David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Frei Jerônimo e a dura realidade do pós-guerra

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Foto: David Arioch

“Eu era criança e vivíamos em um campo de refugiados na Tchecoslováquia. Lá, tinha uma floresta, e um dia a mãe foi junto conosco procurar frutas para comer. Tinha uma mina de água, colhemos folhas de agrião, escondemos nos bolsos e levamos para o campo. De manhã, quando ganhamos uma fatia de pão seco, colocamos o agrião e comemos. E o gosto era muito bom, porque o agrião já vem temperado da natureza.

Lá, eles amarraram minha mãe mal vestida em cima de um jipe com cordas e passaram pela cidade. Quebraram todos os dentes do meu pai com cassetete. As crianças tinham que sair com faixa amarela para pedir comida, e sabe que comida eles ofereciam pra nós? A borra de café. E eles davam risada quando nossa boca ficava suja, e faziam isso de brincadeira, para nos chatear.

Quando voltei em 2003, um dia saí do meu quarto para andar pela floresta, e aí aconteceu uma coisa bonita, veio um são-bernardo, um cachorrão que sobe montanhas para ajudar a procurar pessoas perdidas na neve. Quando ele estava perto de mim, coloquei as mãos nas costas, abaixei a cabeça e conversei com o cachorro. E depois veio o tutor, correndo e ofegando, falando que o cachorro era bravo. E eu disse que não, que ele não era bravo. Falei para o cachorro que eu não iria bater nele e ele não poderia me morder. O homem ficou me olhando e dizendo: ‘Como? Como pode falar?’ Falei que sim, converso com ele. Me entendo com cachorro.

Essa cachorrinha que está aqui com a gente aqui agora, nós nos entendemos. Eu não gosto de gente que bate em cachorro. Não gosto de gente que não aceita cachorro. Dá pra desconfiar. O cachorro quer sair, então por causa do cachorro eu vou todos os dias ao bosque. Se não fosse por ele, eu ficaria no meu quarto. O cachorro me chama. Tinha um gato aqui também. O gato e o cachorro se davam muito bem, mas um funcionário do convento matou ele. Falei pra ele que eu sei o que ele fez. Escutei dois cliques do gato. E naquele dia éramos os únicos em casa.”

Excertos de uma entrevista que fiz com o alemão George Karl Brodka (Frei Jerônimo). Conversamos principalmente sobre o que ele e sua família viveram após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando foram enviados para um campo de refugiados na então Tchecoslováquia.

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Written by David Arioch

February 15th, 2017 at 11:07 pm

Pessoas e marcas intensas

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Há pessoas que passam pela vida e deixam marcas tão intensas que quando partem é inevitável se perguntar se elas realmente existiram. Com o tempo, sobrevivem como sonhos reavivados por lampejos de uma mente casmurra. A memória então começa a falhar diante de um coração que se recusa a se calar.

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Written by David Arioch

February 11th, 2017 at 5:25 pm

A barba e o menino Yusuf

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“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”

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Porto Said quando Francisco chegou ao Egito com o Batalhão de Suez (Foto: Reprodução)

Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.

Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.

Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.

Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.

Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.

“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”

— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.

E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.

Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.

Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.

— Claro, Seu Francisco – respondi.

Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.

Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.

Quando eu comprava cigarro para os meus pais

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Suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado

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Eu e meu irmão íamos até o bar da Dona Maria comprar Free (Foto: Reprodução)

Na infância, eu comprava cigarro para os meus pais. Sim, eu e todos os meus amigos e colegas que nasceram nos anos 1980 e tinham pais fumantes. Minha mãe abandonou o vício na minha adolescência, mas meu pai, um tabagista inveterado, faleceu em decorrência de um câncer de pulmão. Começou a fumar muito cedo, quando astros de Hollywood ajudaram a transformar o cigarro em um obtuso símbolo de charme, rebeldia e sensualidade.

Nunca perguntei porque ele fumava, só que um dia, ainda criança, comentei com minha mãe que “só o trem a vapor tinha motivo para soltar fumaça, já que o movimento dele dependia da queima do carvão”. Desde pequeno, eu não via graça na ideia de colocar algo na boca simplesmente para soltar fumaça. Eu associava aquela imagem com a da fumaça preta que saía dos escapamentos dos caminhões velhos que víamos nas ruas. Óxido de carbono, óxido sulfúrico, óxido de nitrogênio e hidrocarboneto aromático, fiquei sabendo mais tarde.

“Quem sabe as pessoas que fumam sejam como os escapamentos dos caminhões, a diferença é que soltam menos fumaça porque são menores. E talvez ela seja menos suja porque sai diretamente da boca”, escrevi num caderno quando tinha sete ou oito anos. Nunca coloquei um cigarro na boca. Também não me gabo disso. Não! Minto! Coloquei sim, aquele de chocolate lançado pela pan e que trazia uma criança negra sorrindo na caixinha. Não vou negar. Fingi fumar com o cigarrinho de chocolate entre os lábios. Afinal, a ideia de fumar, por pior que fosse, preservava seu ardil romanesco nas brincadeiras.

Aos dez anos, suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado. Quem sabe a ideia inicial fosse fazer com que saísse algo de bom da boca das pessoas em vez de uma fumaça ruça e malcheirosa. E a ironia já subsistia no fato de que a fumaça por si só era suspeita na sua nebulosidade, como um mandrião velando suas verdadeiras intenções.

