David Arioch – Jornalismo Cultural

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Renato Frata, entre contos e crônicas

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“Arrisquei fazer os primeiros textos poéticos. Gostei, continuei e senti vontade de escrever textos corridos”

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Renato Frata com seus 16 livros publicados ao longo de décadas (Foto: David Arioch)

Foi na puberdade, quando se apaixonou pela primeira vez, que o escritor e advogado Renato Benvindo Frata, de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, rascunhou alguns versos. Influenciado pelo pai e pelo irmão, assíduos leitores, ele descobriu na leitura um dos maiores prazeres da vida. “Então arrisquei fazer os primeiros textos poéticos. Gostei, continuei e senti vontade de escrever textos corridos”, relata.

O primeiro conto, “Pá de Polenta”, foi premiado na década de 1990 no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), 20 anos depois de escrito. “Produzi uma extensão maior desse conto e o transformei em um livro que retrata parte da minha infância. Depois vieram outros. ‘Reflexão dos Cinquenta’, por exemplo, foi a primeira obra de um escritor de Paranavaí a ser publicada por um projeto da Secretaria de Cultura do Estado do Paraná”, conta.

Em 1999, Frata escreveu o conto infantil “O Sapo Chorão”, lançado pelo projeto Aluno Especial, da Secretaria da Educação de Paranavaí. “Fiz o texto e ele foi ilustrado por alunos de classes especiais. Fiquei muito satisfeito porque uma garotinha de Graciosa [distrito de Paranavaí], que tinha dificuldade de memorização, conseguiu captar a intenção do conto e o ilustrou de forma bastante singela, limpa. A obra foi editada com os desenhos dela”, informa.

Em 2009, o escritor lançou o livro “O Cavalariço e a Rainha Roxa”, que recebeu o Prêmio Clarice Lispector no 7º Concurso Literário Internacional da União Brasileira de Escritores (UBE), no Rio de Janeiro. Na história, há um confronto entre a cultura e a condição financeira dos personagens. “Ela era uma rainha triste e ele era um cavalariço sonhador. E através de sua capacidade intelectual, ele consegue conquistá-la. “Fiquei muito feliz com esse prêmio porque a UBE é um expoente literário e trabalha em parceria com a Academia Brasileira de Letras”, comenta.

Frata publicou também “Quarto de Solteiro”, que traz 60 crônicas da época em que saiu de casa para sedimentar a vida profissional,  além de outras 40 crônicas sobre o cotidiano. É uma obra que o marcou muito, com histórias que remetem às décadas de 1960 e 1970. Na sequência, vieram “O Ipê Amarelo”, conto que garantiu outro prêmio no Femup, e “O Azarinho e o Caga Fogo”, premiado em Paranavaí e em Curitiba. “O trabalho com a literatura infantil é complicado porque a cabeça da criança é muito diferente da nossa. Não é fácil”, argumenta.

Escritor ladeado por alguns de seus certificados de premiação (Foto: David Arioch)

Escritor ladeado por alguns de seus certificados de premiação (Foto: David Arioch)

De literatura infantil, Frata cita ainda os livros “O Sapo Chorão”, publicado em duas versões, “Coração Alegria” e “Gato Tiziu”, escrito em parceria com o neto. Na semana passada, o escritor lançou “200 Microcontos…e mais alguns” na 3ª Festa Literária Internacional de Maringá (Flim). “Um verdadeiro desafio. Eu nunca tinha feito isso. Foi um exercício estafante porque o livro saiu em menos de dois meses. Mas fiquei contente pela receptividade. Algumas professoras de Maringá me convidaram para ministrar oficinas para alunos do ensino fundamental. Sei que há coisas a se considerar, mas parece-me que saiu um livro gostoso de se ler”, avalia, em referência à obra em que cada microconto tem cerca de 140 caracteres.

Depois de 16 livros lançados, o escritor mantém-se animado. Confidencia que está editando mais dois livros de contos e crônicas. “Vamos fazendo por diletantismo. A minha motivação é a vida e uma família que, graças a Deus, segue inteira, sem nenhuma cisão. Sou casado há mais de 46 anos e minha esposa Helena me ajuda muito nesse processo”, pondera o escritor que possui sete Barrigudas, troféu-símbolo do Festival de Música e Poesia de Paranavaí, além de premiações em Maringá, Cornélio Procópio, São Paulo e Rio de Janeiro.

