiada das cercanias.
Apesar das dificuldades, seu organismo então fragilizado aprendeu a se adaptar a uma alimentação baseada em frutos e vegetais. Algumas vezes, após ingerir algo completamente desconhecido, passou tão mal que pensou que fosse morrer. “Ele era muito mais forte do que imaginava. Em poucos dias, já se sentia saudável. Talvez fosse um sinal, um chamado da natureza, de que nasceu para aquela vida. Acho que outras pessoas não sobreviveriam”, avalia Arminda.
Com o tempo, o rapaz abandonou roupas e pertences, menos um relógio de bolso que prendeu no braço – presente dos pais. Sem rumo, atravessou centenas de quilômetros de mata nativa. Só interrompeu o percurso por volta de 1898, quando encontrou uma onça-pintada caída, quase morta, com o sangue escorrendo sobre pedras musgadas às margens de um riacho.
Ainda acordada, observou Maurício a arrastando alguns metros mata adentro. Ele a deitou sobre a relva e estancou com folhas e raízes um grande ferimento na barriga do animal. Cuidou da onça por dez dias e, apesar de parecer assustada e confusa, ela não o encarou como ameaça, sequer mostrou os dentes ou apontou as garras.
Para Maurício, já não era algo surpreendente. A floresta tornou-se um lar e, de algum modo, seus velhos habitantes o aceitavam. Nem mesmo os índios de etnias caingangue e caiuá que encontrou pelo caminho o tratavam como invasor. Muito pelo contrário. Até o convidavam a participar de algumas celebrações, e foi numa dessas ocasiões que o batizaram como Saru, palavra tupi-guarani que significa Calado em português.
Meses depois, o rapaz reencontrou a onça de quem salvou a vida. Empoleirada numa árvore, ela saltou quando o viu. Se aproximou, observando os olhos de Saru, e deixou que ele deslizasse rapidamente as mãos pelo seu dorso. Cabeludo, barbudo, de estatura mediana e magro, o jovem ostracista de pele oliva aprendeu a ser mais silencioso do que os mais leves e menores animais que atravessavam a mata nativa. Vivendo sozinho, só interagia com quem se aproximava dele, o que talvez justifique porque sobreviveu tanto tempo na floresta. “Ele chegou a ser picado por cobras. A sua salvação foi o tratamento dos índios caiuá”, informa Arminda.
Em 1898, Calado já vivia em uma área onde surgiria a cidade de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Numa manhã, cansado de viajar sem rumo e de dormir ao relento, começou a construir uma casa no topo de uma gameleira. Dias depois, levou um susto numa madrugada quando notou que havia um animal pressionando as patas contra a lateral da casinha. Cuidadoso, se aproximou e viu que era a onça que o visitou em outra ocasião.
Segundo relato de Arminda, Saru saltou da árvore e seguiu o animal até uma área dominada por cedros, ipês e aroeiras, onde árvores menores ofereciam muitos frutos desconhecidos. A onça a quem Calado deu o nome de Sophia, em homenagem à irmã, conviveu com ele por mais de 15 anos. Por volta de 1914, um pequeno grupo de invasores que chegou à região, provavelmente vindo do estado de São Paulo, para avaliar a qualidade do solo, matou Sophia e Toriba, um de seus filhos, a tiros. Os dois brincavam às margens de um riacho.
Assim que ouviu um estampido, Calado atravessou até o local do ataque e observou os quatro homens armados se aproximando de seus amigos mortos. Um deles sorriu, cutucou a onça com a bota e comemorou: “Nunca imaginei que seria tão fácil matar um bicho selvagem no seu próprio habitat.” Saru guardou para si a fúria que o dominou naquele momento e esperou anoitecer.
Quando os quatro montaram acampamento e se reuniram em torno de uma fogueira, ele assistiu um dos homens ir até uma mina buscar água. Assim que o sujeito retornou, Calado atirou castanhas em várias direções. Também imitou rugidos de onça e escalou a árvore mais próxima. Preocupados, recolheram suas armas e tentaram localizar a origem do barulho, se afastando do acampamento. Silencioso, Calado saltou perto da fogueira, abriu cada cantil e dentro despejou “sono de abaité”, um veneno de origem indígena baseado em batracotoxina, uma secreção extraída das costas de rãs e besouros.
