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Uma lição de vida
Sempre me emociono quando vejo o vídeo abaixo. Baita lição de vida. E pensar que esses animais são tratados como se fossem isentos de qualquer razão e sensibilidade. Basta pensarmos no uso hediondo deles em laboratórios, em vivissecção. Triste realidade.
Considerações sobre compaixão e paladar
Quem diz que veganos e vegetarianos não têm bons argumentos naturalmente coloca o paladar acima do direito à vida. Mas quem pensa assim não dirá que simplesmente não se importa tanto com o fato de que alguém há de morrer para que um prazer fortuito seja saciado.
Então, para parecer justo, cria-se justificativas obtusas que são cortinas de fumaça que tentam velar anseios puramente sensoriais. Compaixão é um sentimento superior a qualquer estímulo efêmero desencadeado pelo paladar.
E acho que sobre isso, não há muito o que discutir, já que a compaixão é um dos sentimentos mais nobres da humanidade, enquanto que a gustação, um sentido condicionável, não existe com a finalidade de fazer do ser humano um refém, revelando suas fraquezas. Muito pelo contrário, é algo que o ser humano pode e deve aprender a disciplinar.
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Schopenhauer: “Os animais não são artigos fabricados para o nosso uso”
Eles acreditam e fazem com que os outros acreditem que a conduta humana para com os animais não tem nada a ver com a moral
Em 1818, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer publicou “O Mundo como Vontade e Representação”, consideradas uma das mais importantes obras da filosofia do século 19, e que influenciou o compositor alemão Richard Wagner e o escritor russo Liev Tolstói a se interessarem um pouco mais pelo vegetarianismo e pelos direitos animais.
Embora não haja provas de que Arthur Schopenhauer tenha sido vegetariano, a sua contribuição à discussão dos direitos animais é inegável, ainda mais levando em conta que ele foi um importante filósofo do Ocidente a abordar esses direitos sob a perspectiva da moralidade. Schopenhauer não concordava com a concepção antropocêntrica de que os animais existem simplesmente para servirem aos seres humanos.
Em seu trabalho, esse debate começou a ganhar bastante visibilidade nos livros “Ontologia” e “Ética”, segunda e quarta obra que compõem “O Mundo Como Vontade e Representação”. À época, o filósofo alemão considerou a moralidade cristã extremamente limitada e obtusa por contemplar somente os seres humanos. Sendo assim, pode-se dizer que a moralidade conveniente ao homem não é moralidade, já que a moralidade genuína depende de você não observar somente a si mesmo e as conveniências que envolvem apenas aqueles que são de sua própria espécie.
Schopenhauer também criticou a coisificação dos seres não humanos, o que acabou destacando não apenas a face predominantemente antropocêntrica da moralidade cristã como também de parte da moralidade filosófica, já que a exclusão de outras espécies também encontrou representatividade entre filósofos de seu tempo, o que vem se estendendo até a atualidade, já que muitos filósofos evitam abordar o tema. Esse tipo de conduta era vista por Schopenhauer como um tipo frequente de moralidade de conveniência.
Animais não são meros meios para quaisquer fins. Ao pensarmos que sim, somos coniventes com a violência contra outras espécies e incentivamos a exploração animal em todas as esferas, sendo permissivos inclusive com formas inimagináveis de privação e crueldade. E esse tipo de conduta em detrimento de outros seres vivos leva a um questionamento a respeito da nossa própria moralidade que não contempla ninguém além de nós mesmos. “É uma vergonha essa moralidade digna de párias […], chandalas, mlechchas e que não reconhece a essência eterna que existe em cada coisa viva, e brilha com significado inescrutável em todos os olhos que veem o sol”, escreveu Arthur Schopenhauer na página 173 do livro “O Fundamento da Moral”, publicado em 1840.
Para o escritor Howard Williams, autor do livro “The Ethics of Diet”, de 1883, e considerada uma das obras mais importantes da história do vegetarianismo ocidental, o que distinguia o filósofo alemão da maioria dos pensadores era a sua perspectiva mais singular e abrangente. Ele fez da compaixão o principal, a fonte exclusiva da ação moral. E a sua reivindicação dos direitos das espécies não humanas, em contraste com o silêncio dos moralistas comuns, é o que sempre lhe dará o direito de assumir posição excepcionalmente elevada entre os reformadores dos sistemas éticos, apesar de seus exageros e desvantagens em outros aspectos, segundo Williams na página 287 de “The Ethics of Diet”.
