David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Happy e Chemmy

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Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens

Eu e Chemmy antes dele e Happy serem levados de casa (Foto: Arquivo Familiar)

Eu e Chemmy antes dele e Happy serem levados de casa (Foto: Arquivo Familiar)

Em 1991, meu pai chegou em casa com dois filhotes de poodle. Eu, muito pequeno, olhei atentamente aqueles desconhecidos animaizinhos de pelos grossos e brancos. “Que bichinho de pelúcia é esse? Parece de verdade!”, comentei sorrindo, com a experiência de quem nunca viu um cãozinho daquela raça, enquanto cutucava o dorso do menor que reagiu lambendo minha mão e pulando em minha direção.

Na minha concepção meninil, era como se a neve pudesse ser morna, fragmentada em pequenos flocos que se juntavam formando vidas diminutas. Surpreso e empolgado, deitei no chão e os dois, tão miúdos que os pelos da barriga chegavam a lustrar o piso coberto de cera vermelha, percorreram meu rosto, pescoço e braços com suas linguinhas ásperas, vigorosas e quentes. Me davam a sensação de uma paradoxal lixa exposta ao sol, com a principal diferença de que a deles acariciava e não raleava ou machucava.

Cheios de energia, circulavam pela sala e a reconheciam como um universo de possibilidades. Saltavam de forma tão espontânea e chistosa que pareciam confundir a própria natureza com a dos pôneis. Dóceis, roçavam a lateral do dorso pelo meu corpo e seguiam deslizando até se enfiarem debaixo de cada um dos meus braços. Espiavam minha reação e quando eu ria eles se aproximavam, subiam sobre o meu peito e davam latidos finos, curtos e briosos, acompanhados de olência vaporosa de leite que intensificava o meu deleite.

O toque de seus pelos me lembrava a suavidade e o conforto das almofadas que minhas tias-avós faziam, sempre bem distribuídas pelo sofá onde Happy e Chemmy não conseguiam subir nem descer. Resmungavam tanto à sua maneira, como se seus desejos fossem uma ordem e não um pedido, que subíamos eles com as mãos. Irrequietos, não demoravam a cair de forma desajeitada, às vezes batendo a cabeça num tapete grande acastanhado. Reclamavam brevemente, num alarido que principiava o choro canino.

Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens, chacoalhando os rabinhos e mirando os olhos escuros e vistosos por todas as direções. Happy e Chemmy gostavam de se enfiar dentro de calçados, gavetas, caixas, qualquer abertura que proporcionasse inéditas experiências. Apesar disso, partilhavam de expressão serena em todas as situações, mesmo quando arrastavam objetos desconhecidos que em seu mundo nanico ganhavam novas significações. Tênis viravam travesseiros, camisetas se tornavam cobertores e assim por diante.

Conforme cresciam, suas personalidades iam se modificando. Happy tornava-se mais desajeitado e expansivo, e Chemmy mais amorável e introspectivo. Em casa, as recepções prosseguiam calorosas. Happy ia na frente, boquiaberto e saltitante, com um semblante desirmanado de sorriso fácil. Chemmy se aproximava sem muito alarde. Galhardo, preferia demonstrar sua satisfação através de seus passos aéreos e fátuos que se tornavam vibrantes com a minha chegada.

No verão, íamos com bastante frequência à AABB. Happy e Chemmy percorriam o estacionamento do clube meneando orelhas que se agitavam como se fossem pequenas asas. Disputavam corrida na escadaria e se acalmavam no piso fresco da lanchonete, onde posicionavam o dorso das patas traseiras para baixo. As patas da frente ficavam sobrepostas, em poses indefectíveis que imitavam um x. Os dois roçavam a barriga branca e peluda com tanta sofreguidão que chegavam a fechar os olhos, numa tentativa de amplificar a sensação de regalo despertada pelo chão geladinho.

Prestes a tomar uma ducha a céu aberto antes de entrar na piscina, eu os chamava e eles se aproximavam, circulando em torno do perímetro onde a água escorria mais morna do que fria. Happy e Chemmy me observavam com candura e assim que eu movimentava a cabeça em concordância, eles afundavam as patinhas na poça formada em torno do ralo. Era como se estivessem pescando alguma coisa incompreensível e invisível aos olhos humanos. Naquele momento os dois pareciam somente um, imersos numa brincadeira sem competição ou vencedores.

Quando eu diminuía a intensidade da água que caía do chuveiro, eles ameaçavam colocar o focinho na água – aproximando e afastando a cabeça. Ocasionalmente tiravam a língua para fora, como se quisessem avaliar a temperatura da água. Em poucos minutos de diversão ficavam tão molhados que os pelos da fronte se inclinavam sobre os olhos, com topetes desfeitos. Envolvidas em pequenas cortinas felpudas e nevadas, as íris, que pouco sobressaíam, resplandeciam serenas e amiudadas.

