Archive for the ‘cemitério’ tag
Morto pode ter cheiro doce?
Criança, passeando pelo cemitério, passei por um mausoléu e falei com uma senhora que limpava um túmulo: Morto pode ter cheiro doce? Como? Morto pode ter cheiro doce? Doce? Doce! Como? Quem morre, não desaparece, vira doce? Quê, filho? Só depois que me afastei ela notou um balde de pipoca doce no mausoléu ao lado. Ali nunca faltava pipoca – branca, amarela, rosa, vermelha, sortida – um simulacro curioso da vida.
Capitán, o cão que dormia no túmulo do seu ex-tutor desde 2007
Em Villa Carlos Paz, na Argentina, o cão Capitán, um cão mestiço, parte pastor alemão, chamava a atenção. O animal descobriu sozinho em 2007 onde o seu companheiro humano foi enterrado, e desde então dormia ao lado do túmulo. Infelizmente, esta semana Capitán foi encontrado morto a poucos metros do Cemitério Municipal de Villas Carlos Paz em decorrência de insuficiência renal. Aos 16 anos, ele já havia perdido a visão de um olho e tinha dificuldades para caminhar.
Capitán, encontrado por Miguel Guzmán em 2005, foi criado como um irmão de seu filho Damián. À época, a mãe Verónica Moreno não gostou muito da ideia porque já imaginava como seria trabalhoso cuidar futuramente de um animal de grande porte. Em 24 de março de 2006, Miguel faleceu, e não demorou para Capitán começar a vasculhar a casa, procurando pistas de Guzmán. Cheirou cada cômodo da residência e mais tarde desapareceu.
A família pensou que o cão tivesse sido morto ou adotado. Só descobriram o paradeiro de Capitán quando Damián foi visitar o pai no cemitério e encontrou o cachorro ao lado do túmulo. “Ele começou a ladrar de uma maneira que dava a impressão de que estava chorando”, contou Verónica que tentou levá-lo para casa, mas ele se recusou; preferiu continuar ao lado de Miguel.
De acordo com a vendedora de flores Marta, Capitán chegou ao Cemitério de Villas Carlos Paz em janeiro de 2007, quando encontraram o cão com uma pata da frente quebrada. “Percebemos que ele amava o seu tutor porque jamais deixou o cemitério”, testemunhou. Até hoje, ninguém sabe explicar como Capitán achou o túmulo de Miguel. O homem faleceu no hospital e de lá foi levado para uma casa funerária bem longe de onde morava.
Não havia um dia em que Verónica e Damián visitavam Miguel e não encontravam Capitán junto ao túmulo. Algumas vezes o cão acompanhava a família até em casa, mas sempre retornava ao cemitério. “Lá é a casa dele agora. Admito que antes eu não gostava tanto do Capitán. Isso mudou assim que percebi o amor que ele tem pelo meu marido. Desenvolvi um carinho muito grande. Sinto que o Capitán está com Miguel”, afirmou Verónica Moreno.
Damián desistiu de levar o cão para casa quando percebeu que não adiantaria. Não importava para onde Capitán ia, ele sempre retornava ao cemitério. “Todos os dias, às seis horas em ponto, ele se deitava em frente ao túmulo. É uma lição de preservação das memórias daqueles que partem. Incrível como os animais nos ensinam isso de modo tão fiel”, comentou o administrador do cemitério, Héctor Baccega, que todos os dias contava com a companhia do cão em suas andanças.
Referência
La Voz, de Córdoba, Argentina.
Um barbudo no Dia de Finados
Pense numa situação visceral de estranhamento. Estou falando de mim no Cemitério de Alto Paraná visitando parentes falecidos. Muita gente com aquele olhar de surpresa, observando o barbudo aqui:
“O que esse muçulmano está fazendo aqui?” “Muçulmano, Dia de Finados? Oi?” Não sabia que muçulmanos iam ao cemitério.”
E para fechar com chave de ouro, na saída, uma amiga de infância da minha mãe me abraça e diz: “Que honra! Hoje até o Osama veio homenagear os falecidos.” Ah! Recebi também um folheto religioso antes de partir. “Sei que não é a sua religião, mas ficarei feliz se puder ler”, disse um senhor católico.
Em respeito à memória de parentes falecidos
Em respeito à memória de parentes falecidos em 1962 e 1970, desde criança vou ao cemitério de Alto Paraná no Dia de Finados. É um costume sem conotação religiosa. Meus familiares, parte deles imigrantes, se mudaram para esta região na década de 1940, quando o Novo Norte do Paraná ainda estava em processo de colonização.
