David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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A tempestade de fuligem

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Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento

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Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente (Foto: Reprodução)

Foi num dia de clima ameno que cheguei em casa no final da tarde e encontrei a garagem e as roupas no varal cobertas de fuligem da queimada de cana-de-açúcar. A forma como se moviam pelo espaço me dava a impressão de que eu estava diante dos vestígios de uma tempestade caliginosa, flexuosa e suja.

A fuligem serpentava pelo ar de forma zombeteira. Quando eu tentava tocá-la, ela desviava com agilidade e se fixava em alguma coisa que ingênuo eu me esforçava para proteger. Havia sujeira por todos os lados. Sem constrição, a fuligem grafitava tudo que pelo caminho encontrava.

Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento. Podia ser tocada em sua minúcia, mas nunca possuída, porque depois que nascia a mais ninguém ela pertencia. Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente.

Meu carro branco e asseado ficou encarvoado quando a conheceu. Sem condições de se mover, testemunhou o vento especioso transportando tanta fuligem que até o sol desapareceu atrás das sombras massificadas de imundície. O brilho da lataria sumiu, embaciado pela soberania malemolente da falsa plumbagina.

Esfreguei o dedo no capô e notei uma mixórdia de cinzas e grafite de baixa qualidade que se desvaneceu sob o meu indicador direito. Para minha surpresa ainda preservava o aroma de cana-de-açúcar crestada. Repousando no seco, ela se arrastava como alguém que engatinhava. E agarrada ao úmido ou molhado, a fuligem se dissolvia, criando desenhos nem sempre incompreensíveis ou vazios em sentido.

No centro de uma camiseta branca que brandia sobre o varal, vi o adunco formato de uma mão diminuta e estriada. Tinha até unhas carcomidas, e algumas eram mais encardidas que as outras. Cheguei a crer que a fuligem possuía sua própria memória, uma lembrança perene do momento em que se desprendeu da cana-de-açúcar para sumir na imensidão do céu e da aragem outonal.

Talvez fosse a mais depreciativa das Fênix, já que ela renascia das cinzas e quase como cinzas, sem o direito de transformar-se em algo belo, bom e frutuoso que as pessoas pudessem gostar de assistir ou aspirar. Rebento do palhiço de cana, nasceu feinha e sem motivação existencial.

Gestada no borralho, a fuligem percorria dezenas de quilômetros até chegar ao seu destino – residências da área urbana, inclusive de pessoas que nem sabiam que ela existia. Aquela era sua sina, a curta vida de quem despontou casmurrada pela queimada. Não a culpo pela indisciplina. Deve ser horrível acordar sentindo algo quente te obrigando a partir.

Mergulhei dentro da minha mente e assisti seu primeiro voo, tímido e lânguido. Soprada para longe, obedeceu sem questionar a ordem natural das coisas. Apesar de tudo, sentiu o frescor remanescente do verde que se extinguia a dezenas de metros de distância do solo. A fuligem se esforçou para chorar, vendo-se tão turva e uniforme quanto insignificante. Se contorceu no ar, mas de nada adiantou. Relegada a uma existência estéril, era mais seca que a mais contumaz das estiagens.

Encolerizada por não ter direito a nada, e ciente de que não duraria mais do que horas e, com muita sorte, alguns dias, se insurgiu contra o seu fado. Fez um acordo com o vento, prometendo reverenciá-lo como um deus se ele a ajudasse a ir o mais longe possível em sua zaragata. Ele concordou.

Depois de se transformar em tempestade, a aragem a arrastou. Com sua força nímia e sobranceira, condensou toda a fuligem do canavial, criando uma pequena e turva réplica da lua. Num percurso de dezenas de quilômetros, a esfera se desfez e seus fragmentos seguiram pelas mais diferentes direções – atravessando pastos, lavouras, vilas, distritos e cidades da região de Paranavaí.

Naquele dia, a fuligem invadiu a Rua John Kennedy, cruzou o céu da minha casa e deixou centenas de vestígios indesejáveis, acompanhados de um som cicioso que imitava o tinir dos facões. O aroma de cana-de-açúcar ainda persistia. E por um descuido, enquanto eu decidia o que fazer, a fuligem entrou no meu nariz e eu a inalei. Mais tarde senti uma queimação no peito. Tive a impressão de que algo insólito estava vivo dentro de mim e se movendo.

Fui ao médico no dia seguinte e na mesma semana fiz alguns exames. Ele me mostrou que havia uma mancha estranha que se distendia sobre um dos meus pulmões. Não nego que senti um misto de preocupação, raiva e tristeza. “Tenho quase certeza de que são vestígios de monóxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio, dióxido de carbono e amônia. Precisamos cuidar disso, porque senão rapidamente pode virar asma, câncer de pulmão ou até peniano”, alertou o pneumologista.

“Senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso”, escreveu Campos de Carvalho em “A Lua vem da Ásia”. Na segunda e na terceira bateria de exames, realizadas no mês seguinte, não havia mais nada em meus pulmões. Então me recordei que 15 dias antes um prolongado espirro me proporcionou uma ímpar sensação de alívio. E o que saiu do meu nariz não era claro como a água, mas turvo como o vácuo da inexistência.

Chegando em casa, deitei na cama e percebi através da janela que do outro lado repousava uma nova mancha de fuligem na parede – parecia uma sarça ardente. Caí no sono, pensando apenas em outra passagem de Campos de Carvalho. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”

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Uma corrida que quase terminou em tragédia em 1941

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“O infeliz puxou a rédea do meu animal. Aí não perdoei. Desci o chicote no lombo e ele soltou”

João Mariano: "Lá havia as raias nas estradas, não em clube" (Arquivo: Rita Turfe)

João Mariano: “Lá havia as raias nas estradas, não em clube” (Arquivo: Rita Turfe)

O cearense João Mariano tinha oito anos quando perdeu o pai. Aos dez, seu irmão mais velho pediu à sua mãe que o deixasse morar com ele. Alegou que precisava de alguém para cuidar de suas terras enquanto viajava para comprar e vender gado. “Depois de dois anos morando com meu irmão, comecei a treinar com um cavalo de corrida dele e logo me tornei jóquei. Lá havia as raias nas estradas, não em clube. E muita gente ganhava algum dinheiro nas corridas, vendendo bolo, café, lanches, essas coisas. Mas ninguém lucrava mais que os donos dos cavalos, assim como os apostadores”, narra.

Por cada disputa realizada aos domingos, Mariano recebia uma “groja”, além de um adicional em caso de vitória. As competições lotavam e de longe se ouvia a torcida e a algazarra do público. “Eu corria muito em São José, uma vila a 60 quilômetros de Guassussê, o maior distrito de Orós [no Centro-Sul do Ceará]. Só tinha cavalo pra páreo de 600 ou mil metros. Então era tudo bicho de qualidade”, informa, acrescentando que os animais eram muito bem tratados.

Três dias antes de cada corrida, Mariano e mais dois companheiros montavam guarda nas cocheiras, inclusive revezavam na hora de dormir, para evitar que alguém invadisse o local e dopasse os cavalos a mando dos rivais. “Lembro de um menino da minha idade, um tal de João, filho de um homem chamado João Cabral. Ele tinha o costume de puxar as rédeas do cavalo adversário durante a ultrapassagem. Então quando fomos correr na Vila de Bom Jesus, eu avisei ele: ‘Olhe, João, não segure meu cavalo nem me feche porque se você fizer isso eu desço o chicote em você’”, prometeu.