Após um salto na parte mais funda da piscina grande, eles me seguiam até a borda e latiam. Era uma crítica, pois sabiam que lá não poderiam entrar. Entre mergulhos, eu emergia vez ou outra ameaçando puxar suas patas para dentro da piscina. Eles se afastavam e rolavam no piso úmido e aquecido pelo sol que parecia dourar seus pelos. Enfastiados, corriam até o parquinho do clube, afundavam as patas na areia e saltavam sobre o gira-gira com tamanha tarimba que o brinquedo girava sem que precisassem fazer muito esforço.

Ao redor, os curiosos sorriam e gargalhavam assistindo Happy e Chemmy brincando como se fossem crianças. A gangorra também não passava despercebida. Chemmy subia na extremidade mais baixa e corria até a mais alta. Depois era a vez de Happy. E assim, numa harmonia impoluta e fugaz, capaz de inspirar o melhor nos homens, revezavam até cansar. No parque da Praça dos Pioneiros, os dois preferiam o escorregador. Desciam sozinhos, juntos, na nossa frente, apoiados em nossas costas. Ao final da diversão, sempre me intrigava ver como seus olhos rutilavam como bolas lustrosas de bilhar. A intensidade oscilava de acordo com o nível de contentamento.

Quando abríamos as portas do carro, Happy e Chemmy pulavam sobre os bancos traseiros e se posicionavam nas janelas, aguardando que alguém as abrisse. Então colocavam a cabeça para fora e aspiravam o vento. Rapidamente se acalmavam. Inertes, fechavam os olhos, sentindo a aragem massageando e acariciando suas cabeças. Apesar de rasteiro, não tenho dúvida de que o mundo de Happy e Chemmy era um grande universo de sensações, de sensibilidades que jamais são negligenciadas por quem vê na mais trivial das experiências uma fonte de fruição.

Um dia subimos em uma balsa no Porto São José com destino ao Mato Grosso do Sul. Logo que descemos do carro, Happy e Chemmy estranharam ao ver a ruidosa movimentação. Ainda assim se aproximaram de um velho banco de madeira ladeado por alguns coletes salva-vidas e assistiram de longe a pequenez do porto com suas casinhas e velhos prédios comerciais. Quase dez minutos depois, água era tudo que viam enquanto a balsa gestava plácidas ondas no seio do Rio Paraná.

Observei Chemmy aproximando o focinho da água, como se quisesse cheirá-la. Quando me agachei, percebi que alguns peixes serpenteavam perto de nós. Eufórico, Happy latia e saltava como um cabrito. Ele nunca tinha visto um peixe. E aqueles dourados lucilavam como citrinos lapidados e volteavam formando o símbolo do infinito. Assim que os peixes desapareceram, Happy latiu em reprovação. Chemmy simplesmente repousou a cabeça sobre as patas cruzadas, amiudou os olhos e manteve expressão quiescente enlevada por um tépido raio de sol que iluminou uma lata de óleo vazia presa à barra de proteção.

Meses depois, num dia rotineiro, saímos de casa e quando retornamos não encontramos nenhum dos dois. Percorremos o Jardim Progresso, Jardim Paulista e Jardim Maringá. Fizemos panfletos e ampliamos as buscas pela região central e por outros bairros de Paranavaí. Não adiantou. Na manhã seguinte, Happy e Chemmy não lamberam minhas mãos nem saltaram sobre as minhas costas para me acordar. Senti a ausência de seus passos pavonados, dos latidos dissonantes e do perfume floral que traziam logo cedo após incursão pelo canteiro de flores de minha mãe.

Fiquei sabendo tardiamente que um estranho invadiu nosso quintal e levou nossos cães. Bonachões, Happy e Chemmy entraram em um carro desconhecido, crentes de que foram presenteados com mais uma curta viagem ao éden das brisas. “Será que abriram a janela um pouquinho pra eles sentirem o vento?”, perguntei a minha mãe.

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Enquanto o ônibus não chega

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A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)

Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.

Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.

Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.

Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.

A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.

Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.

Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.

Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.

Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.

Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.

Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”

Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.

“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.

Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.

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Um velório animado

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Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher 

Capela Mortuária de Paranavaí, onde o episódio aconteceu na minha adolescência (Foto: David Arioch)

Capela Mortuária de Paranavaí, onde o episódio aconteceu no início da minha adolescência (Foto: David Arioch)

No início da minha adolescência, quando alguém importante para os professores do Colégio Unidade Polo falecia, eles tinham o costume de convocar os alunos para o velório antes da última aula. O objetivo era realizar uma homenagem póstuma, reafirmar a importância do falecido, mesmo que os estudantes não o conhecessem.