Embora eu não tenha nascido nem vivido em Alto Paraná, reconheço que é um lugar rico em histórias. O caminho até o cemitério é muito intrigante. Há casas de sítios e fazendas que foram abandonadas há muito tempo, mais tarde consideradas assombradas. Também há lugarejos, antes colônias, envoltos por narrativas insólitas, como a de um rapaz que dormiu por anos e a de famílias de mulheres que expulsavam invasores a tiros.
Um assalto no cemitério
Quando me despedi, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite
Em um dia normal, ainda distante do Dia de Finados, eu estava no Cemitério Municipal de Alto Paraná conversando com um desconhecido chamado Noé. A curta distância da entrada, falávamos sobre vida e morte enquanto poucas pessoas entravam e saíam do lugar.
O clima seguia ameno e o sol não tinha despontado naquela manhã, me fazendo observar tudo à minha frente como se eu estivesse diante de uma pintura gótica, onde a pouca luminosidade enaltecia as sombras e evidenciava de maneira insólita túmulos, cruzes, pessoas e animais que compunham aquele cenário tipicamente cristão.
Por um momento, esfreguei meus olhos e percebi que o fato de tudo transparecer maior não era ilusão, mas sim uma manifestação temporária da natureza, capaz de apequenar ou engrandecer os seres humanos das mais diferentes formas, simplesmente manipulando o clima, o tempo e o senso espacial.
Notei que tinha chovido há alguns dias e as árvores que envolviam o cemitério exalavam olência de casca e raízes, numa perfumaria mesclada que confundiria até os melhores boticários. Uma delas, vez ou outra balouçava os galhos e gotejava sobre a minha cabeça, como se quisesse me alertar sobre algo.
Eu apenas esfregava as mãos sobre o cabelo pontualmente úmido e continuava a ouvir Noé relatando suas aventuras quando viajava a pé por estradas de terra, dormindo sobre túmulos de cemitérios abandonados. Uma vez, amanheceu com as falanges da mão de um cadáver apoiada em seu peito. Nunca soube como aqueles ossos foram parar sobre seu corpo.
Num instante de silêncio, ouvi o canto de um surucuá com peito cor de bronze. Sobre uma cruz altaneira, ele parecia ensimesmado, me observando enquanto o nevoeiro velava seus pés. “Já ouviu falar em pragueira verduga?”, perguntou Noé, desviando minha atenção do pássaro. Respondi que não e ele explicou que é um verme que corrói placas de bronze sempre que a umidade do ar está muito alta.
Quando me despedi e caminhei em direção ao estacionamento, onde não havia mais ninguém, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite: “Cara, bora entrar lá dentro pra catar umas placas de bronze. Deve ter algumas muito boas ainda. Vamo aí?” Espaventado, não acreditei no que ouvi. Ele insistiu na oferta e recusei prontamente.
Sua catadura mudou na hora. O semblante sereno e ponderado foi substituído por um olhar fulminante e um riso vil. Noé inclinou a cabeça em direção aos próprios pés e declarou com sorriso sardônico: “Tá certo! Mas tenho um presente pra você. Chamo de filosofia da pólvora. Ela queima instantaneamente, permitindo um novo tipo de compreensão da vida.”
Inerte, assisti Noé exibir um revólver de calibre 38 enrolado em um pedaço de flanela alaranjada dentro da mochila. Sem titubear, ordenou que eu entregasse os R$ 2 mil guardados dentro da minha carteira. “Não tenho esse dinheiro na carteira. De onde tirou essa ideia?”, perguntei. Ele disse que teve uma visão de que alguém com o meu perfil chegaria ao cemitério pela manhã carregando R$ 2 mil. Abri minha carteira e mostrei que eu tinha R$ 200.
Inclusive coloquei o dinheiro sobre uma mureta e lancei minha carteira a seus pés para que ele a checasse. Irritado, Noé mirou o revólver em minha direção. Não corri nem ameacei atacá-lo. Simplesmente mantive os olhos em sua direção enquanto minhas pernas pareciam se dissolver, querendo se entranhar no solo úmido e moscado. “Quem sabe eu me torne algo que brote da terra ou desapareça como num rastilho da própria pólvora que me invade”, pensei antes de me perder num vácuo onde existência e inexistência transpareciam igualmente insones.
Noé acionou o gatilho, mas não havia balas; nem ele sabia disso. Correu até a margem da estrada, entrou em um Santana Quantum preto, estilo carro de funerária, e desapareceu. Meus R$ 200 continuavam imóveis sobre a mureta onde a brisa movia tudo menos as notas. Peguei minha carteira, o dinheiro, fui até o aterro sanitário perto do cemitério e entreguei o dinheiro às crianças que procuravam algo aproveitável entre os detritos. Na mesma semana, li no jornal que Noé retornou ao Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, de Loanda.