Pela manhã, ao retornar ao acampamento, os quatro invasores tinham tomado a água do cantil e estavam mortos. Semanas depois, outros homens chegaram ao local procurando os desaparecidos. No entanto, concluíram que as mortes foram uma consequência natural da falta de atenção dos desbravadores que talvez tivessem comido frutos venenosos.
Ainda abalado com a morte de Sophia e Toriba, Saru enterrou os dois no ponto mais elevado da floresta, onde frequentemente os animais menores passavam o dia brincando. A cerimônia atraiu a atenção dos outros descendentes da onça-pintada. Ele também notou a presença de antas, pacas, quatis, veados, tatus, jaguatiricas, lobos-guará, gatos-do-mato, bugios e aves. Coincidentemente ou não, parecia uma reunião.
Embora tenha vivido mais alguns anos sem contato com seres humanos, Calado sabia que isso não duraria para sempre. Cerca de dez anos depois, ouviu barulhos cada vez mais frequentes de pessoas abrindo picadões. “Pra ele, o mais importante era que ninguém interferisse na vida selvagem, não matasse os animais. A floresta ainda era grande e ele reconhecia que era possível viver longe da civilização, mesmo com a chegada dos desbravadores”, assinala Arminda.
Desde a morte de Sophia e Toriba, Saru se colocou na posição de guardião da mata nativa de uma grande área onde surgiriam as cidades de Paranavaí e Alto Paraná. Os remanescentes dos índios caiuá nada poderiam fazer a respeito, já que a maioria vivia a mais de 100 quilômetros de distância, próximos do Rio Paraná e do Rio Paranapanema. Beirando os 50 anos, Calado pouco sofreu com a ação do tempo. Facilmente poderia ser confundido com um homem de pouco mais de 30 anos.
Corria pela floresta com extrema agilidade e se exercitava todos os dias sobre as árvores – tanto que ao longe era facilmente confundido com um animal. Vivia como alguém que nasceu e cresceu em território selvagem. Em contraponto, acreditava que quando uma vida era ceifada por motivo banal cabia a ele fazer justiça. E foi assim que Calado puniu entre as décadas de 1920 e 1950 muitos caçadores que invadiram a mata noroestina com a intenção de matar onças por diversão ou para extrair o couro que seria vendido a algum curtume. “Ele tinha o hábito de se abrigar dentro de tocos de árvores, de onde ele observava a movimentação dos invasores”, assegura a sobrinha-neta.
Quando uma jovem onça-pintada foi morta às margens de um córrego no início da década de 1930, onde surgiria o Jardim Ouro Branco, em Paranavaí, Calado extraiu-lhe as garras e as fixou em um tipo grosso de luva confeccionada à mão. Antes de usá-la, as deixou por uma noite embebidas no “sono de abaité”. De manhã, Saru se ajoelhou no chão, e diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado. De longe, reconhecia a intenção dos homens, se eram inimigos ou não.
Ele justificaria mais tarde que os caçadores traziam uma energia pesada e sufocante que ameaçava o equilíbrio da vida e a vitalidade soberana da floresta. “Meu tio-avô matou mais de 20 caçadores. Os corpos eram abandonados nos carreadores para que a família tivesse direito de enterrar o falecido. Ninguém nunca desconfiou que aquelas mortes pudessem ser causadas por um homem. Achavam que era coisa de onça mesmo”, narra Arminda Gervasi.
Guardião da floresta, Calado encarava como um ritual de justiça os matadores de onças sentirem a própria carne sendo penetrada pelas garras dos felinos que mataram. Entretanto, ao contrário do que imaginavam na época, as mortes eram causadas pelo “sono de abaité” e não pelos golpes, mais simbólicos do que fatais. Caçadores temidos em diversas regiões do Brasil sucumbiram diante das artimanhas de Saru.
Em 1937, Sophia, irmã de Maurício, viajou à Fazenda Brasileira com o marido para comprar uma propriedade rural. Enquanto se distraía caminhando por um carreador, ela observou ao longe um homem nadando em uma lagoa de águas cristalinas. Curiosa, se afastou do marido que conversava com um corretor de imóveis e andou em direção ao desconhecido. “Quer que pegue suas roupas? Onde elas estão?”, questionou Sophia. Quando o homem que serpenteava entre os peixes virou o rosto em sua direção, ela caiu de joelhos no chão, com as mãos tapando o nariz e a boca. Sophia chorou como uma criança ao notar nos olhos expressivos daquele homem de 62 anos o olhar vívido do irmão que partiu com 19 anos.