Depois de ouvir a ameaça, João prometeu que não iria fazer nada, apenas guiar o próprio cavalo. No entanto, mudou de ideia ao ver João Mariano perto de assumir a liderança. “Me fechou, tirando a frente do meu cavalo. Ainda pedi pra ele me deixar em paz e o infeliz puxou a rédea do meu animal. Aí não perdoei. Desci o chicote no lombo e ele soltou. Naquele dia do ano de 1941 meu cavalo ganhou o páreo”, declara.

Quando Mariano estava deixando a pista, João Cabral, o pai do garoto, se aproximou com um revólver em punho para vingar a surra que o filho levou diante da plateia. “Ele veio pra me matar. Deixou a pistola no jeito, engatilhada. Aí tinha um senhor de mais de 60 anos que eu não conhecia. Ele se levantou de uma cadeira, sacou o revólver e falou para o João Cabral: ‘Atire primeiro pra ‘modi’ eu ver se tu é homem. Saiba que esse menino é meu parente’”, revelou, guardando o revólver na guaiaca assim que Cabral virou as costas e partiu.

O desconhecido era primo da mãe de João Mariano. Ele não o conhecia porque o homem vivia em uma vila a mais de 80 quilômetros de Bom Jesus, numa região para onde seus pais nunca viajavam.

Saiba Mais

O pioneiro João Mariano vive em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, desde 1955.

Visita aos mortos

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Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? 

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Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante (Foto: Reprodução)

Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?

Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.

O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.

Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.

Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.

Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.

“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.

Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.

Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.

De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.

Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.

A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.

Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.

Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.

Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.

Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.

Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”

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Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado em abril

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Nova sede vai abrigar mais de 600 objetos e 2,8 mil fotos sobre a história local

Fachada do Museu de Paranavaí que vai funcionar ao lado da Casa da Cultura (Foto: David Arioch)

Fachada do Museu de Paranavaí que vai funcionar ao lado da Casa da Cultura (Foto: David Arioch)

Fundado em 2007, o Museu de Paranavaí sempre funcionou nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. Porém, a partir da segunda quinzena de abril, o museu começa a atender em um novo espaço – na antiga Estação do Ofício. Atualmente o local está passando por reformas e adaptações feitas pelos colaboradores da Fundação Cultural de Paranavaí.

“Estamos fazendo um trabalho com muito amor e carinho, baseado no improviso e na criatividade”, comenta a coordenadora do Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, Rosi Sanga, que ao longo dos anos conseguiu reunir mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí.

Há inclusive objetos dos tempos da Fazenda Brasileira, como Paranavaí era conhecida nas décadas de 1930 e 1940, e um acervo com 2,8 mil fotos. Muitas já foram digitalizadas e devem compor o Memorial Digital do Pioneiro. “Assim que o Museu for reinaugurado, vamos continuar com nossas exposições. Elas são baseadas em histórias que começam na época dos índios, embora eles não tenham vivido exatamente onde a cidade surgiu. Também falaremos da derrubada da mata, da fase econômica do café e de outros ciclos. O mais interessante é que aqui cada objeto tem uma memória a ser narrada”, revela Rosi.

Uma das paredes do museu está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Uma das paredes do museu está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Uma das paredes do museu já está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí através das pinturas da artista Cecília Tortorelli. Importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização local e regional, o museu possui coleções, objetos do cotidiano, itens numismáticos, documentos e instrumentos de trabalho. Visitar o museu é uma grande oportunidade para entender o surgimento de Paranavaí e o seu desenvolvimento, principalmente nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960.

Outra novidade é que no entorno do museu vai ser criado um canteiro com ervas medicinais usadas nos tempos da colonização. “Do lado de fora, vamos exibir depoimentos de pioneiros sobre essas ervas. Também vamos deixar dois tipógrafos em exposição na parte externa”, enfatiza. A tradicional Sala de Imagem e Som, que funcionava na Casa da Cultura e reunia um bom acervo de materiais e equipamentos de rádio, TV e cinema, também vai funcionar nas dependências do museu.

“A partir da segunda quinzena de abril, se tudo der certo, vamos atender das 8h às 17h, mas caso alguém nos ligue com antecedência, querendo conhecer a exposição, podemos abrir também fora do horário comercial”, declara a coordenadora. O Museu de Paranavaí continua recebendo doações, desde que sejam itens com relevância histórica. Para mais informações, ligue para (44) 3422-5018.

Saiba Mais

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí é administrado pela Fundação Cultural de Paranavaí.

O pendão e o pé de feijão

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Me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus

Parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart (Arte: Lindsey Bell)

Parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart (Arte: Lindsey Bell)

Um dia, quando eu tinha seis anos, eu e meu irmão Douglas estávamos em casa, na sala de estar, ladeados pelos colossais pendões ornamentais de minha mãe. Eram sarapintados e tão bonitos que ficamos em torno deles os observando e tocando. “Parece cabelo de milho, só que colorido!”, comentei.

A maneira como se esforçavam para acariciar o teto quando a brisa invadia a sala me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus. Suas formas delgadas e perfiladas convidavam nossas mãos miúdas a fazerem cócegas um no outro com suas franjas. Em pouco tempo, e mais vermelhos do que um dos pendões, rolávamos pelo chão às gargalhadas, coçando a cabeça, o rosto e os braços. As cutucadas nas orelhas intensificavam as casquinadas.

A balbúrdia era tão grande que o piso de tacos, recém-lustrado pela minha mãe, vibrava e ganhava marcas de dedos, cotovelos e solas de pé. A verdade é que os pendões nos serviam até para brincadeiras de esconde-esconde. Sofria diante de nossa presença, e às vezes eu suspeitava que ele tremulava mais por medo do que por incidência fortuita da aragem.

“Agora vêm esses loucos em miniatura”, talvez aventasse, contraindo-se timidamente. Parecia que se encolhia com a nossa chegada, como menina empenhada em não ser notada. Muitas vezes, assim que cheguei da escola, joguei a mochila sobre a cama e fui até a sala. Corria em torno dos pendões, imitando um índio aprendiz de guerreiro. Ocasionalmente, enfiava a cabeça entre eles, observando a ausência de luz de um candeeiro. Fechava os olhos e sentia um quimérico e tenro perfume alvissareiro.

Imaginava um rio caudaloso, para onde eu poderia fluir como suas águas, se me lançasse sem sobrosso. Com as canetinhas de colorir, fazia alguns riscos no rosto. Urrava com voz falsa e continuava a incomodar os pendões até a hora de ir para a escola. Um dia, arrastei o vaso para mudá-lo de posição e senti uma força me impelindo quase à exaustão. Embora dissessem que os pendões não tinham vida, me assustei ao ver um pouquinho de água no piso de tacos, em torno e debaixo do vaso.

Achei que os pendões tivessem chorado por minha causa e parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart. À noite, em casa, deitei no beliche com olhos intumescidos, divaguei pela história narrada pela professora Inês, e considerei: “Se não tem vida, por que ele parece maior? Estranho…muito estranho…”

No dia seguinte, minhas dúvidas aumentaram exponencialmente quando vi que estavam maiores do que nunca. Contei ao meu irmão Douglas o que aconteceu e ele também se aproximou para confirmar a minha suspeita do pendão se passando por pé de feijão.