Um dia, ao final do intervalo, a orientadora se aproximou da porta da nossa sala, pediu autorização para a professora, e disse que uma senhorinha aposentada, que trabalhou anos como zeladora do colégio, morreu em decorrência de um ataque cardíaco. “Ela está sendo velada na Capela Mortuária, ao lado do cemitério. Então vocês vão sair mais cedo hoje para se despedir dela”, disse. Fiquei um pouco confuso porque eu não sabia quem era a falecida. Eu não estudava lá há tanto tempo e me questionei sobre como iria me despedir de alguém que eu nunca tinha visto. A mesma preocupação foi partilhada por outros colegas de classe. Um deles levantou a mão e gritou: “Ué, sei nem quem é a tiazinha. Como vou dar tchau pra ela assim?”

Muitos dos alunos não conseguiram se conter e gargalharam. O silêncio voltou com o olhar sisudo e reprovador da professora que lançou uma régua contra a mesa, exigindo respeito. “Será que vocês não entendem que uma pessoa morreu? Isso não tem graça! É inconsequente rir de uma situação tão dolorosa”, reclamou depois de amiudar os olhos, franzir a testa e cerrar os dentes. Quando chegou a hora de deixar a sala, a professora explicou que poderíamos levar nossas bolsas e mochilas. Estávamos autorizados a ir embora dez minutos antes do horário normal de encerramento das aulas. Foi o suficiente para que os estudantes se entreolhassem com sorrisos dúbios e maliciosos.

Logo que coloquei os pés no corredor, notei que havia muita gente. Todos os alunos foram convocados para a despedida, mas existia um grande contraste entre os mais jovens e os mais velhos. A notícia, que trazia poucas lembranças aos estudantes do então primeiro grau, consternou principalmente os do segundo grau, que estudavam no colégio há mais tempo. Apesar disso, um intenso burburinho atravessou o pátio central, por onde sons de pisadas ecoavam com a violência de uma marcha descompassada.

“O que você achou daquele filme Homens de Preto?”, “’O Coro Vai Comê’, do Charlie Brown Jr., é dá hora! Saca coé, né, mano?” “Domingo a gente vai chegar lá nos Três Morrinhos de bicicleta, tá a fim de ir?” “Po, véi, queria tá em casa assistindo Carmen Sandiego!” Entre conversas aleatórias, percebi que pouco se falava sobre a falecida. Em meio ao barulho, atravessamos a área descoberta que dividia o nosso pavilhão e a ala administrativa do colégio.

Descemos em direção ao estacionamento, onde os mais endiabrados escorregavam pelo gramado, penduravam nas costas dos amigos e lançavam suas mochilas sobre os colegas. Antes de deixarmos o portão do estacionamento, a algazarra foi contida por três ou quatro professores que repreendiam os baderneiros com palavras de ordem e ameaças de punição. Caminhamos mais uma quadra até chegar à Capela Mortuária Municipal. Na esquina, olhei para trás e vi que a fila se afunilou. Metade dos estudantes foram embora. Parte virou à esquerda da Rua Miljutin Cogei e parte à direita. Outros correram pela Rua Professora Enira Braga de Moraes em direção ao Ginásio Noroestão, um dos territórios preferidos dos matadores de aula.

Eu, desde sempre desabituado a frequentar velórios, recusei o pedido de alguns amigos que me chamaram para ver de perto quem era a falecida. Fiquei do outro lado da Rua Paraíba, com as costas no muro branco observando a movimentação intensa dentro e fora da capela. “E se mandarem a gente falar alguma coisa? Perguntar como a conheci? Pode ser até que algum doido me confunda com um parente e peça pra carregar o caixão. Imagine só, os outros me olhando com estranhamento e raiva, como se eu fosse um impostor? Não quero isso não!”, refleti, preferindo manter-me no anonimato.

Mas o distanciamento não durou muito tempo. Uma professora me viu do outro lado da rua e me levou até a capela. Ainda assim me mantive o mais afastado possível, atrás de uma grande pedra que algumas pessoas usavam como assento. Perto da multidão, eu ouvia cochichos dos mais diversos tipos. Comida, lazer e futebol figuravam entre as pautas comuns. “O que tem pra comer lá na sua casa, Roberta? Será que sua mãe fez bolo?”, perguntou um estudante com sorriso enviesado. Notei que o nível da conversa oscilava de acordo com a distância do caixão. Os mais lamentosos o cercavam enquanto os mais indiferentes mantinham-se afastados, preocupados com as trivialidades cotidianas.

Eu assistia tudo como um atento espectador, até que minha tranquilidade foi perturbada por um pinscher mesclado que se enfiou entre as minhas pernas e começou a uivar. O som era tão agudo e caricato que ninguém pensou na possibilidade de existir um bicho que uivasse com tamanha trampolinagem. Não, nenhuma pessoa fez questão de ver se havia algum cachorro. A atenção, as caretas e as expressões de raiva e desprezo, até por parte de quem pouco se importava com o velório, se voltaram para mim. “Caramba! Tem gente achando que sei dar esses uivos bizarros! Sacanagem!”, me lamentava.