Sem dúvida, Maurício tinha envelhecido, mas ainda parecia mais jovem que Sophia. Calado ou Saru, que abandonou a identidade de Maurício, não conseguiu articular palavra. Ficou imóvel, com as mãos trêmulas enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto já molhado. Ao ver que não havia roupas por perto, Sophia correu até o carro do marido, abriu uma mala e pegou uma calça, uma camisa e um par de sapatos. Então sugeriu que Maurício os vestisse.
Apesar da falta de hábito, ele concordou com o pedido da irmã. Saru, que então mais do que nunca justificava o nome dado pelos índios, passou uma semana com Sophia. Somente no terceiro dia começou a conversar normalmente e contou-lhe tudo que viveu desde que deixou Paranaguá em 1894. Sophia, mais chorosa do que falante, ouviu tudo atentamente. Não cobrou notícias do irmão, pois sabia que ele tinha seus próprios motivos. Maurício foi tomado por uma confusão de sentimentos ao saber que seus pais adoeceram e faleceram em 1931 em decorrência de pneumonia.
Também foi Sophia quem informou que as falsas provas de que ele contribuiu com os maragatos foram plantadas por um antigo amigo chamado Arthur. Apaixonado pela jovem Teodora que sonhava em se casar com Maurício, o rapaz decidiu afastá-lo para sempre de sua amada, mesmo sabendo que Maurício não tinha intenção alguma de ser mais do que amigo da moça, muito menos desposá-la. “Essa informação não teve grande efeito sobre ele, que já não se importava tanto com o mundo civilizado. Somente as memórias familiares o arrebataram de forma surpreendente”, esclarece Arminda.
Sophia e o marido tentaram convencer Maurício a se mudar para Curitiba, onde ela vivia há mais de 20 anos. Ele declinou a oferta, a abraçou e argumentou que nada mais o interessava no mundo dos humanos. Antes de partir, Sophia levou as duas mãos ao rosto do irmão e recitou um trecho de “O Espelho”, de Machado de Assis, um dos contos preferidos de Maurício:
“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.”
Os dois sorriram, se despediram e Maurício correu em direção à floresta, onde, antes de desaparecer completamente, cumpriu um dos seus rituais mais sagrados – se livrou das roupas, o que significava se despir da civilização. Sophia e o marido não compraram nenhuma fazenda em Paranavaí, mas retornaram mais vezes procurando em vão o paradeiro de Maurício tornado Calado.
Entre as décadas de 1960 e 1980, alguns pioneiros e moradores de Paranavaí e Alto Paraná juraram tê-lo visto caminhando pelas estradas da Fazenda Ipiranga e Água do Cedro, além de áreas de mata do Jardim Ouro Branco e Jardim São Jorge. “Uma vez, voltando de viagem, parei no Cemitério de Alto Paraná pra dormir. Tenho certeza de que o vi atravessando tranquilamente por trás das árvores. Isso foi em 1976”, confidencia o pioneiro Júlio Galhardo.
O aposentado Amâncio Bonavero também afirma que viu Calado na área rural de Paranavaí em 1993, com base na descrição que lhe passaram nas décadas anteriores. Se o sujeito correndo pelo campo realmente era Saru, isso significa que ele estava vivo e saudável aos 118 anos. “Tem gente que acredita que o Calado ainda não morreu. Eu sou um desses. Acho que não o vemos mais porque hoje, mesmo de longe, ele ainda evita contato com pessoas. Quem sabe esse seja o motivo da sua longevidade”, deduz Bonavero sorrindo.
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Alegria e sofrimento na era de ouro do rádio
Ephraim Machado: “A gente tocava tudo com motor e bateria de carro”
O pioneiro e empresário Ephraim Marques Machado chegou a Paranavaí, no Noroeste Paranaense, em 1948, pouco tempo depois que seu pai, agente fiscal do Governo do Paraná, foi enviado para instalar a Coletoria Estadual. Admite que no primeiro momento não gostou do que viu na colônia, então retornou para Londrina, onde morava com o tio Odinot Machado, homenageado com um nome de rua em Paranavaí. “Fiquei lá uns seis meses e meu pai insistiu outra vez. Disse que estava muito bom aqui, então voltei”, relata.
