Archive for July, 2015
“Doutor, vou estourar os miolos dele”
Em 1966, o então governador Paulo Pimentel veio a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com uma grande comitiva. Acompanhado de quase todos os secretários, o político “lotou” Paranavaí com carros oficiais do governo, de acordo com Augustinho Borges que à época era gerente da Reta Táxi Aéreo e recepcionou a comitiva no Aeroporto Edu Chaves.
Ao longo de três dias em Paranavaí, Paulo Pimentel aproveitou para conhecer o comércio local e as opções noturnas de lazer. À noite, em um dos momentos de descontração, Augustinho levou a comitiva até uma boate local. Chegando lá, o secretário estadual de comunicação Pedro Washington cordialmente se aproximou de uma moça muito bonita e disse: “Ô menina, tudo bem aí?” Um homem que estava perto ficou muito irritado e em tom ameaçador foi pra cima do secretário. “Você chegou agora e já vem metendo o bico?”, esbravejou o rapaz.
Sem entender o motivo da raiva, Washington apenas respondeu: “Não, filho! Estou apenas sendo educado.” Tonico, um jovem de Paranavaí que tinha fama de matador e trabalhava como segurança para a comitiva do governador, entrou na frente extremamente encolerizado. Depois de balançar uma pistola Parabellum, Tonico gritou: “Doutor, vou estourar os miolos dele agora mesmo. Deixa eu matar, deixa eu matar!”
Preocupado que uma discussão banal terminasse em tragédia, Pedro Washington deu alguns tapinhas nas costas de Tonico e suplicou: “Pelo amor de Deus, não faça isso! Não faça isso!”, lembra Augustinho Borges aos risos. O homem então abaixou a arma e desistiu de matar o rapaz.
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Quando Zé Boca Mole correu atrás do avião do governador com um pedaço de pau
No início dos anos 1960, o gerente da Reta Táxi Aéreo de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, Augustinho Borges, tinha um funcionário que era o responsável por limpar e polir os aviões. Conhecido como Zé Boca Mole, o homem morava em uma casinha construída no Aeroporto Edu Chaves. “Sempre foi um sujeito gente boa, mas que um dia passou por uma situação muito engraçada”, explica Augustinho.
O ex-gerente da Reta não se esquece do episódio em que um avião Douglas DC-3 estava chegando ao aeroporto quando o piloto teve de arremeter por causa de alguns cavalos que invadiram a pista. Como a esposa de Zé Boca Mole estava grávida e descansando em casa, a poucos metros de distância, ele ficou irritado com o barulho provocado pelas turbinas da aeronave. “Foi um som terrível. Parecia que ia acabar o mundo. Então o Zé veio com um pedaço de pau e correu atrás do avião”, lembra Augustinho Borges às gargalhadas.
Depois que o avião se afastou, o auxiliar de serviços gerais se aproximou do ex-gerente da Reta. “Vou tirar satisfação com esse cara. O que ele tá pensando? E se ele mata a minha mulher? Vai ter que me explicar porque fez isso!”, esbravejou enquanto balançava o pau e cerrava os dentes.
Assim que o Douglas DC-3 pousou, Boca Mole ficou de prontidão, batendo o pé no chão e aguardando alguém abrir a porta do avião. De repente, Zé soltou o pau no chão, sorriu e disse: “Oh, doutor! É o senhor que tá aqui.” Em seguida, abraçou efusivamente o governador Moisés Lupion que logo o interpelou: “O que você quer?”
“Paga uma sodinha pra mim?”, indagou. Enquanto Boca Mole bebia o refrigerante, Augustinho questionou o motivo de Zé não ter brigado com homem. “Você é besta? O sujeito é o governador!” A visita a Paranavaí foi a última de Lupion antes de entregar o cargo em 31 de janeiro de 1961.
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Meu primeiro encontro com a morte
Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais
Meu primeiro encontro com a morte foi em janeiro de 1993. Aconteceu de forma casual, inocente, incauta e avassaladora, assim como muitas das nossas experiências na infância. Meus pais tinham planejado no final de 1992 uma viagem para o litoral norte de Santa Catarina.
Saímos de casa numa madrugada, por volta das 4h, um horário que sempre agradou meus pais pela grande possibilidade de não encontrarmos muitos veículos na estrada, ao menos nas primeiras horas de viagem. Admito que o sono ficou bem leve ao saber que sairíamos cedo rumo a novos destinos. Acordei com a respiração ofegante e expansiva do Happy e do Chemmy ao pé da orelha. Eram dois cãezinhos da raça poodle parecidos com dois grandes flocos de neve.
O Happy vivia com a língua de fora, como se quisesse falar e não latir. Ostentava um semblante jubiloso, dando a impressão de passar o dia inteiro sorrindo. Já o Chemmy possuía olhos tão expressivos que me transmitiam uma cândida melancolia. Em síntese, era menos agitado e mais carinhoso. Em comum, apesar das diferenças de personalidade e fisionomia, os dois eram dotados de uma postura altiva e indefectível. Só sentavam ou deitavam no chão com as patas sobrepostas, formando um X de formas itálicas. No dia da partida, pedimos à minha avó Clara para cuidar da casa e dos animais.
Em parte, o percurso foi relativamente tranquilo, até porque meus pais gostavam de parar em locais que não conhecíamos, tornando a viagem mais proveitosa e divertida. Quando chegamos a Matinhos era quase meia-noite e me surpreendi ao ver uma movimentação de centenas de pessoas pelas ruas. Eu, acostumado a uma realidade em que 22h já era tarde, não sabia que existiam cidades noturnas.
Havia muitas luzes, o suficiente para me fazer crer que a escuridão não tinha vez naquele lugar. A experiência me lembrou a reação de uma criança estrangeira ao ver o fulgor do sol da meia-noite em Luossavaara, no extremo norte da Suécia. Os letreiros enormes e brilhantes no centro de Matinhos iluminavam as ruas, as calçadas e os passantes. Também serviam como juncos para corujas urbanas que assistiam skatistas adolescentes saltando bancos, pequenas rampas e executando rock slides enquanto sorriam e seguravam latinhas de Coca-Cola, Taí e Fanta.
Os arroubos da urbanidade confundiam os vaga-lumes que se misturavam aos remanescentes piscas-piscas de Natal, talvez pensando que fossem parentes. Alguns jovens miravam a lua, balançavam os braços, bebiam cerveja em saquinhos, gargalhavam e cantavam Under The bridge, do Red Hot Chilli Peppers. Outros continuavam hipnotizados no interior de uma casa de fliperamas com mais de 40 máquinas.
De longe, eu ouvia sons retumbantes de tiros, saltos, acelerações, derrapagens, socos, chutes e musiquinhas eletrônicas monofônicas e polifônicas. O local estava cheio de adolescentes e crianças acompanhadas dos pais. A empolgação no interior me lembrou a cena em que Marty McFly, interpretado por Michael James Fox, observa crianças jogando fliperama em De Volta Para o Futuro 2. Chips, refrigerante, chiclete em rolo, Freshen Up, Minichiclets, Mentex e Lollo abasteciam os jogadores alheios ao que acontecia nas ruas. Rodeados de testemunhas, os desinibidos e impetuosos falavam alto e apertavam os botões com força. Logo entendi que queriam deixar suas marcas nas máquinas.
Lá fora, o céu não estava muito escuro. Suspeitei que estivesse absorvendo as cores e as luzes dos lugares, das pessoas e dos animais que ajudaram a compor um cenário notívago tão complacente. Percorri centenas de metros dentro e fora do carro. Não vi discussões, trocas de ofensas, nem violência. Quando um rapaz pisou em falso na calçada e caiu em frente a um automóvel no asfalto, um senhor imediatamente desceu do carro e o ajudou a se levantar.
Mais adiante, um motociclista se descuidou ao admirar uma bela moça em traje de verão que andava rente ao meio-fio. Como consequência, bateu na carroceria de uma caminhonete. Ao ver o jovem caído, o motorista de aproximadamente 50 anos desceu e ignorou os arranhões na lataria. “Você tá bem? Quer que peça ajuda?”, indagou. Apesar do susto, o motociclista não se machucou e a moto sofreu apenas riscos superficiais. O dono da caminhonete considerou o prejuízo mínimo e se recusou a cobrar. Agradecido, o rapaz se despediu com um sorriso portentoso e um aperto de mão consistente.
Após alguns dias em Santa Catarina, acordamos cedo numa manhã ensolarada e fomos a uma praia entre Itajaí e Balneário Camboriú. Havia pouca gente em frente ao mar calmo e convidativo. Sentei um pouco na areia para observar tudo à minha volta. Notei que o céu estava especialmente azul, límpido e com um recorte amarelo amendoado que parecia a entrada de um portal para lugar algum. Também avistei suas nuvens envolvendo e afagando nove gaivotas.
Minutos depois, me levantei e avisei meus pais que eu entraria no mar. Como manda a tradição, me disseram para ter cuidado e ficar próximo da margem. Comecei a brincar na água, numa área tão rasa que me permitia ficar agachado ou sentado afundando as mãos na areia. Quando enjoei, caminhei mar adentro, sentindo o peso cada vez maior da água sobre o meu corpo. Estava tudo bem. Percebi pessoas perto de mim e o mar ainda não tinha tocado os meus ombros. De repente, enquanto eu sorria e via meus pés penetrando a areia, as águas se rebelaram. O impacto de uma grande onda me arrastou alguns metros mar adentro.