Sem esconder o constrangimento, dei alguns passos para trás, virei o rosto corado, cocei os olhos e reagi com um sorriso amarelo, sem dizer palavra. Um professor se aproximou e disse: “Poxa, David! Você é um cara tão tranquilo. O que tá acontecendo contigo? Quer bater um papo na orientação?” Respondi que não fiz nada e fui ignorado. E para piorar, o bichinho voltou mais três vezes, uivando em intervalos e se afastando. Ninguém via o pinscher porque ele se enfiava entre os arbustos que cresciam livremente na esquina da capela.

Ameacei ir embora, mas seria pior. Como eu provaria que não fiz nada? Então optei por ficar pelo menos mais alguns minutos. De repente, quando algumas pessoas conversavam em torno do ataúde, alguém pisou de mau jeito e caiu sobre o caixão, o derrubando e fazendo a tiazinha rolar pelo piso. Em meio ao alvoroço, o pinscher correu uivando. Agarrou uma das pernas da falecida com as duas patas da frente e começou a roçar freneticamente o seu pênis diminuto.

Os familiares e amigos da zeladora ficaram horrorizados. Os demais se esforçavam para conter os risos. E o bichinho, elevado à protagonista de uma tragicomédia, não hesitava em mostrar os dentes a qualquer um que tentasse afastá-lo daquela perna rechonchuda. Me senti mal pela tiazinha, mas fui embora satisfeito em provar que aquele uivo caricato não era artifício de um adolescente gaiato.

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Anu-preto, o sentinela de cauda cor de canela

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Ele saltava e corria com astúcia, mantendo o bico levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte

Coquinho que o anu marrom me deu quando eu ainda era criança (Foto: David Arioch)

Coquinho que Marrom me deu quando eu ainda era criança (Foto: David Arioch)

Acredito que tenho sorte de nunca ter sofrido nenhum acidente sério na infância. Nem mesmo quebrei braço, perna ou qualquer outro membro. O que era visto até como anormal na minha rodinha de amigos peraltas. Um dia nos encontramos e cada um disse de que forma já tinha se machucado e quais foram as maiores consequências.

Alguns se orgulhavam de suas cicatrizes e contavam histórias fantasiosas. Na realidade, bem duvidosas. “Ah! Essa aqui na minha perna eu ganhei depois de lutar com um doberman gigante que morava ao lado da casa da minha vó, na Rua Maranhão. Ele me mordeu e eu mordi ele. Ainda fiz dele o meu cavalinho. Hoje, sempre que me vê, ele abaixa o focinho em sinal de respeito”, narrou Henrique com sete anos em 1992.

Naquele ano, Júlio chamou eu e meu irmão Douglas para irmos à sua casa na Avenida Juscelino Kubitschek brincar de pega-pega. Numa das fugas, comecei a circular em torno de uma lixeira presa à calçada. Por descuido, bati a cabeça na quina de ferro e senti a astenia tomando conta do meu corpo. A visão ficou ligeiramente turva e o sangue escorreu pelos meus cabelos, rosto e blusa de moletom.

A poucos metros de distância, no cruzamento com a Rua Chozo Kamitami, enquanto o Seu Roberto, pai de Júlio, tirava o carro da garagem para me levar ao Hospital São Lucas, notei um anu-preto me observando e soltando um pio sibilante. As penas de sua cauda lustrosa se abriam e se fechavam. Quando saímos, olhei pela janela e ele ainda continuava lá, mas já não emitia nenhum som.

No hospital, deitei numa cama e tive a minha primeira experiência com a sutura. Em 15 dias, logo que os poucos pontos foram retirados, fiquei passando a mão, sentindo a lombadinha ainda sensível. Era a minha mais importante cicatriz e todos podiam ver a pequena área raspada com navalha. Curiosos, meus amigos pediam para que os deixasse encostar o dedo. “Que massa, David! Eu nunca tinha visto uma cicatriz na cabeça!”, comentou Thiaguinho.

Durante a minha recuperação, nos reuníamos todos os dias de manhã na Rua Artur Bernardes, no Jardim Progresso, perto da Sanepar. Sentávamos no meio-fio em frente de casa e assistíamos a revoada de um grupo de anus-pretos, moradores de um enorme terreno coberto por matagal. Havia tanta vegetação que nem o muro de quase dois metros de altura impedia que o verde se esforçasse para ultrapassar os limites do cercado de lajotas. Meu avô dizia que a família de anus estava lá antes do surgimento do bairro.