A princípio, Machado iria apenas ajudar o pai, mas dois meses depois decidiu investir em um serviço de alto-falantes. “Eu já queria conquistar a minha independência”, conta o pioneiro que nasceu em Castro, na região de Ponta Grossa, no Centro Oriental Paranaense. No final de 1948, Ephraim circulava pela cidade com um microfone e uma caixa amplificadora. Até hoje, lembra como as “vozes saíam por cima”. A sede da modesta rede de comunicação de Machado ficava em frente à Banca do Wiegando, na Rua Marechal Cândido Rondon, de onde administrava os dez alto-falantes espalhados em pontos estratégicos da cidade.
Algumas caixas podiam ser vistas perto do antigo Terminal Rodoviário e outras onde é hoje a Academia Unimed, na Avenida Distrito Federal. Quando o pioneiro anunciava algo em uma caixa, a mesma mensagem era reproduzida em todas as outras. “Foi assim até 1956, quando coloquei a Rádio Cultura no ar, um trabalho iniciado em 1950. Contratava gente da cidade e de fora, o que aparecesse”, explica. A sede da emissora na Rua Getúlio Vargas no cruzamento com a Rua Minas Gerais, onde era a Loja Ipiranga, chegou a ter três andares, dois construídos por Machado e um por Luiz Ambrósio.
Como a maior parte da população não tinha televisor e o cinema abria as portas somente aos sábados e domingos, o pioneiro cativava a comunidade com os programas de auditório. “Sempre aproveitava para levar ao Aeroclube [atual tênis Clube – em frente ao Ginásio Lacerdinha] os artistas que se apresentavam na rádio. Então o povo tinha a chance de assistir shows do Jorge Goulart, Nora Ney, Mestre Sivuca, Orquestra Casino de Sevilla e muitos outros”, cita.
No começo, o empresário tinha uma equipe de oito profissionais. Do total, cinco eram locutores. Quem chefiava a redação era o jornalista Ivo Cardoso, mas as notícias eram apresentadas por Jackson Franzoni e Evaldo Galindo. Havia muitos colaboradores, o que fazia a diferença quando surgiam problemas técnicos. “O equipamento de transmissão não era tão caro. O difícil era fazer o aparelho funcionar numa época sem energia elétrica. A gente tocava a rádio com motor e bateria de carro. Tudo era grande, até o gravador”, destaca.
Os problemas de transmissão eram frequentes, pois nem sempre o gerador de energia funcionava como o esperado. Às vezes, a rádio ficava dias fora do ar, um sofrimento inevitável. “Quando surgiu a primeira instalação elétrica, tive que puxar uma fiação de mais de um quilômetro de distância. Começava em uma chácara pra lá da Avenida Tancredo Neves e tinha que trazer por trás da Igreja São Sebastião”, conta o homem que trouxe a Paranavaí os mais diversos tipos de geradores de energia. O melhor funcionou bem por apenas seis meses.
No Brasil da época, pouco se ouvia falar em equipamentos de qualidade. A solução era importar quase tudo, inclusive gravadores, um privilégio para poucas emissoras do Norte do Paraná. Certa vez, o pioneiro fez a transmissão de uma eleição de Mandaguari, de quem Paranavaí ainda era distrito. Na ocasião, pediu emprestado um cabo de comunicação da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP). Infelizmente, de Alto Paraná até Paranavaí não se ouvia praticamente nada por causa da chiadeira.
Ephraim Machado considera os anos 1950 e 1960 como os melhores do rádio local e regional. A justificativa é que naquele tempo o espectro não era tão carregado. “Depois de alguns anos, melhorou bem. Conseguíamos falar até com pessoas de Santa Isabel do Ivaí e Porto São José. Hoje, a rádio AM não atinge esses lugares com a mesma potência. Só se for FM. Há muita interferência de sinais de TV, comunicação amadora, etc. Não temos mais o espectro livre”, frisa. Até o final da década de 1950, pelo menos 50% da população de Paranavaí já possuía um aparelho de rádio em casa.
Para Machado, o rádio começou a se popularizar no Brasil em 1942 e só em 1954 deu um grande salto, liderando a comunicação de massa no país. A chegada da Companhia Paranaense de Energia (Copel) fez a diferença na cultura radiofônica local a partir de 1964. “Em 1962, vinha uma sobra de energia de Maringá que durava das 20h às 6h. Era limitada, mas melhor que nada”, avalia.