Confuso e sem enxergar direito, engoli a água salgada que invadiu minha garganta com tanta aspereza que quase engasguei. Tentei tocar o chão abaixo dos meus pés, mas estava fundo demais. Não havia ninguém nas imediações. Observei ao longe apenas fisionomias desfocadas. Me debati contra a água, tentando nadar. Não adiantou. Outra onda me arrastou e desta vez para o fundo do mar.
Bebi muita água a contragosto e comecei a ter rápidas alucinações. Imaginei alguém me puxando pelos pés. Meus olhos e garganta queimavam de forma vertiginosa. Tanto que minha visão enturveceu gradualmente, abalando minha crença na sobrevivência. Fui tomado por lembranças fugazes dos poucos parentes e amigos falecidos. “Não! Eu não quero encontrar vocês ainda. Quero ver minha família. Eles estão logo ali, bem mais perto de mim do que qualquer um de vocês. Sou criança ainda. Por favor!”, pensei. Ao mesmo tempo, senti o palato abrasado e as lágrimas caindo do meu rosto como chuva de verão.
Para minha surpresa, antes que fosse vencido pelas câimbras, o mar se acalmou. Eu continuava muito longe da margem, só que ganhei o direito de nadar. Então coloquei em prática o que aprendi nas aulas de natação com meu pai em 1992. Mesmo combalido, cheguei à beira-mar. O medo de morrer era tão grande que só parei de nadar quando a areia tocou meus joelhos. Saí da água rindo e chorando ao mesmo tempo, com as pernas cambaleando, o rosto pálido e os lábios arroxeados. Não consegui dar outro passo e caí deitado.
Minha família chorou comigo. Naquele dia o salva-vidas sumiu e quando meus pais me localizaram eu já estava nadando. Eles viram apenas meus braços curtos e meus cabelos negros e lisos se movendo na água. Antes de me levantar da areia para ir embora, observei novamente o céu. O recorte amarelo amendoado tinha se dissipado, mas não as nove gaivotas que recebiam as carícias das nuvens que cobriam o mar da Praia Brava.
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Tecnólogo cria um acessível sistema de captação de água da chuva
Projeto de Alan Azambuja levou 20 horas para ficar pronto com a ajuda do filho de 13 anos
Preocupado com as crises hídricas que têm assolado o Brasil, principalmente o estado de São Paulo, o tecnólogo e tecnoartista Alan Verissimo Azambuja, do Rio de Janeiro, desenvolveu há pouco tempo um simples e prático sistema de captação, armazenamento e distribuição de água da chuva que requer poucos gastos.
Recentemente, aproveitando a laje que cobre o teto da casa de máquinas dos elevadores do prédio onde residem, Azambuja e o filho Victor, de 13 anos, construíram um eficiente sistema que capta, armazena e distribui água da chuva para dentro de casa. “A grande vantagem é o baixo custo de materiais, já que todos os componentes são de plástico”, explica.
A captação começa no orifício de saída da água de chuva que cai sobre o teto de 30 metros quadrados da casa de máquinas do edifício. De lá, a água é transferida por meio de encanamento a uma caixa d’água fechada, evitando assim contaminação e proliferação de doenças como a dengue. Na prática, Alan Verissimo descobriu que em duas horas de chuva de intensidade média é possível encher tranquilamente uma caixa com capacidade de mil litros.
“Aproveitando que a superfície de captação da água é limpa, fizemos canalização para nossos banheiros, tanque e máquina de lavar roupa. Agora as águas pluviais só descem pelo ralo quando a caixa fica cheia”, conta e adianta que a intenção é ampliar o sistema para atender também mais oito andares do prédio, aproveitando a área de 360 metros quadrados do terraço.
Para quem precisa de uma instalação emergencial, Alan Azambuja sugere a implantação de uma tubulação simples, sem causar danos em paredes. Basta abrir uma passagem para a canalização interna de uma torneira que deve ser ligada por um tubo à canalização externa que transfere a água da chuva armazenada na caixa d’água.
“A tubulação pode passar através da parte inferior de uma janela. Se for de vidro, é só fazer a retirada temporária da lâmina fixa. Para o serviço, você vai precisar apenas de uma serra de cortar alumínio ou uma furadeira. Use tubo, T e joelho que tenham comprimento compatível com a largura do peitoril”, destaca e acrescenta que os tubos horizontais se apoiam no peitoril para garantir a distribuição de peso e facilitar a fixação.
A sugestão acima é ideal para a implementação de torneiras nos corredores dos andares dos prédios. Debaixo de cada torneira, para evitar o desperdício, Azambuja recomenda a colocação de baldes e “pires” improvisados. Ou seja, caixas pretas de plástico que os pedreiros usam para preparar pequenas quantidades de massa de cimento. “É um trabalho que não exige participação governamental nem contratação de firmas especializadas. Um ‘professor Pardal’ e alguns adolescentes com tempo livre conseguem instalar esse sistema. Eu e o meu filho Victor levamos 20 horas”, garante Alan Verissimo.
Caso o interessado consiga reunir um grupo para a criação do sistema, o idealizador propõe que os materiais sejam comprados coletivamente, barateando custos “Façam reunião de moradores para planejar rateios, divisão de tarefas, higienização, reparos e adaptações. Um amigo que entende de hidráulica pode ser um grande aliado nessa hora. O mais importante é obter água abundante e grátis para as descargas dos vasos sanitários. Não faz sentido comprar uma água tão cara para este fim”, pondera.
Com a experiência de quem já conheceu a realidade de muitos países, Alan Azambuja considera o Brasil uma nação promissora em segurança hídrica. Justifica que o brasileiro é solidário, criativo e talentoso para a realização de trabalhos manuais. Outro ponto alto do sistema de captação de água é que em grande escala o projeto pode reduzir o impacto das chuvas. Tem grande potencial em evitar a saturação das galerias pluviais, minimizar o surgimento de buracos nas malhas viárias e também coibir novas erosões hídricas. “Não tenho dúvidas de que teremos menos problemas com alagamentos nas ruas”, enfatiza Azambuja.
Sobre Alan Azambuja
Alan Azambuja é tecnólogo e tecnoartista com especial interesse na história das técnicas, das invenções e em tecnologias alternativas para obtenção de energia elétrica. Ao longo de 20 anos, trabalhou criando e operando sistemas de sonorização em shows musicais em teatros, ginásios esportivos e ao ar livre. É especialista em ALS (Approach Lighting System), sistemas de iluminação que facilitam o pouso de aeronaves em aeroportos de médio e grande porte. Também já atuou como diretor cenográfico em projetos de arte-ciência, criando sistemas de iluminação e peças de tecnoarte. Além disso, é colaborador do grupo de pesquisa científica interdisciplinar Anatomia das Paixões (http://anatomiadaspaixoes.blogspot.com.br/) que reúne artistas, neurocientistas, filósofos, designers e anatomistas. O grupo é dirigido por Maira Fróes, PHD em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e esposa de Azambuja.
Para mais informações sobre o projeto de captação de água, acesse: http://alanverissimoazambuja.blogspot.com.br/2015/07/proposta-de-campanha-envolvendo.html
A minha primeira vez no caldeirão do inferno
Imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo
Meu pai gostava muito de viajar. Depois que se aposentou então a frequência aumentou consideravelmente. Às vezes, levantava de madrugada e acordava todo mundo. Pedia para arrumar as malas e avisava que partiríamos em uma hora. Era divertido viajar sem planejamento, até porque quando ele avisava com bastante antecedência eu e meu irmão Douglas ficávamos agitados e ansiosos. Ou seja, não dormíamos.
Amante da cultura paranaense, meu pai tinha predileção por mostrar como o estado onde nascemos possui muitas riquezas que passam despercebidas por tanta gente. Foi assim que conheci o Paraná de Norte a Sul quando criança. Ele enaltecia a simplicidade, as coisas da terra e o teor sereno das pessoas do campo, dos vilarejos e das pequenas formações citadinas, lugares alheios ao tempo, onde tudo parecia transcorrer sem pressa. No caminho, cantávamos canções escoteiras como “A Velha A Fiar”, “A Árvore da Montanha” e “La Bela Polenta”. Meu pai dirigia com tranquilidade enquanto desafiava eu e meu irmão a ler primeiro o que estava escrito nas placas, outdoors e letreiros que encontrávamos em cada trajeto.
Curioso, eu tentava observar tudo à minha volta, mas ocasionalmente sentia náuseas. Em algumas situações consegui evitar o pior ao abrir a janela, colocar o rosto para fora, fechar os olhos e absorver o aroma da relva amplificado pelo vento. Quando não resolvia, o jeito era parar o carro. Eu descia pálido e estonteado. Assim que vomitava, me sentia revigorado em poucos minutos. Percebia até a temperatura corporal retornando ao estado normal. Para me animar, meu pai e minha mãe contavam histórias dos lugares por onde passávamos, o que me fazia sonhar acordado, imerso num universo pessoal mais próximo da fantasia do que da realidade.
Na minha primeira visita as Furnas, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, eu tinha nove anos quando me disseram que iríamos aos “caldeirões do inferno”. Criança que era, e com uma perspectiva de desenho animado, imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo, onde o diabo aguardava um deslize para arrastar crianças desobedientes até as profundezas do desconhecido. Sem dizer nada a ninguém, comecei a pensar em tudo que fiz de ruim naquele ano e me perguntei: “Será? Será que existe algum motivo pra eu ir pro inferno agora que ele tá tão perto de mim?”
