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Supino e o direito de ser marombeiro
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém
Na década passada, eu sempre encontrava um amigo no mesmo horário na academia. Era um sujeito bem animado, sorridente e que gostava de ser notado. Quando não percebiam sua presença, ele encontrava um jeito de chamar a atenção – dava um urro sorrateiro, falava alto ou causava algum atrito ruidoso entre as anilhas. Jamais o percebi conversando sem arquear os braços, chacoalhar a cabeça, espichar as veias do pescoço ou fazer movimentos curiosos com as mãos. Era um exibicionista de boa índole.
Ao sair da academia depois de um treino de peito ou braços, tirava a camiseta, aproveitando para mostrar o pump – aquele aspecto que faz todo cara parecer maior após os exercícios por causa do aumento do fluxo sanguíneo bombeado no músculo. “Agora vou ‘apavorar’ na rua”, comentou um dia. Nessas circunstâncias, eu apenas ria. Aquela era a sua alegria, e se ele tinha algum tipo de prazer nisso, era o que importava, não cabendo a mim nem a ninguém julgá-lo.
Supino, como eu o chamava porque ele treinava mais peito do que qualquer outro grupo muscular, tinha o costume de atravessar o centro da cidade com a camiseta sobre o ombro, ignorando comentários e olhares desdenhosos, principalmente de quem menosprezava marombeiros. Se alguém fizesse careta ou criticasse e ele percebesse, não era raro Supino reagir de forma inesperada.
“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém. Sua reação instantânea era retribuir com um sinal de joia e uma contração muscular elevando a cabeça do bíceps. “Fica sossegado, irmão! É só entrar na academia, seguir dieta e treinar certinho por anos que você chega lá”, comentava sorrindo e finalizando a breve interação com uma piscadela provocativa e um tapinha no próprio deltoide.
Quando ele atravessava a movimentada Rua Getúlio Vargas, algumas mulheres também o depreciavam às vezes, incomodadas em vê-lo na sua caminhada fruitiva, com o torso à mostra enquanto o sol aquecia o asfalto, atravessava vitrines e exasperava os mais afoitos. “Nossa, o tipo! Se acha demais! Tem gente que faz de tudo pra aparecer! Pensa que é bonito ser vagabundo e andar seminu na rua!”, ouviu numa tarde.
Sem titubear, caminhou até a moça que fez o comentário com a amiga e a observou nos olhos por alguns segundos. “Com licença, senhorita. Tu paga as minhas contas? Lava minha roupa? Prepara minha comida? Acho que não, né? Então pode parar de admirar que aqui não tem nada de graça”, declarou sorrindo e dando dois tapas no próprio peito. Constrangida, a moça puxou a amiga pelo braço e caminhou apressada até o fundo de uma loja.
Supino agiu assim por muito tempo, na sua tenra espontaneidade. Um dia, logo que saiu da academia, quando já não treinávamos mais no mesmo horário, foi surpreendido e atropelado. Ele rolou sobre o capô do carro e caiu deitado com as costas contra o asfalto tórrido de uma manhã altaneira de verão. No chão, sentiu uma luz quente bloqueando sua visão.
O motorista fugiu e Supino continuou deitado no chão. Não gemia nem agonizava. Somente ria de si mesmo e do seu próprio azar, ignorando os ferimentos pelo corpo. Surpreendendo quem testemunhou a cena, ele se levantou e limpou os ferimentos com a própria camiseta branca transfigurada em vermelha.
Joelhos e cotovelos esfolados, muitas escoriações nas costas e no peito, um corte superficial na testa e outro no topo da cabeça, nada disso o impediu de soerguer-se para assistir o autor já distante, fugindo pela Rua Pernambuco. Na manhã seguinte, Supino estava na academia praticando musculação.
E mais, na mesma semana, tomou uma decisão. Foi até uma loja no centro de Paranavaí e pediu para uma vendedora mostrar-lhe algumas camisetas. Enquanto ele as observava, em dúvida sobre quais escolher, as mãos da moça tremiam e as frases saíam incompletas de sua boca. “Você precisa tomar um copo de água com açúcar ou maracugina, moça. Não parece nada bem!”, sugeriu.
De repente, ela começou a chorar e a pedir desculpas. Supino não disse nada. Complacente, assistiu a reação dela em silêncio. Comprou três camisetas e saiu da loja com a consciência tranquila. Lá fora, a observou pela última vez antes de partir. Ele sabia e ela sabia. Supino descobriu que a mesma jovem que antes se incomodou com sua presença, fazendo um comentário preconceituoso que ele retribuiu quando ela o viu sem camiseta, pediu ao namorado que o atropelasse, alegando que Supino deu em cima dela.
À época, o questionei sobre o porquê de não ter procurado a polícia. Ele deu uma de suas respostas minimalistas e filosóficas: “Sua consciência é o seu único e verdadeiro guia.” O episódio me traz lembranças de uma subjetiva frase escrita por Balzac no século 18: “Quando todo o mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade.”
Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos
Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)
Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.
Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.
Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.
Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.
Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.
Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.
Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.
A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.
Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.
Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”
Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.
“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.
“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.
Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.
Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.
Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.
Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.
“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.
Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.
“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:
“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.
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O Circo dos Irmãos Cervantes
De sua boca, saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas
Na minha infância, quando o circo chegou a Paranavaí, pedi à minha mãe que me levasse para assistir um espetáculo. Tradicionalmente, o picadeiro foi instalado ao lado da delegacia, na Avenida Heitor Alencar Furtado. Pelas ruas do centro da cidade, eu ouvia carros de som circulando e anunciando atrações quiméricas que na minha imaginação pareciam saídas de alguma série como Amazing Stories ou filme como Freaks. “Alô, alô, criançada, o circo chegou!”, repetia o refrão glutinoso que me lembrava a musiquinha de abertura do programa do Bozo.
Traziam adesivos enormes de personagens histriônicos na lataria. Às vezes, alguns artistas atravessavam a região central e alguns bairros na carroceria de uma caminhonete. Acenavam para as crianças, arremessavam balas, pirulitos e os convidavam para a estreia. Muitos pais se animavam com a ideia dos filhos conhecerem o circo, já outros assumiam um aspecto sorumbático e arreliado que não escondia o fato de que o circo tinha chegado na pior hora, quando lhes faltava dinheiro para gastar com qualquer tipo de diversão. “Porcaria de circo! Melhor seria se não viessem a Paranavaí. Tenho raiva e nojo dessa gente que vem pra cá com esses showzinhos ridículos só pra buscar nosso dinheiro. Lazarentos mercenários!”, esbravejou um senhor dentro de uma F-1000 na primavera de 1993 ao ver o carro de som passar em frente à Escola São Vicente de Paulo, onde ele buscava diariamente um dos filhos que estudava comigo.
Ao perceber a ofensa, o palhaço sorriu, fez uma micagem escalafobética e arremessou algumas balas sobre o chapéu de abas largas do homem. Os doces de cores sortidas deram ao sujeito trombudo uma expressão tão sarapintada e cômica que muita gente gargalhou. Confuso, só depois que a caminhonete do circo se afastou que o homem percebeu o que aconteceu. O episódio levou dezenas de crianças para o centro da Rua Getúlio Vargas. Dois guardas tiveram de interditar a rua para que as crianças da escola vissem de perto o rastro de cores formando inúmeros arco-íris de dimensões irregulares no meio do asfalto. Me aproximei, ajoelhei e senti um perfume floral que me sopitou mais do que o chá de camomila preparado pela minha mãe.