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Visita aos mortos
Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos?
Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?
Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.
O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.
Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.
Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.
Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.
“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.
Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.
Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.
De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.
Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.
A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.
Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.
Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.
Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.
Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.
Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”
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Um dia reconhecendo a fragilidade da vida
Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo
Acordei cedo numa manhã de outubro de 1993. Após o café da manhã, abri o jornal para ler o obituário. Garotinha de 11 anos, homem de 31 anos e senhora de 51 anos estavam na página, vítimas de meningite, acidente de carro e câncer de mama. Os três tinham nomes completos com a mesma quantidade de letras. A expressão no olhar de cada um nas fotos em preto e branco era bastante similar. A mim, transmitia um misto de melancolia e fragilidade. Além disso, fiquei sabendo depois que faleceram no mesmo horário, nem um minuto a mais ou a menos.
Enquanto lia, me distraí e levei um baita susto quando ouvi a voz da minha mãe. Fechei o jornal e, atendendo a um pedido dela, fui até a Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, comprar alguns produtos de limpeza. No caminho, só conseguia pensar no que a morte teria levado de cada falecido. “Ninguém nunca mais vai ver aquelas pessoas andando por Paranavaí. Acho que deve ter gente chorando, gente com raiva… O que será que estão pensando sobre a morte? Nossa! Aqui morre gente todo dia… Se existe paraíso, deve ser um lugar gigante pra caber esse povo todo”, refleti.
Na Moreira, assim que coloquei a mão em um frasco de alvejante, ouvi uma mulher de pouco mais de 30 anos chorando. Me aproximei e a vi segurando um maço de velas e retirando uma grande caixa de fósforos da gôndola. Entre soluços, comentou com sua mãe que a sua filha disse na semana anterior qual era o seu sonho. “Mãe, quero cuidar do Tininho. Acho que ele tá doente. Você viu como a barriga dele tá inchada? Se eu melhorar, quero ser médica de animais, assim nunca vou deixar nenhum bichinho sofrer”, narrou a mulher, reproduzindo com sofreguidão o discurso da filha. Seus olhos negros como a noite denunciavam através de um aureolado carmim que o choro se estendeu por tanto tempo que havia sinais de queimaduras na ourela dos olhos.
Quando eu estava me afastando, escutei a moça relatando num rompante emocional: “Perdi a Betina, mãe! A perdi pra sempre! Sabe o que ela me falou antes de morrer? ‘Vou dormir um pouquinho, mãe. Você me acorda daqui a pouco?’” Em seguida, as duas se abraçaram dentro do mercado. E assim continuaram, numa troca de confidências não verbalizadas. Em respeito àquele momento, e com receio de ser visto, me distanciei vagarosamente e passei pelo caixa. Então as duas sumiram do meu campo de visão.
No mesmo dia, antes do almoço, fui com meu pai ao Restaurante Magia, na Avenida Distrito Federal, buscar quatro marmitas. Quase todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas por famílias, grupos de amigos e de colegas de trabalho. Notei pessoas em silêncio, sorrindo, contando anedotas, falando alto e repreendendo os filhos pequenos que circulavam por baixo das mesas. Com os braços curtos abraçando o topo da cabeça, fingiam que fugiam de bombardeios.
Em um canto, sentado em um banco, o único homem solitário no restaurante deslizava o dedo indicador da mão direita pelas bordas de um copo de whisky. O seu aspecto sorumbático e adventício contrastava com o cenário, assim como as olheiras formando arcos de ciprestes tão densos que davam a impressão de pesar sobre os seus olhos, o forçando a inclinar a cabeça em frente ao balcão. Esgotado, mantinha os olhos semimortos em direção ao líquido âmbar profundo dentro do copo. As bebericadas eram insuficientes para umedecer os lábios esquálidos e ressecados. Parecia não se importar em suavizar aquelas pequenas fendas que aos poucos se transfiguravam em cicatrizes.
Naquele local a única coisa que o incomodava era a dormência das pernas. Por isso, vez ou outra movia os pés do apoio do banco e os sacolejava. Numa dessas meneadas, um chaveiro de prata escorregou e ficou pendurado no bolso esquerdo da calça de linho cinza, por onde despontava a imagem de uma jovem mulher nos anos 1970. Ocasionalmente o sujeito deslizava os dedos pela foto enquanto conduzia os olhos mortiços até um rádio pequeno a poucos metros de distância que executava “Please, Forgive Me”, de Bryan Adams, em volume baixo.