Logo lembrei das vezes em que fiquei de castigo na escola por mau comportamento, do dia em que não obedeci minha mãe e tomei banho de chuva. Claro, também de quando comi escondido doces que não eram meus. “Será que o capeta sabe que peguei umas figurinhas do álbum do Campeonato Brasileiro do meu irmão? E aquele dia que faltei na catequese? Tô lascado se hoje for o dia do acerto de contas”, refleti enquanto sentia um gosto de fel na ponta da língua.
Quando entrei receoso, e a passos leves e curtos no elevador panorâmico da Furna 1, percebi uma abrupta revoada de morcegos. Ouvi um guia contando a um visitante que um dia uma noiva cometeu suicídio, saltando lá de cima. Eu que pouco entendia sobre o significado da morte me recordei de um episódio da série Contos da Cripta que assisti escondido dos meus pais. Pensei na possibilidade da mulher reaparecer por aquelas bandas, quem sabe até emergindo das águas caliginosas da lagoa para me levar com ela a contragosto. Pelo menos fiquei mais aliviado quando vi de longe que não havia fogo nem diabo.
Conforme o elevador descia, me senti mais minúsculo e curioso diante daquela enorme e profunda cratera onde uma vegetação primitiva e predominantemente rasteira adornava o cenário. Notei também no entorno algumas lâminas rochosas pontiagudas e assimilei com a matéria-prima do caricato tridente do capeta. Lá embaixo, caminhei sobre a plataforma de madeira, tentando identificar o que havia sob a água. Divaguei, aventando a possibilidade da Furna abrigar algum animal tipo o Monstro do Lago Ness. “E se isso aqui quebrar e a gente cair na lagoa?”, uma reflexão constante cada vez que eu observava a pequena distância entre as águas turvas e os meus pés.
Meu pai se aproximou e disse que o local era território de peixes cegos e albinos, então imaginei como seria viver em um ambiente como aquele – um mundo pequeno e escuro, uma masmorra fluvial, onde animais eram punidos por motivos secretos, condenados à infelicidade até os seus últimos dias. Não! Eu poderia estar errado. Por que pensar no pior? Talvez existissem muitas belezas no fundo daquele caldeirão, coisas tão belas que jamais poderiam ser vistas, mas apenas ouvidas e sentidas, aguçando somente a imaginação. Quem garante que o meu mundo não poderia ser mais limitado do que o deles?
Naquela época, eu tinha lido “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, o que me influenciou a julgar num rompante de ingenuidade e pessoalidade que houvesse uma maneira de saber se aqueles peixes que viviam nas Furnas eram felizes. Me agachei vagarosamente e com muito esforço fiz um círculo na água com o miúdo dedo indicador da mão direita, o suficiente para emitir uma vibração diferente daquela com a qual os animais da Furna 1 estavam acostumados. Menos de um minuto depois, três peixes pequenos se aproximaram da superfície. Após o contato de breves segundos, mergulharam nas profundezas, numa sequência que parecia ensaiada.
Para qualquer outra pessoa quem sabe não significasse nada, mas pra mim, no meu universo peculiar de criança com nove anos, era um sinal de que a vida naquele lugar não era hostil. Interpretei que aqueles peixes ainda não tinham motivos para desgostarem do ser humano, ainda um visitante, não um invasor. “É, acho que ainda são felizes”, concluí com um sorriso enviesado e a fé cândida de que aquele lugar que me pareceu tão aterrorizante em um primeiro momento era belo, harmonioso, justo e cabalístico à sua maneira.
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Uma vez punk, sempre punk
João Henrique Andrade, das noitadas de anarquia em João Pessoa para a advocacia no Noroeste do Paraná
Nos anos 1980, João Henrique Andrade percorria as ruas de João Pessoa, na Paraíba, usando calças jeans rasgadas, jaqueta de couro com patches, rebites e frases, além do tradicional tênis converse ou coturno. “Andar com calça rasgada em 1986 tinha dois significados para a maioria da pessoas: você estava pedindo dinheiro ou era maluco. Então era difícil”, admite.
Integrante do movimento punk de João Pessoa, João Henrique, que começou a trabalhar com 13 anos, sempre marcava presença no Gueto, um lugar conhecido como o submundo da noitada punk. No local eram realizados muitos shows, discussões e estudos sobre anarquismo e ações do Grupo de Ação Libertária (GAL), aliado da Confederação Operária Brasileira (COB). Participante das panfletagens, Andrade era o vocalista e guitarrista da banda Mercenários da Anarquia (M.E.R.D.A.) que chegou a compor mais de 30 músicas até o final da década de 1980.
Naquele tempo, os eventos de punk-rock também chegavam ao centro, levando uma legião de anarquistas para o Teatro Lima Penante. “O público sempre lotava as festas punks em que tocávamos, até porque era um estilo de vida. Só não chegamos a gravar nada porque na época era muito caro e não tínhamos acesso a nenhum estúdio, uma realidade bem diferente da atual”, explica João Henrique, lembrando que a tecnologia era precária e os instrumentos musicais de boa qualidade eram praticamente inacessíveis.
Antes de formar a primeira banda, Andrade começou a fazer aulas de violão clássico. Entediado, agitado e motivado pelos ideais de contestação que conquistavam os jovens da época, decidiu comprar uma guitarra. “Eu queria fazer barulho. Então montei a M.E.R.D.A. em 1986 e escrevemos as canções ‘Ônibus” e ‘A Balada do Vagabundo’. Entendíamos pouca coisa de música, mas o nosso estilo não exigia mais que três ou quatro notas e uma boa batida. Era coisa simples e que ajudava a dar voz para as insatisfações da época”, enfatiza.
Amigo de Williard Fragoso, realizador do programa Jardim Elétrico, transmitido pela Rádio Universitária de João Pessoa, João Henrique conta que a programação era baseada em muito rock e também na divulgação das atividades e eventos do movimento punk. “O Jardim Elétrico deu a oportunidade para que muita gente conhecesse os grandes clássicos do gênero. Também estimulava e ajudava as bandas locais”, garante.
Quem levava informações e novidades sobre o que acontecia no cenário punk mundial eram os membros da banda Restos Mortais que viajavam com frequência para São Paulo. Outro destaque da época era a banda Disunidos que realizou três edições do show “União de Forças”. “A cena não vingou muito porque era difícil articular o movimento. Só que tínhamos muitos fanzines [revistas pequenas feitas pelos próprios fãs] e aquela coisa boa da sujeira, do selvagem, do bruto. Isso era legal! Lembro até hoje de Urubus Leprosos, uma banda que o pessoal curtia muito em João Pessoa. Eram punks que faziam releituras de músicas de Reginaldo Rossi, Odair José, entre outros”, relata.
No mesmo período, Andrade conheceu a banda de rock carioca Hojerizah que emplacou sucessos como “Que Horror” e “Pros Que Estão em Casa” e tinha como vocalista o célebre Toni Platão. “Outro dia conversei com o Clemente, dos Inocentes. Um cara muito pra frente. Comentei com ele sobre as Mercenárias, um grupo pós-punk que o Edgard Escandurra [do Ira!] produziu no início dos anos 1980. Elas estão coroas e continuam na ativa, cantando”, revela, sem deixar de mencionar que a banda punk Cólera, fundada em 1979 em São Paulo foi uma grande referência para os Mercenários da Anarquia.
Influenciado pelo livro “As Cinco Lições de Psicanálise”, de Sigmund Freud, João Henrique compôs músicas norteadas pelo conteúdo introspectivo e sonoridade psicodélica. “A base eram os níveis da personalidade humana, o estado de consciência e inconsciência que Freud divide em id, ego e superego”, confessa.
Em 1988, escreveu “Quarta-Feira Cinzenta” na quarta-feira de cinzas, música que integrou o repertório da segunda banda, a ID. “Tinha lido muito o apocalipse da Bíblia. Então sentei na cama com a minha velha Gianini branca e assim saiu a letra e a música numa pancada só. Chegamos a nos apresentar depois no Espaço Cultural José Lins do Rego e na Praça do Povo em João Pessoa”, narra.
Quando se mudou para o Paraná em 1991, Andrade se afastou um pouco da cultura punk para tocar em barzinhos. Em Cruzeiro do Sul, a pouco mais de 60 quilômetros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ajudou a reorganizar a banda MDC, nome extraído da música “Tu És o MDC da Minha Vida”, de Raul Seixas. “Parei de cantar minhas composições nessa época. Só retomei quando vim pra Paranavaí em 1997. Voltei a compor em frequência menor e me aproximando mais do pop, de algo ainda mais simples”, diz.
Em Paranavaí, João Henrique retomou os estudos e se casou com Luzimar Ciríaco Andrade. Por incentivo de um tio, e contrariando todas as expectativas, ingressou no curso de direito. “Eu queria ser jornalista e isso era o que todo mundo da minha família costumava achar que eu seria. Acabei me formando na área e comecei a advogar”, confidencia.
Embora seja reconhecido como músico, Andrade prefere se definir apenas como punk, numa perspectiva bem pessoal. Justifica que carrega na essência o apego ao minimalismo e ao improviso, sem se preocupar muito com técnica. “Embora eu toque outros estilos hoje, ainda gosto muito do punk. Acho que é o som mais extravasante que existe. Não é difícil de tocar e alegra bastante. Tenho muitas coisas na cabeça, então acho que consigo fazer um disco numa tarde”, reitera sorrindo.
Em parceria com a esposa Luzimar, João Henrique realiza shows beneficentes para ajudar pessoas doentes ou que estão enfrentando grandes crises financeiras. “Também fazemos parte do grupo ‘Doutores da Tapioca’, formado por advogados e amigos. Tudo que arrecadamos é doado”, assinala. Como palestrante, ministra cursos de oratória com duração de 15 a 20 horas, além de oficinas de empregabilidade para jovens que estão em busca do primeiro emprego.