“Como aquele carro criou esse caminho de arco-íris? Como isso é possível?”, perguntavam e se entreolhavam as crianças mais abelhudas. Algumas garotinhas tentavam em vão raspar os arco-íris do asfalto com pedaços de graveto. Parecia feito de tinta sem ser tinta. Continuava impérvio e etéreo, como se entranhado em um chão do qual curiosamente não fazia parte. Para mim, na minha completude meninil, aquilo era mágica, um encantamento para ser visto e sentido sem ser tocado ou compreendido.
Tinha textura vaporosa e astuciosa de um nada revestido de um todo e vice-versa. Se estendia por mais de 50 metros, resplandecendo beleza tão portentosa que fazia os motoristas desviarem com receio dos pneus deixarem marcas de borracha sobre a curta estrada de arco-íris. Insigne era o fato de que um pequeno caminho colorido pacificou tanta gente. Fez muitos sorrirem e se tornarem complacentes, inclusive pais javardos, com fama de serem os mais aterrorizantes e bocudos da escola. Naquele final de setembro, por volta das 17h, o sol incidiu sobre a rua com tanto viço que o caminho de arco-íris ficou parecido com a estrada dos tijolos amarelos do conto “O Maravilhoso Mágico de Oz”, de Frank Baum.
Continuei no centro até escurecer, mas ao retornar com minha mãe pela Getúlio Vargas vi os arco-íris se desvanecendo após os primeiros toques suaves da garoa fleumática. Ainda assim as cores já inexistentes irradiaram uma mescla de cheiros que atravessou o centro da cidade quando a garoa se espessou, transformando-se em chuva delgada. Sem parcimônia, a olência deslizava com graça e paciência pelo asfalto, pelas beiradas dos meios-fios, espalhando fragrâncias que reafirmavam a mais pura das sinestesias. Funcionários em fim de expediente e donos de lojas olhavam de um lado para o outro, procurando a incompreensível origem do bálsamo matizado. Invisível era o vermelho resumido a um aroma de rosa. Havia também olores inebriantes de hibisco, ipê-de-jardim, trevo-de-cheiro, hortênsia, lótus e violeta.
No início da noite recortei do jornal o cupom de desconto de 50% do valor do ingresso e pedi para meus pais levarem eu e meu irmão ao Circo Espanhol dos Irmãos Cervantes. Afinal era sexta-feira e não precisaríamos acordar tão cedo no sábado. Chegando lá, por volta das 19h30, havia uma fila enorme como uma centopeia humana. Para entrar no picadeiro era preciso atravessar uma rampa de tábuas, onde um casal de anões recolhia os bilhetes enquanto um homenzarrão de mais de dois metros, com bigode trançado nas pontas e trajando collant, observava a movimentação.
Eufóricas, muitas crianças batiam os pés sobre a rampa. Se aquietavam ao notarem o olhar fixo e enviesado do galerão bigodudo. Para aliviar a tensão pré-espetáculo, o anão chamado Flecha explicou na entrada, num portunhol caricato: “Boa noche, mis amigos. Tengo certeza que verás cosas ahí que nunca olvidará. Quando saírem de qui, no verão o mundo de la misma manera. Diviértete! Boa suerte!” Em seguida, arremessou algumas bolinhas de fogo atiradas com o dedão da mão esquerda, as engoliu, abriu a boca, mostrou a língua, sorriu e exibiu os dentes de ouro. Depois tirou a cartola da cabeça, se curvou e girou os braços em direção ao picadeiro, convidando o público a se sentar nas ásperas, rangentes e modestas arquibancadas de madeira.
Mesmo com a chuva repentina, o ambiente estava quase completamente seco. Havia apenas orvalho nas rebarbas da lona. Assim que nos acomodamos, luzes vermelhas, laranjas, amarelas, verdes, anis e violetas percorreram aleatoriamente o cenário por alguns minutos, até se alinharem e formarem um arco-íris. Logo um homem de meia-idade, vestindo uma curta calça preta, camisa branca com botões pretos, gravata borboleta preta e um colete aveludado vermelho, caminhou até o centro do picadeiro e se apresentou como Ramón Cervantes, El Animal. “Respetable público. Estoy muy feliz de verlos aquí. Es genial estar en Paranavaí. Para los que vieram ver los animales, una advertência: neste circo somos los únicos animales. Y no somos pocos. Somos decenas, muchos. Só peço-te que fecha los ojos. No tengas miedo!”, disse Ramón. O apresentador bateu cinco palmas, as luzes se apagaram e a contragosto de alguns o silêncio tomou conta do ambiente.
Um cheiro de selva rapidamente se alastrou pelo picadeiro. Ouvi passos pesados e um barrir que fez meus cabelos esvoaçarem. Tive a impressão de que um elefante estava próximo de mim, encostando sua pata em meu joelho miúdo, até que desapareceu antes que eu pudesse enxergar alguma coisa. Então escutei o rugido de um tigre acompanhado de um mau hálito ferino que me causou arrepios. Era como se os animais estivessem circulando pelas arquibancadas, nos observando, analisando nossas reações e sentindo a energia emanada de nossos corpos. “No tengas miedo! No tengas miedo! Sinta la belleza de la vida y los sentidos”, repetia Ramón no microfone a cada 20 ou 30 segundos.
Também notei algo voando em minha direção. Senti um par de garras sobre o ombro direito e um bico tocando-me a cabeça. De repente ouvi o crocitar de um falcão que parecia bater as asas e voar para fora do picadeiro. Antes das luzes voltarem, uma mão aparentemente humana sem ser tocou a minha. Escutei um barulho ressonante e indecifrável. Com o retorno da iluminação, Ramón observou atentamente as expressões em nossos rostos. Apesar de não ter ouvido gritos, vi que parte do público tinha deixado o picadeiro sem entender a proposta do apresentador. Ramón não lamentou nem comentou nada sobre a evasão. Apenas agradeceu a compreensão dos que ficaram e convidou seu irmão Juanito Cervantes, El Boticario para comandar a segunda parte do espetáculo.
“Que hermoso! Quantas personas para ver nuestro show. Gracias, muchas gracias, mis amigos!”, elogiou Juanito num sorriso largo evidenciando dentes com as cores do arco-íris. O rapaz de pouco mais de 30 anos, e traje igual ao de Ramón, fechou os olhos, inspirou profundamente e expirou. De sua boca saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas de animais transformados em pessoas e pessoas transformadas em animais. As cores tinham aromas florais muito mais vigorosos do que aqueles deixados na Rua Getúlio Vargas.
Da plateia, Juanito convidou uma garotinha de sete ou oito anos para acompanhá-lo até o centro do picadeiro. “No tengas miedo. Será muy divertido”, prometeu. El Boticário se afastou aproximadamente um metro e meio e assoprou suavemente. O rosto da criança se coloriu, ganhando aspecto místico e refulgente reforçado pela imagem de um lírio amarelo que tinha o nariz miúdo e afilado da menininha como núcleo. Juanito mostrou o resultado em um espelho e perguntou se ela queria que ele lhe tirasse a pintura do rosto. Como a resposta foi negativa, o artista mostrou o desenho de um mosqueado Olho de Hórus em seu antebraço direito e assoprou. Em poucos segundos o olho se fechou e se apagou.