Minutos antes do almoço veio a certeza de que algo precisava ser feito. Havia grãos de feijão em torno do pendão. Sorrimos com chiata, coçamos as mãos e olhamos um para o outro, movimentando maquinalmente a cabeça de cima para baixo, em concordância. “Quer dizer que não consegue mais fingir? Uhum…”, concluí.

No dia seguinte, enquanto minha mãe e meu tio conversavam na varanda, eu e meu irmão fomos até a sala. Antes observamos o entorno para ter certeza de que não seríamos surpreendidos por ninguém. Douglas tirou um isqueiro do bolso e eu tirei outro. Frente a frente, acenamos com a cabeça, e acendemos os dois – encostando-os nos pendões que queimaram como gigantescos busca-pés silenciosos, privados de assobiar.

Logo se transformaram em um nada incandescente. O fogo subiu tão rápido que me lancei para trás, sentindo o corpo quente e a visão ligeiramente turva. Inclinando a cabeça para cima, enxerguei o teto esbraseado. O fogo, vivo como nunca tinha visto, transfigurou suas formas até o momento em que Tio Lu, com o auxílio de minha mãe, se aproximou para impedir que ele se espalhasse.

Assistimos tudo em inércia. A intervenção rápida só não impediu que o forro ficasse preto. E assim ganhamos o nosso próprio céu enlutado, sem lua ou estrelas, apenas uma estática escuridão que ofuscava a réstia escabreada que tentava iluminar os restos de pendão.

Ficamos de castigo por um bom tempo. Apesar disso, nos sentíamos heróis, crentes de que evitamos que o gigante comedor de gente jamais desceria pelo pé de feijão transformado em pendão. “Não ia demorar até ele chegar. Fizemos bem”, comentamos. Depois de algumas cintadas e uma semana sem sair para brincar, minha mãe descobriu porque ateamos fogo nos pendões.

No dia da revelação, fiquei sabendo que antes do acontecido o vaso dos pendões foi trocado por outro igual, porém com fundo raso, dando a impressão de que eram maiores. Além disso, a água em torno dos pendões foi derramada na manhã em que minha mãe foi ao nosso quarto com um balde de água para limpar o piso.

“Os grãos caíram no chão quando corri pela sala com um pacote aberto de feijões para atender ao telefone”, confidenciou. Ouvimos em silêncio, entendemos e reconhecemos nossa culpa. De volta ao quarto, sorrimos um para o outro. Atirei um grão de feijão cru em meu irmão e ele atirou outro em mim. Não era preciso articular palavra. “A inocência não se envergonha de nada”, dizia Jean Jacques-Rousseau.

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O menino Valdir

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Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria

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Panificadora Pão de Açúcar, onde vovô presentava seu neto postiço (Foto: David Arioch)

Eu tinha cinco anos quando meu avô João chegou em casa falando do menino Valdir. Tranquilo e compenetrado, continuei no sofá assistindo desenho animado. Ele sentou ao meu lado e disse que Valdir era tão dedicado que gostava dele como se fosse seu próprio neto.

Naturalmente comecei a sorrir, mostrando os dentes com bisonhice e observando a expressão serena em seu rosto esfíngico e ainda pouco crispado. De repente, questionei: “Quem é menino Valdir?” – crente de que se tratava de nome e sobrenome. Ele coçou o queixo liso, recém-barbeado, hesitou e falou que era um menino muito esperto e da minha idade. Segundo vovô, Valdir gostava de ajudá-lo em qualquer circunstância.

Fiquei intrigado e imaginei quem seria esse garoto. “Eu conheço o menino Valdir?”, perguntei à minha mãe na cozinha enquanto ela amaciava a longa massa de pão girando um rolo à manivela. Respondeu que não, voltei para a sala e continuei encucado. “Menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir, menino Valdir…”, pensei antes de dormir, como uma dessas crianças que contam carneirinhos, observando o forro amadeirado e envernizado do quarto.

De madrugada, vovô invadiu meus sonhos passeando de mãos dadas com Valdir. Sorridentes, os dois caminhavam até a Panificadora Pão de Açúcar, onde ele presenteava seu neto postiço com os doces mais caros e mais bonitos da vitrine. “Como você é bonzinho, Valdir. Seus pais devem ter muito orgulho de você. Saiba que és a melhor criança do mundo”, comentava.

Valdir, que só balançava a cabeça em concordância, gargalhava e apontava o dedo para mim. Zombava ao ver uma barreira invisível me impedindo de ultrapassar a soleira da padaria. Fui obrigado a assisti-los do lado de fora, ouvindo o ronco do meu estômago. Sentia que havia um cabouco dentro de mim, uma fome tão avassaladora que deixava meu corpo minúsculo tiritante.

Escorado no batente, minha visão enturvecia conforme eu reconhecia a olência edulcorada de alguns doces que em meu mundo diminuto e inaudito eram os mais deliciosos do mundo. Performático, Valdir mastigava com ledice. Repartiu um pãozinho em dois pedaços, apontou o recheio cremoso e frutado em minha direção, lambeu os beiços e simulou que me daria um pedaço.

Levantou do banquinho, veio em minha direção e, faltando dois passos para chegar até a soleira, esticou o braço e recuou. Macarrônico, retornou fazendo o clássico moonwalk, de Michael Jackson, acompanhado de uma fosquinha. Sentou, fechou os olhos rapidamente, suspirou e abocanhou o pão que em poucos segundos desapareceu dentro de sua boca de rapa-tachos. “Por que, vovô? Por que, Valdir? Por que tão fazendo isso?”, retumbavam inúmeros fraseados ribombados que singravam intrincados dentro da minha mente.

Langoroso e atento a tudo que acontecia no interior da padaria, nem me dei conta de que eu estava completamente nu, com exceção dos pés envolvidos por um par de chinelinhos do Zé Colmeia. Só percebi o supra-realismo da situação quando ouvi gritos ensandecidos de uma multidão que me observava do outro lado da Avenida Distrito Federal. Tentei tapar minhas partes íntimas com as mãos, mas não adiantou. Pelado, corri ruborizado até o cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, indo em direção ao Jardim São Cristóvão.

Ao meu redor, os motoristas reduziam a velocidade, colocavam suas cabeças titânicas como melancias janela à fora e gritavam com embocadura de hipopótamo: “Pelado, sem vô e faminto, isso que é um azar do quinto!” As vozes continuavam ecoando por todos os lados. Eu corria e não chegava a lugar algum, como se estivesse sobre uma esteira. De repente, o dia virou noite e o céu azul como um oceano prepóstero desvaneceu.

No firmamento, eu via somente escuridão, um vazio abissal. “Cadê a lua e as estrelas?”, refleti, até que centenas de olhos de coió surgiram entre as fendas que se abriram na abóbada celeste. Eram pretos, castanhos, azuis, verdes, cinzas, fulvos, rosáceos, enfim, de todas as cores possíveis e impossíveis. Eles me vigiavam e me acompanhavam com a destreza indefectível de um mecanismo automatizado, e com precisão de lentes telescópicas.