Comecei a comprar cigarros com sete anos, quando morávamos na Rua Pernambuco. Eu e meu irmão Douglas caminhávamos 100 metros para buscar um ou dois maços de Free em um bar na Avenida Distrito Federal. Por causa da fumaça, entrar lá era como subir num palco instantes antes de um show. A diferença era que o gelo seco não escurecia como a fumaça do cigarro. Nem fedia como aqueles corpos macerados pelo vício em álcool e tabaco.

Alguns sujeitos tossiam como se estivessem prestes a vomitar ou expelir pedaços de tecido do organismo. Aquela era a realidade dos dependentes mais figadais, e me vi diante dela nos primeiros anos de vida. Eu gostava do lugar, de testemunhar a salada social composta por pessoas das mais diferentes faixas etárias – onde pobres e ricos, vagabundos e trabalhadores se misturavam sem formalidades.

Ações, expressões e reações de alegria, tristeza, inconformismo, cólera, sabedoria, ignorância, tudo poderia ser encontrado no bar da Dona Maria, mãe do meu amigo Fabiano. Porém, nenhum sentimento parecia mais destacável do que um híbrido de ilusão e decepção. Naquele lugar, homens de poucas palavras chegavam sorrindo e partiam chorando assim que as aparências descortinavam as essências.

Junto ao balcão, Dona Maria mantinha um taco de beisebol, apelidado de “Juízo”, para conter os desordeiros. Repreendia bêbados, dava conselhos e às vezes alimentava os mais miseráveis. Era visceral a forma como seu semblante mudava de um segundo a outro caso alguém fizesse algo de errado. Chapas (carregadores de mercadorias), vendedores ambulantes e artistas de rua passavam por lá com frequência. Um dia ganhei um quadrinho de madeira com a minha imagem entalhada por Maneta, um escultor que viajava por todo o Brasil de carona.

Enquanto alguns sentavam diante das mesas laterais, outros preferiam o balcão, sentindo o aroma das conservas, ouvindo o som dos congeladores e da TV com caixa de madeira. Incomum era encontrar alguém no bar que não fumasse. Eu ziguezagueava pelo espaço, tentando evitar inalar a fumaça que se movia pelo ambiente como uma serpente tentando me engolir. Pior ainda era quando meu nariz entupia por causa da rinite alérgica.

Diante do balcão, eu sentava em um banquinho, balançava as pernas, pedia dois maços de cigarro e observava os doces das vitrines. Assim que Dona Maria me entregava as duas carteiras de Free, eu pagava, guardava os maços no bolso esquerdo da bermuda e o troco no bolso direito. Saía de lá desviando da fumaça e ouvindo gargalhadas e gritos de três ou quatro homens entretidos em uma partida de truco. “Ladrão! ladrão! Isso que tu é, seu porco malandro!”, berrou numa tarde um homenzarrão barbudo com voz tão grave que meus tímpanos latejaram. Me senti como se estivesse diante do próprio demônio.

Ele sentava sobre duas cadeiras em vez de uma, e sua mão chegava a ser maior do que a cabeça dos seus adversários. Assustado, assisti as cartas miúdas desaparecendo entre suas mãos. Era como se fossem miniaturas em papel. De repente, o sujeito olhou para mim e disse: “Que foi, garoto? Perdeu alguma coisa?” Sem abrir a boca, movimentei a cabeça negativamente e me afastei. Antes de pisar na calçada, vi ele tirando um Belmont do bolso da camisa, o acendendo e o tragando com tanta sofreguidão que em poucos segundos o cigarro foi reduzido às cinzas, restando apenas um filtro diminuto resvalando dentro de um cinzeiro de madeira.

Sua boca também era descomunal. Quando ele mirou o teto e expirou a fumaça, foi como se uma nuvem pesada demais para suportar a própria sustentação se formasse sobre sua cabeça, como uma névoa eivada e gulosa. Aquele era o Terebintina, fumante e bebedor profissional, diziam. Trabalhou para as maiores empresas de tabaco e destilados do Brasil na década de 1980. Não era difícil encontrar jovens e até pessoas mais velhas que sonhavam com essa vida. Beber, fumar e nada mais, sim, era o ideal de muita gente. Em casa, enquanto minha mãe sovava uma massa de pão na cozinha, comentei o que aconteceu no bar. Ela se divertiu com o meu relato embora não conhecesse o gigante mal-encarado.

Naquela época, cheguei a acreditar que o mundo era dos fumantes. Por onde eu andasse, falava-se em cigarro. Na TV, no rádio e nos outdoors perseverava a glamourização do fumo. No centro, na saída da escola, eu sempre via embalagens vazias e bitucas de cigarro próximas do meio-fio. Ofereciam até amostras grátis. E, claro, alguns tabagistas eram mais educados do que outros. Minha mãe, por exemplo, evitava fumar perto de mim e do meu irmão. Quando notava que eu o observava, meu pai copiosamente passava o cigarro da mão direita para a esquerda, tentando ocultar a fumaça por trás do livro, e declarava: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”

Pela manhã, vez ou outra, eu assistia minha mãe trocando os lençóis queimados pelas brasas do cigarro. Talvez aqueles furos com bordas negras significassem mais do que imaginávamos. Afinal, eram disformes e incertos como pequenos tumores. “Ontem, disse para mim mesmo que era o último. Eu não quis imaginar que seria o fim, que eu não fumaria mais até a minha morte. Preferi pensar que se eu parasse agora, teria a possibilidade de fumar de vez em quando”, escreveu Henri-Pierre Jeudy em “O Último Cigarro”.