A plateia naturalmente se levantou e aplaudiu com palmas tão fortes e cadenciadas que El Boticário se ajoelhou e reverenciou o público. Antes de encerrar o espetáculo, Juanito fez um comentário em portunhol que reproduzo num português mais claro. “Se vê, sente ou ouve cores, cheiros e sons sem bolores, onde eles pouco existem ou até inexistem, é porque a liberdade te cativa com a tenra intensidade da sensibilidade.” Lá fora, andei em torno da lona antes de ir embora e percebi que não havia animais ou jaulas, somente uma caminhonete, um caminhão e um velho trailer variegado onde viviam os irmãos Cervantes, Flecha e sua esposa, e o gigante circunspecto.
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Alegria e sofrimento na era de ouro do rádio
Ephraim Machado: “A gente tocava tudo com motor e bateria de carro”

Machado: “Difícil era fazer o aparelho funcionar numa época sem energia elétrica” (Foto: Diário do Noroeste)
O pioneiro e empresário Ephraim Marques Machado chegou a Paranavaí, no Noroeste Paranaense, em 1948, pouco tempo depois que seu pai, agente fiscal do Governo do Paraná, foi enviado para instalar a Coletoria Estadual. Admite que no primeiro momento não gostou do que viu na colônia, então retornou para Londrina, onde morava com o tio Odinot Machado, homenageado com um nome de rua em Paranavaí. “Fiquei lá uns seis meses e meu pai insistiu outra vez. Disse que estava muito bom aqui, então voltei”, relata.
A princípio, Machado iria apenas ajudar o pai, mas dois meses depois decidiu investir em um serviço de alto-falantes. “Eu já queria conquistar a minha independência”, conta o pioneiro que nasceu em Castro, na região de Ponta Grossa, no Centro Oriental Paranaense. No final de 1948, Ephraim circulava pela cidade com um microfone e uma caixa amplificadora. Até hoje, lembra como as “vozes saíam por cima”. A sede da modesta rede de comunicação de Machado ficava em frente à Banca do Wiegando, na Rua Marechal Cândido Rondon, de onde administrava os dez alto-falantes espalhados em pontos estratégicos da cidade.
Algumas caixas podiam ser vistas perto do antigo Terminal Rodoviário e outras onde é hoje a Academia Unimed, na Avenida Distrito Federal. Quando o pioneiro anunciava algo em uma caixa, a mesma mensagem era reproduzida em todas as outras. “Foi assim até 1956, quando coloquei a Rádio Cultura no ar, um trabalho iniciado em 1950. Contratava gente da cidade e de fora, o que aparecesse”, explica. A sede da emissora na Rua Getúlio Vargas no cruzamento com a Rua Minas Gerais, onde era a Loja Ipiranga, chegou a ter três andares, dois construídos por Machado e um por Luiz Ambrósio.
Como a maior parte da população não tinha televisor e o cinema abria as portas somente aos sábados e domingos, o pioneiro cativava a comunidade com os programas de auditório. “Sempre aproveitava para levar ao Aeroclube [atual tênis Clube – em frente ao Ginásio Lacerdinha] os artistas que se apresentavam na rádio. Então o povo tinha a chance de assistir shows do Jorge Goulart, Nora Ney, Mestre Sivuca, Orquestra Casino de Sevilla e muitos outros”, cita.
No começo, o empresário tinha uma equipe de oito profissionais. Do total, cinco eram locutores. Quem chefiava a redação era o jornalista Ivo Cardoso, mas as notícias eram apresentadas por Jackson Franzoni e Evaldo Galindo. Havia muitos colaboradores, o que fazia a diferença quando surgiam problemas técnicos. “O equipamento de transmissão não era tão caro. O difícil era fazer o aparelho funcionar numa época sem energia elétrica. A gente tocava a rádio com motor e bateria de carro. Tudo era grande, até o gravador”, destaca.
Os problemas de transmissão eram frequentes, pois nem sempre o gerador de energia funcionava como o esperado. Às vezes, a rádio ficava dias fora do ar, um sofrimento inevitável. “Quando surgiu a primeira instalação elétrica, tive que puxar uma fiação de mais de um quilômetro de distância. Começava em uma chácara pra lá da Avenida Tancredo Neves e tinha que trazer por trás da Igreja São Sebastião”, conta o homem que trouxe a Paranavaí os mais diversos tipos de geradores de energia. O melhor funcionou bem por apenas seis meses.
No Brasil da época, pouco se ouvia falar em equipamentos de qualidade. A solução era importar quase tudo, inclusive gravadores, um privilégio para poucas emissoras do Norte do Paraná. Certa vez, o pioneiro fez a transmissão de uma eleição de Mandaguari, de quem Paranavaí ainda era distrito. Na ocasião, pediu emprestado um cabo de comunicação da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP). Infelizmente, de Alto Paraná até Paranavaí não se ouvia praticamente nada por causa da chiadeira.
Ephraim Machado considera os anos 1950 e 1960 como os melhores do rádio local e regional. A justificativa é que naquele tempo o espectro não era tão carregado. “Depois de alguns anos, melhorou bem. Conseguíamos falar até com pessoas de Santa Isabel do Ivaí e Porto São José. Hoje, a rádio AM não atinge esses lugares com a mesma potência. Só se for FM. Há muita interferência de sinais de TV, comunicação amadora, etc. Não temos mais o espectro livre”, frisa. Até o final da década de 1950, pelo menos 50% da população de Paranavaí já possuía um aparelho de rádio em casa.
Para Machado, o rádio começou a se popularizar no Brasil em 1942 e só em 1954 deu um grande salto, liderando a comunicação de massa no país. A chegada da Companhia Paranaense de Energia (Copel) fez a diferença na cultura radiofônica local a partir de 1964. “Em 1962, vinha uma sobra de energia de Maringá que durava das 20h às 6h. Era limitada, mas melhor que nada”, avalia.
As instabilidades do rádio em Paranavaí surgiram nos anos 1970, exigindo melhores estratégias dos comunicadores e empresários para manterem-se no ramo. Ephraim Machado perseverou e ainda montou a Rádio Caiuá FM em 1980, emissora que começou a operar em 1984. Como a realidade já era bem diferente e o empresário contava com mais recursos, trouxe a Paranavaí os equipamentos mais sofisticados.
“Subia em postes, puxava fio, consertava aparelho, motor e microfone…”
O pioneiro Ephraim Machado começou a trabalhar com radiodifusão aos dez anos. A primeira função foi de trocador de discos. Anos mais tarde, quando surgiu a oportunidade de montar uma emissora, aprendeu a fazer de tudo. “Subia em postes, puxava fio, consertava aparelho, motor e microfone. Mexia no estúdio cortando som e reformava a acústica para dar mais eco. Fui até faxineiro e transportador de óleo. Minhas lembranças são boas porque passei por todos os setores”, relata o pioneiro que fazia questão de ocupar o tempo livre com trabalho.