As instabilidades do rádio em Paranavaí surgiram nos anos 1970, exigindo melhores estratégias dos comunicadores e empresários para manterem-se no ramo. Ephraim Machado perseverou e ainda montou a Rádio Caiuá FM em 1980, emissora que começou a operar em 1984. Como a realidade já era bem diferente e o empresário contava com mais recursos, trouxe a Paranavaí os equipamentos mais sofisticados.
“Subia em postes, puxava fio, consertava aparelho, motor e microfone…”
O pioneiro Ephraim Machado começou a trabalhar com radiodifusão aos dez anos. A primeira função foi de trocador de discos. Anos mais tarde, quando surgiu a oportunidade de montar uma emissora, aprendeu a fazer de tudo. “Subia em postes, puxava fio, consertava aparelho, motor e microfone. Mexia no estúdio cortando som e reformava a acústica para dar mais eco. Fui até faxineiro e transportador de óleo. Minhas lembranças são boas porque passei por todos os setores”, relata o pioneiro que fazia questão de ocupar o tempo livre com trabalho.
Machado fala com preciosismo dos tempos de repórter, quando entrevistou os governadores Moisés Lupion e Bento Munhoz da Rocha Neto, além do presidente Juscelino Kubitschek. Embora só fosse para as ruas quando faltava algum repórter, o pioneiro adorava fazer entrevista política em época de eleição. Segundo Ephraim, era algo mais livre, diferente de hoje que o entrevistador precisa estar atento às exigências da justiça eleitoral.
“Atualmente, você corre muitos riscos quando entrevista uma autoridade política. Só tem liberdade se for falar com suspeito de crimes, daí é costumeiro o repórter fazer a típica escarrada de besteiras que vemos por aí. É triste ver como temos tanto lixo na radiodifusão brasileira”, critica o empresário que em algumas situações perdeu boas entrevistas por causa da falta de energia. Às vezes, o gravador parava de funcionar de repente.
Uma das linhas da Rádio Cultura, fundada pelo pioneiro, chegava até a sede do Atlético Clube Paranavaí (ACP), atual Praça dos Pioneiros. A fiação foi feita por Ephraim Machado que a ligava a um amplificador chamado de “maleta”, uma espécie de base do famoso microfone de fio comprimido. “Quando era ao vivo, a gente sempre preferia fazer tudo no estúdio, por questão de segurança”, pondera.
O primeiro operador de rádio amador de Paranavaí
O pioneiro Ephraim Machado foi o primeiro operador de rádio amador de Paranavaí. No final dos anos 1940, se comunicava até com pessoas do Rio Grande do Sul. Muita gente o procurava para dar recados aos parentes que viviam em outras cidades e estados. “Repassava mais notícias de falecimentos e de necessidades primárias da população. Era um serviço em prol da coletividade. Perdi as contas de quantas vezes saí de Paranavaí para levar recado em Paraíso do Norte, São João do Caiuá, Planaltina do Paraná, Amaporã, Tamboara, Alto Paraná e outras localidades”, afirma.
Machado considera o rádio amador um veículo que ajudou o interior do Brasil antes da implantação do telefone. Muitas vidas foram salvas graças ao aparelho. “Meu principal sinal vinha de uma empresa cafeeira que se comunicava com os portos de Paranaguá e Santos. Servi Paranavaí por muitos anos nessas condições”, garante. O pioneiro também se recorda de um rapaz que no final da década de 1940 trabalhava como rádio telegrafista na colônia, a serviço de uma companhia de terras.
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A história do Preto Velho
Em Cafundó, João de Camargo representa o Brasil miscigenado e heterogêneo
Lançado em 2005, Cafundó, dos cineastas Paulo Betti e Clovis Bueno, é um filme recheado de simbologias que narra a trajetória de João de Camargo (Lázaro Ramos), o mais emblemático preto velho brasileiro. Na obra que teve como cenário várias cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Paranaguá e Antonina, João de Camargo representa um símbolo de fé e a figuração de um Brasil marcado pela miscigenação, heterogeneidade e fusão de valores.
Exemplo de toda essa mistura é a ideia do protagonista em criar a Igreja de Bom Jesus do Bonfim que une elementos de umbanda e cristianismo; um revolucionário artifício que pode não ter sido determinante na aceitação dos símbolos religiosos africanos, mas contribuiu para mostrar uma nova realidade que se distanciava daquele contexto europeizado.