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Supino e o direito de ser marombeiro

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“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém

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“Na década passada, eu sempre encontrava um amigo no mesmo horário na academia” (Foto: Reprodução)

Na década passada, eu sempre encontrava um amigo no mesmo horário na academia. Era um sujeito bem animado, sorridente e que gostava de ser notado. Quando não percebiam sua presença, ele encontrava um jeito de chamar a atenção – dava um urro sorrateiro, falava alto ou causava algum atrito ruidoso entre as anilhas. Jamais o percebi conversando sem arquear os braços, chacoalhar a cabeça, espichar as veias do pescoço ou fazer movimentos curiosos com as mãos. Era um exibicionista de boa índole.

Ao sair da academia depois de um treino de peito ou braços, tirava a camiseta, aproveitando para mostrar o pump – aquele aspecto que faz todo cara parecer maior após os exercícios por causa do aumento do fluxo sanguíneo bombeado no músculo. “Agora vou ‘apavorar’ na rua”, comentou um dia. Nessas circunstâncias, eu apenas ria. Aquela era a sua alegria, e se ele tinha algum tipo de prazer nisso, era o que importava, não cabendo a mim nem a ninguém julgá-lo.

Supino, como eu o chamava porque ele treinava mais peito do que qualquer outro grupo muscular, tinha o costume de atravessar o centro da cidade com a camiseta sobre o ombro, ignorando comentários e olhares desdenhosos, principalmente de quem menosprezava marombeiros. Se alguém fizesse careta ou criticasse e ele percebesse, não era raro Supino reagir de forma inesperada.

“Olha o naipe desse cara. Que otário! Muito músculo e pouco cérebro”, ocasionalmente dizia alguém. Sua reação instantânea era retribuir com um sinal de joia e uma contração muscular elevando a cabeça do bíceps. “Fica sossegado, irmão! É só entrar na academia, seguir dieta e treinar certinho por anos que você chega lá”, comentava sorrindo e finalizando a breve interação com uma piscadela provocativa e um tapinha no próprio deltoide.

Quando ele atravessava a movimentada Rua Getúlio Vargas, algumas mulheres também o depreciavam às vezes, incomodadas em vê-lo na sua caminhada fruitiva, com o torso à mostra enquanto o sol aquecia o asfalto, atravessava vitrines e exasperava os mais afoitos. “Nossa, o tipo! Se acha demais! Tem gente que faz de tudo pra aparecer! Pensa que é bonito ser vagabundo e andar seminu na rua!”, ouviu numa tarde.

Sem titubear, caminhou até a moça que fez o comentário com a amiga e a observou nos olhos por alguns segundos. “Com licença, senhorita. Tu paga as minhas contas? Lava minha roupa? Prepara minha comida? Acho que não, né? Então pode parar de admirar que aqui não tem nada de graça”, declarou sorrindo e dando dois tapas no próprio peito. Constrangida, a moça puxou a amiga pelo braço e caminhou apressada até o fundo de uma loja.

Supino agiu assim por muito tempo, na sua tenra espontaneidade. Um dia, logo que saiu da academia, quando já não treinávamos mais no mesmo horário, foi surpreendido e atropelado. Ele rolou sobre o capô do carro e caiu deitado com as costas contra o asfalto tórrido de uma manhã altaneira de verão. No chão, sentiu uma luz quente bloqueando sua visão.

O motorista fugiu e Supino continuou deitado no chão. Não gemia nem agonizava. Somente ria de si mesmo e do seu próprio azar, ignorando os ferimentos pelo corpo. Surpreendendo quem testemunhou a cena, ele se levantou e limpou os ferimentos com a própria camiseta branca transfigurada em vermelha.

Joelhos e cotovelos esfolados, muitas escoriações nas costas e no peito, um corte superficial na testa e outro no topo da cabeça, nada disso o impediu de soerguer-se para assistir o autor já distante, fugindo pela Rua Pernambuco. Na manhã seguinte, Supino estava na academia praticando musculação.

E mais, na mesma semana, tomou uma decisão. Foi até uma loja no centro de Paranavaí e pediu para uma vendedora mostrar-lhe algumas camisetas. Enquanto ele as observava, em dúvida sobre quais escolher, as mãos da moça tremiam e as frases saíam incompletas de sua boca. “Você precisa tomar um copo de água com açúcar ou maracugina, moça. Não parece nada bem!”, sugeriu.

De repente, ela começou a chorar e a pedir desculpas. Supino não disse nada. Complacente, assistiu a reação dela em silêncio. Comprou três camisetas e saiu da loja com a consciência tranquila. Lá fora, a observou pela última vez antes de partir. Ele sabia e ela sabia. Supino descobriu que a mesma jovem que antes se incomodou com sua presença, fazendo um comentário preconceituoso que ele retribuiu quando ela o viu sem camiseta, pediu ao namorado que o atropelasse, alegando que Supino deu em cima dela.

À época, o questionei sobre o porquê de não ter procurado a polícia. Ele deu uma de suas respostas minimalistas e filosóficas: “Sua consciência é o seu único e verdadeiro guia.” O episódio me traz lembranças de uma subjetiva frase escrita por Balzac no século 18: “Quando todo o mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade.”

Parabéns, Campeão! – Acidentes e estripulias na academia

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“É agora que bato a cabeça na quina do banco e caio no chão com o crânio rachado e sem os dentes”

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Modelo do banco sobre o qual dei uma cambalhota no ar e caí sentado (Foto: Reprodução)

Nunca me machuquei seriamente praticando musculação, mas admito que ao longo dos anos passei por situações surpreendentes e inusitadas. Em um dia de treino de dorsais, a academia estava bem movimentada por volta das 18h. E por um milagre não havia ninguém usando a roldana.