“É um trabalho que fazemos de graça e com muito prazer para entidades que não visam lucro”, afirma. Atual presidente da Associação Negritude de Promoção da Igualdade Racial de Paranavaí (Anpir), João Henrique está se empenhando em firmar parcerias para a realização de oficinas de percussão na periferia de Paranavaí. O objetivo é ensinar crianças e adolescentes a produzirem e a tocarem os instrumentos.
O retorno ao punk-rock
Atualmente João Henrique Andrade tem uma grande parceria com o poeta e letrista João Zaia, de Prudentópolis, no sudeste paranaense, com quem já produziu mais de dez composições. “Hoje o que mais me inspira são as coisas do coração e da vida. O ódio generalizado, o poder da grande mídia e a mudança de temperamento das pessoas na internet também me estimulam a escrever e fazer o bem”, admite.
Andrade começou a gostar de música ouvindo Secos & Molhados e os britânicos do Queen. Mais tarde, quando conheceu a banda inglesa The Smiths se redescobriu musicalmente, principalmente pela complexidade lírica do pós-punk. “Aquele estilo deprê do Morrissey logo chamou a minha atenção. Foi a minha banda preferida por muito tempo. Também curti bastante O Terço, uma banda carioca das antigas que chamam de lado B, alternativo”, frisa e ressalta que até hoje curte clássicos do punk-rock como Sex Pistols, Dead Kennedys, Ramones, The Clash, Misfits e Black Flag.
Relembrando os velhos tempos, recentemente João Henrique localizou o radialista Williard que produzia o programa Jardim Elétrico em João Pessoa, na Paraíba. “Aquele cara que deu tanta força pro movimento punk continua trabalhando com música e também se tornou filósofo. Conversamos muito sobre aquele período”, destaca.
Com a experiência de quem vive em Paranavaí há 18 anos, avalia o movimento musical local como maravilhoso. “Temos o grande Festival de Música e Poesia de Paranavaí [Femup], além de um movimento em ascensão capitaneado pelo Hugo Ubaldo da banda Sub-Versão e o Quintal Mágico, projeto do multiartista Sérgio Torrente que abre espaço para músicas autorais. Outro ponto alto é o Estúdio Garagem, dos irmãos Bellanda. Temos muita coisa coletiva e legal”, argumenta.
Andrade planeja retomar um antigo projeto que é a formação de uma banda de punk-rock voltada para a sonoridade dos anos 1980 e com letras que abordam temas atuais. “Vou voltar a falar um pouco de id, ego e superego, conceitos da psicanálise. Na realidade, já estou abrindo um pouco de espaço para a autoralidade, tanto que nos shows que faço atualmente em barzinhos já incluo alguma música minha. É uma forma de abrir caminho para que os outros também façam isso”, justifica.
Homenagens e premiações no Femup
A primeira vez que João Henrique Andrade se inscreveu em um festival foi em 2003. Sem pretensão, enviou uma música com produção caseira para o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), mas não se classificou. “Era só voz e violão. Não desisti e continuei compondo. Só que optei por voltar a concorrer só em 2013, quando entrei em estúdio para gravar a música ‘Pra Sempre Vou Te Amar’ em homenagem ao meu filho Bruno. Daí veio a minha primeira premiação”, lembra.
No ano seguinte, o músico foi premiado no Femup pela autoria de “Mandela”, um reggae que escreveu quando ainda morava em João Pessoa e ficou sabendo da soltura do sul-africano Nelson Mandela em 11 de fevereiro de 1990. “Tenho escrito mais músicas em homenagens aos familiares e amigos de antigamente. Também estou resgatando canções antigas que não gravei, como é o caso de ‘Quasar’ que fala um pouco do que vivi na Paraíba até 1992”, pontua. Na região de Paranavaí, João Henrique também conquistou muita popularidade após fundar e se apresentar muitas vezes com a banda Tio João.
Saiba Mais
João Henrique Andrade também tem formação em teatro pela Fundação José Lins do Rego, de João Pessoa, na Paraíba.
Clemente, da banda Os Inocentes, com quem João Henrique teve um breve contato, é um dos expoentes da cultura punk no Brasil e um dos principais membros da banda brasiliense Plebe Rude.
A sorte e o azar de dois irmãos
O bicho saltou como um João do Pulo canino e correu em nossa direção
A pequena diferença de idade entre mim e meu irmão mais velho, Douglas, permitiu que até certo momento da vida partilhássemos experiências, brinquedos e amigos. Mas desde o princípio começamos a desenvolver necessidades e traços de personalidade bem específicos. Enquanto eu mamava o suficiente, meu irmão mamava gulosamente. Eu era ansioso, meu irmão era calmo. Eu gostava de vermelho e ele preferia preto.
Ainda assim éramos inseparáveis na infância. E isso começou muito cedo, quando eu era bebê e minha mãe levava eu e meu irmão para passear. Claro, eu ia deitado no conforto do carrinho e o Douglas ia atrás, apoiado em um estribo. Quando minha mãe não estava olhando, ele puxava meus cabelos. A ideia de eu ainda ser um bebê e ter mais cabelos o irritava, fora o fato de que eu nunca precisava caminhar. No fundo, acho que ele me via como um pequeno mentiroso que fingia não saber andar para não dividir o espaço no interior do carrinho.
Como fazíamos praticamente tudo juntos, naturalmente nos tornamos amigos das mesmas pessoas. Por volta dos meus sete anos, o nosso grande companheiro era um garotinho agitado chamado Fabiano, filho da dona Maria Bortolotto, a proprietária de um bar que ficava na Avenida Distrito Federal, em frente ao Posto Atlantic, em Paranavaí. Ela tinha pulso firme com os adultos, tanto que deixava embaixo do balcão um taco de beisebol com a palavra “juízo” gravada em caixa alta, o que impedia brigas e afastava bêbados. Com as crianças o tratamento era diferente. Dava paçoca, paçoca e paçoca. Quero dizer, muita paçoca dos mais diferentes tipos, o que aplacava e depois amplificava a minha ansiedade.
Em 1992, brincávamos em obras abandonadas. Eu aproveitava os buracos nas paredes para escalar. Quando havia montanhas de areia lavada em torno do imóvel, subia no ponto mais alto e saltava afundando até metade do corpo. Fingia que estava em um poço de areia movediça e simulava pedir ajuda. Cada dia era uma aventura diferente. Às vezes não queríamos ir muito longe e ficávamos ao lado de casa, no depósito de pedras da minha mãe.
Lá, eu escalava uma árvore sete-copas e, aproveitando as sombras das folhas, sentava e comia com muita satisfação as suas castanhas amarelas e azedinhas. “Você é doido? Isso é comida de morcego!”, provocava Fabiano enquanto ria e se balançava sobre os galhos de uma amendoeira-da-praia. No entorno das árvores havia grandes montes de pedras portuguesas pretas, brancas, amarelas e vermelhas. Também saltávamos sobre as pedras, numa corrida maluca para ver quem conseguia se manter de pé por mais tempo. Paulinho, um rapaz contratado por minha mãe para cortar as pedras, só observava e nos repreendia, gritando e acenando de longe com uma luva grossa feita artesanalmente com borracha de pneu de caminhão.
A diversão era garantida, mas como o risco era grande a atenção tinha que ser redobrada. Uma vez, e por azar, meu irmão deu um passo em falso e caiu com a palma da mão sobre uma pedra pontiaguda branca. Enquanto o sangue escorria pelo monte, corri até em casa e avisei minha mãe. Após estancar o ferimento com gaze e esparadrapo, o levamos até o Pronto Socorro Municipal, onde ele recebeu alguns pontos na mão.
Para acalmá-lo, o lembrei de um episódio em 1991, quando estávamos em Inajá, a pouco mais de 60 quilômetros de Paranavaí. Naquele dia, minha mãe organizou uma festa para os funcionários que trabalharam na construção da Praça Central. Aproveitando a distração de nossos pais, eu, Douglas e uma amiga chamada Bianca pegamos algumas garrafas de cerveja e nos escondemos em cima de uma árvore. Depois do primeiro gole, me perguntei como uma bebida poderia ser tão ruim.
“Toma mais! Falam que é assim mesmo, o gosto demora pra ficar bom”, sugeriu Bianca. Acenei a cabeça em concordância e continuei tomando no gargalo. Antes do sabor melhorar, eu já estava embriagado. Fiquei tão zonzo que esqueci da árvore. Só tive uma breve retomada de consciência ao me ver em pé no chão. Sem entender como não caí sentado ou deitado, continuei segurando a garrafa com uma mão. Minhas pernas tremularam quando minha mãe me pegou pela orelha e me levou para o carro, onde passei horas deitado e confuso. Foi a minha primeira e última experiência com a embriaguez. Meu irmão que também consumiu cerveja saiu ileso do episódio, o que justificou os seus risos diante da lembrança após ter a mão suturada.
Dias depois, logo que a mão do Douglas cicatrizou e nossos pais viajaram para São Paulo, decidimos subir no telhado de uma residência vizinha que estava abandonada. O objetivo era colher drupas de santa-bárbara, que chamávamos de bolinha, para usar como munição nas nossas brincadeiras no quintal. Então começamos a balançar os galhos da árvore e de repente o telhado se rompeu. Eu, meu irmão e Fabiano caímos diretamente no chão da cozinha da casa.
