David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Matadouro’ tag

Como os matadouros influenciaram Hitler na idealização dos campos de concentração

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Matadouros de Chicago serviram como referência para os campos de concentração (Foto: NPR)

Em 2002, o escritor Charles H. Patterson publicou o livro “Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust”, em que aborda como os matadouros serviram como referência para a construção dos campos de concentração durante o regime nazista. Tudo começou quando o empreendedor Henry Ford decidiu visitar um matadouro em Chicago. “Os animais abatidos, suspensos de cabeça para baixo em uma corrente móvel ou transportador, passam de trabalhador para trabalhador, e cada um deles executa algum passo particular no processo”, registrou Ford em sua autobiografia “My Life and Work”, de 1922.

Patterson afirmou que essa experiência de Ford, que serviria de exemplo para ele implementar nas suas linhas de montagem um sistema bastante avançado à época, influenciaria Adolf Hitler a seguir o mesmo caminho. A diferença é que em vez do ditador nazista aplicá-lo em fábricas e indústrias, ele faria isso em campos de concentração. “Hitler baseou todo o tratamento dado aos judeus nas linhas de produção dos matadouros dos Estados Unidos. Ele idolatrava Henry Ford, cuja inspiração para o sistema revolucionário da linha de montagem surgiu depois que ele visitou matadouros em Chicago na sua juventude. Essencialmente, Hitler construiu os seus próprios matadouros substituindo animais por seres humanos”, escreveu Charles Patterson na página 72 de “Eternal Treblinka”.

Para o autor isso significa que a objetificação animal durante e após a Revolução Industrial acabou facilitando também a objetificação humana, já que uma acabou por servir de exemplo a outra. Embora ainda hoje muita gente atribua a Ford o pioneirismo na criação das linhas de montagem que simbolizam a organização racionalizada do trabalho, a verdade é que todo o trabalho desenvolvido por ele teve como pioneiros os empresários Gustavus Swift e Philip Armour, da indústria da carne. “Henry Ford ficou tão impressionado com a maneira eficiente com que os operários abatiam e desmembravam animais em Chicago, que ele decidiu contribuir com o abate de pessoas na Europa, desenvolvendo um método que seria usado pelos alemães para matar judeus”, declarou Patterson.

No livro “Harvest for Hope: A Guide to Mindful Eating”, publicado em 2006, a escritora, primatóloga, etóloga e antropóloga britânica Jane Goodall explicou que os animais suspensos, com as pernas agrilhoadas, suas cabeças para baixo, e se movimentando de um lado para o outro, era o modelo perfeito de uma linha de produção aos olhos de Henry Ford, que buscava uma solução para a criação da ideal linha de montagem automobilística. Mais do que eficiente, a linha de produção na indústria da carne ofereceu aos trabalhadores a oportunidade de serem vistos de outra forma:

“Os animais foram reduzidos a produtos industrializados e os operários tornados insensibilizados poderiam se ver como trabalhadores de linha de produção em vez de assassinos de animais. Mais tarde, os nazistas usaram o mesmo modelo de matadouro para o assassinato em massa em campos de concentração. A linha de montagem tornou-se um meio para que os soldados nazistas se desconectassem da matança – vendo as vítimas como ‘animais’, e eles próprios como trabalhadores”, enfatizou Goodall.

Segundo a antropóloga britânica, Henry Ford era um antissemita fervoroso que desenvolveu uma linha de montagem que serviria de base para os campos de extermínio. O empresário admirava abertamente a eficiência nazista. Hitler retribuiu a admiração. O líder alemão considerava ‘Heinrich Ford’, um irmão de armas e manteve um retrato em tamanho real do magnata da indústria automobilística em seu escritório na sede do Partido Nazista.

De acordo com Charles H. Patterson, Henry Ford lançou uma campanha antissemita que ajudou a tornar o Holocausto uma realidade. Para fundamentar essa afirmação, ele cita o jornal Dearborn Independent, lançado por Ford no início da década de 1920. No periódico, ele publicou uma série de artigos baseados nos textos dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, um tratado antissemita que começou a circular pela Europa após a Revolução Russa de 1917.