Machado fala com preciosismo dos tempos de repórter, quando entrevistou os governadores Moisés Lupion e Bento Munhoz da Rocha Neto, além do presidente Juscelino Kubitschek. Embora só fosse para as ruas quando faltava algum repórter, o pioneiro adorava fazer entrevista política em época de eleição. Segundo Ephraim, era algo mais livre, diferente de hoje que o entrevistador precisa estar atento às exigências da justiça eleitoral.
“Atualmente, você corre muitos riscos quando entrevista uma autoridade política. Só tem liberdade se for falar com suspeito de crimes, daí é costumeiro o repórter fazer a típica escarrada de besteiras que vemos por aí. É triste ver como temos tanto lixo na radiodifusão brasileira”, critica o empresário que em algumas situações perdeu boas entrevistas por causa da falta de energia. Às vezes, o gravador parava de funcionar de repente.
Uma das linhas da Rádio Cultura, fundada pelo pioneiro, chegava até a sede do Atlético Clube Paranavaí (ACP), atual Praça dos Pioneiros. A fiação foi feita por Ephraim Machado que a ligava a um amplificador chamado de “maleta”, uma espécie de base do famoso microfone de fio comprimido. “Quando era ao vivo, a gente sempre preferia fazer tudo no estúdio, por questão de segurança”, pondera.
O primeiro operador de rádio amador de Paranavaí
O pioneiro Ephraim Machado foi o primeiro operador de rádio amador de Paranavaí. No final dos anos 1940, se comunicava até com pessoas do Rio Grande do Sul. Muita gente o procurava para dar recados aos parentes que viviam em outras cidades e estados. “Repassava mais notícias de falecimentos e de necessidades primárias da população. Era um serviço em prol da coletividade. Perdi as contas de quantas vezes saí de Paranavaí para levar recado em Paraíso do Norte, São João do Caiuá, Planaltina do Paraná, Amaporã, Tamboara, Alto Paraná e outras localidades”, afirma.
Machado considera o rádio amador um veículo que ajudou o interior do Brasil antes da implantação do telefone. Muitas vidas foram salvas graças ao aparelho. “Meu principal sinal vinha de uma empresa cafeeira que se comunicava com os portos de Paranaguá e Santos. Servi Paranavaí por muitos anos nessas condições”, garante. O pioneiro também se recorda de um rapaz que no final da década de 1940 trabalhava como rádio telegrafista na colônia, a serviço de uma companhia de terras.
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No tempo dos engraxates
O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro

Antonio de Menezes: “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado” (Foto: Vincenzo Pastore)
Já havia muitas crianças em Paranavaí, no Noroeste Paranaense, no começo dos anos 1950. Para estimulá-las a ocuparem o tempo livre quando não estavam na escola, os pais autorizavam que os filhos exercessem alguma atividade remunerada. “Não se trabalhava pela produtividade ou dinheiro, mas pelo aprendizado”, comenta o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa que em 1949, aos cinco anos, aprendeu a diferenciar diversos tipos de cultura, pouco tempo depois de ganhar uma enxada do pai Augusto de Mendonça Barbosa.
À época, os mais jovens que residiam na área urbana de Paranavaí descobriram na engraxataria uma atividade regular. Dezenas de garotos percorriam as vias mais movimentadas da cidade, como a Avenida Paraná e ruas Minas Gerais, Marechal Cândido Rondon, Manoel Ribas e Getúlio Vargas, sem se intimidar com o “areião”, para ganhar uns “trocados” engraxando calçados. As principais referências eram as áreas do antigo Terminal Rodoviário Urbano, Prefeitura, Bar Gruta da Onça e Hotel Elite.
O preço médio para engraxar um par de sapatos era um cruzeiro, dinheiro que normalmente era usado pelas crianças para comprar sorvete de groselha. “A gente comprava em uma sorveteria de uma família de origem japonesa, próxima ao Bar Gruta da Onça. Era um sorvete muito delicioso”, afirma sorrindo Barbosa que se tornou engraxate aos sete anos, em 1951. Na Rua Marechal Cândido Rondon, entre o Banco do Brasil e a Ótica Pupila, havia uma famosa engraxataria, muito bem frequentada. Lá, dois garotos conhecidos como Chiquita e Ligueira trabalhavam para um homem a quem pagavam comissão.
“Era tudo muito tranquilo. Não havia preocupação em saber quanto cada um ganhava. O pessoal tratava bem e lembro que uma vez juntei 100 cruzeiros”, relata. Recentemente o artista plástico reencontrou um cliente de quem na infância engraxou muitos sapatos pretos de pelica na Rua Minas Gerais. O movimento sempre aumentava nos finais de semana, quando colonos e peões que trabalhavam na derrubada de árvores retornavam à cidade. Com base em uma estimativa, pode-se dizer que cada criança engraxava pelo menos cinco pares de sapatos por dia.
Muita gente desembarcava na primeira parada de ônibus de Paranavaí, o Ponto Azul, onde eram assediados pelos engraxates mirins. As crianças os cercavam e gritavam: “Vai graxa, aí? Vai engraxa?” “Dava pra trabalhar o dia todo. Comprava graxa da marca nugget na Casa São Paulo. Tinha latinha de dois tamanhos. A gente passava com escova de dente ou de engraxar”, relata Antonio de Menezes. Para dar um brilho nos calçados, a garotada não dispensava o paninho de flanela. E claro, nem os clientes que faziam questão de cobrar quando o serviço não era completo.
Barbosa tinha a própria caixa de engraxate, o que era um privilégio para poucos, pois podia trabalhar sozinho e onde quisesse, sem precisar cumprir horário ou prestar contas do serviço. Porém, a função não era bem encarada por todos os moradores de Paranavaí. “A figura do engraxate já era de uma pessoa marginalizada, de alguém que não era de confiança”, desabafa Antonio de Menezes que conquistou um bom número de clientes fiéis, mas no início da adolescência desistiu da atividade para trabalhar na área comercial. O auge dos engraxates em Paranavaí se estendeu até a década de 1960.
A boa mão para a engraxataria fez Barbosa ser chamado para um serviço na casa de um homem conhecido como “Seu Euquério”, ex-gerente da Boa Táxi Aéreo. “Um dia, ele me pagou só para encerar o piso da casa dele com cera canário e dar um brilho no assoalho”, conta rindo.
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“A recepção cultural começa no feto”
Domingos Pellegrini fala sobre o poder da oralidade e da leitura na construção da identidade humana
Autor de inúmeras obras literárias premiadas, entre as quais “O Caso da Chácara Chão” e “O Homem Vermelho” que venceram o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, o londrinense Domingos Pellegrini é o escritor de todos os públicos, pois seus livros, sejam infanto-juvenis ou romances, falam com a humanidade, independente de estar representada numa figura infantil ou adulta.
Pellegrini já trabalhou como jornalista, publicitário e professor universitário, porém, há quinze anos, mesmo sem ter certeza do que o futuro lhe reservava, tomou a decisão de se dedicar ao que admite ser um dom, a criação de histórias que nascem regionais e se universalizam, brindando o leitor com um sentimento de pertencimento. Um exemplo é a obra “Terra Vermelha” que gira em torno de uma família de colonos pés-vermelhos de Londrina, numa ficção embutida de realidade que carregada de humanismo sensibiliza e desperta identificação até mesmo num camponês de uma vila islandesa.