Fabiano saiu ileso. Apenas mordi a língua e observei assustado um garrafão de cinco litros de vinho ao meu lado. Douglas não contou com a mesma sorte. Quebrou o braço e teve de ser levado pela minha tia Paula até a Santa Casa. Ao ser avisada, minha mãe se desesperou e voltou para casa. Apesar do braço engessado e das piadas dos amigos, ele não pareceu tão incomodado.
Na semana seguinte, em uma manhã de sábado, o tio Celso passou em casa para nos levar ao sítio. Em frente à Sanepar, a porta da caminhonete abriu e o Douglas caiu na rua. Com o braço engessado, saiu rolando rente ao meio-fio e gritando: “Espera eu, espera eu. Tô aqui!” Preocupado, Celso parou bruscamente o veículo e correu para socorrê-lo. Apesar das escoriações, das roupas rasgadas e do susto, meu irmão ficou bem.
Meses depois, saímos para brincar com meu primo Wilton. No caminho, assim que vimos um pé de manga em um terreno baldio, entramos e começamos a arremessar pedras para derrubar as frutas mais bonitas e saudáveis. Ao lado, na casa vizinha, um enorme pastor alemão não parava de latir, saltar e mostrar os dentes. Apesar do olhar ameaçador, não vi motivo para temê-lo, até porque o muro era muito alto, tão alto que nunca vi um cachorro saltar daquela altura.
De repente, quando derrubamos a terceira e mais carnosa das mangas, o bicho saltou como um João do Pulo canino e correu em nossa direção. Num reflexo que julgo até hoje como sobrenatural, subi na árvore com a agilidade de um leopardo. Meu irmão e meu primo não tiveram a mesma sorte, principalmente o Wilton que ganhou uma cicatriz permanente na perna. Até hoje acredito que o tal pastor alemão deu inúmeros saltos menores para nos encher de confiança, zombar de nossas limitações. Talvez aqueles dentes arreganhados fossem risos satíricos, aguardando o momento em que cada um estivesse empunhando uma manga.
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Lenhador, uma vida de sofrimento
Péu, Márcio, Egon e Zé descobriram muito cedo que o trabalho pode destruir sonhos e até matar
Por anos, Péu, Márcio, Egon e Zé, moradores da Vila Alta de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, acordaram às 3h para trabalhar. Assim que ouviam a buzina do caminhão às 3h30 em frente de casa, se aproximavam e subiam na cabine carregando as mochilas com as marmitas e as garrafas térmicas com água. A labuta quase sempre começava às 4h15, quando a escuridão impedia que enxergassem as árvores que eram pagos para derrubar e transportar.
No local, se preparavam fazendo uma rápida ginástica laboral e aos poucos se embrenhavam no mato com cuidado, checando a presença de animais, principalmente cobras como cascavel, a mais comum em grandes áreas de eucalipto. “Quando a lenha fica amontoada, não pode chegar batendo a mão. Tem que levantar uma a uma, fazendo barulho. O farolete você leva por conta própria senão algum animal te pega”, avisa Marcelo Martins Melo, o Péu, de 27 anos, que trabalha há mais de nove anos como lenhador.
Mesmo com os cuidados, o perigo sempre foi iminente. Pisadas em cobras, quedas em buracos de tatus e ataques de marimbondos mamangava-de-toco, uma das espécies mais perigosas, acontecem mais cedo ou mais tarde. Maicon Martins Melo, o Egon, de 24 anos, e lenhador desde a adolescência, se recorda das picadas que levou do inseto. Teve de trabalhar o dia todo agonizando, com febre e dor de cabeça. “Cada marimbondo desse dá várias picadas, não só uma. Mesmo assim não pude parar o serviço porque o patrão disse que não me pagaria se eu não ajudasse a carregar toda a lenha”, explica. Os lenhadores também costumam ser picados por escorpiões e aranhas. Tudo isso pode acontecer na primeira hora de serviço de cada manhã, antes do sol despontar no horizonte.
Preocupados com o horário, colocavam à prova a força e a coragem. Para ganhar tempo, nos primeiros minutos na área de corte, sentavam no chão ou escoravam em uma árvore e abriam as marmitas. Depois de comer rapidamente um pouco de arroz, feijão, carne e salada, o corte e o carregamento prosseguiam por pelo menos seis horas. “Lá pelas 8h, se o cortador estiver muito atrasado, a gente para bem rapidinho pra comer um pouco mais, até em pé mesmo. Daí ajudamos a cortar a lenha pra adiantar o serviço. O cortador retribui ajudando a carregar e descarregar”, conta Péu, acrescentando que os lenhadores nem sempre têm tempo de descanso.
Os adeptos do fumo de corda e do cigarro de palha são dispensados logo no primeiro dia de serviço. A justificativa é que atrasam o trabalho dos outros lenhadores. “Não pode parar pra fumar. Senão a gente já começa a falar: ‘Vamos embora, vamos embora’”, relata Egon. Sem imprevistos, a jornada chega ao fim entre 14h30 e 15h30, assim que os lenhadores descarregam a lenha no local de destino, onde a madeira serve para abastecer principalmente as caldeiras das farinheiras e indústrias de cerâmicas. No entanto, se algo der errado, não chegam em casa antes de anoitecer.
A atividade possui um alto índice de desistência. Além de força, é preciso desenvolver boas técnicas de corte e transporte para controlar a exaustão. “Quando vai descarregar pau pesado, você tem que abraçar ele, ‘macaquear’ pra cima e jogar certinho lá embaixo. Pra ficar bom mesmo leva anos. O cara tem que aprender a suportar o calor, lidar com câimbras e beber muita água pra evitar a desidratação”, recomenda Péu que perdeu as contas de quantos lenhadores viu passando mal e desmaiando na mata por causa da alta intensidade do trabalho.
Apesar do risco de hipoglicemia, alguns lenhadores mais experientes passam o dia em jejum. O objetivo é acelerar o serviço e economizar, já que as refeições no campo são de responsabilidade dos trabalhadores. “Você consegue ganhar cem reais num dia, mas as roupas, algumas ferramentas e a comida são por sua conta. Se pensar bem, o seu lucro não passa de R$ 50”, reclama Márcio Alexandre Santos, de 23 anos, que ingressou no ramo aos 12. Para receber o valor integral da diária, três lenhadores precisam carregar 23 toneladas de lenha. Ou seja, 7,6 mil quilos por pessoa. Uma peça de eucalipto com apenas 1,50m chega a pesar até 80 quilos. “A gente se esforça pra sair da roça antes do meio-dia porque esse horário é terrível. O calor vem com tudo e você começa a sentir muita dor”, garante Péu.
Outro problema comum são os acidentes. Sem equipamentos de segurança, os trabalhadores vivem muitas situações de perigo. Há três anos, José Paulo Silva Pereira, de 18 anos, conhecido como Zé, estava cortando um eucalipto com uma motosserra. Antes que percebesse, o vento jogou sobre ele uma árvore que estava logo atrás, cortada por um companheiro. Lenhador desde os 11 anos, Zé sentiu uma pancada muito forte no ombro e caiu no chão, gemendo de dor. No dia seguinte, mesmo ferido, voltou ao trabalho após a ameaça do patrão de mandá-lo embora. “Até hoje sinto dor no ombro, uma queimação bem forte”, comenta.
Em 2007, Péu passou por situação semelhante quando o tronco de uma árvore atingiu-lhe o pescoço, causando uma luxação. Depois de três dias em casa, voltou ao trabalho na segunda-feira. Se embrenhou na mata para carregar uma das primeiras toras derrubadas na madrugada fria e escura. De repente, ouviu um estalo incomum na coluna vertebral e caiu no descampado se contorcendo de dor. “Tinha uns galhos atrapalhando e fiz força demais. Estou com a coluna muito machucada até hoje. Com o tempo foi só piorando”, assegura enquanto muda de posição com receio de não conseguir se levantar até o final da entrevista.
O rapaz também se recorda do episódio em que de forma impensada um colega puxou uma tora de eucalipto que estava sustentando a base da pirâmide de madeiras sobre a carroceria do caminhão. Como resultado, um tronco bateu diretamente no tórax e em seguida nas pernas de Péu. O lenhador desmaiou e teve de ser carregado por colegas. Até melhorar, ficou alguns dias em casa. Quando retornou, o patrão acusou o rapaz de abandono de serviço e se recusou a pagar as diárias atrasadas. “O problema é a velocidade que a madeira cai. Dependendo da altura, uma tora ganha força de 150, 200 quilos. Graças a Deus que o pau bateu na cabine e no retrovisor antes de vir pra cima de mim, senão teria aberto a minha cabeça”, enfatiza.
Independente dos cuidados, é impossível encontrar lenhadores que nunca foram atingidos pela queda de um tronco. Quando o rosto é ferido por galhos a maior preocupação é ficar cego. “Você sente um graveto entrando e saindo como se fosse uma agulha. Não cheguei a perder a visão, mas ganhei uma cicatriz no canto do olho”, revela Péu que se aproxima para mostrar a marca que se assemelha a um borrão vermelho. Apesar disso, há jovens que tiveram experiências ainda piores, como é o caso de Márcio Alexandre Santos que se considera um homem de sorte por estar vivo. Na luta para sobreviver com dignidade, o rapaz enfrentou os primeiros percalços aos 14 anos.