Ao final da música, o senhor de meia-idade pagou a conta, acenou com a cabeça sem dizer palavra e atravessou o restaurante lotado. Não notou qualquer presença – ou preferiu ignorar. Nem olhou para os lados. Somente parou na entrada do estabelecimento, observou rapidamente o céu, abriu um relógio de bolso dourado para ver as horas e seguiu pela Avenida Distrito Federal com o rosto mirando o bico abaçanado dos sapatos.
No início da tarde, por volta das 13h, minha mãe me chamou para ir ao Cemitério Municipal de Alto Paraná ajudar a limpar os túmulos da minha bisavó e de dois tios-avôs falecidos na juventude. Me empolguei com a ideia de rever o lugar, já que no meu ideário de criança uma necrópole nunca significou simplesmente um ambiente de consternação, mas também um universo de possibilidades de aprender um pouco mais sobre a vida e as pessoas.
Depois de percorrer 19 quilômetros de asfalto e mais alguns de senda – sentindo imponderável friozinho na barriga ao passar por tantas lombadas de terra, fomos surpreendidos por um cãozinho mestiço, bigodudo, de pelagem rala e acobreada que correu em frente ao carro enquanto assistíamos as cortinas de poeira sabulosa ocultando o horizonte com a intensidade de um siroco. Por sorte, meu pai conseguiu frear a tempo.
Escanifrado e de barba sarapintada, um rapaz recostado na carroceria de um caminhão velho carregado de melancias orgânicas tirou o cigarro de palha do canto da boca. Veio em nossa direção segurando com a mão esquerda um facão respingando suco de melancia. Com a direita acompanhada de um olhar dúbio, acenou para o meu pai abaixar o vidro.
“Óia, não leve a mal não. Além de pestiada, a bichinha tá baruiano. Então ela fica tchuca tchuca. Ô alemoa, traz uma metade dessa melancia aí que vou taiá pro homem aqui”, gritou o rapaz para a sua companheira. Meu pai sorriu, agradeceu e disse que não era necessário. Ainda assim, o homem insistiu até levarmos um pedaço da fruta de miolo vermelho tão aveludado que parecia uma iniquidade comê-lo.
Perto da entrada, durante a limpeza do túmulo da minha bisavó, minha mãe perguntou se eu sabia o porquê do cemitério ficar tão longe da cidade. “Quando foi construído, pensaram que o progresso, a área urbana de Alto Paraná, viria até aqui. Uma pena! As erosões não permitiram construções nesta área”, explicou. No terceiro jazigo, do meu tio-avô João, falecido em 1962, havia flores de uma ex-namorada dos tempos da juventude.
A poucos metros de distância, o som de uma brisa, que fazia árvores das mais diversas espécies se inclinarem sobre os visitantes ,desapareceu em meio a soada de passos fragorosos e vozes dissonantes. O pandemônio chamava a atenção para uma jovem de beleza delicada, pele oliva, cabelos castanhos e não mais que 25 anos caída sobre uma lápide. Ela não se movia. Estava mole e frágil como a rosa vermelha e antes cálida que murchou com a soalheira, se dobrando ao seu lado dentro de um vaso de cerâmica rosácea. Em meio ao barulho ensurdecedor dos curiosos, seu rosto tinha feição serena e alheia. Quem sabe, como sua própria existência.
Fora do cemitério, talvez por educação, algumas beatas praguejavam a moça pelo suicídio à base de estricnina. “Quis morrer? Tá bom! Conseguiu. Mas acha que vai ingrupi Deus? Não vai não! Lugar de quem faz isso é no inferno. Aaah! Se fosse minha filha tinha levado uma camaçada de pau pra não ter esse tipo de pensamento de gente varrida!”, esbravejava uma senhora de pelo menos 60 anos, representante de uma entidade filantrópica. Lá fora, um pedreiro que sempre fazia bicos de reforma e limpeza de túmulos no mês de outubro contou a alguns abelhudos o possível motivo da morte da moça.
Em casa, à noite, recostei a cabeça no travesseiro e demorei a dormir, refletindo sobre tudo que vivenciei naquele dia 30 de outubro de 1993. Da janela do meu quarto, observei de soslaio as parreiras de uvas que se enrolavam nas treliças de arame rente ao muro branco. Mais adiante, um céu quebrantado e abissal me fez imaginá-lo furibundo, prestes a engolir o mundo. “Cadê as estrelas? Cadê a lua? Talvez esteja de luto pelas tantas estrelas que viu nascer e morrer. Será que se cansa como nós? Ah! Não dá pra saber! Deve tá reunindo forças pra ressurgir com a manhã!”, pensei.