Mas uma das maiores contribuições de Henry Ford ao regime nazista foi a publicação dos artigos que dariam origem ao livro “The International Jew”, lançado em 1920, uma obra assumidamente antissemita que teve papel fundamental na formação da ideologia nazista. Patterson revelou que Theodor Fritsch, um dos primeiros apoiadores de Hitler, foi um dos principais divulgadores do livro de Ford:

“Graças a uma campanha publicitária bem financiada e ao prestígio do nome Ford, ‘The International Jew’, foi extremamente bem-sucedido. […] Encontrou sua audiência mais receptiva na Alemanha, onde ficou conhecido como ‘The Eternal Jew’. Ford era extremamente popular na Alemanha. Quando sua autobiografia foi comercializada lá, virou imediatamente o best-seller número um do país. No início da década de 1920, o livro se tornou a bíblia do antissemitismo alemão, com a editora de Fitsch editando seis edições entre os anos de 1920 e 1922.”

No livro “Biopolitical Media: Catastrophe, Immunity and Bare Life”, lançado em 2015, Allen Meek frisou que o processo industrializado de abate de animais criados para consumo se tornou um modelo para os nazistas como “solução final”. Ou seja, a forma mais eficaz de se livrar de judeus: “O encobrimento gradual do abate de animais a partir da visão pública; o processo industrializado de matar um número cada vez maior de criaturas (hoje chegando a bilhões) foi o que provocou inevitável comparação com o genocídio nazista. A brutalidade dos assassinatos exige que aqueles que trabalham na indústria da carne se dessensibilizem em relação ao sofrimento animal, enquanto o consumidor de carne é estimulado a jamais pensar sobre o processo de matança, que é mantido fora de vista.”

Meek aponta que a dissociação entre morte e vida incentivada pela indústria fez e faz com que muitas pessoas desconsiderem o sofrimento animal no contexto da cultura de consumo, até pelo fato de haver um proposital distanciamento. Esse mesmo distanciamento fez com que grande parte dos apoiadores do Holocausto não racionalizassem o seu apoio. Ou seja, o sofrimento e as mortes eram desconsideradas porque os apoiadores do genocídio não precisavam testemunhar as medidas de extermínio.

Referências

Patterson, Charles H. Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust. Lantern Books. First Edition (2002).

Ford, Henry. My Life and Work (1922). CruGuru (2008).

Goodall, Jane. Harvest for Hope: A Guide to Mindful Eating. Grand Central Publishing. Reprint Edition (2006).

Meek, Allen. Biopolitical Media: Catastrophe, Immunity and Bare Life. Routledge. First Edition (2015).





Por que você acredita que o sofrimento de um animal não humano não é menor do que o humano na iminência da morte?

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— Por que você acredita que o sofrimento de um animal não humano não é menor do que o humano na iminência da morte?

Molly B., vaca que fugiu de um matadouro nos Estados Unidos em janeiro de 2006 (AP Photo/Great Falls Tribune, Robin Loznak)

— Acredito que o sofrimento de um animal não humano pode ser maior, sim, realmente maior, e por uma justificativa até simples – a incapacidade de racionalizar e verbalizar o que sente. Imagine a si mesmo em uma selva e diante de um animal muito maior e mais forte do que você. De repente, vocês estão diante um do outro, e não há nada que você possa fazer para impedir que ele o ataque e o mate. Afinal, ele não partilha do mesmo código comunicativo que você. Partindo da mesma situação de um animal prestes a ser abatido, ou seja, de total vulnerabilidade, eu diria que qualquer reação sua será em vão. Isto porque falo de situações equiparáveis.

Por exemplo, um animal na pista da morte em um matadouro está no mesmo estado de vulnerabilidade de uma pessoa desarmada e despreparada caminhando pela selva. Mas nisso subsiste uma distinção substancial. E qual seria? Se um animal me matasse em território selvagem, ele o faria instintivamente, seja por fome, medo, identificação de perigo ou qualquer outro fator que desencadeie essa reação. Já os animais cativos que matamos não nos apresentam qualquer perigo. São simplesmente criados para gerar lucro e saciar paladares, logo são mortos friamente.