Me aproximei, substituí a barra e coloquei o pino no último tijolinho da polia. “Que beleza! Hoje o treino vai render, já que não vou precisar esperar ou dividir a máquina com ninguém”, refleti com sorriso sardônico enquanto esfregava as mãos e observava outras pessoas que não tiveram a mesma sorte.

Fiz a primeira série de puxador frontal aberto assistindo a minha postura em um espelho à minha direita. Tudo ia bem até que no início da segunda série o cabo de aço se rompeu e voei para trás com a barra no colo, batendo as costas contra uma divisória branca que separa a sala de musculação da sala de aeróbicos.

O estrondo foi tão grande que ouvi duas pessoas gritando escandalizadas, pensando que o prédio estava ruindo. Até quem se exercitava do outro lado da academia veio xeretar. E eu sentado, com um sorriso enviesado, levantei rapidamente. Tentando não olhar ao meu redor, deixei a barra sobre o banco e caminhei até o outro lado da sala para fazer remada curvada.

O que mais causou estranhamento em quem presenciou o acidente foi o fato de eu continuar treinando. Apesar do susto, não senti nada e só deixei a academia quando terminei todos os exercícios. Na realidade, o único incômodo foi perceber tanta gente de olhos esgazeados, me observando e talvez me julgando como louco por não ter ido embora.

Em outra ocasião, eu estava na terceira série da cadeira abdutora quando o cabo arrebentou e violentamente veio em direção ao meu rosto. Faltando dois ou três centímetros para atingir meu olho esquerdo, ele chicoteou o ar e caiu complacente, repousando sobre a lataria do aparelho como se jamais tivesse saído dali. Senti gastura ao imaginá-lo penetrando meu olho e cutucando a íris como uma agulha aplicada com precisão cirúrgica.

Lá dentro, quem sabe a pontinha do cabo envergasse à direita e no momento do retorno – pop! Assim extraindo meu olho da órbita e deixando na cavidade a assinatura AB, de abdutora, como se fosse um tipo de zorro mecânico. Não sei, talvez ela quisesse apenas mostrar quem realmente mandava, que tudo estava ao seu alcance sempre que quisesse.

Vai saber, pode ser que os objetos não sejam completamente inanimados. Dizem que a barra olímpica usada no supino reto ganha vida de vez em quando. Não duvido. Um dia ela ficou teimosa no final do exercício e por pouco não me enforcou. Temendo o pior, senti a faringe se estreitando e o pescoço esquentando. Minha garganta parecia simular um canudo de plástico.

Àquela altura, minhas pupilas há muito dilataram, e mais do que nunca notei a barra lisa, escorregadia, traiçoeira e burlesca. Transparecia odiosa e retaliativa. A poucos centímetros do meu queixo, que se retraía com medo de ser esmagado, e prevendo que meus braços quase rendidos não suportariam mais a tensão, a amorteci levemente contra o peito. Estertorando e sentindo as fibras musculares dos meus ombros queimando, a deslizei em direção a minha barriga até o ponto de conseguir me levantar e tirá-la de cima de mim.

Sentado, me vi revigorado. Meu coração voltou a bater numa frequência mais aceitável, parei de suar frio e minha visão periférica se expandiu. Vislumbrei até o céu da academia se abrindo e uma revoada de dezenas de pássaros das mais diversas espécies circulando, circulando, até formarem a frase “Parabéns, Campeão!”. Quando levantei do banco, percebi que tinha duas anilhas a mais, e que não foram colocadas por mim. Realmente, a barra era inocente.

Ainda assim, acredito que icônico foi um episódio da época em que eu fazia paralelas em um banco de supino. Ele tinha um suporte de barras mais alto do que os mais tradicionais. Bom, em minha defesa, não existia nada específico para a realização das paralelas, então o jeito era improvisar. Como eu fazia esse exercício no dia do treino de peito, era preciso inclinar o corpo para a frente. Até aí tudo bem. Me apoiei sobre as laterais do banco e fiz a primeira série tranquilamente. Na segunda, por um deslize, inclinei demais o corpo e não consegui retornar à posição inicial.

Naquele instante, pensei o pior: “É agora que bato a cabeça na quina do banco e caio no chão com o crânio rachado e sem os dentes.” Contrariando previsões, inclusive de todo mundo que assistiu a cena – penso eu, dei uma cambalhota no ar e caí sentado no banco, sem sequer um arranhão. Nenhum espectador entendeu o que houve, muito menos eu. Mas fiquei orgulhoso pela façanha, assim como todos aqueles que escapam ileso de algum tipo de estripulia não planejada. Quando me levantei, agi como se tudo fosse proposital, sem saber que a calça não velava mais o quintal.

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Um final de tarde agonizante no Castelo de Grayskull

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Uma camada de ferrugem que a cobria esfarelou sobre o meu rosto como chuva suja de óxido nítrico

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Smith Machine, modelo usado no Castelo de Grayskull (Foto: Reprodução)

Em uma época da minha vida, me empolguei tanto com a musculação que comecei a treinar em duas academias. Ingênuo, eu acreditava que teria melhores resultados dessa forma. Então, sempre no final de semana, eu atravessava a cidade para me exercitar em um desses ginásios precários, onde falta tudo, menos a vontade de levantar pesos.

O cenário era desagradável para pessoas acostumadas com academias mais bem equipadas ou visualmente atrativas, o que não importava muito para mim, já que eu estava ali para complementar a rotina. A manutenção era inexistente, a julgar pelo aspecto enferrujado de anilhas, aparelhos descascados e travas de segurança tão moles que pareciam capazes de saltar sobre meus olhos ao toque de um dedo.