Voltei meus olhos para as parreiras e notei que algumas tinham se soltado das treliças. Pareciam quebradiças, sem liames, moribundas. Então lembrei das três pessoas do obituário. Ao longo de uma manhã e uma tarde o acaso me conduziu a elas através da dor daqueles que padeciam diante do vácuo da ausência e da contumácia da solidão.
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Um homem marcado pela tragédia
Quando a riqueza material ofusca a importância da vida
Na infância, meu avô me contou uma história que jamais esqueci. É sobre um homem que teve a vida transformada por uma sucessão de tragédias em 1958 e 1959. Até o ano passado, sempre me questionei se o que ouvi quando criança era verdade ou não. A confirmação chegou até mim há alguns meses, quando encontrei uma sobrinha do protagonista desta sinistra e pitoresca história.
Hésio Oscar Azeredo era um investidor de grandes posses que vivia com a família em uma fazenda a pouco mais de 20 quilômetros da área urbana de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Passava o tempo todo ocupado, tentando encontrar novas formas de multiplicar os lucros. Havia época em que dormia menos de três horas porque achava que repousar mais o impediria de alcançar seus objetivos. “Ele tinha uma boa família e era uma boa pessoa, mas colocava o dinheiro e a ambição acima de tudo”, diz a sobrinha Maria Aparecida Lorelli.
Hésio Oscar era filho único de um falecido casal de multimilionários que até as primeiras décadas do século XX administrava investimentos de capital estrangeiro no Brasil. Ainda jovem, já possuía propriedades rurais em sete estados, além de fazendas no Paraguai e Argentina. Algumas eram maiores do que muitas cidades do Brasil. Também investia em beneficiamento de grãos e cereais, telefonia e transportes fluviais. Era muito influente, tanto que na sua biblioteca particular, um ambiente inspirado no gabinete do presidente dos Estados Unidos – o Salão Oval, deixava em destaque uma grande foto em que aparecia ladeado pelo ex-presidente Dwight Eisenhower.
“A moldura do quadro era de ouro maciço. Poucas pessoas podiam entrar lá. Somente alguns familiares conheciam o lugar. Meu tio ainda pedia que por discrição ninguém falasse sobre o que viu lá dentro”, declara Maria que na infância e adolescência teve três oportunidades de visitar o local. Apesar do apego aos bens materiais, o investidor era considerado pelos empregados como um patrão rigoroso, mas justo. Fazia questão de acompanhar de perto todos os seus negócios. Ainda assim, muitos boatos se espalhavam sobre o Tymbara, apelido que um místico colono de origem kaingang deu a Hésio Azeredo. “Era o único índio da nossa turma. Ele inventou esse apelido e não explicou o significado. Só que ninguém nunca teve coragem de chamar o ‘Dr. Hésio’ de Tymbara, então isso ficava mais entre a gente”, comenta o ex-colono aposentado Inácio Durval Reis que naquele tempo era mais conhecido como Mizim.
Em 1957, já circulava entre os colonos um boato de que Azeredo se referia ao dinheiro como se fosse um tipo de deidade. “Falavam que ele tinha um altar cheio de dinheiro e que não saía de lá sem se ajoelhar e rezar pra ganhar mais um punhado a cada dia”, conta Mizim, acrescentando que talvez tenha sido apenas conversa fiada de gente à toa.
Há quem diga que uma cozinheira da fazenda jurou ter visto paredes forradas com notas de cem dólares em alguns dos cômodos da casa principal. “Todo mundo ouvia falar. Só que não conheço ninguém que testemunhou isso. Sei que tinha cômodos da casa que o ‘Dr. Hésio’ não permitia a entrada de ninguém, nem das empregadas”, enfatiza Reis. Embora as lembranças não estejam mais tão frescas na memória, Maria se recorda com carinho da tia Clara e dos primos Tadeu e Joaquim. “Eram bem espertos e adoravam correr pelo campo. Na fazenda, perto de uma bica de mina, tinha um morrinho coberto por uma grama bem verdinha onde eles adoravam escorregar e rolar. Às vezes eu e uma babá cuidávamos dos dois”, comenta.
Tadeu, de cabelos negros que chegavam a azular com a incidência do sol vespertino, era bem comunicativo e agitado. Já Joaquim, de cabelos loiros, era calmo e parcimonioso. Os dois sofriam de heterocromia. “Tadeu tinha um olho preto e um azul. Joaquim possuía um olho preto e um verde. Por causa disso, eu ficava sabendo de muitas bobagens ditas pelos mais ignorantes”, lembra Maria Lorelli. Hésio Azeredo pouco participava do cotidiano familiar. Assistia ao desenvolvimento dos filhos como um espectador desatento. Tinha o hábito de viajar antes do amanhecer, retornando apenas semanas mais tarde e normalmente de madrugada. A pressa era tanta que nem se despedia dos filhos. Se o lucro fosse muito alto e exigisse mais tempo fora de casa, não se importava em se ausentar por alguns meses. Uma vantagem é que o empresário sempre teve pessoas de sua confiança para garantir o bom andamento dos seus muitos empreendimentos.