À época, estava trabalhando em uma fazenda perto de Loanda, no Noroeste do Paraná, quando um toco quase arrancou dois dedos de sua mão. Como ainda eram 10h, o homem que contratou Márcio Alexandre não quis ir embora, esbravejando que o prejuízo seria grande. Sem kit de primeiros socorros, enrolaram a mão ensanguentada do adolescente com fita crepe. Com medo de não receber nenhum centavo, continuou chorando de dor enquanto arrastava alguns galhos com a outra mão. “Quando viu o ferimento, o patrão falou que eu podia ir embora, só que sozinho e a pé. Preocupado, usei uma mão para ajudar a descarregar a lenha na farinheira. Fiquei até o final e cheguei em casa lá pelas seis da tarde, totalmente pálido porque perdi muito sangue. Só que o pagamento pelo serviço nunca recebi”, relembra.
Mesmo com as agruras do trabalho, o rapaz estava feliz por ter conseguido comprar uma moto e ainda ajudar nas despesas de casa. Sonhava em conquistar a independência, um ideal que foi interrompido em 12 de julho de 2013. Naquele dia, por volta das 15h, após encher a carroceria do caminhão com lenha, Márcio e mais cinco homens deixaram uma fazenda em Santa Cruz do Monte Castelo, também no Noroeste do Paraná. Muito cansado, cochilou ao lado do motorista na cabine superlotada, até que mil metros adiante na rodovia PR-182 sentiu uma movimentação estranha. Quando olhou pelo retrovisor, a quinta-roda do caminhão quebrou e a carroceria começou a tombar. O motorista tentou reverter a situação, mas era tarde demais.
No acidente, a lenha se espalhou pela rodovia e três pessoas se feriram gravemente. Márcio ficou em pior estado. Só não morreu porque uma família que morava em uma casa à beira da estrada ligou a tempo para o Corpo de Bombeiros. Depois de receber os primeiros socorros no Hospital Municipal de Loanda, o rapaz foi enviado para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da Santa Casa de Paranavaí, onde ficou internado por 15 dias. Segundo os médicos, Márcio nunca mais andaria. “Falaram que eu viraria um vegetal. No primeiro mês, meu patrão conseguiu um encaminhamento para o Hospital Angelina Caron, em Campina Grande do Sul [Região Metropolitana de Curitiba], comprou medicamentos três vezes e me deu um colete. Depois nunca mais, inclusive não recebi as últimas diárias. Acho que ele descontou do que gastou”, deduz.
Para Márcio, as maiores consequências foram a perda total dos movimentos do braço direito e cinco fraturas da coluna cervical. Só voltou a andar porque teve muita força de vontade, segundo a mãe Maria de Fátima Oliveira. Sem condições de trabalhar e sem receber nenhum tipo de auxílio, o jovem passou por quatro cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e hoje conta apenas com o suporte da família. “Meu braço continua na mesma situação. Como não temos registro em carteira, os patrões apenas viram as costas. Para segurar você no serviço, eles fazem muitas promessas que não são cumpridas”, desabafa o jovem que ganhou uma grande cicatriz que começa no peito e termina perto da orelha. Márcio e outro rapaz envolvido no acidente decidiram lutar por direitos trabalhistas há dois meses, após as recusas do patrão de oferecer assistência. Por enquanto não houve acordo.
O que também mostra a negligência por parte dos comerciantes de lenha, responsáveis por abastecer dezenas de indústrias de Paranavaí e região, é a exigência de que o caminhão não pode retornar com menos de 23 toneladas de lenha, sendo que por medidas de segurança é recomendado não ultrapassar 15 toneladas. “Se você levar 20 mil quilos o patrão fala que não cobre nem as despesas dele”, denuncia Egon. Com o caminhão muito pesado, os riscos de acidente na estrada aumentam por causa da perda de estabilidade. Outro problema é o limite de passageiros que normalmente não é respeitado.
O assunto faz Péu se recordar do dia em que iria buscar lenha com dois amigos, mas surgiu um imprevisto e foi substituído por outro companheiro de longa data. Na volta, o motorista perdeu o controle do caminhão que rompeu a proteção da ponte e caiu no Rio Ivaí. Os três rapazes morreram. Depois do acidente, muitos lenhadores cogitaram abandonar a atividade. “Foi em 2012. Fiquei tão assustado que me ocupei com outro tipo de serviço por alguns meses. A verdade é que ainda tenho medo. Você nunca sabe se vai chegar em casa”, afirma Péu.
“O cara pensa até em tirar a própria vida”
Após se ferir gravemente em 2013, o então lenhador Márcio Alexandre Santos entrou em depressão. Se sentiu desnorteado ao saber que não poderia mais trabalhar, se exercitar ou dirigir. “Única coisa que faço hoje é bater uma enxadinha pra fingir que tô carpindo. O médico alertou que se eu cair de mau jeito, sofrer alguma queda, corro o risco de nunca mais levantar. Dizem que não vou mais andar como antes. Tem dia que essa lembrança acaba comigo”, se queixa visivelmente emocionado.
Tão nocivo quanto a dor física, o sentimento de inutilidade também atinge a maioria dos lenhadores em algum momento da vida. O fato de serem jovens e já diagnosticados com diversos problemas de saúde faz com que deixem de acreditar em um futuro melhor ou até mesmo em uma vida longa. “Com 20 e poucos anos você tá pior que cara de 40, 50. Esse é o preço de começar a atuar em serviço pesado na infância ou adolescência. Se ficar encostado, qual mulher vai te querer? Nessa hora o cara pensa até em tirar a própria vida”, admite o lenhador Marcelo Martins Melo, o Péu, que muitas vezes ficou deprimido e inquieto dentro de casa por não estar em condições de trabalhar.
Nos finais de semana a diversão do rapaz era jogar bola com os amigos. Hoje não pode mais porque está com a coluna vertebral severamente comprometida. É a segunda vez que Péu fica impossibilitado de trabalhar por um longo período. “Na primeira, fiquei nove meses debilitado e não recebi nada do patrão. Me machuquei de novo há dois meses e tive que abandonar a lenha. Fiz até um empréstimo pra comprar medicamentos. Rapaz, se faltar remédio eu nem ando!”, confessa enquanto se levanta e caminha a passos curtos e rasteiros.
Há poucos dias, quando Péu foi até a casa do patrão mostrar o atestado e a receita médica, o homem o chamou de mentiroso e vagabundo. Em seguida, virou as costas e fechou a porta. Humilhações são constantes na vida dos lenhadores. “Quando você se machuca, tem patrão que te xinga e sai falando mal pra ninguém te contratar. Na lógica dele, se o cara consegue ficar em pé é porque ainda está bom pra trabalhar, até mesmo no caso de uma árvore prensar sua cabeça e você perder uma orelha. Agora se acertar um pneu e causar algum dano, ele te ameaça e faz você pagar”, lamenta.
O lenhador Maicon Martins Melo, o Egon, conta que um dia o motorista do caminhão de lenha não viu a motosserra deixada no chão e passou por cima, a danificando. Na hora de receber, o patrão descontou R$ 100 de Egon. Só depois o rapaz soube que o motorista o culpou. “O patrão nem quis ouvir a verdade. Pra prejudicar mais ainda, ele nunca dá nota ou recibo de nada. Pra você ter uma ideia da situação, em Paranavaí tem 15 comerciantes de lenha. Desse total, só três respeitam os lenhadores ou dão algum tipo de assistência”, declara Egon.
“Enriqueceram às custas do trabalho de crianças e adolescentes”
Desde que a Vila Alta surgiu nos anos 1970, o bairro se tornou o maior reduto de lenhadores de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Até hoje dezenas de jovens são seduzidos pela promessa de receber um bom pagamento no mesmo dia, logo ao final do serviço. “Vem gente de todos os cantos buscar lenhador aqui. Sempre foi assim. Enriqueceram às custas do trabalho de crianças e adolescentes. Se não fosse os menores de antigamente, eles não teriam nada. Muita gente perdeu e ainda perde a vida na lenha, até porque não leva mais de um ano pra você se machucar”, desabafa Márcio Alexandre Santos enquanto ajeita o braço inutilizado quando trabalhava na área.
Quem também sofreu muito foi o lenhador José Alexandre Silva Pereira, o Zé, que há poucos dias foi até a casa do patrão receber o pagamento das últimas diárias. “Trabalho com lenha há sete anos e fui tratado como bandido. Me expulsou da casa dele e ainda ameaçou chamar a polícia. Me senti tão mal que só virei as costas e parti”, assinala o rapaz que atualmente atua como lombador e dorme na câmara fria de um caminhão nas noites em que passa longe de casa.
Em Paranavaí, um comerciante de lenha vende cada carga por R$ 2,1 mil, o que garante pelo menos R$ 1,3 mil de lucro diário, livre de despesas. “Um patrão com quatro caminhões e que faça uma viagem por dia ganha mais de R$ 100 mil por mês. Se for duas viagens, o lucro passa de R$ 200 mil”, destaca Péu que atua no ramo desde 2006. O que torna o mercado realmente lucrativo é que cada empresa que compra lenha tem uma demanda diária de até 200 toneladas.
“Vamos ralar o peito dele”
Uma prática que os lenhadores mais conscientes tem se esforçado para banir do campo é o “rala peito” que consiste em jogar toras de árvores sobre os mais jovens, obrigando-os a ganhar força rapidamente. Incentivada por comerciantes de lenha, a brutal forma de iniciação de lenhadores costuma ser aplicada principalmente em crianças e adolescentes nos 15 primeiros dias de trabalho. “Eles viam um novato e já gritavam ‘vamos ralar o peito dele’. Isso aí judia demais. Tem que ajudar a evitar de se machucar, não o contrário”, reprova Péu.