Era difícil não pensar nos riscos de ver pernas esmagadas ou decepadas tão logo a “guilhotina”, apelido que dei ao leg press, descesse na sua contumaz ferocidade, quando o mais descuidado dos usuários ousasse extrapolar nas repetições da última série. Talvez o aparelho até sonhasse com esse momento para compensar anos de negligência enquanto rangia mais do que o piso que a porta pungia.

Ao meu redor, nunca havia muita gente, e eu agradecia, calado e contente. Gostava de treinar sozinho, no silêncio da minha mente ou ouvindo uma playlist pungente. E minha fisionomia austera, que pouco aspirava à socialização, ajudava bastante nesse sentido. Nada contra ninguém. Na realidade, sou um sujeito bem educado. Eu apenas tinha um motivo específico e bem definido para estar ali.

Um dia, quando a outra academia fechou no meio da semana, recorri mais uma vez ao “Castelo de Grayskull”, apelido do ginásio sucateado. Era um final de tarde, e assim que me aproximei da entrada, alguns caras que acabaram de treinar saíram às ruas sem camiseta. Um deles fazia pose e estufava o peito enquanto o outro guardava dentro do bolso uma fitinha usada para medir o próprio braço.

“Olha como tô ficando fibrado! É nóis, mano!”, berrou o terceiro, ajeitando o par de óculos escuros, inclinando o corpo à direita e observando o próprio reflexo no retrovisor de um carro. O quarto amigo sacolejava uma coqueteleira e exibia um par de luvas que reluzia mais do que colete refletivo.

Por descuido, tive que retornar ao carro para buscar minha toalha. Nisso, passaram pelo menos quatro minutos, e o rapaz continuava sacudindo a garrafinha. Pensei até que pudesse ser um novo exercício para tratamento de artrite ou um tipo de powerball em forma de squeeze. Tudo bem! Entrei na academia, cumprimentei alguém na recepção e caminhei até um aparelho.

Era dia de agachamento invertido. Coloquei os fones no ouvido e as anilhas na barra. Num primeiro olhar percebi que aquele aparelho era menor do que o da academia onde eu treinava com mais frequência. “Ok! É só pegar leve e compensar a intensidade com mais séries e repetições”, concluí.

Deitei no chão, posicionei os pés contra a barra e fiz a primeira série. Antes do final, ela envergou e começou a estalar. Julguei que fosse normal e preferi me arriscar. Na segunda série, a barra travou na subida da última repetição. E, parar piorar, no mesmo instante um senhor com um crônico problema de flatulência, que reavivou lembranças da minha visita ao aterro sanitário, encostou na máquina, com as costas à minha esquerda, e seguiu papeando com uma moça.

“Mas você nem precisa fazer musculação. Tá maravilhosa!”, comentou o homem escorando o braço sobre as anilhas do aparelho, simulando um tipo de apoio. Ele forçava a barra para baixo enquanto eu tentava empurrá-la para cima. A música na academia estava tão alta que nem o sujeito nem a garota ouviam minhas reclamações. Me tornei invisível.

Quando comecei a roxear, com o aparelho repleto de anilhas dos dois lados, e a barra subindo apenas do lado esquerdo, tentei forçar a elevação mudando a posição dos calcanhares. Em vez subir, a barra apenas estremeceu e uma camada de ferrugem que a cobria esfarelou sobre o meu rosto como chuva suja de óxido nítrico.

Não consegui evitar que ciscos entrassem em meus olhos. Também franzi a testa e fiz um esgar de desgosto quando senti o pó de ferrugem nos lábios. Sem enxergar nada e tentando terminar a última repetição, ouvi o homem dizendo para a moça: “Nossa! Cruzes! Que mau cheiro! Hoooorrrrríííííveeeel! Vamos sair daqui! Tem gente que não respeita ninguém!”

Sem ver nada e agonizando no chão, com as pernas trêmulas e os olhos fechados, fiquei tão irado que aproximei um pouco mais os dois pés e empurrei a barra numa intempestiva e derradeira lufada de força. Assim que ela se prendeu ao suporte, me libertei. A música acabou e o silêncio começou.

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O livreiro da Rua Artur Bernardes

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De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens

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Primeira edição de David Copperfield, de Charles Dickens, publicada em 1849 (Foto: Reprodução)

Pelo menos uma vez por mês, o livreiro João Romani passava em casa, na Rua Artur Bernardes, quando eu tinha nove anos. Por entre os galhos da sete-copas, eu o via atravessando a Rua Silvio Meira e Sá Bezerra e descendo em minha direção, carregando a mesma mala acastanhada, adornada com nomes de dezenas de escritores.

De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens. Não tinha mais de 35 anos, estatura mediana, pele cor de oliva, um andar peculiar e se vestia como um homem da década de 1920, com seu chapéu fedora cuidadosamente alinhado e paletó cinturado. Junto à mala, sempre trazia um guarda-chuva que podia ser desmontado e usado como bengala.

Quando o conheci, ele estava no portão de casa conversando com minha mãe, oferecendo uma coleção de 16 volumes da Enciclopédia Barsa. Conforme o livreiro falava, num crescente paroxismo, tudo ganhava vida e se tornava mais importante do que realmente era. Ele sorria, gesticulava e movia os pés de um lado para o outro, fazendo da apresentação da enciclopédia uma performance teatralmente didática.

E foi assim que João Romani a convenceu a comprar a coleção numa negociação mais motivada pelos seus métodos de venda do que pela qualidade do produto. Seu poder de convencimento talvez só não superasse suas qualidades humanas mais virtuosas. E naquele dia, ele pediu autorização da minha mãe para descansar por alguns minutos na varanda. Ela consentiu sem pestanejar.