“Esses aí são descendentes dos primeiros que já viviam aqui quando tudo isso era floresta. Eles continuam morando aí porque é onde se sentem mais seguros”, contou. Às vezes eu pendurava sobre o muro para observá-los. Rapidamente notavam minha presença e se aninhavam, protegendo as fêmeas e seus ovos azuis-esverdeados. Suas penugens não eram simplesmente pretas e uniformes. Tinham tons amendoados por causa da terra que pincelava o capim-melado e por consequência suas penas em dia de chuva intensa.

O líder do bando possuía cauda cor de canela, e foi assim que o reconheci como o anu-preto que piou em minha direção no dia em que me machuquei. Ele não era o maior, mas nas muitas vezes que o assisti sempre me pareceu o mais observador. Os outros companheiros nem se incomodavam quando ele saltava e corria com astúcia sobre eles, mantendo o bico curvado levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte.

Sempre que algum pássaro estranho ou outro bando de anu invadia o terreno, ele emitia um sinal sonoro curto e estrídulo, preparando os companheiros para uma ofensiva. Ao se deparar com até 15 anus-pretos em estado de alerta, o invasor, em grupo ou sozinho, normalmente não ficava mais de um minuto no terreno, um pedacinho de bosque que contrastava com a urbanidade ainda plácida das quatro vias que o cercava.

Não foram poucas as ocasiões em que vi os anus empoleirados sobre uma árvore se comunicando como se estivessem conversando. Suas vozes mudavam com tanta frequência que eu tinha a impressão de que faziam pilhérias. À tarde, sempre que o sol se lançava sobre os galhos e ramagens de uma sete copas, facilmente observada da janela da sala de casa, eu via três ou quatro anus-pretos se banhando com a luz solar.

Ocasionalmente levantavam a cabeça, abriam as asas e as chacoalhavam. As penas lucilavam com tanta graça que eles reconheciam o seu esplendor ao verem o próprio reflexo no bico reluzente do companheiro mais próximo. Daí estufavam o peito e cantavam em sequência, cobrindo as lacunas de silêncio deixadas pela ausência do vento. Só partiam quando a brisa se intensificava ou o sol se distanciava.

Mais tarde, mudamos para a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra. A minha nova rotina me impedia de ver os anus-pretos com frequência, tanto que cheguei a ficar quase um mês sem visitar o lugar. Num sábado, retornei ao terreno, subi em uma ripa e pendurei sobre o muro. Tive uma grande surpresa. Não havia nenhum anu-preto ou vegetação, apenas um enorme vazio que marcava o fim de uma história iniciada antes da chegada do primeiro pioneiro àquela área.

Percorri as ruas do Jardim Progresso e Jardim Paulista até ser vencido pela estafa. Queria encontrar o bando de Marrom, apelido que dei ao líder dos anus-pretos por causa da sua cauda acanelada. Não encontrei nenhuma pista. Era como se eles nunca tivessem vivido naquele lugar. Fiquei confuso e não me conformei com o fato de que nunca mais ouviria seus cantos maviosos ou veria seus olhos negros – ora escabreados, ora complacentes.

Bati palmas em algumas casas das redondezas para pedir informações. A maioria não se importava ou não fazia questão de me ajudar. “Isso aí traz coisa ruim, mau agouro, morte. Não é coisa de Deus. Foi bom que sumiram daqui”, declarou uma senhora que morava numa casa branca na esquina da Rua Artur Bernardes.

Meses depois, em uma tarde, escorreguei no piso molhado e bati a cabeça no chão quando minha mãe e minha tia Paula estavam lavando a garagem. Levantei estonteado, só que tive a impressão de que estava tudo bem apesar da pancada. Ledo engano. Coloquei a mão na cabeça e senti o sangue fluindo aos pouquinhos. Então chamaram meu pai, abriram o portão e me levaram ao Pronto Socorro.

Curativo feito, retornei para casa e sentei na calçada com as costas escoradas no portão. De repente, ouvi um canto curto e intervalado vindo de uma árvore do outro lado da rua. Olhei para o alto e vi Marrom. Me aproximei e notei que seu bico estava levemente deformado, mas cicatrizado, como se tivesse sido ferido há bastante tempo.

Cheguei mais perto e estendi a mão direita. No mesmo instante o pássaro abriu o bico e me lançou um coquinho que caiu na palma da minha mão. A fechei e desci da árvore. Continuei lá um bom tempo enquanto Marrom estufava o peito e cantava sozinho para o seu único espectador. Me contentava em saber que ele estava vivo, mesmo que eu estivesse imerso no desconhecimento de seu destino.

Antes de partir, emitiu um último som agudo que fez algumas folhas vibrarem e voou. Cada vez mais alto, se afastou do meu diminuto campo de visão. E sua cauda acanelada pelo capim-gordura, banhado em água de chuva e solo arenoso, desapareceu na esquina da Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, onde Marrom foi visto pela última vez.