Criado em uma família que há várias gerações se dedicava a multiplicar riquezas, Azeredo foi o primeiro a romper o ciclo, e não por vontade própria, mas por uma sucessão de acontecimentos que transformaram sua vida. Em dezembro de 1958, após uma séria discussão com o marido, Clara chamou os dois filhos e disse a eles que iriam passar alguns dias na casa da avó em Curitiba. “Ajudei eles a arrumarem as malas e os acompanhei até o aeroporto da família, onde um avião e um piloto estavam sempre à disposição”, relata Maria. No último momento, apesar da resistência em deixá-los partir, Hésio Oscar achou que contrariar a mulher poderia piorar a situação. No início da noite, se arrependeu amargamente ao receber a notícia de que o piloto Julião Martins Bastina sofreu um mal súbito e perdeu o controle da aeronave. O avião que caiu na região dos campos gerais foi encontrado por um caminhoneiro que viu uma criança ensanguentada acenando e gritando por socorro.
“A tia Clara, o Joaquim e o piloto não resistiram aos ferimentos. Acho que morreram na hora do impacto. O Tadeu sobreviveu por um milagre. Ele teve só escoriações e não precisou ficar internado”, destaca Maria Aparecida. A maior parte do sangue sobre o corpo do garoto era do irmão e da mãe que o envolveu nos braços instantes antes da queda. Pelo menos por dois meses após o enterro, a tragédia fez de Azeredo um homem incomunicável, agressivo e ostracista. Não tinha vontade de ver ninguém, nem mesmo o filho sobrevivente. Depois retornou à rotina sem avisar ninguém. E não aceitava que falassem das mortes da mulher e do filho, negando a si mesmo a partida dos dois, mesmo tendo participado da cerimônia fúnebre.
Sem saber como lidar com a vida pessoal, até mesmo esquecendo que tinha família, se afundou ainda mais em trabalho. Esqueceu muitas vezes que Tadeu continuava morando na mesma casa. “O pai dele tinha atitudes de alguém que perdeu tudo. Em vez de se basear naquele exemplo para mudar de vida, fez exatamente o contrário. Fiquei muito nervosa com a situação”, desabafa a sobrinha. Isolado por Hésio Oscar, Tadeu começou a agir como se o irmão Joaquim continuasse com ele. Maria Lorelli foi a primeira a perceber que o primo divagava e tinha alucinações. Parecia falar com outras pessoas, mesmo quando estava sozinho. Quem o via de longe, pensava que havia alguém acompanhando o garoto.
“Ele corria lá pelos lados das plantações. Se embrenhava no meio do cafezal e brincava de se esconder. Lembro que perguntei se tinha mais alguém com ele. Me respondeu que era o irmão. Achei que fosse uma traquinagem inocente, nem comentei com ninguém”, revela Mizim. Episódio semelhante se repetiu uma semana mais tarde, quando Tadeu estava sozinho no quarto, escondido e cochichando dentro do guarda-roupa. Com a insistência dos mais próximos, Azeredo concordou em procurar um tratamento psiquiátrico para o filho. Tadeu foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático. Mesmo com acompanhamento médico, o estado do garoto só piorou. Embora se preocupasse com a situação, Hésio preferia deixá-lo aos cuidados de familiares e empregados.
Um dia, quando se machucou ao saltar sobre uma cerca, a perna de Tadeu começou a sangrar. Ele se aproximou do pai e disse: “Por que o senhor não gosta de mim? É por que o que sai do meu corpo é um líquido vermelho sem valor? Mas e se fosse amarelo e brilhante como ouro?” Azeredo não respondeu. Surpreso, se calou e abraçou o filho, clamando por perdão. A cena foi testemunhada ao longe pela prima Maria. Na semana seguinte, três dias antes de completar 12 anos, Tadeu foi encontrado deitado na própria cama, abraçado a uma foto em que ele aparecia brincando com a mãe e o irmão. Havia um pequeno frasco de estricnina ao seu lado. Tadeu estava morto e com os olhos fechados, como se estivesse se preparando para dormir. Quando viu o filho de pijama e sem vida, Hésio saltou pela janela do quarto que ficava no andar superior. O impacto provocou apenas um corte na cabeça, escoriações e um desmaio que durou cerca de duas horas. Ao acordar, teve uma cefaleia intensa que desapareceu só no fim da noite.