De acordo com Egon, é impossível um lenhador não se deparar com injustiças no cotidiano. “Um dia quase morri na BR-376. Tinha cinco na cabine, o caminhão ficou sem freio e nos envolvemos em um acidente com uma carreta. O carreteiro morreu e ficamos até as 2h juntando lenha, morrendo de fome. Cheguei em casa às 4h. Você acha que o patrão me deu algum extra? Pagou só pelo primeiro carregamento e ainda reclamou do prejuízo”, narra o rapaz que até hoje se recorda de um companheiro que morreu prensado entre toras de eucalipto.
Os lenhadores são unânimes em sugerir que os motoristas mantenham distância de caminhões que transportam lenha. Argumentam que já viram toras cair sobre automóveis e motocicletas. “Quando você atravessa uma cidade o risco de algo dar errado é ainda maior. Alguém tem que ficar sempre na porta, observando a carga. Se um pau mudar um pouquinho de posição, o motorista precisa parar pra você alinhar tudo”, sugere Márcio.
Egon também faz questão de mencionar o dia em que um cabo de aço amarrado a uma árvore arrebentou e passou de raspão pela sua cabeça. O companheiro de serviço foi atingido violentamente no queixo e na boca. Como o jovem estava desmaiado e sangrando muito, os demais lenhadores aproveitaram a ausência do patrão para levar o rapaz ao Pronto Atendimento Municipal de Paranavaí. Mais tarde, receberam o recado de que a diária não seria paga.
Frases dos lenhadores
“Duvido chegar um lenhador e falar que o corpo é filé. Não é. Tem problema nas costas, no joelho, no ombro e no cotovelo.”
Marcelo Martins de Melo, o Péu, 27.
“A lenha é tão pesada e cruel que você perde até o vigor físico pra praticar um esporte e se exercitar.”
Márcio Alexandre Santos, 23.
“Quando o pessoal começa a se machucar e espalhar os riscos do serviço, o patrão dispensa todo mundo e monta uma equipe nova.”
Maicon Martins Melo, o Egon, 24.
“Acontece de cortar e amontoar num dia e falarem pra voltar só no outro dia pra carregar. Daí você ganha só uma diária, mesmo trabalhando dois dias.”
José Paulo Silva Pereira, o Zé, 18.
Saiba Mais
O número de lenhadores para o corte e transporte de uma carga pode oscilar de 3 a 6.
De acordo com os quatro lenhadores entrevistados, os caminhões que transportam lenha raramente passam por manutenção.
Um vídeo que mostra brevemente uma parte da rotina dos lenhadores de Paranavaí:
Inocência e peraltices na Escola São Vicente de Paulo
Foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola
Ser criança em uma escola católica até o início dos anos 1990 era bem diferente de hoje. Naquele tempo, os professores realmente puniam os alunos, não com violência, mas com castigo. Apesar disso, tínhamos liberdade para fazer muitas coisas antes das aulas e durante o recreio. Porém, se abusasse, era preciso se preparar para as consequências.
Agitado que era no primário, o período mais meninil da minha vida, sempre que chegava à Escola Vicentina São Vicente de Paulo, na Rua Getúlio Vargas, uma das mais movimentadas de Paranavaí, eu jogava a mochila e saía derrapando pelo piso liso que começava onde terminava a escadaria da entrada. Eu não gostava de usar tênis antiderrapante porque isso acabava com a diversão. Melhor ainda era chegar mais cedo na escola e contar com a ajuda de um amigo. Assim um agachava e o outro o impulsionava. Um empurrão de poucos metros era o suficiente para atravessar todo o pátio.
E foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola. Quando a orientadora viu o estrago, veio em minha direção. Sem pensar muito, corri de um lado para o outro enquanto ela tentava me pegar. A deixei no vácuo algumas vezes até vê-la resfolegando, já cansada e com uma das mãos apoiadas no abdômen. A plateia de estudantes de 6 a 10 anos gargalhava conforme eu sorria e ziguezagueava. Na realidade, sentia um frio na barriga e um temor indizível de ser severamente castigado. Mesmo assim enfrentei meu destino e me entreguei à punição.
Temia que me colocassem ajoelhado sobre milhos graúdos ou tampinhas de garrafa. Imaginava as bordas de alumínio penetrando minha pele e querendo invadir minha carne. Sentia gastura só de pensar em quantas horas passaria de joelhos. Por sorte, fiquei apenas preso na sala da orientadora até a minha mãe chegar. Ou seja, a punição seria dada por ela. Em casa, depois de algumas cintadas em que eu fingia muito mais dor que a minha mãe infligia, precisava apenas de poucas horas para ficar novo em folha e pronto para a próxima aventura. Melhor ainda quando ela transmitia a responsabilidade ao meu pai. Daí era só deitar e fingir enquanto a cama apanhava, uma coitada que não tinha nada a ver com as minhas traquinagens. O segredo da boa ludibriada estava na sincronia.
Na sala de aula eu também tomava parte na bagunça. A verdade é que muitas vezes fui o autor da algazarra, uma desordem ingênua que envolvia piadas, armadilhas, brincadeiras e jogos com papel e caneta. Por essas e outras, a irmã Angelina, minha professora, me colocava atrás da porta com o rosto mirando a parede. Quando ela não via, eu virava e fazia alguma micagem. Ia para o castigo sorridente, como se ganhasse um prêmio, sem entender o que aquilo representava no ideário adulto. Ocasionalmente era deixado de costas para o quadro e sem poder falar nada quando a professora apresentava um conteúdo novo. De vez em quando era obrigado a colocar a minha carteira escolar ao lado da mesa da irmã Angelina.
Era um alívio quando ouvia o sinal do recreio. Saía ligeiro com a minha lancheira do Rambo, já ansiando por pão com Amendocrem que minha mãe me permitia comer em dias bem específicos. Às vezes comprava salgado e sodinha ou comia o tradicional pão preparado pelas freiras. Depois do lanche, eu ficava em frente ao mini palco da quadra esportiva. Lá, no horário de sempre, alguém arremessava a sobremesa: dezenas de balas de cores, tipos e marcas diferentes. Cada guloseima que voava era acompanhada de gritos, saltos, empurrões e uma onda de mãos pequenas.
Antes do recreio chegar ao fim, eu encostava as costas no muro da quadra e os pés no tronco de uma árvore a meio metro de distância. Então subia o máximo que podia, o que era proibido. Mas a alegria de simular um gigante naquela altura, enxergar tantas coisas à minha volta, inclusive quem passava em frente a escola, fazia o risco valer a pena. No entanto a alegria da entrada nem sempre era partilhada na saída. Quando chovia, me arrependia de usar calçado de sola lisa para deslizar pelo pátio. A pé, eu percorria com pernas curtas um trajeto que incluía passar em frente à Panificadora Pão de Açúcar, Bar Ginasial, Mercado Minibox e Sorveteria Cremone, todos na Avenida Distrito Federal.
Sentia um misto de alegria e arrependimento porque me via obrigado a brincar de escorregar sem querer. Tentava ser cuidadoso enquanto me distraía observando a movimentação de pessoas nas ruas e o som da água em atrito com o guarda-chuva desproporcional à minha estatura. Eu não gostava de me proteger do salseiro. Achava que isso era coisa de adulto e que a chuva me daria algum tipo de poder quando tocasse meu corpo. Bom, assim eu acreditava sempre que desviava rapidamente o guarda-chuva e inclinava a cabeça para trás.
Um dia, depois de abrir a boca e experimentar o gosto da chuva, me questionei como poderia ser tão parecido com a água benta. Logo me recordei da vez em que visitei a Paróquia São Sebastião com a turma da catequese e bebi água benta da caldeirinha. “Por que você fez isso? Você vai pro inferno!”, disse meu amigo Toninho. Sorri acanhadamente e falei que não iria. Passei os cinco dias seguintes com medo do chão do meu quarto se abrir e me arrastar para as profundezas do inferno enquanto eu dormia. Cheguei até a me amarrar na cama com um lençol em uma madrugada.
Quando a lembrança se desvaneceu, lembrei da bronca ou surra que levaria da minha mãe se chegasse em casa ensopado. Eu poderia dizer que um carro jogou água em cima de mim, mas ela não acreditaria. Perita no assunto, reconheceria se a água veio diretamente do céu. Achei melhor não arriscar, mesmo que meus pensamentos se voltassem para um filme que assisti com meu pai na época. O sujeito parecia tão feliz cantando e dançando na chuva que eu não entendia porque aquele era o único adulto do mundo com espírito de criança. Concluí que talvez fosse tipo um Peter Pan.
Assim que me aproximei do cruzamento da Avenida Distrito Federal com a Rua Pernambuco, decidi me arriscar. Fechei o guarda-chuva e deixei a água cair sobre mim numa torrente expurgadora. Não estava gelada nem fria. Também percebi o céu clareando e algumas poças d’água invadidas por fragmentos de arco-íris que surgiam por todo o caminho. Fiquei feliz e encharcado nos primeiros minutos. Só senti a mochila pesada e os pés enrugados quando atravessei uma rua próxima da Sanepar.
Em frente de casa, respirei fundo e abri o portão. Fui recepcionado por Pretinha e Mussum – conhecido como Rabo de Biscoito, dois cãezinhos mestiços. Quando olhei pela janela, minha mãe lançou um olhar de reprovação. Então refleti: “Será que é dia de cinta?” Sorri com os lábios molhados e ouvi silenciosamente sua reprimenda. Quando se calou, repliquei, tentando fugir das cintadas: “Se o paraíso fica no céu por que a gente não pode ser divertir com aquilo que cai da beirada? Ué, chuva tem até gosto de água benta!”