Para todos os olhos havia apenas uma boca. Não! Uma bocarra tétrica que parecia prestes a engolir meu mundo e me deixar vagando pelo sempiterno da inexistência terrena. “O que você quer? Fala logo, baixote!”, projetou o vozeirão macambuzio com um hálito vigoroso e vicejante como das hortas caseiras de hortelã. A cada palavra, ela me lançava uma aragem que esvoaçava meus cabelos com ferocidade e arrancava as folhas dos galhos de uma sibipiruna que me protegia, evitando que eu fosse arrastado.

Tive dificuldade em manter os olhos abertos – esbraseavam por causa da violência lancinante da ventania que sibilava e chiava, me motivando a abraçar o tronco da árvore com minhas mãos miúdas que afundavam em seu dorso, enchendo as unhas de vestígios moscados de coscorão. Num impulso, gritei que só queria voltar para casa. “Por favor! Nunca mais vou seguir o vovô e o Valdir!”, prometi com olhos marejados.

As lágrimas escorriam pelo meu rosto rubicundo, desciam pelo corpo e afrouxavam o elástico do par de chinelinhos tornado escorregadio como pele de sapo. Cabisbaixo, silenciei e quase desmaiei, com a visão ligeiramente embaçada. Só despertei com a chuva morna e torrencial tocando meus cabelos e ombros com a graciosidade de um cafuné e um abraço. Era colorida e tinha cheiro e sabor de sodinha.

Observei novamente o céu e vi centenas de olhos encharcados. O choro se transformou na chuva que aquecia meu corpo, afastando a friagem. Depois, todas as fendas findaram no céu e a água prosseguiu sua jornada solitária, se intensificando e formando uma pequena corrente caudalosa que me arrastou até a Rua Pernambuco. Quando abri o portãozinho de casa, um forame sem fundo surgiu logo abaixo dos meus pés. Não consegui me afastar – era tarde demais. Enquanto eu caía, tudo ao meu redor se desfazia. Subitamente tive um espasmo hipnico e acordei. Três anos depois, o mesmo pesadelo retornou, só que pela última vez.

Naquela madrugada, sentado na cama, me recordei de todos os episódios que vovô viveu com Valdir, tantas experiências e histórias partilhadas. Então tomei uma decisão. Caminhei até a varanda, onde vovô repousava em uma cadeira – ouvindo rádio e vendo a frugal movimentação de passantes na rua, e pedi que me levasse para conhecer o menino Valdir. Ele me observou atentamente em silêncio, sorriu e revelou: “Valdir nunca existiu, a não ser dentro da minha e da sua mente, onde a criatividade floresce sem um pedaço de semente.”

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Sonya

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Tudo nela transparecia veraz, uma antítese da artificialidade do mundo de concreto que nos envolvia

Lada, a deusa da beleza e do amor de quem Sonya me falou (Arte: Igor Ozhiganov)

Lada, a deusa do amor e da beleza de quem Sonya me falou (Arte: Igor Ozhiganov)

Sempre achei intrigante conhecer pessoas ao acaso, sem planejamento ou intenção. Parece que tudo flui com mais naturalidade, já que não há preocupação em surpreender alguém. Você se vê em um lugar e começa a conversar sem esperar nada da outra pessoa, nem ela de você. Sem tensão, sem ansiedade, existe apenas o momento que pode ser efêmero ou duradouro – e pode ou não se transformar em outra coisa.
Existe beleza no acaso e talvez ela subsista na ausência de expectativas, no fato de que às vezes você pode estar em um lugar simplesmente por estar, para não se perder nem mesmo se encontrar. Clarificando a introdução, vou relatar uma história a ser levada em consideração.

Um dia, na faculdade, assim que terminei um trabalho, me ausentei da sala de aula. Desci a escadaria do terceiro bloco, passei por um grupo de jovens que conversavam tão alto que o papo ecoava pelo prédio e sentei em um banco em frente ao primeiro bloco. Fiquei em silêncio prestando atenção em tudo à minha volta. Havia pouco movimento no pátio, o que era bem previsível, levando em conta que o intervalo tinha terminado.

Ocasionalmente algumas pessoas passavam por mim, indo em direção a outros blocos. As conversas iam desde maledicências até preocupações acadêmicas. Achei inusitado ver moças tão sobejamente bem vestidas que cheguei a inferir quanto tempo não levaram para se arrumar. Roupas caras, postura altiva, nariz hirto, cabelos perfilados quase que geometricamente endossavam no meu ideário a existência de um mundo fátuo em demasia, que aspira a mais tangível das frágeis perfeições. Era belo e triste. Mas eu não estava ali para avaliar ou julgar, a mim isso não significava muito.

“Que me interessava a forma como as pessoas se vestiam?” Eu que ia praticamente uniformizado para a faculdade, quase sempre de calça jeans, camiseta de banda de heavy metal ou algum subgênero e tênis ou coturno. Enxergava o mundo por entre os cabelos de azeviche que deitavam por minha testa e se aplainavam sobre meus olhos escuros como a noite.

No início do segundo milênio, eu já usava um grande labret spike, um piercing alongado e pontudo que fulgurava entre os lábios e o queixo. Até no escuro ele cintilava e atraía olhares curiosos e antevieiros. Perdi as contas de quantas pessoas se aproximaram de mim ao longo de seis anos para fazer perguntas sobre o dito cujo.

Mesmo depois de tantas abordagens, eu continuava explicando que não machucava, que não era difícil de higienizar, que não doía na hora de colocar. “Mas como você beija com isso? Não é desconfortável?”, questionavam. À época, não era comum encontrar pessoas com tal adorno. E foi justamente por causa desse labret spike que conheci uma italianinha de ascendência russa.

Naquela noite, em frente ao Bloco 1, fazia mais de dez minutos que eu estava sentado no mesmo banco. Saí da sala de aula porque não me sentia bem. Então fiquei lá aspirando um pouco da brisa álgida que a noite homiziava e lançava fortuitamente sobre mim. Junto, trazia um punhado de folhas que se juntavam ao redor de meus pés, formando um tapete mesclado de verde e castanho. O tempo passava, e o verdoengo bálsamo da chuva que só ameaçava se intensificava.

“Hoje ela não vem”, prognostiquei, observando o céu parcialmente límpido que há vários dias confundia os meteorologistas. No momento em que decidi me levantar para ir ao banheiro, uma moça se aproximou. Sua voz soava dulcificada e maviosa, carregada de um forte e desconhecido sotaque: “Isso deve doer, não?”, ironizou sorrindo, mostrando o seu labret de bolinha. Respondi que só dói quando caio de queixo no chão – e sorri com brevidade. Depois indagou se poderia se sentar. “Claro, sem problema…”, falei. Seu nome era Sonya e, para minha surpresa, com ela chegou um subitâneo calor outonal que aplacou o frio noturno em velocidade abismal.

Embora fosse estrangeira, falava português com fluência espantosa. Conversamos sobre música e cinema e, sem demora, o papo se transformou numa flama filosófica e existencialista – recheada de sátiras, aforismos improvisados e comentários bifurcados e sem sentido. O comportamento humano, o sentido da vida e nosso papel no mundo figuravam caricatamente entre os tópicos, assim como a essência do inexistente. “As coisas podem fazer sentido, mas nem sempre precisam, certo?”, “O nada não tem necessariamente que ser somente nada nem mesmo mais do que nada.” “Poder não significa dever, senão a liberdade intelectual morre, e com ela a nossa capacidade de fascinar, não é mesmo?”