Convidado a entrar, ele sentou em uma cadeira com cordas de nylon e minha mãe foi até a cozinha buscar uma xícara de café enquanto a garoa resplandecia serena sobre o nosso jardim. Antes de abrir a mala, tirou o chapéu da cabeça e o manteve sobre a ponta do guarda-chuva escorado na grade da janela. Ajeitou os cabelos castanhos e ondulados e perguntou meu nome. Respondi e ele deu um grito entusiasmado:

“Uau! Estupendo! David! Será que se seus pais escolheram seu nome por causa do jovem David Copperfield? Você conhece a história dele?” Sorri e, entusiasmado com o seu carisma, questionei se ele falava do mágico ou do menino. “Isto! O menino!”, comentou. Com a simplicidade inerente às crianças, relatei que ele era órfão e sofreu muito porque vivia sozinho no mundo. Apesar disso, acreditava no ser humano, em um mundo melhor.

Muito bom! Sabe de uma coisa, David? Sou de origem romani, cigana, e nós nunca acreditamos que nomes são escolhidos ao acaso. Tenho certeza que o seu diz muito sobre quem você é e vai ser. David Copperfield era extremamente perseverante, um sonhador, e embora eu tenha conhecido você há pouco, acredito que você também será assim. Este nosso encontro tem um significado especial que um dia talvez faça mais sentido na sua vida – declarou o livreiro com uma expressão enigmática que destacou ainda mais seu rosto quadrado e seus olhos grandes e amendoados como o fruto da sete-copas.

Tão rápido minha mãe retornou com o café, João Romani agradeceu e o bebeu em silêncio, observando Happy e Chemmy brincando no jardim, rolando na grama úmida, com olência de jasmim, e teimosamente saltando sobre o canteiro de plantas. Com olhar curioso, o livreiro sorria diante do espetáculo da vida cotidiana. Perscrutava com tanto rigor o trivial que até a mais ordinária das cenas parecia transmitir algo de surreal.

Quando ameacei tirar Happy e Chemmy da grama, evitando que se sujassem mais, ouvi um som duplo e sincronizado. O livreiro estava abrindo a mala. No mesmo instante, me afastei dos dois poodles e me aproximei, intrigado em saber o que ele carregava.

“Olhe, vou contar um segredo. Não costumo mostrar para ninguém o tesouro que carrego comigo, mas como acredito que você seja um genuíno David Copperfield, sei que não há problema”, argumentou, em seguida pedindo que eu fechasse os olhos e estendesse os braços. Logo senti algo plastificado entre meus dedos pequenos.

Sobre as minhas mãos estava um exemplar esmerado de David Copperfield. A capa era esverdeada e trazia instigantes ilustrações das aventuras vividas pelo jovem órfão. Embora eu não entendesse em profundidade a importância daquele momento, fiquei muito feliz em segurar a obra nas mãos. E o semblante de Romani deixou subentendido que eu estava diante de uma oportunidade inestimável.

“É diferente do livro da Escola São Vicente de Paulo. Parece que esse é mais velho e menos colorido. Lembra uma revista antiga, uma cartilha”, comentei sem velar a inocência. O livreiro deu uma breve gargalhada, tirou a obra da embalagem que a protegia e pediu que eu lesse o que estava escrito na capa. “O senhor me desculpe, não sei tanto assim de inglês”, justifiquei. Então ele explicou que não era para eu ler tudo e me mostrou o ano grafado – 1849.

Aquela era a primeira edição de David Copperfield, o maior tesouro da família de João Romani. Seu bisavô Vladimir recebeu o exemplar das mãos do próprio Charles Dickens pouco tempo após o lançamento. “Ele fugiu para a Inglaterra em 1846 e mais tarde conheceu o autor na esquina da Editora Bradbury e Evans, em Londres. Meu bisavô trabalhava como engraxate, e um dia Charles Dickens conversou com ele. Se não me falhe a memória, falou o seguinte antes de entregar David Copperfield: ‘Aqui está uma semente. Quem sabe se torne um presente’”, narrou o livreiro sorrindo.

O jovem cigano encontrou Dickens mais três vezes. No último encontro, o autor fez o garoto de 15 anos chorar quando comentou que talvez tivesse escrito uma história melhor se David Copperfield fosse baseado na vida de Vladimir. Nascido na Romênia, o bisavô de João Romani foi um serf, escravo de um boiardo valaquiano – aristocrata da Transilvânia. Órfão, passou a maior parte da infância realizando serviços domésticos e trabalhando no garimpo em troca de comida, até que um dia conseguiu fugir.

Mesmo ainda criança, fiquei boquiaberto com o relato, e a desenvoltura do livreiro garantia mais realismo à história. O exemplar de David Copperfield, que segurei com as duas mãos, tinha uma dedicatória, e o nome de Vladimir escrito por Charles Dickens figurava sobre o nome do protagonista, num singelo gesto de afeição.

Houve um momento em que o notei com os olhos marejados, se esforçando para não lacrimejar. Fez tanta força que as veias do pescoço saltaram e revelaram uma tatuagem discreta, porém vivida, perto do pescoço. Era baseada em uma combinação de cores que não consegui identificar. Não havia desenho, somente duas palavras – Pacha Dron que descobri há alguns anos que significa O Caminho da Vida.