A iniciativa de construir uma igreja diferente só surge quando o protagonista decide, após uma vida errante de muito sofrimento, viver para a fé. João de Camargo rompe sua relação com o passado na busca pela redenção. A entrega às crenças religiosas também se relaciona ao fato do personagem assumir o dom para a mediunidade, não ignorando mais as vozes que o acompanhavam, e sim as usando para curar enfermidades.
O Preto Velho era um homem muito à frente de seu tempo, tanto que os primeiros indícios de seu perfil como líder aparecem em 1866, quando o personagem começa a aceitar a vida e o próprio talento para lidar com as multidões e o preconceito racial. Camargo não só estimulava a fé das pessoas em uma divindade, mas também as fazia acreditar no valor da vida e na importância de cada ser humano, independente de credo ou origem.
Embora tenham se passado quase 150 anos, até hoje as influências do Preto Velho na cultura brasileira se estendem por diversas esferas artísticas e religiosas. Mesmo que desde 1988 o Cafundó, remanescente do quilombo situado na região de Sorocaba, em São Paulo, tenha deixado de ser um folclórico espaço físico de casinhas de barro e pau trançado, o lugar ainda é grande como um ambiente imaterial que se multiplica no ideário de quem se preocupa em preservar uma cultura pouco valorizada.
Além da interpretação inesquecível de Lázaro Ramos, é preciso destacar os papéis de Leona Cavalli, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Ernani Moraes, Luís Melo, Renato Consorte, Francisco Cuoco e Abrahão Farc. Outro grande atrativo de Cafundó é a trilha sonora de André Abujamra que a cada cena se mostra um exímio manipulador de emoções, introduzindo o espectador por viagens transcendentais. A rabeca entra na história como um recurso estilístico que pauta o tempo e os rompantes do acaso.
A Boate da Cigana
Boate era a grande diversão dos homens de Paranavaí nos anos 1950
Na década de 1950, sem dúvida, o ambiente mais frequentado pelos homens de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, era a Boate da Cigana, uma casa situada na então Zona do Baixo Meretrício.
Ninguém sabe ao certo o ano em que foi fundada a Boate da Cigana, situada algumas quadras abaixo do antigo Aeroporto Edu Chaves, atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP). Mas estima-se que surgiu antes de 1955 e logo se tornou o principal ponto de entretenimento do público masculino adulto. A boate, que tinha como principal via de acesso a avenida que recebeu o nome de Heitor Alencar Furtado, foi fundada por uma gaúcha conhecida apenas como “Cigana”.
Segundo pioneiros, era uma loira de beleza estonteante que antes de vir a Paranavaí vivia em Paranaguá, na Região Metropolitana de Curitiba. A Cigana também chamava atenção pelo carisma e cordialidade com que tratava os frequentadores da casa. “A boate atraía não apenas homens de Paranavaí, mas de toda a região, e funcionava tanto de dia quanto de noite”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, acrescentando que naquele tempo o local era a maior fonte de entretenimento dos homens.
Para os clientes da casa, a gaúcha disponibilizava mais de vinte moças. Eram todas muito bonitas. Apesar do serviço oferecido não ser bem visto por uma camada da sociedade, é importante lembrar que a Cigana não permitia atitudes desrespeitosas, nem confusões no interior da boate. “A casa era frequentada até por gente importante, autoridades influentes de Curitiba e de outros estados que visitavam Paranavaí”, confidenciou Mariano, mas se recusando a citar nomes.
O movimento na Boate da Cigana sempre aumentava nos finais de semana, quando os peões que atuavam na derrubada da mata e criação de estradas retornavam a Paranavaí. “Muitos se empolgavam tanto que deixavam todo o salário na casa”, comentou o pioneiro, referindo-se a algo que era muito comum nos anos 1950, quando os mais humildes se contentavam com o prazer efêmero proporcionado pelo álcool e pelas damas da noite.
O que chama muita atenção até hoje quando o assunto é a Boate da Cigana é o fato do espaço ter sido frequentado por pessoas de todas as classes sociais, desde os mais abastados até os mais desfavorecidos. Todos se tratavam muito bem, como se as diferenças sociais não existissem.