Detentor de um estilo de escrever peculiar, claro e simplificado, mas que sempre propõe profusão reflexiva, uma subjetiva influência de escritores como o estadunidense Ernest Hemingway e os brasileiros Graciliano Ramos e Manuel Bandeira, Domingos Pellegrini é na atualidade um dos escritores mais respeitados e bem sucedidos do Brasil. Em outubro, o autor lança sua mais recente obra: “Herança de Maria”.
No dia 28 de abril, quinta-feira, às 15h, tive a oportunidade de entrevistar Pellegrini no Grande Hotel, na Rua Getúlio Vargas, em Paranavaí. O escritor se preparava para participar à noite do projeto “Autores e Ideias”, do Serviço Social do Comércio (Sesc), na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, onde dividiu o palco com a mineira Angela Lago, renomada escritora e ilustradora de literatura infantil.
Espontâneo e bem-humorado, Domingos Pellegrini transformou a entrevista em um diálogo informal com caráter de bate-papo, e tudo foi acompanhado pelo fotógrafo, artista e diretor cultural da Fundação Cultural de Paranavaí, Amauri Martineli, e também pelo artista e técnico em atividade do Sesc, Dorival Torrente. Pellegrini falou sobre muitos assuntos ao longo de mais de uma hora, como a importância da contação de histórias na infância, internet, literatura e democratização do ensino. Confira alguns trechos logo abaixo.
Levando em conta que a sua vinda a Paranavaí foi motivada por uma discussão sobre a contação de histórias e a literatura infanto-juvenil, como o senhor avalia a relação entre a descoberta do mundo na infância e a oralidade?
Eu vejo que a história oral para crianças é muito importante porque a recepção cultural começa no feto. A partir do nascimento, uma simples cantiga de ninar já começa a ditar nossas emoções e comportamentos. Com uma música de rock a criança se agita e com uma música clássica ela se acalma. Com base nisso, percebemos que a voz humana encanta e nada substitui isso, é o poder da oralidade. Quer se sentir bem? Pegue uma criança e leia para ela, isso afasta qualquer emoção ou sentimento negativo.
Partindo da ficção literária, até que ponto a oralidade contribui no processo civilizatório?
A própria contação de história é uma ação civilizatória. Quando a criança ouve um conto, nasce um sentimento de pertencimento. Ela se sente parte de uma sociedade, reconhece a sua própria língua e depois percebe que é capaz de inventar e criar. A fogueira em volta da qual as pessoas se reuniam no passado para contar histórias ainda existe, é o abajour de hoje. Cada vez mais o mundo precisa de contadores. Se o Wellington [Menezes de Oliveira], que cometeu aquele massacre no Rio de Janeiro, tivesse alguém que lhe contasse histórias, ele não se tornaria uma pessoa tão solitária, nem cometeria aquele ato.
Em um contexto sócio-cultural, o que representa o contador de histórias nos dias de hoje?
Hoje em dia, ser contador de histórias é uma profissão que exige imaginação, talento e ética, pois até os quatro anos de idade tudo que a criança absorve é a partir da oralidade. Quando ela pisca é como se virasse a página de um livro mental em um clima de cumplicidade e magia criado a partir da voz. Quanto mais uma criança ouve histórias, mais os seres imaginários são absorvidos como parte da família humana. Pelo fato de sermos os únicos animais que fazem arte de forma intencional é importante despertar logo cedo a identificação com a humanidade.
A atual literatura infanto-juvenil desempenha bem a missão de proporcionar a criança uma leitura que a permita refletir sobre a sua realidade, o mundo que a cerca?
Sim. Claro que há autores que escrevem apenas para divertir, no entanto, há muitos outros que tratam da ética. Não sou moralista, mas acredito na humanidade e na idéia de que as pessoas podem se tornar melhores. Sou da geração que tinha horizontes bem rurais em 1950, quando as pessoas viviam em um mundo limitado pelas crendices. Tudo isso mudou. O Brasil passa por uma revolução cultural que muitos outros países viveram há 150 anos, como Alemanha, Inglaterra, França e Japão. Está havendo a democratização do ensino. Temos mais pessoas alfabetizadas, mais leitores e ao contrário de antigamente acabou-se aquele pensamento de que você deveria se tornar doutor ou então não seria nada. Hoje, temos muito mais gente fazendo curso superior. Além disso, há alternativas como os cursos técnicos.
Com a popularização da internet e também das publicações virtuais, como incentivar o interesse dos mais jovens pelo livro impresso?
Eu não vejo conflito entre a internet, o livro e outras formas primitivas de fruição com as formas mais atuais, muito pelo contrário, são meios de comunicação que se complementam. Hoje, um pai pode contar uma história para o filho dormir mesmo estando a milhares de quilômetros de distância, por meio de uma webcam. É uma conquista que só é possível graças à tecnologia, à internet.
A literatura infanto-juvenil brasileira está se renovando ou se restringe mais às adaptações e readaptações de obras do passado?
Com certeza, se renova. O Brasil passa por uma revolução tecnológica e cultural que inclui a literatura infanto-juvenil. Há uma grande preocupação em se transmitir cada vez mais valores a partir de uma arte feita com beleza, criatividade, amor, imaginação e ética.
Quando o senhor descobriu o talento de escrever para públicos de todas as faixas etárias?
Decidi escrever um livro sobre uma árvore que dava dinheiro e percebi que não tinha muito a ver com o público adulto, então me direcionei ao público infanto-juvenil. “A Árvore que Dava Dinheiro”, lançado em 1981, tem enredos fantásticos em que uso metáforas para abordar problemas como inflação e estagnação econômica. A história ensina que para se conseguir dinheiro é importante trabalhar.
A autobiografia é uma de suas características mais marcantes, de que maneira isso influi na concepção de uma obra?
Comecei a escrever poemas aos 14 anos e desde então só escrevo sobre aquilo que conheço, vejo e vivo. Na obra “Terra Vermelha”, por exemplo, eu falo sobre a minha terra. Prefiro sempre mostrar as características de um personagem por meio da ação e não de adjetivos. Gosto de uma escrita mais econômica. Ainda assim o que eu faço é criar um mundo de imaginação, onde misturo realidade e ficção.
Há previsão de lançamento de alguma obra ainda este ano?
Meu último lançamento foi “Professor Milionário”, em 2009, que fala de um professor que venceu na loteria e usou o dinheiro para investir na escola em vez de se entregar ao consumismo. Mas até outubro será lançado pela Editora Leya, de Portugal, uma das maiores do mundo, o meu livro “Herança de Maria”, uma homenagem a minha mãe, uma mulher guerreira, a frente do seu tempo, que tinha autonomia em suas decisões. A obra será 30% ficção e 70% realidade.
Quais as lembranças das inúmeras vezes em que participou dos eventos culturais de Paranavaí?