Logo que a garoa se dissipou, João Romani embalou novamente David Copperfield e o ajeitou dentro da mala com o mesmo esmero que uma mãe dedica ao filho na hora de colocá-lo para dormir no berço. Quando a mala se fechou, senti um ar morno e fugaz acariciando minhas maçãs. O livreiro se levantou, se despediu da minha mãe e eu o acompanhei até o portão. Lá fora, ele estalou os dedos, apontou para mim e falou: “Até logo, David Copperfield!” Deu uma piscadela e desceu a Rua Artur Bernardes como um singular personagem. Se na vinda, e de longe, ele me parecia um tipo de Uriah Heep, na volta, mais lembrava um híbrido de Ham Peggotty e Dr. Strong.

João Romani me visitou ao longo de um ano. Independente de clima e tempo, ele sempre retornava. Um dia, chovia muito quando o livreiro bateu palmas em frente de casa – estava encharcado, desprotegido pelo próprio guarda-chuva tornado arredio pela violência das águas. “Compromisso é compromisso!”, alegou sorrindo. Depois de ouvir uma boa reprimenda de minha mãe, dessas que os pais dão nos filhos mais travessos, ele velou o riso e aceitou cabisbaixo o reproche, até que começamos a rir.

Afeiçoado a um ofício que entrou na sua família por meio do seu bisavô Vladimir, sua maior satisfação era percorrer as ruas vendendo livros. Para ele, nada era mais importante do que o prazer de contar histórias e despertar sensações. Em uma ocasião, quando foi assaltado, entregou todo o dinheiro e se debruçou sobre a mala no meio do asfalto, protegendo os livros; até que os bandidos desapareceram como se nunca tivessem se aproximado dele.

No nosso último encontro, perto do Natal, João Romani me deixou como guardião de uma caneta Fountain que seu bisavô entregou ao seu avô horas antes de falecer. “David Copperfield, essa caneta foi usada por Charles Dickens no rascunho de Grandes Esperanças. Qual maior exemplo de esperança do que ter nas mãos algo que existe desde 1860 ou até antes? Pois é…”, enfatizou. Aquela foi a última vez que vi o livreiro para quem ainda guardo a Fountain.

Oxalá, quando a realidade cessar de existir para mim, como as sombras vaporosas de que a minha imaginação se separa voluntariamente nesta ocasião, eu possa encontrar o que há de verdadeiramente mais importante ao pé de mim, com o dedo levantado a apontar-me o céu! – escreveu Dickens em David Copperfield, num trecho transfigurado por mim.

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A tempestade de fuligem

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Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento

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Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente (Foto: Reprodução)

Foi num dia de clima ameno que cheguei em casa no final da tarde e encontrei a garagem e as roupas no varal cobertas de fuligem da queimada de cana-de-açúcar. A forma como se moviam pelo espaço me dava a impressão de que eu estava diante dos vestígios de uma tempestade caliginosa, flexuosa e suja.

A fuligem serpentava pelo ar de forma zombeteira. Quando eu tentava tocá-la, ela desviava com agilidade e se fixava em alguma coisa que ingênuo eu me esforçava para proteger. Havia sujeira por todos os lados. Sem constrição, a fuligem grafitava tudo que pelo caminho encontrava.

Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento. Podia ser tocada em sua minúcia, mas nunca possuída, porque depois que nascia a mais ninguém ela pertencia. Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente.

Meu carro branco e asseado ficou encarvoado quando a conheceu. Sem condições de se mover, testemunhou o vento especioso transportando tanta fuligem que até o sol desapareceu atrás das sombras massificadas de imundície. O brilho da lataria sumiu, embaciado pela soberania malemolente da falsa plumbagina.

Esfreguei o dedo no capô e notei uma mixórdia de cinzas e grafite de baixa qualidade que se desvaneceu sob o meu indicador direito. Para minha surpresa ainda preservava o aroma de cana-de-açúcar crestada. Repousando no seco, ela se arrastava como alguém que engatinhava. E agarrada ao úmido ou molhado, a fuligem se dissolvia, criando desenhos nem sempre incompreensíveis ou vazios em sentido.

No centro de uma camiseta branca que brandia sobre o varal, vi o adunco formato de uma mão diminuta e estriada. Tinha até unhas carcomidas, e algumas eram mais encardidas que as outras. Cheguei a crer que a fuligem possuía sua própria memória, uma lembrança perene do momento em que se desprendeu da cana-de-açúcar para sumir na imensidão do céu e da aragem outonal.

Talvez fosse a mais depreciativa das Fênix, já que ela renascia das cinzas e quase como cinzas, sem o direito de transformar-se em algo belo, bom e frutuoso que as pessoas pudessem gostar de assistir ou aspirar. Rebento do palhiço de cana, nasceu feinha e sem motivação existencial.

Gestada no borralho, a fuligem percorria dezenas de quilômetros até chegar ao seu destino – residências da área urbana, inclusive de pessoas que nem sabiam que ela existia. Aquela era sua sina, a curta vida de quem despontou casmurrada pela queimada. Não a culpo pela indisciplina. Deve ser horrível acordar sentindo algo quente te obrigando a partir.

Mergulhei dentro da minha mente e assisti seu primeiro voo, tímido e lânguido. Soprada para longe, obedeceu sem questionar a ordem natural das coisas. Apesar de tudo, sentiu o frescor remanescente do verde que se extinguia a dezenas de metros de distância do solo. A fuligem se esforçou para chorar, vendo-se tão turva e uniforme quanto insignificante. Se contorceu no ar, mas de nada adiantou. Relegada a uma existência estéril, era mais seca que a mais contumaz das estiagens.

Encolerizada por não ter direito a nada, e ciente de que não duraria mais do que horas e, com muita sorte, alguns dias, se insurgiu contra o seu fado. Fez um acordo com o vento, prometendo reverenciá-lo como um deus se ele a ajudasse a ir o mais longe possível em sua zaragata. Ele concordou.