Na página 375 do livro “Parerga and Paralipomena: Short Philosophical Essays – Volume 2”, que reúne uma coleção de ensaios publicados em 1851, Schopenhauer diz que o mundo não é uma peça de maquinaria e os animais não são artigos fabricados para o nosso uso. “Não se contentarão facilmente em contemplar um animal raro e desconhecido; hão de querer também instigá-lo, irritá-lo, fazer-lhe brincadeiras desagradáveis e isto unicamente para se darem o sentimento da ação ou da reação; mas esta necessidade de excitar a vontade se revela, de modo efetivamente especial, […] expressão verdadeira do lado miserável da humanidade”, consta na página 29 do quarto livro, intitulado “Ética”, de “O Mundo Como Vontade e Representação”.
De acordo com Schopenhauer, a compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, assim afirmando que quem é cruel com as criaturas vivas não pode ser um bom homem. Além disso, no seu entendimento, tal sentimento flui manifestamente da mesma fonte de onde surgem as virtudes da justiça e da gentileza.
“Os saxões, quando conquistaram a Inglaterra, ainda não eram cristãos. No entanto, a língua inglesa mostra algo análogo no estranho fato de que todos os animais de gênero neutro são citados pelo pronome ‘it’, empregado a eles como se fossem coisas sem vida. Este idioma soa muito censurável, especialmente quando se fala de cachorros, macacos e outros primatas, e é inequivocamente um truque projetado para reduzir os animais ao nível de objetos inanimados”, criticou.
Por outro lado, o filósofo citou como contraponto a realidade dos antigos egípcios que dedicavam todos os seus dias à religião e estavam acostumados a colocar um crocodilo, entre outros animais, na mesma abóbada com a múmia humana. “Na Europa, é um crime, uma abominação, enterrar um cão fiel no mesmo local onde repousa seu mestre, embora seja lá que talvez ele, com uma fidelidade e um apego desconhecido pelos filhos dos homens, aguardasse seu próprio fim”, declarou.
O pensador alemão também relatou que um dia leu sobre um caçador inglês que depois de matar um macaco não conseguiu mais esquecer o olhar moribundo que a criatura lançava sobre ele. Movido por remorso, jamais atirou em outro animal. “As pessoas de delicada sensibilidade, ao perceberem que em um ataque de mau humor ou raiva, ou sob a influência do vinho, puniram seu cão, seu cavalo ou seu macaco imerecidamente, desnecessariamente ou excessivamente, são apreendidas pelo remorso. Sentem a mesma insatisfação em relação a si mesmos, como quando estão conscientes de terem feito algum mal a um de seus companheiros. A única diferença – puramente nominal – é que, neste último caso, esse remorso, essa insatisfação é chamada de voz da consciência que se ergue em repreensão”, analisou Schopenhauer que qualifica essa reação como a voz da moralidade que surge mais docemente a partir da compaixão.
O britânico William Harris, um dos caçadores mais famosos de seu tempo, contou em sua biografia publicada em Bombaim, na Índia, em 1838, que nos anos de 1836 e 1837 viajou para longe no coração da África com a mera intenção de perseguir animais, algo que ele definia como uma de suas paixões. Em uma passagem, ele descreveu como atirou em seu primeiro elefante, uma fêmea. Na manhã seguinte, indo procurar seu alvo, ele descobriu que todos os elefantes tinham fugido da localidade, exceto um jovem elefante que passou a noite toda ao lado de sua mãe morta.
Vendo os caçadores, ele esqueceu completamente do medo e, com os mais claros e vivos sinais de tristeza desconsolada, caminhou até eles. Então moveu seu minúsculo tronco em direção a eles, como se pedisse ajuda. Sobre o episódio, narrou Harris: “Eu estava cheio do mais verdadeiro remorso pelo que tinha feito e me senti como se eu tivesse cometido um assassinato.” Para o filósofo alemão, reações como essa eram mais comumente encontradas nos ingleses que, segundo ele, eram mais compassivos que os outros povos europeus.
No livreto do Congresso da União Vegetariana Internacional (IVU) de 1957, consta um excerto em que Arthur Schopenhauer assinala que o esquecimento imperdoável ao qual os animais não humanos são relegados pelos moralistas da Europa é bem conhecido. Eles fingem que os animais não têm direitos. Acreditam e fazem com que os outros acreditem que a conduta humana para com os animais não tem nada a ver com a moral, que o ser humano não tem dever algum em relação aos animais.