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Água dos Esquecidos

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“Imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo”

"Lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas"

“Lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas”

Há muito tempo, existiu uma colônia rural entre Alto Paraná e Paranavaí que ficou conhecida como Água dos Esquecidos. Ainda na infância me perguntei a origem desse nome que mais tarde se perdeu na minha memória, assim como estradas, rotas e trilhas de um passado que conheci através de relatos das gerações anteriores.

Quando criança até sonhava com a Água dos Esquecidos; a idealizava. Já adulto, imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo e no espaço, alheias ao mundo civilizado e ao progresso, reféns da ingenuidade e do desconhecimento benevolente. Após muitos anos a curiosidade voltou à tona com a chegada de duas tias-avós e a narração de histórias sobre a vida campesina nos anos 1950. Fiquei tão instigado que quis procurar o tão falado lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas de madeira, ornamentando fachadas e janelas com tons e matizes de amarelo, laranja e vermelho, além de um bálsamo castiço e mélico.

Então saí de casa em um domingo depois do almoço. No incerto caminho para a Água dos Esquecidos havia muita lama, poças d’água com mais de meio metro de altura e árvores tombadas pela intempérie da semana anterior. “Sei não, sinhô, mas pra gente isso é sortilégio. Óia a marca no tronco d’árve, é serviço pra num deixa ninguém passa”, disse um lavrador das imediações, justificando a queda de uma árvore aparentemente saudável com algumas grandes inscrições no tronco. O rapaz de fala frugal, que talvez por costume, ansiedade ou timidez tenha o hábito de suprimir sílabas, trajava uma velha camiseta de flanela, uma calça de estopa e um par de sandálias feitas de vegetais. O agradeci, me despedi e fiz o contorno pelo carreador de uma propriedade onde o caseiro, um senhor idoso, acenou e consentiu que eu continuasse o trajeto até a próxima saída.

Mais adiante, percorri 15 quilômetros de estrada estreita e irregular, quando fui surpreendido por duas garotinhas de oito ou nove anos que passaram correndo na minha frente. Usavam uniforme escolar típico de um passado longínquo, com listras em preto e branco e avental com peitoril bege. Aproveitei para descer do carro e pedir informações. Me olharam, sorriram com brevidade e atravessaram uma cerca de arame farpado. Corri alguns metros, mas logo desapareceram entre os laranjais. Continuei dirigindo até chegar a uma fazenda que vi em uma foto familiar de 13 de junho de 1957. Como saía muita fumaça da chaminé, concluí que havia pessoas morando no local. Me aproximei, bati palmas e fui recepcionado por um homem branco de estatura baixa, olhos azuis, cabelos ralos, poucos dentes, pele enrugada e rosto bastante manchado pela irrestrita exposição ao sol. “Vamo cheganu, Jão! Tô passanu o café!”, falou o anfitrião antes de dizer o próprio nome ou me interpelar.

Andei por um trilho enlameado e atravessei uma porteira. Assisti galinhas correndo em círculo em torno de um pastor alemão que raleava a grama com o focinho. A poucos metros dali, uma porquinha circulava livremente carregando no dorso um sabiá-laranjeira bastante confortável lhe amaciando o couro com os pés. Deixando as distrações de lado, entrei na casa e, enquanto eu o esperava retornar do quarto, observei pela janela alguns cômodos. Estava tudo exatamente como vi nas inúmeras fotos de 1957 a 1963, parte de um acervo familiar. Os móveis coloniais, a decoração, nada mudou; nem a posição do sofá. Até o peso da porta da sala que dava acesso ao restante da casa era o mesmo – um lírio almofadado e descorado. Aquilo me intrigou sobremaneira e não resisti em perguntar como conseguiu a proeza de conservar um cenário tão histórico. Ele não entendeu e riu, levando as mãos finas e enrugadas ao rosto. “Que cê tá falanu aí, Jão? A gente conversou inda ontionti”, comentou num tom de voz afável e fragilizado. Aceitei a xícara de café amargo e notei um pequeno moedor de café colonial e azul, com a pintura já opaca e parcialmente descascada.

O café aromatizava a sala com tanto esplendor que tive a impressão de estar próximo de uma torrefadora. Nas primeiras bebericadas senti um sutil gosto de ferrugem e tentei disfarçar. O anfitrião percebeu e argumentou: “Num tá muito bão, né? É que esse inda é dos último pé de café e olha que só sobreviveu pela amargura de existi. Num sobrô mai nada.” Aproveitando a quietude, voltei minha atenção ao fogão à lenha, onde as chamas do braseiro fulguravam inadvertidamente. Em suas formas sinuosas, o fogo resplandecia numa força sempiterna – ora sutil, ora insipiente. Talvez se considerasse autossuficiente, não reconhecendo que sua existência dependia da lenha. Então me recordei da história de amor vivida por Joazino. Ecoava na minha mente com a intensidade do cheiro da panelinha com um pouco de arroz carijó que contrastava com o bule de café e o doce de abóbora e gengibre recém-embalado em folhas de bananeira – todos bem dispostos sobre o fogão à lenha. Só me dispersei por um momento, quando comentou como era difícil acreditar que eu ainda estava vivo depois do que fiz.