Vir a Paranavaí é sempre uma experiência muito interessante. Aqui tem gente interessada em discutir, falar abertamente sobre arte. De fato, há um quociente cultural mais denso do que em outras cidades. Percebo, e não é de hoje, que Paranavaí tem uma tradição de atividades culturais. Lembro de quando estive aqui com a palestra-recital “Saques e Toques” [“Poesia para Ver, Ouvir, Sentir e Pensar” – durante o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) de 2009] e a participação do público me surpreendeu. Naquela ocasião, abordei temas diversos como ecologia, relações humanas e cidadania.
Curiosidade
O escritor Domingos Pellegrini nasceu em 23 de julho de 1949 em Londrina, no Norte Central Paranaense.
Comerciante se livrou da morte em São Paulo
Severino Colombelli foi um dos primeiros comerciantes de Paranavaí
Na década de 1940, o pioneiro e comerciante Severino Colombelli costumava viajar até São Paulo para buscar produtos que comercializava em Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Certa vez, se livrou da morte ao perder o voo de retorno.
Para o gaúcho Severino Colombelli viajar fazia parte da profissão de comerciante numa época em que as mercadorias não eram entregues nas lojas. Por isso, era costume deixar a sua companheira, Inez Colombelli, cuidando da casa comercial em Paranavaí durante as frequentes viagens a São Paulo.
Em entrevista à Prefeitura de Paranavaí há algumas décadas, Inez relatou que Colombelli embarcava no antigo Aeroporto Edu Chaves, localizado onde é hoje o Colégio Estadual de Paranavaí (CEP). “Como o Severino viajava muito, eu ficava sozinha com o nosso filho, mas na loja sempre havia algum funcionário pra me ajudar”, afirmou Inez Colombelli, acrescentando que quando conheceu o gaúcho, ele já buscava produtos em São Paulo.
Mesmo acostumada com as viagens de Severino, Inez não conseguia evitar a preocupação e apreensão. Nunca se esqueceu da vez em que o marido demorou nas compras e quando chegou ao aeroporto era tarde demais. “Não deu tempo de embarcar e soubemos que o avião que ele perdeu caiu e morreu quase todo mundo. Só uma criança sobreviveu”, revelou a comerciante.
A Família Colombelli se mudou para Paranavaí em 1946, mas antes Severino veio sozinho conhecer a região. Deixou São Sebastião do Caí, na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e chegou aqui no dia 11 de junho. “A cidade já estava toda traçada. Tinha a casa de comércio do Faber, Otacílio Egger, Pupulin, Marsal, Tirapeli, Thomaz Estrada e Vicente Pernambuco”, relatou o gaúcho, acrescentando que a área comercial se limitava à Rua Getúlio Vargas, em frente ao atual Hotel Elite.
A ideia de fixar residência em Paranavaí surgiu por acaso, pois Colombelli tinha intenção de se mudar para o interior de São Paulo, onde lhe diziam que havia boas terras para a criação de gado. Entretanto, durante uma viagem de trem, o comerciante conheceu um homem que lhe falou que não havia terra melhor para a pecuária que a de Paranavaí.
A primeira impressão que o gaúcho teve da colônia foi muito ruim, se sentiu como se estivesse no cenário de um filme de faroeste. “Vim para montar comércio e encontrei tudo parado. Tinha umas sete casinhas cobertas com telhas e o resto era tudo rancho, cerca de 500. Logo depois fiz amizades com Thomaz Estrada, Dr. José Francisco, Doca, Renan e Celeste”, contou. Entre os pioneiros que já viviam há um bom tempo na colônia, embora distantes do perímetro urbano, estavam João de Moraes, Jota, Biomiro, Família Palmiano e Pereira Diniz, Zé Pretinho, Emílio Dias e Henrique Palma.
Casa comercial ficava aberta até a noite
Houve um período tão crítico para o comércio local no final dos anos 1940 que Severino Colombelli pensou em ir embora. “Todos que vão para o sertão tem vontade de vencer na vida. No fim, eu quis voltar, mas ninguém queria comprar o que eu tinha”, admitiu o pioneiro. Já na década de 1950, o progresso de Paranavaí foi retomado. De acordo com Inez, a casa comercial dos Colombelli chegou a ter 11 funcionários.
“Vendíamos muito e a maioria dos fregueses trabalhavam na derrubada de mata. Me recordo do baiano, um freguês muito bom. Ele fazia uma lista de pedido, pagava e não pechinchava”, exemplificou. O fluxo de clientes era tão grande que a loja não tinha hora para fechar. Às vezes, o atendimento passava das 20h porque alguns fregueses faziam compras logo após a procissão.
Não eram raros os dias em que os Colombelli tinham de abrir a loja de madrugada para vender cobertores, pregos e outros produtos úteis àqueles que iam para a mata. “O pioneiro Garbin Neves aparecia aqui de madrugada atrás de cobertor. Muita gente vinha fazer compras à noite. Paranavaí foi muito boa pra nós”, ressaltou Inez Colombelli.
Sem velar a nostalgia, a comerciante se emocionou em lembrar o período em que não era preciso se preocupar com segurança. “O alfaiate Gentini ia fazer refeição na casa do Herculano e deixava toda a alfaiataria aberta. Ninguém se preocupava em fechar as casas porque todo mundo era de confiança”, salientou. A violência começou a ganhar mais destaque entre os anos de 1950 e 1953, quando houve muitos conflitos que terminaram em assassinatos. “Uma vez no Hotel Real mataram três de uma vez”, enfatizou Severino Colombelli.
Saiba Mais
Conforme palavras do pioneiro Severino Colombelli, as autoridades em Paranavaí eram o Sargento Marcelino, o administrador Hugo Doubek e o Capitão Telmo Ribeiro.
Curiosidade
Severino Colombelli nasceu em 4 de setembro de 1915 em São Sebastião do Caí, Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Como surgiu o Colégio Paroquial
Frei alemão Ulrico Goevert fundou a escola em 1952
O Colégio Paroquial Nossa Senhora do Carmo foi fundado em Paranavaí em 1952 por iniciativa do frei alemão Ulrico Goevert que queria erradicar o analfabetismo local. Até 1952, o único espaço de alfabetização era o Grupo Escolar de Paranavaí, atual Colégio Estadual Newton Guimarães, que teve como primeira diretora a professora Enira Moraes Ribeiro. “Me veio o pensamento de fundar uma escola paroquial. Convenci o Frei Estanislau [o pernambucano Agripino José de Souza] a fazer um exame de qualificação para dar aulas”, contou Frei Ulrico no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.
A escola foi inaugurada em um velho barracão que passou por uma rápida reforma. Como não havia dinheiro para investir no colégio, tiveram de pedir tábuas emprestadas para a confecção das carteiras escolares. “Também eram usadas como mesas durante as festas”, confidenciou o padre que mais tarde recebeu uma intimação do inspetor de ensino do Estado do Paraná. Caso não construíssem um prédio novo, teriam a autorização de funcionamento revogada. Apesar das dificuldades, o frei alemão conseguiu atender a ordem do governo a tempo. Para isso, recebeu ajuda financeira da comunidade local e também da Ordem dos Carmelitas na Alemanha.
Em 1952, antes do início das aulas, Frei Ulrico abriu matrículas para 220 alunos, divididos em quatro salas, duas para garotos e duas para garotas. Frei Estanislau era o responsável pela turma do primeiro ano primário. No começo, o trabalho na escola foi muito difícil, inclusive eram constantes as reclamações de pais de alunos que questionavam os métodos de ensino.