“Uma doutrina revoltante, grosseira e bárbara. Não conheço oração mais bela do que a que os hindus de outrora usaram para fechar seus espetáculos públicos. Era: ‘Que todos os que têm vida sejam libertos do sofrimento…’”, enfatizou. Observações e reações como essa acompanharam Schopenhauer por toda a sua vida, fazendo com que ele ficasse conhecido como o maior intérprete das ideias budistas e hinduístas na Europa.
Embora não tenha fundado nenhuma escola de filosofia, o filósofo alemão exerceu grande influência sobre o existencialismo e a psicologia, principalmente a partir do quarto livro de “O Mundo como Representação e Vontade”. Na página 409 da obra completa, ele citou que quando Buda, ainda como Bodisatwa, colocou pela última vez uma sela sobre um cavalo para fugir da casa de seu pai em direção ao deserto, ele falou ao animal: “De longa data, tu me auxilias na vida e na morte; mas doravante cessarás de levar-me e de trazer-me. Leve-me daqui ainda uma vez, ó Kantakana, e quando tiver conquistado a lei [ou seja, quando ele for o Buda] não me esquecerei de ti.”
Sob a ótica das crenças do Ocidente e do Oriente, outra referência que realça a distinção no tratamento dado aos animais não humanos é a alusão à transmigração das almas, que fala que todos os sofrimentos que infligimos às outras criaturas devem ser expiados. O filósofo cita na obra “Ética”, do livro “O Mundo como Vontade e Representação”, que sob a perspectiva da metempsicose, a má conduta obriga o ser humano a retornar ao plano terreno sob a forma da criatura sofredora e desprezada, o que pode ser qualquer tipo de ser vivo, humano ou não.
Em 1872, o teólogo e exegeta (intérprete religioso) alemão David Strauss publicou o livro “Der alte und der neue Glaube”, que significa “A Velha e a Nova Fé”. Na obra, ele registrou que a história da violência e da criminalidade mostra que muitos torturadores e assassinos foram antes torturadores de animais. Para Strauss, a forma como uma nação trata outras espécies é um medidor do seu nível real de civilidade. “As raças latinas como sabemos, saem mal neste exame, nós alemães, não muito bem. O budismo fez mais nesta direção do que o cristianismo, e Schopenhauer mais do que todos os filósofos antigos e modernos juntos. Essa serena simpatia pela natureza senciente, que permeia todos os escritos de Schopenhauer, é um dos aspectos mais agradáveis de sua […] filosofia”, escreveu.
Referências
Schopenhauer, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação (1818).
Schopenhauer, Arthur. O Fundamento da Moral (1840).
Schopenhauer, Arthur. Parerga and Paralipomena: Short Philosophical Essays – Volume 2. Clarendon Press (2001).
Williams, Howard. The Ethics of Diet (1883).
Strauss, David. Der alte und der neue Glaube (1872).
http://www.ivu.org/history/europe19b/schopenhauer.html
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Tolstói: “O vegetarianismo é um sinal da aspiração séria e sincera da humanidade”
Sobre a carne como alimento, o escritor russo Liev Tolstói a desqualificava sob qualquer aspecto
Um dos maiores nomes da literatura mundial, Liev Tolstói, além de romancista, filósofo, humanitarista e pacifista, também chamou a atenção e conquistou muito respeito nos séculos 19 e 20 por ser um grande defensor do vegetarianismo. Levando uma vida frugal, ele se alimentava basicamente de pães, frutas e vegetais.
Sobre a carne como alimento, Tolstói a desqualificava sob qualquer aspecto, e não apenas ponderando sobre o sofrimento dos animais, mas também a supressão da capacidade espiritual humana – que deveria se voltar para a simpatia e compaixão pelos seres vivos. “Ao violar esses sentimentos, o ser humano abre as portas para a crueldade. Mas afirmando que Deus ordenou o abate dos animais, o que acima de tudo é tão somente um hábito, as pessoas perdem inteiramente o seu sentimento natural”, escreveu Tolstói em ensaio publicado no livro Recollections and Essays, lançado em 1937, 27 anos após sua morte.
Na obra, há diversos textos raros em que ele aborda suas experiências com o vegetarianismo. E se alguns deles se voltam para a introspecção e interiorização, outros consistem em retratos da comezinha hipocrisia. Exemplos são os relatos sobre o que ele testemunhava tanto nas áreas urbanas quanto rurais da Rússia tsarista.