Creio que não apenas legitimamos esse tipo de morte como a incentivamos e a incluímos, mesmo que arbitrariamente, na nossa moralidade antropocêntrica. Se ainda assim, a minha resposta não for o suficiente, sugiro que aqueles que discordam do meu posicionamento visitem matadouros e observem a reação dos animais antes de serem abatidos. Não é incomum eles recuarem, tentarem postergar o inevitável. Um animal que testemunha a morte de outro não se oferece para ser o próximo. Muito pelo contrário.

E a ausência de um código de comunicação em comum, sem dúvida torna tudo mais doloroso. Imagino que saberíamos, de fato, como é esse tipo de sentimento se uma espécie muito superior à nossa, e que tivesse um código de comunicação completamente diferente do nosso, fizesse algo parecido conosco. Claro, diferentemente dos selvagens, não despedaçamos nossas vítimas no instante em que as matamos. Porém, não fazemos isso depois? Os açougues e as seções de frios dos mercados provam que sim.

 





Tive um pesadelo em que eu era um boi a caminho do matadouro.

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Há muito tempo, tive um pesadelo em que eu era um boi a caminho do matadouro. A diferença é que eu era um bovino com consciência humana – prestes a morrer e incapaz de verbalizar o meu desespero. Tudo isso intensificou ainda mais o meu medo. Se todas as pessoas tivessem esse pesadelo, acho que teríamos grandes mudanças. É, só vou deixar de ter esperanças quando eu morrer, porque sem esperança acredito que não há pelo que viver.

 





Written by David Arioch

October 12th, 2017 at 11:53 pm

Tertuliano e a boiada

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Pintura: Roz

Em 1951, meu avô conheceu um rapaz em uma fazenda na Água do Cedro. Seu nome era Tertuliano e ele tinha chegado há pouco tempo do interior de São Paulo para atuar como motorista de caminhão. Seu trabalho era buscar mantimentos para três casas de secos e molhados situadas no centro de Paranavaí. Tertuliano era “meio aéreo”, como diziam, e sempre que tinha algum tempo livre, era visto sentado na cabine do caminhão, apoiado sobre o painel escrevendo em um caderninho.

Um dia, fizeram uma proposta para que ele transportasse uma boiada até um matadouro na saída para Nova Aliança do Ivaí. A missão de Tertuliano era buscar os animais na Fazenda Alto Remanso em Alto Paraná. Precisando de dinheiro, não pensou duas vezes. Quando chegou ao local de manhã, os animais já estavam prontos para partir. Um homem gritou: “Tá no jeito!”

Tertuliano desceu a rampa parda e resistente de madeira e assistiu a boiada a subindo lentamente. Hesitação. Resistência. Um dos animais empacou no limiar da rampa. Quatro peões reuniram forças para que o boi, que tinha apelido de Teimoso, aceitasse o seu malquisto destino. Antes de desaparecer dentro da carroceria, o animal observou Tertuliano. Ele desviava o olhar, mas o boi persistia com seus olhos escuros.

— Você leva esses que depois a gente acerta — disse o administrador da fazenda.
— Sim, senhor.
— Quer que alguém te acompanhe?
— Não. Já tá tudo certo do lado de lá.
— Então tá bom. Pode ir.

Tertuliano subiu na cabine. Antes deu outra olhadela nos bichos. Silêncio desconfortável. O incomodava saber que os animais não reagiam mais. Sem barulho. Não odiavam os seres humanos, nem Deus, se houvesse um para eles.

— Que diacho de vida é essa? Sabe que vai morrer e vai aceitando assim?

Durante o percurso, parou o caminhão na estrada. Circulou pela carroceria e ouviu a respiração ruidosa de um deles.

— Será que tá com medo? — questionou.

Quis subir na carroceria para ver melhor a boiada. Feito. Lá em cima, nenhum deles movia os cascos, mas somente os olhos em sua direção.

— Por que num chora, num grita, num berra, num odeia? — questionou assistindo a boiada.
— Será que sabem mesmo pra onde vão? Será?
— Talvez sim, talvez não.
— Tô é ficando louco, falando com boi. Melhor seguir viagem.