Me deu um tapa vaporoso nas costas e virou o rosto para enxugar com a manga da camisa cinza e surrada as lágrimas que escorriam pelas maçãs delgadas do rosto. “Tô feliz q cê tá qui! Inda onti cê tava caído sem vida com os zóio virado do avesso. Agora me fala por que tomô quele veneno?”, indagou Joazino Tibicuá. Constrangido, sem saber como reagir, dei um sorriso pejoso e pedi para mudar de assunto. A conversa seguiu por várias direções, se estendeu por horas, e pouco falei diante de um anfitrião ansioso por exteriorizar tantas emoções, sentimentos e ideias. Evocando a relatos ouvidos na adolescência, lembrei que Joazino teve só uma namorada, de nome Margarida. O relacionamento dos dois era baseado em olhares e frases curtas, sempre assistido por algum parente. O primeiro toque de mão levou semanas. Meses depois veio o primeiro abraço. Durou alguns segundos, o suficiente para o jovem Tibicuá jamais esquecer o aroma adocicado de Cashmere Bouquet que Margarida trazia no corpo.

A relação não foi longe por pressão da mãe de Joazino que não aceitava dividir o filho com outra mulher. A possibilidade dele deixá-la a irritava a ponto dela simular enfermidades e se automutilar. Depois do abraço, nunca mais teve notícias da primeira namorada. Ainda assim prometeu a si mesmo que não desistiria da companheira. Aguardaria o falecimento da mãe para não contrariá-la. Embora tenha dado à luz a Joazino em idade avançada, a mulher viveu até os 113 anos, tempo o suficiente para esvair a mocidade do último dos Tibicuá; agora um homem de corpo miúdo, fustigado pela vida, pelo tempo e por uma credulidade encontrada somente em crianças. A tão sonhada liberdade amorosa foi transformada numa eterna lembrança. Joazino se apegou a ela com tanto paroxismo que se condicionou a encarar o passado como realidade presente, ignorando anos, décadas e as transformações do mundo.

Quando pedi licença para pegar água em um filtro de barro escuro, percorri todo o interior da residência, inclusive o banheiro, e percebi que não havia espelho nem energia elétrica. Mais tarde, Joazino pareceu aliviado e satisfeito com a prosa. Nos despedimos sem que eu lhe revelasse que me confundiu com o seu melhor amigo João, meu tio-avô falecido em 1962. Também omiti que a moça com quem um dia pretendia se casar faleceu há mais de 25 anos, vitimada por pneumonia. Comovido pela situação daquele homem de quase 80 anos, não vi senso de justiça em tirar-lhe o brilho e a jovialidade dos olhos, o privando dos prazeres, mesmo que umbráticos, de sonhar acordado. O amor tornado platônico talvez tenha evitado que seus olhos assumissem um aspecto cristalino opaco, típico dos que já não aspiram nada da vida e aguardam apenas o último suspiro.

Curiosidade

O último pé de café ao qual Joazino Tibicuá se refere foi cortado no final dos anos 1970.

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Quando a baleia Moby Dick chegou a Paranavaí

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Baleia foi encontrada às margens da praia de Guaratuba em 1952 (Acervo: Gelta Adalir Amorim)

Moby Dick encontrada às margens da praia de Guaratuba em 1952 (Acervo: Gelta Adalir Amorim)

O artista plástico Antonio de Menezes Barbosa se lembra como se fosse hoje quando em 1955 a baleia Moby Dick chegou a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em uma exposição itinerante. O nome foi uma homenagem à grande baleia branca do clássico romance do estadunidense Herman Melville.

No tempo em que uma viagem de 70 quilômetros até Paranavaí, no seio da mata nativa noroestina, levava um dia, a população se surpreendeu ao ver uma baleia de mais de oito metros de comprimento. O animal foi colocado em exibição em um terreno baldio próximo à antiga Casas Buri, na Rua Getúlio Vargas.

“Um homem gritava o tempo todo: ‘Venham! Venham! Venham! Venham ver a grande baleia Moby Dick!”, lembra Antonio de Menezes. O preço para entrar no local e vê-la de perto, com direito a ouvir uma história fantasiosa, era de cinco cruzeiros.