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Uma manhã de sangue e morte no Bar do Beni
Traídos por amigos, Canjerana e Macaúba foram assassinados a tiros em 4 de julho de 1955
No dia 4 de julho de 1955, uma segunda-feira, Manoel Rocha, o Macaúba, trajava a sua inseparável capa de gabardine, a mesma usada pelos mafiosos sicilianos da década de 1920, quando passou de manhã na casa de Manoel Alves Canjerana e o convidou para ir até o Bar do Beni, atual Cartório Tomazoni, na Rua Marechal Cândido Rondon, ao lado da Banca do Wiegando. Nem o frio e a chuva que enturveciam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, impediu os dois amigos baianos de percorrerem o centro da cidade.
Antes de sair, Canjerana ajeitou a postura, o paletó, o lenço no pescoço e um chapéu de feltro da Casa Ferreira. Chegando ao local, Macaúba entrou no bar e Canjerana ficou do lado de fora, sentado em um banco de madeira enquanto Daniel, um garotinho de não mais que 12 anos, engraxava suas botas. “Ele tinha o costume de ir lá. Só usava botas e gostava de deixar elas brilhando”, conta a filha Nair Alves Silva que estava com 20 anos.
Quando ouviu um tiro, Canjerana, que pela primeira vez saiu desarmado de casa, se levantou rapidamente para checar o que estava acontecendo dentro do bar. Não teve tempo nem de dar alguns passos quando recebeu dois balaços no peito, atravessando o seu pulôver cinza como o céu daquele dia de inverno. Com as costas escoradas sobre as tábuas do boteco, tentou resistir, mas escorregou vagarosamente até cair sentado e cabisbaixo, com o chapéu caído e as pernas entreabertas.
A esposa, Ana, aos 40 anos não imaginava que o marido não retornaria para comer a marmita quentinha que ela preparou e deixou em cima do fogão à lenha, o aguardando. Aos 54 anos, Canjerana estava morto, vitimado por hemorragia interna, transfixação do miocárdio e pulmão, segundo a certidão de óbito. Quando escutou que o seu pai tinha sido alvejado, Jurandir, de 13 anos, correu até o Bar do Beni. Era tarde demais.
Macaúba, de 47 anos, que antes levou um tiro certeiro no ouvido disparado por Pedrinho, um rapaz que também era amigo das vítimas, foi socorrido por quatro homens e carregado com os braços abertos, o rosto mirando o céu e as mãos cobertas pelas mangas longas da capa de gabardine. Ainda com vida, o colocaram sobre a carroceria de um caminhão usado no transporte de madeira, onde dividiu o espaço com o amigo já morto. No Hospital Professor João Cândido Ferreira, atual Praça da Xícara, o homem faleceu.
O autor do assassinato de Canjerana se chamava Napoleão, um rapaz que na noite anterior sentou-se na beira da cama do baiano. “No domingo, meu pai não estava bem e ele veio aqui em casa desejar melhoras. Pegou comida direto do nosso fogão à lenha e comeu com a gente. Meu pai o tratava como um filho”, confidencia Nair. À época, Manoel Canjerana recebeu um convite para trabalhar no Mato Grosso. Recusou porque queria aguardar o nascimento do neto. “Ele achou que seria menino. Tive uma filha que ele nem chegou a ver”, enfatiza.
Dias após o crime, quando estava preso, Napoleão pediu para a mãe de Nair ir até a delegacia porque ele queria se desculpar. “Minha mãe não foi. Disse que isso não tinha perdão. Pra gente foi uma situação tumultuada porque eu estava grávida da minha primeira filha e passei muito mal, tanto que ela nasceu na outra semana”, revela. A família preferiu esquecer o passado e seguir a vida, até porque dos seis filhos de Canjerana a única adulta era Nair Alves.
Um ano depois souberam da libertação de Napoleão e Pedrinho. A soltura foi motivada por influência política. O duplo homicídio teve tanta repercussão no Paraná que jornalistas dos principais veículos de comunicação do estado vieram a Paranavaí. “O que aconteceu foi terrível para as duas famílias. O Macaúba tinha quatro ou cinco filhos”, lamenta Nair Alves Silva, acrescentando que ninguém sabe quais foram os motivos do crime.
Canjerana conheceu Paranavaí em 1949
Nascido em 1900 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Manoel Alves Canjerana se mudou para São Paulo com Ana Alves em 1930. No mesmo ano, trouxe de Recife, Pernambuco, uma garrafa de pinga de porcelana feita no Engenho São João, um artigo que até hoje está conservado em ótimo estado. “Minha mãe tinha 18 anos quando deixou a Bahia. Eles se casaram em Jabuticabal, São Paulo, e de lá foram para Piquerobi, onde ele trabalhou de guarda-livros, o contador da época”, relata a filha Nair Alves.
Anos depois, se mudaram para Presidente Venceslau, onde Manoel Canjerana atuou como fiscal de colonos em fazendas de café. Só saiu do interior de São Paulo quando o candidato a prefeito que apoiou perdeu a eleição, custando-lhe o emprego. “Ele era doido por política. Saiu procurando serviço, mas não encontrou. Ouviu falar da Fazenda Brasileira [atual Paranavaí] e veio pra cá sozinho em 1949. Em 6 de janeiro de 1951, trouxe todo mundo. Dos seis filhos, eu era a mais velha”, destaca Nair.
A família se surpreendeu ao se deparar com uma “cidadezinha” com casinhas cobertas de tabuinhas. “Ficamos em um hotel perto de onde é hoje os Correios porque não tínhamos arrumado uma casa ainda”, afirma. Na Brasileira, Canjerana começou a atuar como fiscal de peões para um homem de sobrenome Saião. “Depois trabalhou para o comendador Remo Massi”, frisa a filha. Em Paranavaí, conheceu o também baiano Manoel Rocha, o Macaúba, que desempenhava a mesma função. Logo se tornaram vizinhos e amigos.
O baiano fiscalizava uma turma de peões na mata
Em 1954, Manoel Canjerana levava para a mata uma caderneta comprida de capa dura escura em que anotava todas as despesas dos peões. Tudo era cobrado, até mesmo a comida e a enxada usada no serviço de capina. Detalhista, o baiano registrava o máximo possível de informações. Ao final, anotava o valor da dívida e quanto cada peão poderia receber pelo serviço. Alguns chegavam a gastar mais do que ganhavam, o que deixava o trabalhador comprometido com o dono da fazenda.
A filha Nair se recorda das vezes em que viu o caminhão partindo com uma turma de peões e muitos fardos de alimentos, principalmente jabá. Na mata a comida era preparada por uma cozinheira conhecida como Dona Alaíde. Quando retornavam a Paranavaí, após até mais de dois meses longe de casa, a chegada dos peões na madrugada era marcada por grande euforia em cima do caminhão. Do alto da carroceria, o som de uma sanfona, a cantoria e as muitas batidas de pé acordavam dezenas de famílias nas imediações da Avenida Rio Grande do Norte.
De vez em quando Canjerana convidava amigos, colegas de trabalho e autoridades locais para almoçarem em sua residência perto dos Correios. “Não dispensava a carne de jeito nenhum e odiava verduras. Sempre que faço salada lembro que ele dizia que não comia mato”, revela Nair.
“Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços”
Na década de 1950, Manoel Canjerana e Manoel Macaúba eram nomes que inspiravam muito medo nos moradores de Paranavaí. “Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços. Sei que eles saíam pra derrubar mato. Alguns diziam que os dois eram chamados para expulsar invasores de fazendas. Se um dia trabalharam para grileiros, isso eu nunca soube”, garante Nair Alves Silva que sempre teve uma imagem bem diferente do pai e também de Macaúba, a quem considerava o amigo mais fiel, educado e cordial de Canjerana.
A filha se recorda das vezes em que viu os dois amigos felizes, cantando música caipira nos bares de Paranavaí. A preferida era “Chico Mineiro”, de autoria de Tonico e Tinoco, um hino caboclo que celebra a amizade. Nair admite que tinha mais liberdade para conversar abertamente sobre qualquer assunto com o pai do que com a mãe. “Ele falava sorrindo: ‘Filha, tô vendo alguém passar ali e não sei não, hein? Acho que ele quer alguma coisa. E já sem graça eu respondia: ‘Ah pai, nem vi!’”, confidencia.
No dia em que o namorado de Nair decidiu pedi-la em casamento, o rapaz ouviu muitas críticas de amigos e conhecidos. “Você tá namorando a filha daquele homem? Aquele sujeito é um perigo!”, narra a filha de Manoel Canjerana. Apesar da campanha contra, o rapaz insistiu. Combinaram um jantar, mas na hora o jovem ficou hesitante. Já impaciente, depois de coçar a barriga algumas vezes, Canjerana falou: “Ué, você não veio falar um negócio aqui comigo? Então fala!” Assim que explicou que queria pedir a mão de Nair em casamento, o baiano comentou: “Então tá falado. Tô dando a mão dela em casamento!” Surpreso com a resposta, o rapaz sorriu e saiu mais do que satisfeito da casa da família Canjerana.
Saiba Mais
Nair Alves Silva nasceu no distrito de Vera Cruz, em Marília, São Paulo, mas foi criada em Pequerobi e Presidente Venceslau.
Foi a filha Nair quem fez o pulôver usado por Canjerana no dia do assassinato.
Outros fiscais que trabalhavam com o baiano eram conhecidos como Preto e Galvão.
Curiosidade
Canjerana e macaúba são nomes de árvores. A primeira possui uma madeira vermelha mais nobre do que o cedro e a segunda é uma palmeira conhecida como o “ouro brasileiro”.
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