Segundo o escritor russo, o ser humano, por ter hábitos onívoros, ignora o fato de que o primeiro elemento da vida moral é a abstinência. “Não faz muito tempo que falei com um soldado aposentado. Ele ficou surpreso quando eu disse que é uma pena matar animais e reduzi-los à comida. Justificou que era a ordem natural das coisas. Falei que sentia mais pena ainda quando os animais surgiam silenciosos, como gado manso. ‘Eles vêm, coitados, confiando em ti. É muito lamentável.’ Até o final da nossa conversa, ele já estava concordando comigo”, narra.
Tolstói também relata uma experiência que teve quando decidiu visitar um matadouro em Tula, ao sul de Moscou. Naquele dia, ele convidou um amigo para acompanhá-lo. A proposta foi declinada e o homem alegou que não suportaria ver o abate dos animais. “Vale a pena observar que ele era também um desportista que caçava pássaros”, enfatiza o escritor, desvelando a contradição especista do amigo.
De acordo com o russo, em qualquer lugar, sempre há uma senhora refinada devorando a carcaça de um animal, crente de que está agindo corretamente. Ela é tão frágil que diz não ter condições de se alimentar somente de vegetais. Também é tão sensível que jamais conseguiria causar dor a si mesma ou a qualquer outro animal. Na realidade, seria incapaz até de vê-lo sofrer. E ela é fraca justamente porque foi ensinada a se alimentar daquilo que não é natural ao homem. E, ainda assim, ela não consegue evitar de causar dor aos animais porque prefere continuar comendo eles.
Para Tolstói, se alimentar de animais é uma injustiça e uma imoralidade que tem sido aceita pela humanidade durante toda a vida consciente dos seres humanos. Apesar disso, há séculos cresce o número de pessoas que não reconhecem o ato de comer carne como sendo certo. No século 19, o escritor russo percebeu que a humanidade já passava por um progresso moral lento, mas ininterrupto.
“Não se pode duvidar que o vegetarianismo tem progredido dessa forma. O progresso do movimento deve provocar especial alegria naqueles que se esforçam por trazer o verdadeiro reino de Deus à Terra. O vegetarianismo é um sinal da aspiração séria e sincera da humanidade em direção à perfeição moral”, defende Liev Tolstói em Recollections and Essays. Sua contribuição para o vegetarianismo foi tão significativa que desde a década de 1950 seus ensaios são usados em congressos realizados no mundo todo.
Referências
Tolstoy, Leo. Recollections and Essays. Nabu Press (2011).
IVU World Vegetarian Congress, Souvenir Book (1957).
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O chamado dos animais
Se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo
Ainda tenho fresca na minha memória a lembrança da última vez em que comi carne. Me ofereceram um lanche, o que eu passava até meses sem comer, e aceitei. Afinal, era uma sexta-feira à noite. “Tudo bem, é só hoje”, pensei. Mordi sem pressa e sem o prazer de outrora o alimento que trazia uma variedade de carnes – filé de frango, hambúrguer e pedacinhos de bacon. Era enorme e mal cabia nas minhas mãos, embora elas não sejam pequenas.
Depois de comer, observei o papel branco que envolvia o lanche. O enrolei e o joguei na lixeira. Há muito tempo me acostumei a não comer demais porque não vejo sentido em ir além das minhas necessidades. Sentado, perdi o interesse em continuar lendo um livro que até então invadia meus pensamentos e divagações. Me senti inchado, não pela quantidade de alimento que ingeri, mas por algum motivador que acredito ser biologicamente inexplicável. De súbito, minha boca ficou azeda como se tivesse recebido uma dose de fel. Fui até o meu quarto, me olhei no espelho e não me reconheci. Meus olhos estavam translúcidos e dentro deles vi algo se movendo repentinamente, como que motivado por um descomedido desconforto.
Levei as mãos ao meu abdômen e notei que minha barriga chapada tinha se tornado irreconhecível, disforme e malemolente. Involuntariamente, se distendia numa ocultação criteriosa. Era incompreensível porque não comi tanto. Quando voltei a atenção ao meu rosto no espelho, havia alguns riscos carminados nas escleróticas. Fechei os olhos por um momento e quando os abri tinham se desvanecido. O mesmo aconteceu com as marcas que surgiram na minha barriga, lembrando toques de uma pata. “Que coisa mais estranha! O que está acontecendo comigo?”, me questionei assustado.