“Como alguém pode saber que gosto tem a noite se não for capaz de sorver o seu sabor a olhos fechados, reconhecê-la a partir do seu perfume?” “Não quero ter uma existência mecânica, que não me permita ter tempo para pensar e questionar. Se me render completamente ao trabalho, temo que posso deixar de existir. Talvez em alguns anos não veja mais nada diante do espelho. Terei de amargar o desaparecimento do meu próprio reflexo.” “Ni ni ni ni ni.”

Olhando ao nosso redor, parecíamos dois estranhos, dispersos entre a comédia e o drama de um universo matizado, como aqueles que misturam pessoas e personagens de desenho animado. Éramos nós mesmos – desvelados, sem necessidade de simulação – e aquilo alimentava a nossa humanidade ruidosa em abstração. Tive a mesma sensação de quando se é criança e sai para brincar e fazer o primeiro amiguinho. Em poucos minutos, seus olhos não veem mais estranheza e você percebe a leveza de um contato que no limiar da vida é tão essencial e substancial quanto segurar a mão maternal, sentir o excelso e doméstico calor humano.

Depois daquele dia, continuamos nos encontrando. E meu fascínio e deferência por Sonya evoluía até na proporção de tudo que não dizíamos embora entendíamos. Falar, tão necessário quanto silenciar. A vi como uma dessas raras pessoas capazes de fazer alguém mergulhar dentro de si mesmo para se redescobrir maior, mais vivo, mais leve, mais diáfano, mais livre e outros tantos mais.

Ela irradiava alegria; não do tipo postiça, arrebatadora, efusiva ou imponderada, mas plácida, lídima e mélica como seus cabalísticos olhos castanhos-esverdeados; por si só luzes que iluminavam mais do que qualquer lâmpada em nosso entorno. Seus cabelos triguenhos e longos chispavam como fios de ouro contornando seus traços finos e graciosos, realçando ainda mais sua venustidade.

Mesmo sem batom, seus lábios coravam como morangos frescos e silvestres. Quando sorria, exibindo primorosos dentes níveos, suas covinhas brotavam com doçura, mais bela que a mais portentosa iluminura. Tudo nela transparecia veraz, como uma antítese da artificialidade do mundo de concreto que nos envolvia. Aprendíamos mais sobre a vida e a natureza humana nas entrelinhas de nossos olhos. Não era difícil, se nos enxergávamos um no outro, na completude da espontaneidade.

Numa noite em que não tive aula, nos encontramos em seu apartamento. Fomos à cozinha e a ajudei a preparar piroshki, um pãozinho assado que ela recheava com legumes e vegetais. Comemos e sentamos no sofá para assistir “Ladri di Biciclette”, do magistral neorrealista Vittorio de Sica. Na cena em que roubam a bicicleta do miserável colador de cartazes Antonio Ricci, notei meu ombro direito úmido. Quando olhei para o lado, vi Sonya chorando, com os olhos inflamados e a pele ebúrnea tornada vermelha. Sorri, a cutuquei e com inocência fiz troça de sua sensibilidade à flor da pele. Ela escondeu o rosto entre as mãos miúdas, mudou o cenho e retribuiu me dando dois beliscões.

Ao final do filme, me contou a história de Lada, a deusa do amor e da beleza na mitologia eslava. “Ela possuía atributos parecidos com Freya, Isis e Afrodite. Tinha cabelos longos e dourados. Preferia eles em tranças, com uma grinalda de grãos, o que simbolizava abundância. Mas também podia mudar algo na sua aparência, caso não quisesse ser reconhecida. Lada foi muito popular entre os antigos eslavos porque ela era capaz de substituir o abraço frio do inverno por um calor morno, aprazível”, narrou.

Mais tarde, com a chegada de uma moça com quem Sonya dividia o apartamento, caminhamos até a entrada do elevador, onde nos despedimos com um abraço que durou quase cinco minutos. Moradores passaram por nós se queixando do frio que não sentíamos. Se surpreendiam ao me ver de camiseta, com a jaqueta apoiada no braço direito, despreocupado com o que me aguardava nas ruas. Eu sorria e fechava os olhos, absorvendo o bálsamo orgânico de seus cabelos e os predicados que a vida emanava de seu corpo.

Lá fora, a garoa caía e desaparecia antes de tocar minha pele. Muitos caminhavam rapidamente segurando uma bolsa ou uma pasta sobre a cabeça, com receio das gotículas de água suspensa. A mim, pouco importava. Atravessei alguns quarteirões a pé, com o corpo tão aquecido que nem as rajadas de vento que torciam os galhos mais finos das árvores me atingiam. Sentia os braços calorosos de Sonya em torno de mim, mais macios que lençóis de cetim. Na metade do caminho, o sereno se dissipou e o céu turvo por um instante clareou. Alguns passantes apontaram para o firmamento, onde um rosto feminino em movimento sorria enquanto em primazia se desfazia.

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Written by David Arioch

February 23rd, 2016 at 7:22 pm

Breve história de Paranavaí

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Conheça alguns dos fatos mais importantes de Paranavaí de 1910 até a década de 1980

Perímetro urbano de Paranavaí em 1956 (Foto: Toshikazu Takahashi)

Perímetro urbano de Paranavaí em 1956 (Foto: Toshikazu Takahashi)

Em 1910, a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), de propriedade do jornalista e empresário baiano Geraldo Rocha, começou a desbravar o Noroeste do Paraná, nominando Paranavaí e região como Gleba Pirapó.

Em 1926, a Braviaco criou uma estrada com 110 quilômetros de extensão ligando a Fazenda Ivaí, que se tornaria a Vila Montoya, ao Porto São José, com a finalidade de promover transações comerciais com Guaíra e Porto Mendes, no Oeste Paranaense, e Argentina para onde o café produzido seria transportado. Pelo mesmo caminho foi enviado todo o equipamento necessário para a viabilização de uma serraria, empreendimento determinante para a construção da sede da Fazenda Ivaí, atual Paranavaí.

A década de 1920 é apontada como a mais difícil para os moradores da colônia pelo fato de terem vivido isolados no meio da mata, correndo o risco de serem atacados por animais selvagens. Além disso, o difícil acesso a outras localidades complicava mais ainda a situação. Até mesmo a carne consumida na Fazenda Ivaí vinha de muito longe, era comprada no Mato Grosso do Sul, para onde um encarregado e alguns peões viajavam enfrentando uma série de desventuras para trazer a boiada em um barco a vapor.

Em 1928, a Vila Montoya, baseada na monocultura cafeeira, ganhou contornos de cidade. A colônia oferecia tudo que era necessário à sobrevivência dos mais de seis mil moradores. No entanto, o único acesso ao distrito era a estrada do Porto São José, na divisa com o atual Mato Grosso do Sul. Todos que iam para Montoya usavam a mesma via, que servia também para ligar a colônia ao Porto Ceará e a Presidente Prudente, no Oeste Paulista, segundo o livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva.

Em 1930, foram trazidas à Fazenda Brasileira cerca de 1,2 mil famílias de migrantes para trabalharem nas lavouras de café sob regime de colonato. O trabalho foi interrompido inesperadamente um ano depois. Após a Revolução de 1930, o título de propriedade da Gleba Pirapó foi cassado, o que comprometeu o desenvolvimento de Montoya.