Demora. Estrada estreita de terra. Animais silvestres atravessando carreadores e se escondendo na mata. Na saída para Nova Aliança do Ivaí, Tertuliano parou o caminhão e observou a pouco mais de 300 metros um barracão onde funcionava o matadouro. Não gostou do que viu. Hora da despedida. Ou não.

Desistiu da entrega. Seguiu viagem. Parou em um sítio em Graciosa, onde comprou ração e pediu água. Dirigiu até o Porto São José. Chegou depois de quatro dias. Em outro sítio, a boiada desceu a rampa sem medo. Deram alguns passos pasto adentro e deitaram sobre a braquiária. Verde, verde, verde. Sol morno. Sem medo.

— Olhe aí, pai! Parece criança.
— E não são? — indagou o velho acendendo um palheiro.

Não perguntou a origem da boiada. Talvez não quisesse saber, ou não tivesse relevância.

— O senhor pode cuidar deles pra mim?
— Deixe, onde come cinco, come até vinte, acho — respondeu sorrindo.
— Tá certo.

Teimoso, que não era mais teimoso, mugiu brevemente pela primeira vez quando o rapaz virou as costas. Avisou ao pai que era preciso resolver a situação.

— Dá-se um jeito — garantiu o velho.

Na semana seguinte, Tertuliano decidiu retornar a Alto Paraná para resolver a situação na Fazenda Alto Remanso. Perto de Guairaçá, encontrou galhos na estrada e desceu para movê-los. Emboscada. Sete tiros de carabina. Três homens. No banco do caminhão havia um pequeno saco de estopa, dinheiro que seria entregue como forma de compensação.

Agonizando e deixado para morrer, resfolegou. Um novilho atravessou a cerca e se aproximou. Lambeu seus olhos. O rapaz sorriu e sucumbiu. Sua história real não seria contada. Ganhou fama de ladrão de gado quando o que menos queria era roubar vidas. Até os anos 1980, ainda havia uma cruz onde Tertuliano morreu. Trazia a frase: “Se vive para não ver, não há o que querer.”

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“Não é necessário que alguém entre em um matadouro para ver e entender o que acontece lá dentro”

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Arte: Sue Coe

Questionada sobre como faz para conseguir entrar em matadouros onde nenhum jornalista entrou antes, a artista vegana Sue Coe explicou que tudo depende da abordagem e das ferramentas que você carrega. “Levo apenas papel e lápis, e as pessoas podem ver o que estou fazendo. Não estou roubando nada. Não vou tirar nada. Se eles querem meus desenhos, eles podem tê-los. Contanto que eu não retrate trabalhadores como monstros, o que nunca faço de qualquer maneira, embora algumas vezes fiz isso, tenho de admitir”, revelou em entrevista a Caryn Hartglass no podcast “It’s All About Food” em 20 de junho de 2012.

Sue Coe prefere visitar matadouros menores, porque esses são os que menos dificultam suas visitas. Mesmo assim, ela sempre se depara com uma mesma situação – funcionários de matadouros com receio de ficarem desempregados. “Eles não querem ser atacados por ativistas dos direitos animais. Então eles me veem e simplesmente conversamos sobre qualquer assunto que eles queiram. Muitos deles são falantes de espanhol. Então dou-lhes um desenho, e eles podem olhar e dizer se devo mudar alguma coisa. Eles apenas olham e dizem: ‘Ah, isso é bom! Você poderia ser estenógrafa’”, narrou.

Sue perdeu as contas de quantos matadouros visitou ao longo de décadas. Só no livro “Cruel: Bearing Witness to Animal Exploitation”, de 2012, ela traz ilustrações de experiências em 35 a 40 matadouros. “É muito mais fácil entrar em matadouros halal [islâmico] ou kosher [judaico] porque eles são pequenos, de propriedade familiar. Os maiores são da IBP [International Pork and Beef]. Entrei [em matadouro deles também], mas foi muito difícil. Costumo chegar dizendo: ‘Sou uma artista. Gostaria de desenhar.’ Eles dizem sim ou não”, resumiu.