A baleia embalsamada atraiu centenas de crianças, adolescentes e adultos, tanto que o organizador decidiu manter a exposição na cidade por mais de uma semana. “Era impressionante! Não se falava em outra coisa naqueles dias. Não esqueço da cena de um homem que de tempo em tempo aplicava uma injeção com um tipo de óleo na Moby Dick. Era uma injeção enorme”, garante.

Segundo Barbosa, a experiência teve grande impacto na sua infância e na de muitos outros curiosos. Naquele ano, a baleia que excursionou pelo Paraná foi trazida de Guaratuba, na região metropolitana de Curitiba, onde foi encontrada morta às margens da praia.

Museu preserva fragmentos da colonização de Paranavaí

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Espaço reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros

Uma das salas de exposição permanente do Museu de Paranavaí (Foto: Casa da Cultura)

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, que funciona nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, foi criado em 2007 e deste então se consolidou como importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização de Paranavaí, no Noroeste do Paraná

Mantido pela Fundação Cultural, o museu reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros. A coordenadora da Casa da Cultura, Rosi Sanga, explica que o espaço do museu conta com uma exposição permanente e uma temporária. “Há desde fotografias, objetos do cotidiano, instrumentos de trabalho, da história do café, itens numismáticos, documentos, obras de arte e coleções. É um acervo muito rico”, avalia Rosi, acrescentando que as fotos estão entre os maiores atrativos do museu e chamam a atenção de crianças e adultos.

Para muitos visitantes, principalmente aqueles que viveram o pioneirismo paranavaiense nos anos 1940 e 1950, estar em contato com tantas peças familiares evoca um tempo de muita saudade e nostalgia. “Enquanto as crianças se surpreendem, animadas com os instrumentos usados pelos avós, os mais velhos saem daqui chorando, muito emocionados”, revela a coordenadora, ressaltando que apenas de visitas aleatórias já receberam este ano milhares de pessoas, sem contar os estudantes que frequentam as oficinas da Casa da Cultura. Um dos destaques é a oficina Literarte que atende turmas de crianças e adolescentes no museu com o objetivo de reviver o passado a partir de brincadeiras, histórias e atividades artísticas.

Fotos estão entre os maiores atrativos (Foto: Casa da Cultura)

No Museu de Paranavaí, as peças estão contextualizadas e organizadas por categorias. Há inclusive reproduções de espaços que remetem a um estilo de vida pautado pela luta. Exemplo é uma estrutura montada pela coordenadoria do museu para transmitir às novas gerações a sensação de viver em um rancho no período de colonização. Objetos pessoais e do cotidiano dispostos com esmero num ambiente rústico dão a tônica de uma peculiar fidelidade. Há instrumentos muito bem conservados usados por parteiras e pelos peões que trabalhavam na derrubata de mata.

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí funciona de segunda à sexta das 8h às 11h30 e das 13h30 às 17h. Entretanto, caso haja pedidos de abertura em outros dias e horários, Rosi Sanga deixa claro que basta agendar uma data. “A ideia do museu nasceu de uma parceria com a professora doutora Luciana Regina Pomari, do Departamento de História da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (Fafipa). Desde então, fomos reconhecidos por todos os órgãos representativos nacionais e estaduais”, enfatiza Rosi. O Museu de Paranavaí também está em todos os catálogos e guias de museus do Brasil. Em 2007 e 2008, tiveram o acompanhamento da Coordenação do Sistema Estadual de Museus (Cosem) que ministrou cursos e treinamentos em Paranavaí. Para mais informações, basta ligar para (44) 3902-1049.

Site do Museu de Paranavaí: http://museuparanavai.webnode.com.br/

Eronildo e o cachimbo da nostalgia

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Eronildo

Fumo de corda faz parte da tradição familiar de “Seu Eronildo” (Foto: David Arioch)

O aposentado Eronildo dos Santos vive no Paraná há mais de 40 anos, mas resguarda no coração as lembranças de quando vivia em um humilde sítio no interior do Sergipe.

A nostalgia sempre surge após o almoço, quando “Seu Eronildo”, que mora em São João do Caiuá, no Noroeste do Paraná, senta sobre um banco de madeira envelhecida e, com os dedos calejados pelas décadas de trabalho na lavoura, acende o rústico e artesanal cachimbo de barro que ele mesmo criou.

Entre uma baforada e outra, a fumaça transporta o velho sergipano para a época em que a mãe e a avó o ensinaram a preparar fumo de corda para o cachimbo; uma liturgia com duração de 25 minutos.

Eronildo detesta cigarro, mas acha besteira dizer que fumo de corda faz mal. “Minha mãe morreu com 99 anos e minha avó com 110”, enfatiza o aposentado enquanto sorri e aponta para a fumaça que desvanece aos poucos.

Written by David Arioch

September 18th, 2009 at 1:09 am