Desliguei o computador, apaguei a luz e deitei na cama. Eu estava cansado e o sono prosseguia distante do meu desejo. Fiquei observando o teto e notei que ele se movia aos poucos. Não poderia ser tontura porque minha noção espacial persistia precisa. Ao meu lado, eu enxergava tudo com exímia clareza. Assim que o teto se abriu, como se fosse deslocado de lugar, sem causar qualquer tipo de barulho, desordem ou sujeira, a chuva fresca se lançou diligente sobre mim. Me movimentei sobre a cama com a ligeireza de quem está sofrendo de espasmo hípnico. Em pé e hipnotizado pelo céu enluarado que iluminava meu quarto com uma luz cerúlea, continuei calado, inerte.
A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte. Quando a vaquinha pousou ao meu lado, a pestilência se intensificou. “Nem bebo! Que bizarrice é essa? Será que estou pirando?”, refleti. Ela ficou me observando sem emitir som. Seus olhos se agigantavam e em seguida diminuíam. Parecia um coração pulsando. E o fedor só aumentando. De repente, deu um mugido misturado com cacarejo e grunhido. Então se inclinou para que eu massageasse sua cabeça.
Antes que eu a tocasse, a vaquinha partiu da mesma forma que chegou – voando e lançando de suas mamas alguns jatos de leite encorpado misturado com sangue. Uma porção impactou sobre minha cabeça. Passei a mão e notei meus cabelos engordurados, com fedentina de coalhada e ferrugem. Respirei profundamente com olhos fechados, tentando restabelecer a serenidade, e quando os abri tudo tinha sumido, com exceção do cheiro de morte que na realidade era emanado do meu corpo, não da vaquinha.
Voltei para a cama sofrendo de indisposição estomacal – dava a impressão de que o lanche estava revirando meu estômago. Dormi menos de uma hora porque ouvi um barulho insólito que se repetia a cada cinco ou dez segundos. Incomodado, inclinei a cabeça por baixo da cama e percebi um bichinho úmido e morno acariciando a minha tez. Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua. No escuro, seus olhos cintilavam como se tivessem luz própria. Ele sorria e aquilo era intrigante.
Prestando muita atenção em mim, recuou sorrateiramente, como que arrependido. Tropeçou sobre as próprias patas e chorou. Suas lágrimas escorriam pelo focinho. Acuado num canto ao lado da porta, o medo destacava ainda mais a sua pele rosácea. Fiquei mais confuso e sobressaltado quando o porquinho me fez uma pergunta com voz titubeante: “Por que você comeu minha mãe?”
O questionamento não se repetiu e imaginei que eu estivesse delirando. Não respondi. Preservei o silêncio até a chegada repentina da ânsia de vômito. Pálido, vi minhas mãos tornadas diáfanas. Algo subia dentro de mim enquanto meu corpo esquentava e esfriava. Quando abri a boca, os pedacinhos de bacon se lançaram ao chão inteiriços. Se juntaram como se fossem magnetizados.
Em poucos segundos se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo. Extasiado, o filhote se jogou sobre ela e, sôfrego, a lambeu. Os dois ficaram ali, juntos, tão próximos que tive a impressão de que dividiam a mesma respiração. Quando desviei os olhos rapidamente, eles desapareceram. Deitei na cama outra vez. Dormi por duas ou três horas até perceber um animal tocando as minhas costas. Era leve e tinha cheiro de quirera de milho e farelo de soja. Havia três pintinhos andando em cima de mim.
Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa. Ciscava tentando transmitir uma mensagem. Levantei e o observei subir pelo meu braço como se fosse uma ponte. Sobre o meu ombro, ele piava com ternura, se comunicando com os outros dois que repetiam o trajeto. Num rompante, a ânsia de vômito veio com tudo. De minha boca saíram alguns pedaços pequenos e inteiros de filé de frango que antes de caírem no chão ganharam a forma de um frango que voou por curta distância batendo as asas e fazendo uma balbúrdia gangosa.
Os pintinhos saltaram sobre ele e os quatro correram porta afora, na escuridão amena da madrugada. Não fui atrás. Com os braços apoiados sobre a cama, assisti tudo sentado, com olhos combalidos e semicerrados. Extenuado, caí na cama e adormeci. Em sono profundo, me vi comendo o lanche da noite passada. A cada mordida, eu sentia a dor da finitude, o aroma ininterrupto da morte. Toda a tristeza diante do passamento era absorvida pelo meu organismo e corpo, fazendo-me experimentar pontuais calafrios.