Quando permitem que Sue Coe visite um matadouro, ela é revistada e em seguida entregam-lhe um uniforme. “Não é necessário que alguém entre em um matadouro para ver e entender o que acontece lá dentro. Você esquece muito rapidamente, pessoas esquecem, mas eu nunca esquecerei. Vou fazer isso até morrer, porque é minha responsabilidade com os rostos que vi. Esse é o meu trabalho. Essa era a vida deles. Eu os vi. Eles olharam em meus olhos, e eles me viram”, garantiu a ilustradora a Sunaura Taylor, da Bomb Magazine.

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Written by David Arioch

August 26th, 2017 at 7:16 pm

Sobre a realidade comum dos matadouros brasileiros

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Retrato de um matadouro tipicamente brasileiro

Brasil é um dos países onde é mais difícil entrar com equipamento para registrar as atividades dentro dos grandes matadouros. Vocês podem perceber que em vídeos institucionais normalmente tudo é mostrado superficialmente, e sempre denotando muita limpeza.

Agora me diga, como que um local onde animais são mortos diariamente pode se manter tão limpo? Isso é simplesmente a dissimulação da realidade. Ou seja, material produzido estrategicamente para convencer as pessoas de que não existe nada de chocante em suas atividades. É importante entender uma coisa, não existe carne sem sofrimento e sem derramamento de sangue.

Na foto, retrato de um matadouro tipicamente brasileiro, diferente daqueles mostrados em campanhas publicitárias como aquela que o apresentador Rodrigo Faro fez para a Friboi. Onde há carne, há sangue e um rastro de sofrimento. Afinal, quem sangra sem jamais sofrer? Nenhum ser senciente.

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Written by David Arioch

August 3rd, 2017 at 4:43 pm

A angústia do boi a caminho do abate

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“A parte mais estressante são os últimos minutos dele, porque ele vê o amigo dele caindo, escuta o mugido”

O processo de abate começa na fazenda, na hora que o pecuarista separa o lote dele para o frigorífico. Daí já começa o manejo para o abate. [Quando chegam ao matadouro o desespero dos bovinos é tão grande que eles se prensam na saída da carroceria do caminhão]. Na hora do abate, eles são tocados. Quanto menos usar choque nessa hora, menos prejudicial [bois sendo eletrocutados e mugindo]. A parte mais estressante são os últimos minutos dele, porque ele vê o amigo dele caindo, escuta o mugido.

Mesmo estando confinado em um lugar muito apertado, que tem gente em cima, pra mim, aquela parte é a mais angustiante. [Nesse momento o boi reconhece que algo de muito ruim está acontecendo com o seu amigo e então ele recua, tentando fugir]. Aquela angústia dele na rampa, nos últimos minutos, me marcou até hoje. Não olho nem pro osso deles.

É chamado de pistola pneumática o equipamento que a gente usa para insensibilizar. Tem um êmbolo mais ou menos da grossura do meu dedo. Na hora que o operador aperta o gatilho, esse êmbolo sai, lógico que entra na cabeça e volta. E daí dá aquele abalo no cérebro e faz ele ficar insensível. Daí cai na praia de vômito, é içado e depois de um minuto no máximo ele tem que ser sangrado porque senão ele acaba morrendo. Então ele tem que estar com a circulação funcionando para sangrar e escoar o máximo de sangue. Daí já pode fazer todas as operações – esfola, abertura da barriga, evisceração, serragem.

Muitos deles, a quase totalidade deles, quando já percebe o que está acontecendo com os outros lá na frente, eles entram em midríase, ou seja, eles ficam com a pupila dilatada. Então esses animais com certeza estão com taquicardia, com aumento de pressão arterial.

E nessa hora eles descarregam na circulação uma série de substâncias altamente tóxicas por medo, por pavor, por impossibilidade de fuga. E isso caracteriza o fato deles estarem em pânico. E essas substâncias, elas ficam na carne, e depois o homem vai se alimentar com isso. Seja a morte deles em um desses frigoríficos modelo ou em um matadouro comum.

Giovana Mondelli, responsável pelo controle de qualidade do Frigorífico Mondelli.

Irvenia Prada, professora titular em anatomia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP.

Fernando Travi – psicólogo e higienista

Excertos do documentário “A Carne é Fraca”, lançado pelo Instituto Nina Rosa em 2005.