Dentre as figuras de maior destaque da história de Paranavaí, e que se tornou um assíduo frequentador da Boate da Cigana, está o Capitão Telmo Ribeiro. Quando chegava à boate, normalmente à noite, o capitão sempre dizia: “Quem tá dentro não sai, quem tá fora não entra.” E ninguém ousava contrariá-lo. A casa imediatamente era fechada e só abriam as portas quando ao amanhecer o galo cantava.
Pela manhã, Telmo Ribeiro pagava as despesas de todos os clientes. Também era conhecido por presentear as damas da noite. Segundo pioneiros, a boate nunca teve um cliente como o capitão que gostava de passar muitas horas conversando e bebendo em companhia da cigana gaúcha.
Curiosidade
A Boate da Cigana era tão famosa que havia um ponto de charrete em frente ao local.
O empacotador que virou ícone do rádio
Armando Trindade se apaixonou pelo rádio na mocidade, um casamento que durou 47 anos
No limiar da adolescência, Armando Trindade Fonseca descobriu o amor pelo rádio. Foi discotecário, sonoplasta, apresentador de programas de auditório e jornalista esportivo e investigativo – a grande paixão do homem que dedicou 47 anos ao rádio. Em 2005, apenas a morte conseguiu interromper a trajetória do radialista que parecia carregar o coração no topo do microfone.
A história de Armando Trindade Fonseca com o rádio começou há mais de 50 anos, quando sua mãe era faxineira da Rádio Paranavaí. “Era julho de 1957, e eu tinha perdido o emprego como empacotador. Minha sorte foi que me convidaram para ser discotecário. Pouco tempo depois, me tornei sonoplasta. Era um trabalho difícil. Eu tinha 14 anos e precisava ficar atento ao locutor o tempo todo”, relatou emocionado.
Em três meses, Armando Trindade se tornou referência em sonoplastia. A facilidade em aprender e o amor precoce pela profissão o estimulava a chegar às 5h30 na Rádio Paranavaí. “Saia de lá só meia-noite. Isso porque exigiam pouco de mim. Curioso como eu era, quis aprender tudo, principalmente a trabalhar com programa de auditório. Ainda assim, continuava na discoteca e na sonoplastia, meu forte”, afirmou.
A primeira oportunidade de entrar no ar surgiu pouco tempo depois, em uma segunda-feira. Encarregado da sonoplastia de uma peça teatral radiofônica do autor Jackson Frazzoni, Fonseca foi convocado a substituir um ator que na última hora desistiu de participar. “O rapaz ficou com medo porque o papel dele era de uma bichinha. Então me chamaram e eu aceitei. Depois que acabou a peça começaram a me chamar de bichinha”, lembrou, às gargalhadas.
Em 1962, Fonseca foi chamado para substituir o apresentador Neideval Oliveira Guimarães que comandava um programa infantil. “Fiz isso durante 12 anos, sempre me espelhando em outros programas, como do César Alencar, da Rádio Nacional. Na época, eu gostava mais de trabalhar com as crianças. Com o tempo, adquiri gosto pelas notícias, independente do tema ou do assunto”, justificou.
Armando, que acompanhava a transmissão das rádios de São Paulo e do Rio de Janeiro, sempre ouvia reportagens policiais, mas tinha receio de trilhar tal caminho. “Um dia, em 1963, decidi pegar o gravador e fui atrás da notícia. Gostei do negócio, tanto que de 10 minutos para reportagens locais, aumentamos para 15. Com o tempo, consegui 25 minutos em produção local, deixando só 15 para notícias estaduais e nacionais. Virou um radiojornal diário, de segunda a sábado”, explicou.
No auge da profissão, o radialista trabalhava em torno de 14 horas por dia. Não havia horário específico de entrada e saída na emissora. Sempre levantava às 5h e era questionado pela mãe. “Queria saber pra onde eu ia. Sempre respondia que quando quisesse me encontrar era só ligar na emissora. Comecei, aprendi e me estabeleci no rádio. É o que faço há 47 anos”, revelou com olhos marejados.
Mesmo com graves problemas renais, no último ano de vida, Armando Trindade Fonseca travava uma luta diária consigo mesmo para não se distanciar do rádio. Fazia hemodiálise às 4h30, três vezes por semana e, com dedicação e esforço inigualáveis, procurava notícias, lia jornais e ia para a emissora às 12h, encerrando o expediente às 14h. O radialista faleceu no dia 12 de julho de 2005 e marcou para sempre a história do rádio em Paranavaí, com um exemplo de perseverança tão raro que hoje em dia é mais fácil ser encontrado no cinema do que na realidade.