Maria Lorelli tentou conversar com o tio sobre a necessidade de velar e enterrar Tadeu, mas Hésio não quis dialogar. Deixou claro que não precisava da ajuda de ninguém, assumindo o compromisso de fazer tudo sozinho. Só exigiu que dois empregados levassem um enorme refrigerador horizontal, que estava na maior despensa da casa, até um quarto ao lado do seu. Mandou que todos saíssem, tomou Tadeu nos braços e o carregou para a sua suíte. Chaveou a porta do quarto e disse aos familiares que retornaria em algumas horas. Antes que alguém fizesse alguma pergunta, entrou em um jipe Land Rover e desapareceu na escuridão, retornando antes do amanhecer, acompanhado de um húngaro misterioso e com um forte sotaque a quem chamava de Gazda. Transferiram Tadeu para o quarto ao lado da suíte e não permitiu que ninguém entrasse no local.
No dia seguinte pela manhã, Azeredo estava mais calmo e convidou parentes e amigos mais próximos para participarem de enterro do filho no cemitério particular da família. Estranharam a atitude porque Hésio nem mesmo havia planejado o velório. Por comiseração e até por medo de uma má interpretação, ninguém cogitou questioná-lo por não deixar ninguém ver Tadeu antes de fechar o caixão. Algumas das pessoas que participaram da cerimônia, segundo Maria Lorelli, comentaram que Azeredo parecia mais lúcido e provavelmente, após o rompante de desespero, logo entraria na fase de aceitação. Quando todos os parentes foram embora, Azeredo dispensou parte dos empregados, justificando que como estava sozinho não precisava mais de tantas pessoas trabalhando na casa principal. Maria insistiu em continuar com o tio por mais alguns dias, mesmo ciente de que talvez não fosse mais bem-vinda. “Desconfiei de algo estranho acontecendo porque o tal húngaro que ninguém conhecia ficou na casa quase uma semana. Além disso, ele não parecia o tipo de pessoa com quem o tio costumava negociar”, argumenta.
Algumas horas antes de Gazda partir, Maria o ouviu cochichando algumas palavras ininteligíveis a Hésio. Sem motivo para prolongar a estadia, a jovem partiu para Curitiba, onde ingressou no curso de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nas férias, Maria sempre passava alguns dias na fazenda do tio para saber como ele estava e também para reviver lembranças do tempo em que ajudava a tia Clara e os primos Tadeu e Joaquim. Azeredo estava mais comunicativo e não viajava com muita frequência. Na realidade, raramente deixava a fazenda. A propriedade do empresário se tornou o seu mundo, tanto que as negociações diminuíram consideravelmente. Em 1962, apenas nove dos empregados continuaram trabalhando na propriedade. Era o suficiente para manter a operacionalização das atividades locais.
No final daquele ano, por intermédio dos pais, Maria ficou sabendo que Hésio, sem dar explicações, desfez de grande parte dos imóveis e empresas que possuía. Mas a surpresa maior veio em janeiro de 1963, quando Maria encontrou a fazenda abandonada. As plantações estavam morrendo e não havia ninguém no campo. Na casa principal, a sobrinha sentiu um forte mau cheiro vindo da cozinha, onde muitos alimentos estragaram há bastante tempo. Maria também se deparou com móveis cobertos por lençóis brancos. Nada disso pareceu tão estranho quanto uma bem disposta e linear trilha de notas de cruzeiro que começava no cemitério particular da família e terminava no quarto de Hésio Azeredo.
Maria Lorelli seguiu as notas e quando abriu a porta do quarto viu o tio deitado na cama abraçado com o filho Tadeu. Mesmo sem vida, o garoto estava com a aparência do dia em que foi encontrado morto. “Como participei do enterro dele três anos antes, pensei que eu estivesse louca. Até a expressão no rosto de Tadeu ainda era a mesma”, comenta. Após o susto, Maria viu que Hésio também estava morto. Ao lado do corpo, somente um frasco quase vazio de estricnina. Preocupada com a repercussão, a família de Maria evitou comentários e fez o possível para impedir que a história fosse divulgada. Até mesmo no registro de óbito consta que a causa da morte foi um ataque cardíaco. O caixão onde supostamente colocaram o corpo de Tadeu em 1959 sempre esteve vazio. O substituíram por outro e realizaram uma nova cerimônia fúnebre para pai e filho. Desta vez, com a participação de cinco pessoas. Antes de morrer, Hésio Azeredo deixou um testamento destinando 80% da fortuna para orfanatos, asilos e entidades sociais que cuidavam de crianças de rua.