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Written by David Arioch

August 3rd, 2017 at 4:19 pm

Sue Coe e o bezerro no matadouro

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Arte: Sue Coe

“Inside the Abattoir” é um incrível e realista desenho da artista britânica Sue Coe. O contraste do bezerro hesitante e assustado, e as figuras humanas indiferentes ao temor animal, acostumados com essa realidade em que a criatura bovina não simboliza nada mais do que um objeto.

E nas laterais, de um lado alguns bezerros sobressaltados observam com olhos intumescidos e suplicantes a insensibilidade humana. Do outro, bezerros assistem a inação do bezerro na pista. Os bezerros à esquerda estão mais imersos nas sombras, talvez pelo choque com a última grande desilusão representada pelo homem que se distrai com um cigarro na boca, ignorando tudo que está logo atrás dele.

As paredes brutas, o isolamento, o ambiente soturno que não revela o que existe mais adiante também parece representar o fato de que o animal é morto de forma traiçoeira, já que ele é impossibilitado de ver o que aconteceu com aqueles que seguiram antes dele pelo mesmo caminho.

 

 

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Há animais das mais diferentes espécies que não sabem que vão morrer amanhã

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Foto do projeto “Eyes on Animals”, que registra o olhar dos animais minutos antes de serem executados nos matadouros

A esta hora, em muitas partes do mundo, há animais das mais diferentes espécies que não sabem que vão morrer amanhã. Em breve, estarão pendurados sobre grilhões, expostos nas vitrines dos açougues, esquartejados e fatiados para ocuparem pequenos espaços em bandejas. Não sabem que a maioria não há de chorar, nem mesmo lamentar por eles.

Não terão velório nem enterro. Simplesmente perecerão como se jamais tivessem existido, como se fossem seres insignificantes. Do lado de cá, muitos olharão para suas carnes e as desejarão como se aqueles cadáveres jamais tivessem sido habitados por qualquer tipo de vida.

Imagine a si mesmo incapaz de falar ao ser subjugado por outra espécie. Não há o que fazer, a não ser torcer por um mínimo de compaixão. Mas essa compaixão inexiste porque a espécie que o domina é incapaz de vê-lo como alguém digno do direito à vida. Você é somente um produto e nada mais que isso. Apenas a realidade animal não humana.

Em todos os lugares há animais humanos e não humanos precisando de ajuda. Acho impossível viver ignorando isso e seguir a vida sem fazer nada a respeito. A empatia é uma das belas características humanas. Se rejeitamos isso, creio que não resta tantas coisas nobres pelo que viver.

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Written by David Arioch

July 19th, 2017 at 2:15 am

O chamado “abate humanitário” não é um retrato tão comum da realidade brasileira

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A privação termina somente com a morte após uma curta vida de exploração

Imagem registrada pelo fotógrafo Piero Locatelli, da ONG Repórter Brasil

Em um país onde a quantidade de matadouros clandestinos pode chegar a 50% do total, é uma grande ilusão acreditar que a maior parte da produção de carne é resultado de práticas que se enquadram no chamado “abate humanitário”. Mesmo que se fale na crescente implementação dessa prática, é inegável que não são raros os casos de privação e sofrimento envolvendo animais criados com fins de abate.

A existência de muitos matadouros clandestinos e a omissão em relação à fiscalização são grandes facilitadores de terríveis abusos contra os animais. Além disso, o YouTube, a mídia alternativa e as redes sociais estão aí para apresentar provas de que o “abate humanitário” não é um retrato comum da realidade brasileira.

No Brasil, a Operação Carne Fraca, que em março denunciou que as gigantes JBS (Friboi, Seara e Big Frango) e BRF (Sadia e Perdigão) estavam mascarando carne vencida usando produtos químicos, levantou, mesmo que modestamente, uma discussão sobre o “abate humanitário”, prática ainda muito questionável pelo seu caráter subjetivo que não garante que o animal seja “bem tratado” antes de ser morto.