Radialista era ameaçado
O radialista Armando Trindade Fonseca foi ameaçado muitas vezes. Em 1980, Fonseca estava em uma reunião da Câmara de Vereadores, trabalhando para a Rádio Cultura, quando lhe disseram que havia uma pessoa lá fora, com um fuzil, o esperando para matá-lo. “Um rapaz da rádio disse que eu estava na Câmara. O indivíduo achou que ele estava mentindo e chutou a porta que acabou quebrando. Aí o sujeito passou pela minha casa e não tinha ninguém. Minha mulher estava no hospital porque tinha ganhado bebê”, lembrou.
Mesmo ciente da situação, Armando Trindade continuou agindo com naturalidade. “Saí na rua de peito aberto. Cheguei ao trabalho e coloquei a reportagem esportiva no ar. Em seguida, o telefone tocou. Quando atendi, era o indivíduo falando que iria me matar. Falei pra ele que quem quer matar não fala. Vem quietinho, mata e depois vai embora”, declarou. O radialista desligou o telefone e nunca mais foi perturbado pelo homem. “Houve muitas outras ameaças, de políticos mesmo, só que ninguém me intimidava não”, garantiu.
Auge das reportagens esportivas
Sem pestanejar, o radialista Armando Trindade Fonseca afirmou que o auge das reportagens esportivas em Paranavaí foi na década de 1970, quando a cidade tinha um grande time de futebol e os melhores jogos. “O Estádio Natal Francisco lotava. Lembro das arquibancadas de madeira como se fosse hoje. Eu corria pra lá e pra cá naquele sol quente para fazer a cobertura”, frisou.
Quando os jogos ocorriam em outras cidades, Armando Trindade sempre se apressava. Ia para Curitiba, Cambará, Jacarezinho, Santo Antônio da Platina, Londrina, Paranaguá e muitos outros municípios. “As cidades do Oeste do Paraná ainda não tinham times. Os clubes de Toledo, Cascavel, Pato Branco e Clevelândia surgiram bem mais tarde. Eu sempre viajava aos domingos quando os jogos eram fora. Saía de madrugada e voltava no dia seguinte por volta das quatro, cinco horas da manhã”, exemplifica. As transmissões eram feitas ao vivo, um trabalho complicado porque ainda não existiam as micro-ondas. “Era tudo linha física, o que fazia a transmissão atrasar alguns segundos, atrapalhando o locutor”, revelou o radialista.
Frases do radialista Armando Trindade Fonseca
“Já fui ameaçado sim, mas quem ameaça não faz. Cão que ladra não morde.”
“Me recordo quando eu ficava atrás da casa brincando, pegava uma latinha e fazia de conta que era o microfone e que havia um auditório.”
“A gente sempre acha alguém que gosta de trabalhar com rádio. Na Rádio Cultura mesmo sempre teve uns três, quatro que trabalhavam porque gostavam. Mas é claro que tem aqueles que fazem porque querem aparecer.”
“Para alguns, o rádio é como se fosse uma obrigação. Para outros, o motivo são as meninas, principalmente porque no rádio dá mulher pra arrebentar. O cara começou a aparecer um pouquinho as mulheres invadem.”
“Programa de auditório era gostoso. Antigamente o público fazia muito barulho. O locutor pedia para fazer silêncio e gritavam mesmo assim. Daí havia essa briga, no bom sentido. Eu falava “silêncio” e o público gritava. Às vezes, vaiava. Era bem diferente do que eu queria, eles faziam exatamente o contrário, mas mesmo assim era muito agradável.”
“O jornalismo representa muito na minha vida. Tenho três filhas e nenhuma quis seguir o rádio, nem fazer jornalismo. Eu queria que pelo menos uma delas seguisse isso, mas nem a caçula quis. Ela escolheu fazer educação física, a do meio preferiu direito e a mais velha optou por biologia.”
Considerações
Em 2004, tive a oportunidade de entrevistar o radialista Armando Trindade Fonseca que, mesmo combalido por problemas de saúde, me relatou toda a sua trajetória em prol da cultura radiofônica local. A entrevista lapidada resultou no material acima que figura como uma homenagem póstuma.