Medo, ansiedade, estresse, impotência e agonia. Os animais mortos concentravam tudo isso em suas carnes que recheavam meu lanche, fazendo vibrar dentro de mim a aglutinação de uma energia negativa intempestiva e solene emanada pela certeza do definhamento. A dor atravessava a minha essência e me fazia assistir os instantes finais de bovinos, suínos, caprinos e aves. Muitos choravam antes da execução porque reconheciam que suas vitalidades foram inibidas precocemente.
A morte perfazia um caminho tortuoso que subsistia dentro de mim. “Veja a minha dor, sinta a minha dor. Um mundo com animais demais e vidas de menos. Um dia, os humanos vão sofrer como nós. A carne há de sobrar, mas não haverá a quem dar de comer. E assim o mundo vai apodrecer rendido aos excessos desenfreados da produção”, ecoava na minha mente uma voz que embora bem articulada simulava um sincretismo de sons de animais de várias espécies.
“Nasci por esses dias. Veja só o meu tamanho, como cresci. E amanhã já vou morrer porque assim quis o meu criador”, comentou um frango resignado dentro de uma gaiola plástica, antes de ter os pés decepados por um facão. Os mais ingênuos, que não sabiam de seu destino, batiam as asas em vão. Se feriam gravemente, mas lutavam pela liberdade com inocência e inaptidão, já que desconheciam outra realidade que não a do confinamento.
Em uma fazenda enorme a perder de vista, os porcos comentavam entre si que haveria um grande abate no dia seguinte. Um deles conseguiu escapar e revelar a trama aos outros animais encarcerados a 50 e até 100 metros de distância. “Fomos criados pra morrer! Pra morrer! Só isso! Nada mais!”, berrava um jovem porco desajeitado. Durante a madrugada os animais se reuniram e cavaram uma vala mastodôntica. Em sequência saltaram no cabouco e pediram que dezenas de cavalos da coudelaria os cobrissem com terra.
“Pelo menos vamos morrer com dignidade”, argumentou um dos porcos mais bem cotados da propriedade. Optaram por se matar porque acreditavam que perdiam a alma quando serviam de alimento aos humanos. No dia seguinte, todos estavam mortos – filhotes, jovens adultos e animais velhos, abraçados independente de espécie. Em frente ao enorme sepulcro improvisado havia uma frase riscada sobre a terra – “O antiespecismo é como uma vela resfolegando sob a chuva.”
Acordei mais uma vez quando ouvi um grito. Me vi entre grades sendo transportado sobre um caminhão. Procurei minhas mãos e não as encontrei. Olhei para baixo e percebi que eu não era mais um ser humano, a não ser pela minha própria consciência, condição psicológica e emocional. Fisicamente eu era um robusto boi preto ladeado por outros bois. A maioria mantinha-se em silêncio. Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo.
“Tá chegando a hora, amigo. Nossa jornada chegou ao fim. Pasto, confinamento e abate. É a nossa sina”, lamentou, projetando um mugido fúnebre e prolongado. De repente, todos ficaram em silêncio, com suas cabeças vultosas mirando as próprias patas. Ouvi um som estranho e uníssono. Era como um ritual que eu não entendia porque eu não era um boi de verdade.
Reconheci o peso da morte quando o motorista do caminhão perdeu o controle e caímos de uma ribanceira. Lá embaixo, onde o capim penetrava minhas narinas e invadia minha boca a contragosto, vi a carroceria quebrada e aberta. Ao meu redor, meus companheiros de viagem estavam mortos, inclusive Pastiche que trazia uma expressão de satisfação em meio à penúria. Havia um cheiro estupefaciente de sangue, estrume e ração à base de milho.
Com poucos ferimentos e escoriações, me levantei e corri pelo prado verdejante. Minhas orelhas altaneiras captaram o som oxítono de uma revoada de andorinhas. Continuei correndo sem parar, por uma terra infinita onde o ser humano jamais poderia me alcançar. Recém-despertado de mais um sonho, fiquei sobressaltado, com o coração disparado, sentindo em meus lábios sabor que parecia ser da minha própria carne. Enleado, vi que ainda repousava ao meu lado o papel branco do lanche, lembrança inolvidável de uma avalanche.
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