Após acompanhar algumas aulas de perto, o padre alemão percebeu que algumas professoras tinham influência negativa sobre os alunos, então as substituiu. “Frei Estanislau tinha um refinado talento para lidar com as crianças. Quem o ajudava nessa missão era a professora Irene Gomes Patriota que se encarregava das meninas”, lembrou Goevert.
Irene, que nasceu no Distrito de Angelin, em Garanhuns, Pernambuco, chegou a Paranavaí em 17 de novembro de 1944. Deixou a cidade em janeiro de 1963, quando seu pai Leodegário Gomes Patriota faleceu. Segundo Frei Ulrico, Irene Patriota foi uma das melhores professoras do Colégio Paroquial.
“Eu dava preferência para as professoras mais feias”
“Era difícil conseguir uma boa professora. Não me esqueço de uma que ia muito bem, mas conheceu um jovem engenheiro, se casaram e ela deixou a escola”, lamentou o padre que era muito exigente e não admitia que alguém lecionasse sem comprovar qualificação. A partir do acontecido, Frei Ulrico se tornou mais cauteloso. Optou por não aceitar mais belas professoras na escola. “Eu dava preferência para as mais feias, aquelas que ficaram noivas duas ou três vezes pelo menos”, frisou.
Em menos de cinco anos, a escola somou 600 estudantes e 18 professoras. “360 alunos estudavam de graça”, enfatizou o padre, acrescentando que as crianças do colégio tinham de ir à missa todos os sábados. “Às quartas-feiras, dávamos aulas de catequese para 1,4 mil crianças. Em cada turma, havia cerca de 500 crianças. Fui duramente criticado pelo frei Adalbert Deckert [padre provincial de Bamberg, no Estado alemão da Baviera], e com razão, pois eu não tinha como dar um tratamento individual a cada aluno”, admitiu Ulrico Goevert.
A primeira diretora do Colégio Nossa Senhora do Carmo foi Eugenia Araújo Rauen, a quem o Frei Ulrico chamava de “minha professorinha”. Eugenia assumiu a direção da escola, pois tinha cursado a Escola Normal do Instituto de Educação de Curitiba. “Como ela era funcionária da Secretaria de Agricultura, não podia dar expediente na Escola Paroquial, então só assinava os documentos”, revelou o padre.
Colégio Paroquial ficou em primeiro lugar no Paraná
Em 1956, o Colégio Paroquial Nossa Senhora do Carmo foi eleito o melhor estabelecimento de ensino do Paraná após uma avaliação do nível de conhecimento dos estudantes. O primeiro lugar trouxe a Paranavaí o inspetor estadual de ensino, cargo que equivale hoje ao de Secretário Estadual de Educação, que fez questão de parabenizar o padre Ulrico Goevert.
O frei atribuiu o ótimo desempenho dos alunos ao trabalho da professora Rosa Akie Noguti, filha de imigrantes japoneses, que chegou a Paranavaí em 1953. “Uma boa professora diplomada. Em três anos, ela fez um progresso enorme com os estudantes”, avaliou o padre.
Nos primeiros anos, cada estudante do Colégio Paroquial pagava uma mensalidade de 30 cruzeiros. A quantia era o suficiente apenas para cobrir as despesas com seis professores. “Foi aí que me dei conta que se eu quisesse ter bons professores precisaria pagar mais, assim eu poderia exigir melhores resultados”, ponderou.
Jardim da Infância foi criado em 1954
Como havia muitas crianças em Paranavaí em 1954, o frei alemão Ulrico Goevert percebeu a necessidade de se criar um jardim de infância para oferecer educação e recreação aos menores. Sem dinheiro para investir em infraestrutura, o padre ampliou a igreja em sete metros, fez uma repartição e conseguiu doações de mesinhas e cadeiras. “Quem me ajudou foi Maria de Lourdes Gomes Patriota, uma idealista moça de 19 anos”, explicou o padre alemão.

Jardim da Infância que mais tarde foi anexado à Escola São Vicente de Paulo (Acervo: Ordem do Carmo)
Ao término da obra, o Jardim da Infância Nossa Senhora do Carmo recebeu matrículas de 40 crianças. Logo estavam com 60 e tiveram de construir uma nova escolinha para abrigar os alunos. O Jardim da Infância passou a funcionar na Quadra 77, na esquina da Rua Getúlio Vargas com a Rua Pará, onde é atualmente a casa das Irmãs Filhas da Caridade da Escola São Vicente de Paulo.
Entre os alunos que estudaram no Jardim da Infância, estava uma criança de três anos, conhecida como Alencarzinho, filho do advogado José de Alencar Furtado.
Certo dia, o garotinho teve um choque anafilático, não resistiu e faleceu. “Quando ele entrou em agonia, cantou ‘Ave, Ave, Ave Maria’ com a vozinha cada vez mais fraca, até dar o último suspiro. Ele aprendeu o canto no nosso Jardim da Infância”, destacou Frei Ulrico.
Saiba Mais
Em 1952, Paranavaí tinha um elevado índice de analfabetismo entre as crianças.
O Colégio Paroquial Nossa Senhora do Carmo recebeu licença oficial de funcionamento do Governo do Estado do Paraná em 17 de junho de 1956. O documento permitia que a escola oferecesse o nível primário de ensino. A licença para o ginasial foi conquistada em 22 de fevereiro de 1960.
Após a morte do pai, Leodegário Gomes Patriota em 17 de janeiro de 1962, a professora Irene Patriota se mudou para Curitiba. No dia 16 de outubro de 1970 deixou a capital e fixou residência em Apucarana, no Norte Central Paranaense.
A primeira professora do Jardim da Infância Nossa Senhora do Carmo, Maria de Lourdes Patriota, é irmã da professora Irene Patriota. Lourdes nasceu no dia 21 de janeiro de 1932 em Brejão, Pernambuco.
Em 1960, Maria de Lourdes e o marido, Jarbas Nogueira dos Santos, funcionário da Caixa Econômica Federal, deixaram Paranavaí. Se mudaram para Bandeirantes, no Norte Pioneiro Paranaense, onde viveram por um ano, até fixar residência em Apucarana. Desde 1983, Lourdes Patriota mora em Curitiba.
Em 1955, Rosa Akie Noguti, que nasceu em 10 de janeiro de 1934 em Vera Cruz, interior de São Paulo, assumiu o cargo de diretora do Colégio Paroquial, onde trabalhou até maio de 1960. Depois se casou com Paulo Fumio Watanabe e em 1978 se mudou para Curitiba.
José de Alencar Furtado era pai do deputado federal Heitor de Alencar Furtado, assassinado em 1982, que empresta o nome para a avenida mais importante de Paranavaí.
As ruas de cascas de peroba
As primeiras vias de Paranavaí foram pavimentadas com restos de madeira

Zé Ebiner pavimentou a Avenida Paraná e a Rua Getúlio Vargas com cascas de peroba (Foto: Reprodução)
Na década de 1940, quando as vias de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, eram compostas por faixas de areia, os pioneiros usaram cascas de peroba como alternativa de pavimentação para o tráfego de veículos.