Depois de se transformar em tempestade, a aragem a arrastou. Com sua força nímia e sobranceira, condensou toda a fuligem do canavial, criando uma pequena e turva réplica da lua. Num percurso de dezenas de quilômetros, a esfera se desfez e seus fragmentos seguiram pelas mais diferentes direções – atravessando pastos, lavouras, vilas, distritos e cidades da região de Paranavaí.

Naquele dia, a fuligem invadiu a Rua John Kennedy, cruzou o céu da minha casa e deixou centenas de vestígios indesejáveis, acompanhados de um som cicioso que imitava o tinir dos facões. O aroma de cana-de-açúcar ainda persistia. E por um descuido, enquanto eu decidia o que fazer, a fuligem entrou no meu nariz e eu a inalei. Mais tarde senti uma queimação no peito. Tive a impressão de que algo insólito estava vivo dentro de mim e se movendo.

Fui ao médico no dia seguinte e na mesma semana fiz alguns exames. Ele me mostrou que havia uma mancha estranha que se distendia sobre um dos meus pulmões. Não nego que senti um misto de preocupação, raiva e tristeza. “Tenho quase certeza de que são vestígios de monóxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio, dióxido de carbono e amônia. Precisamos cuidar disso, porque senão rapidamente pode virar asma, câncer de pulmão ou até peniano”, alertou o pneumologista.

“Senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso”, escreveu Campos de Carvalho em “A Lua vem da Ásia”. Na segunda e na terceira bateria de exames, realizadas no mês seguinte, não havia mais nada em meus pulmões. Então me recordei que 15 dias antes um prolongado espirro me proporcionou uma ímpar sensação de alívio. E o que saiu do meu nariz não era claro como a água, mas turvo como o vácuo da inexistência.

Chegando em casa, deitei na cama e percebi através da janela que do outro lado repousava uma nova mancha de fuligem na parede – parecia uma sarça ardente. Caí no sono, pensando apenas em outra passagem de Campos de Carvalho. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”

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Uma corrida que quase terminou em tragédia em 1941

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“O infeliz puxou a rédea do meu animal. Aí não perdoei. Desci o chicote no lombo e ele soltou”

João Mariano: "Lá havia as raias nas estradas, não em clube" (Arquivo: Rita Turfe)

João Mariano: “Lá havia as raias nas estradas, não em clube” (Arquivo: Rita Turfe)

O cearense João Mariano tinha oito anos quando perdeu o pai. Aos dez, seu irmão mais velho pediu à sua mãe que o deixasse morar com ele. Alegou que precisava de alguém para cuidar de suas terras enquanto viajava para comprar e vender gado. “Depois de dois anos morando com meu irmão, comecei a treinar com um cavalo de corrida dele e logo me tornei jóquei. Lá havia as raias nas estradas, não em clube. E muita gente ganhava algum dinheiro nas corridas, vendendo bolo, café, lanches, essas coisas. Mas ninguém lucrava mais que os donos dos cavalos, assim como os apostadores”, narra.

Por cada disputa realizada aos domingos, Mariano recebia uma “groja”, além de um adicional em caso de vitória. As competições lotavam e de longe se ouvia a torcida e a algazarra do público. “Eu corria muito em São José, uma vila a 60 quilômetros de Guassussê, o maior distrito de Orós [no Centro-Sul do Ceará]. Só tinha cavalo pra páreo de 600 ou mil metros. Então era tudo bicho de qualidade”, informa, acrescentando que os animais eram muito bem tratados.

Três dias antes de cada corrida, Mariano e mais dois companheiros montavam guarda nas cocheiras, inclusive revezavam na hora de dormir, para evitar que alguém invadisse o local e dopasse os cavalos a mando dos rivais. “Lembro de um menino da minha idade, um tal de João, filho de um homem chamado João Cabral. Ele tinha o costume de puxar as rédeas do cavalo adversário durante a ultrapassagem. Então quando fomos correr na Vila de Bom Jesus, eu avisei ele: ‘Olhe, João, não segure meu cavalo nem me feche porque se você fizer isso eu desço o chicote em você’”, prometeu.

Depois de ouvir a ameaça, João prometeu que não iria fazer nada, apenas guiar o próprio cavalo. No entanto, mudou de ideia ao ver João Mariano perto de assumir a liderança. “Me fechou, tirando a frente do meu cavalo. Ainda pedi pra ele me deixar em paz e o infeliz puxou a rédea do meu animal. Aí não perdoei. Desci o chicote no lombo e ele soltou. Naquele dia do ano de 1941 meu cavalo ganhou o páreo”, declara.

Quando Mariano estava deixando a pista, João Cabral, o pai do garoto, se aproximou com um revólver em punho para vingar a surra que o filho levou diante da plateia. “Ele veio pra me matar. Deixou a pistola no jeito, engatilhada. Aí tinha um senhor de mais de 60 anos que eu não conhecia. Ele se levantou de uma cadeira, sacou o revólver e falou para o João Cabral: ‘Atire primeiro pra ‘modi’ eu ver se tu é homem. Saiba que esse menino é meu parente’”, revelou, guardando o revólver na guaiaca assim que Cabral virou as costas e partiu.

O desconhecido era primo da mãe de João Mariano. Ele não o conhecia porque o homem vivia em uma vila a mais de 80 quilômetros de Bom Jesus, numa região para onde seus pais nunca viajavam.

Saiba Mais

O pioneiro João Mariano vive em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, desde 1955.