O restante foi dividido entre sete familiares e dois irmãos de criação. Em um bilhete queimado no mesmo dia em que foi lido, Hésio explicou brevemente que o húngaro Gazda era um artista da matéria humana que lhe proporcionou, mesmo que por pouco tempo e com certo requinte ilusionista, se comunicar e se despedir do filho de uma maneira que ninguém jamais entenderia. Anos depois, Maria Lorelli ouviu novamente falar de Gazda em São Paulo. Então soube que o homem misterioso foi um dos mais revolucionários taxidermistas do Leste Europeu, onde trabalhou para czares, aristocratas e líderes socialistas. Se mudou para o Brasil nos anos 1940, fugindo da perseguição nazista aos ciganos.
Curiosidade
Tymbara é uma palavra de origem tupi-guarani que significa “aquele que enterra”.
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Capitán, o cão que dorme no túmulo do seu ex-tutor desde 2007
Cão dorme ao lado do túmulo do dono há mais de cinco anos
Em Villa Carlos Paz, na Argentina, o cão Capitán, um cão mestiço, parte pastor alemão, tem chamado a atenção há muito tempo. O animal descobriu sozinho em 2007 onde o seu companheiro humano foi enterrado, e desde então dorme ao lado do túmulo.
Capitán, encontrado por Miguel Guzmán em 2005, foi criado como um irmão de seu filho Damián. À época, a mãe Verónica Moreno não gostou muito da ideia porque já imaginava como seria trabalhoso cuidar futuramente de um animal de grande porte. Em 24 de março de 2006, Miguel faleceu, e não demorou para Capitán começar a vasculhar a casa, procurando pistas de Guzmán. Cheirou cada cômodo da residência e mais tarde desapareceu.
A família pensou que o cão tivesse sido morto ou adotado. Só descobriram o paradeiro de Capitán quando Damián foi visitar o pai no cemitério e encontrou o cachorro ao lado do túmulo. “Ele começou a ladrar de uma maneira que dava a impressão de que estava chorando”, conta Verónica que tentou levá-lo para casa, mas ele se recusou; preferiu continuar ao lado de Miguel.
De acordo com a vendedora de flores Marta, Capitán chegou ao Cemitério Municipal de Villas Carlos Paz em janeiro de 2007, quando encontraram o cão com uma pata da frente quebrada. “Percebemos que ele amava o seu tutor porque jamais deixou o cemitério”, testemunha. Até hoje, ninguém sabe explicar como Capitán achou o túmulo de Miguel. O homem faleceu no hospital e de lá foi levado para uma casa funerária bem longe de onde morava.
Não há um dia em que Verónica e Damián visitem Miguel e não encontrem Capitán junto ao túmulo. Algumas vezes o cão acompanha a família até em casa, mas sempre retorna ao cemitério. “Lá é a casa dele agora. Admito que antes eu não gostava tanto do Capitán. Isso mudou assim que percebi o amor que ele tem pelo meu marido. Desenvolvi um carinho muito grande. Sinto que o Capitán está com Miguel”, afirma Verónica Moreno.
Damián desistiu de levar o cão para casa quando percebeu que não adiantaria. Não importa para onde Capitán vá, ele sempre retorna ao cemitério. “Todos os dias, às seis horas em ponto, ele se deita na frente do túmulo. É uma lição de preservação das memórias daqueles que partem. Incrível como os animais nos ensinam isso de modo tão fiel”, comenta o administrador do cemitério, Héctor Baccega, que todos os dias conta com a companhia do cão em suas andanças. Em casa, Baccega cuida de um filho de Capitán e diz que o filhote provavelmente será tão leal quanto o pai.
Referência: La Voz, de Córdoba, Argentina.
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Por que enterra os seus?
Uma breve discussão entre dois amigos na França de 1930
“Olho para o chão e me pergunto, por que o homem que anseia por um paraíso etéreo e enxerga a vida como mera passagem terrena enterra os seus? Parece-me demasiado contraditório se levarmos em conta a fabulosa crença de Tártaro abaixo de nossos pés. Qual é a lógica de enterrar os seus quando a profundidade do espaço terreno é o símbolo burlesco do mundo inferior? O que busca o homem? Um eterno banho no Flegetonte?”, questionou o francês François Schieu ao deslizar a mão direita pelo queixo.
O ucraniano Nikolai Ludovitch, estático e atento às palavras do amigo, revelou jamais ter pensado a respeito. “É uma pergunta interessante, mas qual seria a solução mais plausível? Cemitérios edificados com cinquenta ou cem andares para resguardarem seus falecidos? É possível distender sentidos peculiares e simbólicos, já que estariam mais próximos da região superior, onde se movem os astros.”
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