O marceneiro José Ebiner é o pioneiro da pavimentação em Paranavaí. Na época em que a colônia era chamada de Fazenda Brasileira, teve a ideia de cobrir as vias, que se resumiam a faixas de solo arenoso batido, com cascas de peroba. “A Velha Brasileira era puro areião. Então o Zé Ebiner inventou o calçamento. Isso não começou com os nossos prefeitos não. Foi com a gente usando cascas de madeira”, afirmou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
O marceneiro tomou a iniciativa de cobrir o solo arenoso da Avenida Paraná e da Rua Getúlio Vargas com os muitos restos de madeira que sobravam na serraria. “O Zé Ebiner foi um dos primeiros pioneiros. Quando cheguei aqui a primeira coisa que fiz foi comprar madeira dele”, relatou Palhacinho. O pioneiro paraibano Cincinato Cassiano Silva faz coro às palavras de José Ferreira. “A primeira serraria privada de Paranavaí foi do Ebiner”, comentou.
Pioneiros lembram que a comunidade se uniu para transportar as cascas de peroba e esparramá-las pelas vias da Brasileira. “Era só jogar nas ruas que já dava um pavimento bom pra passar um pé-de-bode”, declarou José Ferreira. Os restos de madeira proporcionavam mais firmeza as vias e também beneficiavam os pedestres.
Em dias de Sol, os transeuntes podiam caminhar sobre as cascas para evitar sujar os calçados. Já quando chovia, o pavimento improvisado permitia que escapassem da lama. “A ideia do Ebiner ajudou muito a gente”, enfatizou Araújo, acrescentando que é impossível falar de madeira nos tempos da colonização sem citar o marceneiro.
O pioneiro paulista Valdomiro Carvalho prestou muitos serviços a José Ebiner. Carregou um grande número de toras de árvores que serviram para a construção de residências, casas comerciais e pavimentação. “Eu puxava tudo com um carretão de bois. Ia lá pra mata bruta derrubar figueiras, perobas, paus d’alho e palmitos. Quase todos os tipos de madeira”, complementou Carvalho.
Ebiner ajudou a construir o estádio e o Grupo Escolar
De acordo com o pioneiro paulista Natal Francisco, Ebiner contribuiu na criação do primeiro estádio de Paranavaí, onde é atualmente a Praça dos Pioneiros. “Ele me ajudou muito. Cobrou pouco pela mão-de-obra e pela madeira”, destacou. O marceneiro também teve participação importante na viabilização do primeiro hospital local.
“O Zé Ebiner deu madeira para construir o Hospital do Estado e também o Grupo Escolar [primeira escola de Paranavaí, onde se situa hoje o Colégio Estadual Marins Alves de Camargo]”, revelou o pioneiro gaúcho Otávio Marques de Siqueira. Parte da madeira aproveitada pelo marceneiro, que também forneceu matéria-prima para a construção da primeira igreja, pertenceu a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) nos tempos em que Paranavaí era conhecida como Distrito de Montoya.
O pioneiro José Ferreira desabafou que nos anos 1940 a vida na colônia era muito difícil. O povoado era praticamente ignorado pelo Governo do Paraná. “A gente teve que fazer muitos sacrifícios como esse da pavimentação. Vivíamos no completo abandono, autoridades estaduais nunca vinham pra cá confortar o povo. Éramos obrigados a decidir tudo. O que valia era a palavra de cada um que vivia aqui”, reclamou.
Só a partir de 1946, a Colônia Paranavaí ganhou outras serrarias. Um homem conhecido como “Seu Pombalino” abriu uma na Avenida Distrito Federal, próxima ao Posto São José. Era pequena, mas também ajudou bastante. “Depois veio a marcenaria do Otto”, ressaltou Cincinato Cassiano.
A fome que chegou com a chuva
População de Paranavaí passou fome durante longos períodos de chuva
Na década de 1940, quando chuvas torrenciais atingiam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, por longos períodos, era difícil e até perigoso deixar o povoado. Nessas circunstâncias, a população era obrigada a lidar com a fome enquanto esperava o fim da chuva.
Uma das situações mais críticas vividas pelos pioneiros foi registrada em 1945, quando 16 dias de chuva castigaram a colônia. Ninguém imaginava que choveria tanto numa época em que não se tinha o hábito de manter uma despensa, nem mesmo para casos emergenciais.
Antes da chuva chegar ao fim, ninguém mais no povoado tinha o que comer em casa. E para piorar, era impossível deixar Paranavaí e buscar alimentos nas cidades ao Sul do estado. Além de não haver meios de transporte que aguentassem longas viagens, trafegar com veículos pequenos pelas íngremes estradas de chão era algo impensável. Além disso, o fato das vias serem estreitas e ladeadas pela mata só aumentava os riscos.
“Já era 1h da madrugada quando ouvimos o ronco de um caminhão. Foi uma surpresa pra todo mundo. Ninguém mais vinha pra cá fazia 16 dias, tanto que a gente estava sem nada. A comida já tinha até acabado”, lembrou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
O som do caminhão na Rua Getúlio Vargas, no cruzamento com a Rua Marechal Cândido Rondon, fez todo mundo levantar da cama, acender os lampiões e correr para o centro da colônia. Quando chegaram lá e viram os faróis acesos, o empreiteiro Zeca Machado desceu do veículo e mostrou para a população toda a comida trazida de Curitiba. Além de mantimentos, Machado trouxe muitas verduras e legumes para abastecer Paranavaí.
“Todo mundo comprou tudo. Naquele tempo, era normal um dever para o outro porque a gente tinha o costume de emprestar açúcar, café e dali em diante”, destacou José Ferreira. Zeca Machado era o empreiteiro da Colônia Paranavaí e conhecia todas as estradas da região, até porque muitas foram abertas por ele.
Machado viajava esporadicamente a Curitiba com um caminhão do Governo do Paraná para buscar alimentos, materiais de construção e outros produtos. “Mais tarde, o Zeca Machado abriu um armazém e começou a fornecer tudo que a população precisava”, destacou Palhacinho.
O pioneiro paulista Salatiel Loureiro afirmou que o empreiteiro foi o primeiro comerciante da colônia. “O Zeca começou com tudo, depois veio o Patriota, o Lindolfo e o Carlos Faber”, revelou.
Palhacinho dava carne de anta para a freguesia
Quem também ajudou a população em um longo período de chuvas foi o pioneiro Rodrigo Ayres que certa vez viajou até Marialva, no Norte Central Paranaense, para buscar uma carroça de mantimentos.
“A viagem durou 15 dias. Demos o dinheiro e ele trouxe tudo que pedimos. Pouco tempo depois, o Patriota [Leodegário Gomes Patriota] abriu um armazém e logo tivemos fartura. Nunca mais faltou comida”, relatou o pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho.
Ainda nos anos 1940, Araújo tinha uma pensão em Paranavaí e alimentava os clientes com carne de anta. “Eu mesmo que caçava lá na Água da Floresta e Tucano. Cozinhei muitas paneladas para dar ao pessoal. Depois melhorou e pude alimentar eles com carne seca e batata. Todo mundo comia contente. Ninguém saía daqui com fome”, declarou.
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