Há quem diga que essas “falhas” envolvendo o abate de animais ainda acontecem por causa da defasagem na Instrução Normativa Nº 03 de 2000, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que versa sobre o regulamento técnico de métodos de insensibilização para o “abate humanitário”. No artigo “Abate dito ‘humanitário’ e o que diz a legislação brasileira”, publicado pelo site Abolicionismo Animal, os autores Ana Karine Gurgel D’Ávila e Wesley Lyeverton Correia Ribeiro apontam que não há diferenciação nos limites máximos de tempo entre o atordoamento e a sangria para as várias espécies destinadas ao consumo humano.

Outra prova de displicência, e que corrobora que o “abate humanitário” não é uma realidade comum no Brasil, foi apresentada no ano passado pela ONG Repórter Brasil. Por meio de reportagens e vídeos, eles denunciaram que trabalhadores e animais são maltratados na indústria da carne com chutes, socos e pauladas.

Mostraram que as fazendas fornecedoras da JBS, que se define como a maior indústria de proteína do mundo, contradizem o marketing da empresa, não seguindo as recomendações do Ministério da Agricultura. Ou seja, se essa é a realidade que envolve os grandes produtores de carne, que operam de forma regularizada, o que acontece em matadouros clandestinos, conhecidos por métodos mais violentos de abate?

De acordo com José Rodolfo Ciocca, gerente de Campanhas HSA (Humane and Sustainable Agriculture) da World Animal Protection, no Brasil, frigoríficos que não atendem as normas de “abate humanitário” recebem um relatório de não-conformidade, e caso o problema persista, podem ser multados. Ou seja, animais podem morrer de forma violenta, e nem por isso alguém precisa pagar alguma multa caso não haja reincidência.

A situação não melhora quando o assunto são os matadouros municipais e estaduais, porque apenas matadouros privados precisam seguir um programa de autocontrole. Além disso, qualquer punição depende de um inspetor que, em 80% dos casos, nunca está presente, segundo Ciocca. E se houver interferência política quando um frigorífico for fechado, seja por operar irregularmente ou por torturar e ferir animais antes do abate, ele não recebe nenhum tipo de punição e ainda pode retomar as atividades, mesmo que o abate seja praticado a marretadas.

Em 2008, o artigo “A clandestinidade na produção de carne bovina no Brasil”, de autoria dos pesquisadores João Felippe Cury e Marinho Mathias, publicado pela Embrapa, informou que “várias estimativas de especialistas do setor apontam uma clandestinidade [de matadouros] que varia de 30% a 50%, sendo mais comum os dados próximos a 50%”.

Em 2013, a BeefPoint publicou um artigo mostrando que a situação ainda era a mesma. E no ano passado, esses números foram corroborados por outras denúncias. Em 12 de dezembro de 2016, a Folha Web publicou uma reportagem em que técnicos da Agência de Defesa Agropecuária do Estado de Roraima (Aderr) declararam que 100% das carnes de porco de Roraima são provenientes de matadouros clandestinos.

Em 23 de dezembro de 2016, o Canal Rural informou que somente em São Paulo há pelo menos quatro mil avícolas clandestinas, baseando-se em dados coletados pela Universidade de São Paulo (USP). E onde há clandestinidade, há falta de higiene e muita violência, já que para baratear os custos de produção os métodos de execução costumam ser os mais cruéis. Outro ponto a se considerar é que com “abate humanitário” ou não, a privação termina somente com a morte após uma curta vida de exploração.

Referências

http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/carne-fraca-perguntas-e-respostas-sobre-a-operacao-da-pf-nos-frigorificos.ghtml

http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/abateditohumanitrioeoquedizalegisla_obrasileira.pdf

http://colunas.revistaepoca.globo.com/planeta/2013/05/03/e-possivel-abater-um-animal-de-forma-humanizada/

https://seer.sede.embrapa.br/index.php/RPA/article/viewFile/424/375

Aves: abatedouros clandestinos ameaçam saúde em SP

100% das carnes de porco vêm de abatedouros clandestinos

http://www.beefpoint.com.br/cadeia-produtiva/giro-do-boi/alex-bastos-qual-a-verdadeira-porcentagem-de-clandestinidade-no-comercio-de-carne-bovina-menos-de-5-indiscutivelmente-nao-e-leitor-comenta/

Vida de gado

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