Em 8 de abril de 1931, ano em que a extinta Vila Montoya foi nominada como Fazenda Brasileira, o interventor federal do Paraná, o general Mário Tourinho, assinou um decreto retomando as terras da localidade e autorizou o início dos loteamentos.

Também na década de 1930, quem precisava viajar para outras cidades do Paraná era obrigado a atravessar a divisa com o Estado de São Paulo, embarcar em um trem que percorria a antiga Estrada de Ferro Sorocabana até Ourinhos, e de lá partir para Tibagi, no Centro Oriental Paranaense, a quem o distrito de Montoya pertencia.

Em 1933, o interventor Manoel Ribas visitou a Fazenda Brasileira. Para facilitar o contato com outras colônias e cidades do Paraná, além de diminuir a influência paulista na localidade, Ribas pediu que o engenheiro civil Francisco Natel de Camargo iniciasse a abertura de outra estrada que começava em Arapongas, no Norte Central do Paraná, se ligando à Estrada Boiadeira. Entretanto, a colonização da Brasileira só voltou a ser intensificada em 1935.

Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Estado do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. Bandeira e o administrador da colônia, Hugo Doubek, fizeram o trabalho de demarcação territorial da colônia a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. Pelo fato da colônia ter surgido sob a égide da cafeicultura, as principais ruas e avenidas foram traçadas visando o escoamento das produções, não o desenvolvimento urbano.

O nome Paranavaí surgiu apenas em 1944, por sugestão do engenheiro Francisco de Almeida Faria que destacou a necessidade de batizar a cidade com nome único. Pouco tempo depois, a partir do neologismo que é uma junção dos Rios Paraná e Ivaí, surgiu a Colônia Paranavaí. Logo muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem.

A partir de 1946, a colonização na região de Paranavaí ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama, de acordo com dados do IBGE. À época, o que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado.

Entre os anos de 1940 e 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, espanhóis, japoneses, franceses, suíços, húngaros, sírios e libaneses, além de povos de outras etnias. Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina.

Em 14 de dezembro de 1951, com o empenho do primeiro vereador de Paranavaí em Mandaguari, Otacílio Egger, que teve ajuda do pioneiro paulista Paulo Tereziano de Barros, a colônia conquistou a emancipação política por meio da lei estadual nº 790. No entanto, foi necessário esperar mais um ano para a elevação de Paranavaí a município, após a eleição que elegeu o médico José Vaz de Carvalho como prefeito de Paranavaí. Ele obteve 2702 votos contra 1607 do adversário Herculano Rubim Toledo. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Paranavaí contava com 22.260 habitantes em 1951. À época, Mandaguari tinha 15.434 e Maringá possuía 8.898 moradores.

Em 14 de dezembro de 1952, quando Paranavaí se tornou município, a população local somava 25.520 habitantes, segundo o IBGE.

Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores. A cidade teve uma evolução exemplar. Era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.

Nos anos 1980, a pecuária já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí. De acordo com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, uma reação ao que aconteceu em 1969, quando a última e mais grave geada dizimou 80% da produção cafeeira. A diversificação de culturas surgiu tardiamente em Paranavaí, marcada por investimentos mais maciços em citricultura e mandiocultura. Desde então a economia local passou por uma nova pluralização. Exemplo disso é o fato de que na atualidade os setores de prestação de serviços, construção civil e comércio também respondem por importante parcela da geração de renda e empregos em Paranavaí.

Written by David Arioch

January 6th, 2016 at 11:53 am

Nestor e Pompeu

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Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente

Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado (Foto: Helder Shiroshima)

Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado (Foto: Helder Shiroshima)

A primeira vez que vi Nestor e Pompeu eu tinha cerca de oito anos. Foi num terreno baldio na esquina de casa, na Rua Pernambuco, onde em meio à capoeira que crescia livremente havia um tanque velho e uma torneira encardida de plástico. Nestor, um rapaz de não mais que 35 anos e estatura mediana, banhava seu cachorro mestiço que imóvel o observava esfregando-lhe o dorso com um pedaço carcomido de sabonete.

Depois do banho, Nestor enrolou Pompeu em uma toalha branca já amarelecida e forrou o chão com um lençol azul-celeste que tirou da mochila. Com as costas escoradas na parede vizinha, sentou e começou a assear Pompeu, tentando reduzir ao máximo a umidade do corpo do cãozinho pardo até então silencioso. O que mais me chamou a atenção naquele dia foi o fato de que a comunicação entre os dois era baseada em olhares, não em palavras. Os dois se entendiam na completude da ausência de diálogos. Quando Nestor sorria, o dorso de Pompeu tremia e o seu rabo chicoteava o ar em regozijo.

Me intrigava a expressão de serenidade, traduzida em um tipo peculiar de satisfação, daqueles dois seres que adotavam todo lugar ou lugar algum como morada provisória. Nestor usava um surrado par de sandálias amendoadas de borracha, uma camiseta bege de algodão e uma calça jeans azul com barras que não chegavam a tocar-lhe os calcanhares, lembrando um tipo pula-brejo. Pompeu tinha porte mediano, aspecto saudável e feições tão expressivas que chegava a parecer um ser humano. Tudo que Nestor comia, ele dividia em partes iguais com Pompeu. A comunicação entre os dois pouco parecia a de espécies diferentes. Juntos, se completavam de maneira singela e curiosa.

Um dia, enquanto chovia, observei Pompeu a metros de distância, saltando no ar com a boca aberta, engolindo a água fria da chuva. Nestor ria efusivamente conforme as patas traseiras e curtas de Pompeu se moviam para a frente – como se impulsionasse o próprio corpo para golpear o nada ou o vazio do alheamento humano. “Simbora, Pompeu, já brincou bastante. Tu vai ficar doente. Vem pra cá!”, disse Nestor ao notar como o focinho do companheiro tornara-se tão fino e pândego por causa da chuva.

Do outro lado da rua, um gatinho abandonado na sarjeta miava tão alto e esganiçado que Pompeu correu até ele mantendo as orelhas em pé para assimilar melhor o som. Assustado, o filhotinho acinzentado e molhado se encolheu diante de uma boca de lobo por onde a água escorria em direção à completa escuridão. Entre um olhar para Pompeu e outro para o bueiro caliginoso, se retraiu ainda mais, inclinando a cabeça em direção ao peito, e aceitou seu destino sem miar outra vez. Pompeu então o segurou pelo couro entre a região do pescoço e do dorso e o carregou até uma cobertura improvisada no terreno baldio na esquina de casa.

Lá, o cão manteve o gatinho aninhado entre suas patas, aquecendo seu corpo trêmulo e diminuto, castigado pela água fria, mas que para ele, um animalzinho nascido há pouco tempo, talvez fosse tão gelada que lhe amofinasse até os ossos. “Vejo que tu fez nova amizade”, comentou o lacônico Nestor ajeitando o boné sobre a própria cabeça. O novo integrante da família recebeu o nome de Curumim em um batismo selado com um pouquinho de ração canina transformada em mingau e servida em uma tampa plástica.

No dia seguinte, pela manhã, corri até a esquina para ver se continuavam no mesmo lugar. Sem graça e sem querer, fiquei frente a frente com Nestor. Ele estava saindo para buscar mais ração. “Ei, amigo! Vou ter que dar uma saidinha. Você pode ficar de olho naqueles dois?”, pediu. Sem dizer palavra, movimentei a cabeça em concordância e caminhei até Pompeu e Curumim que dormiam agarrados um ao outro. Sem mover as patas, Pompeu levantou um pouco os olhos e voltou a dormir, assim como Curumim. Talvez minha presença não significasse risco algum a eles, concluí.

Sentado no chão, tirei o meu boneco Comando Travessia (Hawk) do bolso e comecei a brincar, sem fazer muito barulho, simulando uma incursão por um curto trecho de gramínea. Tudo parecia tranquilo. Eu ouvia o som tênue da brisa que contrabalanceava com o sol que cobria o centro do terreno, iluminando o pouco verde fulgurante e rasteiro que balouçava pejoso.

De repente, senti coceira na mão esquerda. Quando olhei o chão onde me apoiei, vi um bando de formigas enfileiradas transportando alimentos por um trajeto em que a ausência de sol talvez tornasse a jornada menos tortuosa. Apenas mudei de lugar e continuei em silêncio. Olhei para a rua e assisti os passantes nos observando com olhares curiosos e inquisidores. Entre passos céleres e vagarosos, alguns sorriam enquanto outros se protegiam sob feições carrancudas. Carros, motos e caminhões subiam e desciam nas mais distintas velocidades. A pressa de uns, por bem, não era de todo contagiante.

Nestor retornou depois de hora e meia, trazendo mais ração em uma sacola da Casa Moreira. Pompeu comia sem alarde. Observava o entorno e engolia vagarosamente. Afoito, Curumim lambuzava até as orelhas e as patas sobre a pastinha de ração com água. Após uma gargalhada expansiva, destacando bem os dentes, Nestor comentou:

“Curumim é como esses carros e essas pessoas que vimos passar agorinha há pouco. Têm pressa pela simples e ingênua motivação de ter. Não sabem na verdade o porquê e mesmo que soubessem não faria diferença. Não há que se ter pressa para nada. O que a pressa já trouxe de bom? A pressa na verdade diz muito sobre nossas falhas. Curumim ainda é bebê e na idade certa há de aprender. É uma pena que poucos se importam com isso hoje em dia.” Na época, não entendi muito bem, mas achei bonito o discurso.

Nestor possuía cabelos longos e traços indígenas, embora eu desconhecesse sua origem. Seus olhos castanhos eram sempre serenos, mesmo quando alguém o confrontava ou ofendia, o que não era tão raro. Alguns o desprezavam justificando que ele vivia na rua e não tinha trabalho fixo, logo não poderia ser “homem de bem”. O fato de não pedir esmolas pouco pesava na consciência de seus críticos. Nestor não se incomodava. Gozava de seu próprio código de vida, tanto que só aceitava algo se pudesse retribuir.

Mais tarde, numa noite amena, brincando de cabra-cega na varanda de casa com meu irmão e dois amigos, ouvi um barulho vindo da rua. Pedi para minha mãe me deixar ir lá fora ver o que estava acontecendo. Ela autorizou que eu saísse por poucos minutos. Corri até a esquina e encontrei Nestor ensanguentado com as costas escoradas na parede chapiscada do terreno baldio. O sangue, misturado às lágrimas, escorria de seu rosto trigueiro e ele gemia em silêncio, com os braços arroxeados envolvendo Pompeu que emitia um uivo abafado, afônico e lastimoso. Curumim fazia o mesmo, protegido por Pompeu.

Minutos antes, três homens encostaram um Opala preto, desceram e, carregando pedaços de pau, caminharam até Nestor. “Olha, vagabundo, se reagir, a gente mata o cachorro e o gato. Outra coisa, mande eles ficarem quietos senão a coisa vai feder mais ainda pro seu lado, seu índio de merda!”, esbravejou um homem de mais de 45 anos, apontando para o revólver de calibre 38 na cintura, acompanhado dos dois filhos que participaram da selvageria. Assim que Nestor amarrou Pompeu e Curumim com o lençol azul-celeste, tantas vezes usado para servir de abrigo, os três começaram a golpeá-lo.

Caiu desnorteado no chão, ouviu pessoas gritando e viu num átimo anuviado os três agressores correndo em direção ao Opala e partindo bruscamente. Nestor não morreria mais naquele dia. Passado um mês, sentiu-se muito bem após receber atendimento hospitalar e contar com os cuidados da vizinhança que o acolheu com mais desvelo do que nunca.

Algum tempo depois, não sei ao certo quanto, Nestor caminhava à noite pelas imediações da Praça da Xícara quando viu um jovem ensanguentado, caído na calçada. Vítima de assalto, recebeu uma facada no pescoço. Sem pensar duas vezes, Nestor tirou a própria camiseta, fez um torniquete, colocou o rapaz em seus ombros e caminhou até o Pronto Socorro da Santa Casa de Paranavaí. Sua força era prodigiosa. Pesando em torno de 70 quilos, transportou sem dificuldade uma pessoa de 85.

A vítima chegou ao hospital com a tez lívida e jamais teria sobrevivido sem a compassiva intervenção do desconhecido. Ao avisarem que o rapaz não corria mais risco de morte, Nestor deu um breve sorriso veraz e caminhou até a saída do hospital. Logo uma médica o alcançou e disse que uma pessoa queria muito falar com ele. “Foi esse rapaz que salvou seu filho”, revelou ela. Constrangido, o pai da vítima agradeceu, sem olhar diretamente nos olhos de Nestor que sequer piscava diante do homem, observando com bonança e acuidade sua reação.

“Tens aqui seu filho, tão importante para ti como são os meus para mim. Lá fora existe vida em cada centímetro de nossos passos. Não há nada neste mundo que nunca tenha sido tocado pela vida. Ela é sempre maior do que tudo que tocamos e vemos, mesmo quando cegos ou desassistidos pela compreensão. Desconheço algo de maior valor, imagino que também pense assim o senhor. Afinal, o que resta ao homem se não tiver ele o direito de respirar, de caminhar ou de existir onde quiser e como quiser?”, declarou Nestor antes de desaparecer na noite enluarada e estrelada que principiava o fim de um longo período de cerração.

O homem, aflito ao ver Nestor no hospital, foi o responsável por atacá-lo no terreno baldio na esquina de casa. E o rapaz fora de perigo era seu filho, um dos que desferiu-lhe alguns golpes nas costas com um pedaço de pau. “Ajudai-me, óh Manitu, a não julgar meu semelhante antes que eu tenha andado sete dias com suas sandálias”, diz uma oração sioux.

Os torneios da Games House

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Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado

De personagem coadjuvante, Blanka foi elevado à protagonista da própria luta (Imagem: Reprodução)

De personagem coadjuvante, Blanka foi elevado a protagonista da própria luta (Imagem: Reprodução)

Na minha infância, houve uma época em que eu ia toda semana até a Games House jogar videogame. Nos finais de semana, lá era o ponto de encontro de dezenas de crianças e adolescentes de Paranavaí que participavam de campeonatos de Street Fighter, Mortal Kombat e Fatal Fury. Os melhores jogadores ganhavam locações de cartuchos ou podiam levar para casa por um final de semana algum videogame de sua preferência.

Eu saía de casa cedo nos dias de torneio. Subia a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, descia a Cândido Berthier Fortes e virava à direita na Manoel Ribas. Caminhava empolgado, saltava e imitava golpes de lutadores como Dhalsim, Scorpion e Joe Higashi. E o sol contribuía, iluminando meus braços por onde eu passasse, me banhando em fantasia e fazendo eu me sentir imponente. Não era tão anormal quanto pareceria hoje, já que esses jogos eram tão populares que muitas vezes as pessoas reconheciam minhas imitações.

Um dia, eu e meu irmão Douglas descemos correndo pelo gramado da Escola Jean Piaget, simulando uma luta entre Guile e Blanka. Um senhor de aproximadamente 50 anos chamou nossa atenção ao ver a cena. “O brasileiro tem que ganhar nessa. Dá um choque nele, filho! Não pode dar mole pra esses americanos”, disse o homem rindo, movimentando uma velha moeda entre os dedos e andando vagarosamente até a Avenida Juscelino Kubitschek.

Quando chegamos à Games House havia bastante gente. A verdade é que era praticamente impossível encontrar a locadora vazia. Mesmo pequena, era um dos locais preferidos de muitos jovens da minha geração. Me sentia inebriado pelo misto de musiquinhas eletrônicas dos jogos, o que mais parecia aos ouvidos treinados um mashup bem cadenciado de variedades oitentistas e noventistas.

Intrigante também era a olência profusa que tomava conta do ambiente. Aromas de hortelã, menta, cereja, melancia, uva e tutti-frutti se enleavam, proporcionando uma experiência sui generis de sensações. Dentro da locadora, esquecíamos completamente do mundo que existia lá fora, já que tínhamos o nosso próprio, formado por uma grande família de amigos, conhecidos e desconhecidos unidos por horas de diversão.

Era difícil circular em meio a tanta movimentação, mas pouco nos importávamos. Era como se a natureza de nossa realidade não pudesse ser menor do que aquela. A beleza subsistia na entropia, na grazinada, no eco de nossas ações que reverberavam a completude da justa desordem das coisas. Falar, rir, gritar, zombar, pular, agachar, sacolejar, dançar – tudo era permitido desde que o respeito não fosse substituído pela alarvaria.

Ao meu redor, eu observava rostos juvenis com expressões absortas, espontâneas, caricatas e difusas; dignas do expressionismo de Lang, Murnau e Wiene. A motivação? Uma luta entre Ken e Zangief. Segurando o controle com paroxismo, Hélio nem piscava sentado em uma cadeira de madeira.

Mantinha os olhos agigantados em direção à tela de um televisor de caixa cinérea de 21 polegadas. Assim que o Zangief de Beto deu um pilão giratório em Ken, quase o eliminando do torneio, Hélio se levantou e levou seu lutador até o canto esquerdo. Respirou fundo, ignorou as bolhas dos polegares e, com mãos trêmulas e suadas, venceu o adversário com uma sequência de hadouken e shoryuken; sim, com punhos flamejantes.

Para comemorar, levantou uma latinha de 7 Up e tomou um gole enquanto recebia congratulações, reclamações, leves tapinhas nas costas e na cabeça. Menos competitivo e mais circunspecto, Beto também foi elogiado, apesar do sarro tradicional. Calmo, se levantou, sorriu e declarou: “Quem não perde, não aprende a viver, diz meu pai.” Então caminhou até um expositor de jogos de Super Nintendo e começou a ler os encartes.

Quando chegou a minha vez de jogar, sentei na mesma cadeira de Beto e observei que o movimento na locadora tinha aumentado ainda mais. Notei a presença de muitas garotas da minha idade, o que não era tão comum em dias de torneio. Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado por uma maioria que o via como um vilão exatamente pelo seu aspecto carrancudo e burlesco. Eu não! Blanka pra mim representava um contraponto, um anti-herói que mais parecia uma versão brasileira do Hulk.

“Putz, pegou logo o Blanka! Vai apanhar fácil…”, comentou Bruno, campeão do último torneio, que selecionou Ryu, o favorito de sete entre dez garotos que frequentavam a Games House. A escolha do personagem já garantia uma plateia cativa que assobiava, ria e motivava o adversário. Eu seguia na contramão da obviedade, com menos torcedores. O fato de ter tanta gente apostando em Ryu aumentava a minha motivação, me fazia querer vencer mais do que nunca. Não me preocupava a ideia de mais tarde ser eliminado do torneio, mas eu precisava provar que o meu personagem não era inferior.

Apanhei bastante no primeiro round, o que fez muita gente crer que a derrota seria iminente. Bruno tinha um estilo de jogo que privilegiava os mesmos dois golpes de sempre, o que entre meus amigos era chamado de “apelão”. Ele inclinava o corpo pra frente, se aproximando mais da tela, emitia sons miméticos com a boca e mudava de posição frequentemente, alegando que o televisor era muito pequeno para projetar seu talento. Bruno era um showman mirim.

Mais reservado, eu jogava calado, mordendo furtivamente os lábios quando me sentia encurralado. No segundo round, o nível de confiança do meu adversário subiu demais e num átimo de epifania descobri como neutralizar seus golpes mais certeiros. Blanka já não apanhava mais e sua defesa se tornara intransponível. De personagem coadjuvante, foi elevado a protagonista da própria luta. Na minha cabeça ecoava de antemão sua frase clássica: “Now you realize the powers I possess!”, seguida por uma eclética sequência de golpes altos e rasteiros que incluíam electric thunder, lightning cannonball e outros três tipos de ataques de rolamento.

Ryu foi castigado nos dois rounds seguintes, ganhando um curioso aspecto toldado e carunchento. Blanka? Não! Parecia mais fornido, refulgente e faustoso, como se renascesse para provar naquele momento o seu valor subestimado pela sua fisionomia grosseira. “Acho que a pele dele agora tá bem mais verde e o cabelo mais laranja”, “Tá enorme! O Ryu ficou franzino perto dele!”, “Que força insana!”, “Louco demais esse Blanka!”, “Parece que tá possuído de tão forte!”, comentavam crianças e adolescentes da plateia.

A minha vitória, a mais importante de Blanka no torneio, foi selada com um choque elétrico que fez o favorito Ryu desfalecer no canto esquerdo da arena de tábuas velhas. Assim que Blanka comemorou com várias cambalhotas no ar, um repentino silêncio tomou conta da locadora. Bruno ficou calado olhando para o televisor, sem acreditar no que aconteceu. Meu irmão Douglas e alguns amigos gritaram: “Blanka! Blanka! Blanka! Blanka!”

Discreto, só me levantei e sorri, sem dizer palavra, enxergando a presença de novos espectadores na entrada da Games House. Eliminado, Bruno coçou os olhos, tentou disfarçar a decepção, mas levou quase um minuto para soltar o controle do Super Nintendo e aceitar a derrota. Foi minha última vitória naquele dia. Eliminado na semifinal por um Dhalsim mais atilado, não lamentei.

Sem grande alarde, comemorei o fim da hegemonia Ryu, Ken e Guile, celebrada com o triunfo de um pachorrento e engenhoso E. Honda comandado por Augusto, garotinho também subestimado que se identificava com a forma física do lutador de sumô. “Hoje eu sou E. Honda e E. Honda sou eu. Só me resta sorrir diante do meu raro apogeu”, poetizou com simplicidade o campeão, um filho de argentinos que adorava ler “Discurso do Urso”, de Julio Cortázar.