Frata recebeu o Prêmio Clarice Lispector, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE), no Rio de Janeiro (Foto: David Arioch)

Frata recebeu o Prêmio Clarice Lispector, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE), no Rio de Janeiro (Foto: David Arioch)

Sobre a inspiração para escrever, Renato Frata esclarece que suas obras surgem a partir de suas memórias ou relatos de amigos e conhecidos. “Tudo vem de um intercâmbio de ideias. Eu gostaria de editar todos os meus trabalhos. Tenho uma quantidade razoável de obras que rendem pelo menos mais dois ou três livros de contos e crônicas”, revela.

O escritor qualifica como muito gratificante as ocasiões em que é reconhecido pelos seus textos literários. Um dia, visitando o túmulo de seus pais, um senhor o abordou e disse que era seu fã. “Falou que guardava todas as minhas crônicas que saíam em jornais e revistas. Uma experiência que faz o trabalho de um escritor valer a pena. Para quem escreve, leitores sempre serão mais importantes do que qualquer prêmio”, enfatiza.

No dia 27, o livro “200 Microcontos…e mais alguns”, de Renato Frata, vai ser lançado às 20h no 1º Sarau da Academia de Letras e Artes de Paranavaí no Lions Clube. “Na mesma noite, serão premiados os vencedores do concurso de microcontos e poemas que versam sobre a doação de órgãos. Recebemos mais de 600 trabalhos. Foi uma experiência muito interessante”, declara Frata que é presidente de honra da academia, atualmente presidida por José Cauneto.

Microconto “Infância”

À beira da calçada, o copo com água e sabão e a haste de arame envergado faziam sonhos, felicidade, magia. Todos assoprados nas bolhas de sabão. (Página 3)

Saiba Mais

Renato Frata já publicou 16 livros de contos e crônicas. O escritor nascido no interior de São Paulo se mudou para o Paraná com apenas cinco anos, então se considera paranaense e paranavaiense.

Frase do escritor Renato Frata

“Simpatizo muito com trovas, porém não tenho o hábito de fazer. Acredito que me dou melhor com a crônica.”

José Oiticica definia o consumo de carne como um vício social

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Para o escritor e anarquista, a saúde humana deve envolver a alimentação vegetariana

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Oiticica via a doença como consequência da violação das leis biológicas (Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal)

“Ele comprovou ser o homem, como primata (pelo seu tubo digestivo, intestinos, glândulas, fórmula dentária, por sua estrutura anatômica, por sua natureza, enfim), animal vegetalivoro, como muitos povos orientais e habitantes de aldeias da Europa, e não carnívoro, como as feras. Compreendeu então que a doença apareceu no homem, como nas plantas, em consequência de um erro de nutrição. A doença é, assim, uma decorrência da violação das leis biológicas, como que uma punição da natureza. Oiticica converte-se então ao vegetarianismo e a abstinência e combate ao álcool e o tabaco, discorrendo em muitas conferências sobre esses vícios sociais”, escreveu o anarquista e vegetariano Roberto das Neves, reproduzindo a visão do amigo anarquista, poeta, filólogo e ativista vegetariano José Oiticica no livro “Ação direta: meio século de pregação libertária”.

Oiticica já era vegetariano em 1912, e desde então assumiu a posição de conciliar sua ideologia política com a defesa do vegetarianismo. De acordo com Neves, ele abandonou o curso de medicina quando conheceu livros sobre evolucionistas e naturalistas que qualificavam a alimentação como a melhor forma de prevenção e combate às doenças.

“Sempre fui meio rebelde. Ainda garoto fui expulso do seminário São José porque recusei a mão à palmatória. Mas acabei indo para a Faculdade de Direito e com tal crença que disputei sempre os primeiros lugares com Levi Carneiro, que foi da minha turma. Pois, assim, com uma crença sagrada no direito, fui ao Fôro levar um alvará para registro. O oficial do registro me cobrou 13$600, quando o Regimento de Custos marcava para o caso apenas 3$600. Protestei. O homenzinho foi peremptório: ‘Não me interessa o que o Regimento diz. Eu preciso viver’. Após isto larguei o direito”, revela José Oiticica em entrevista ao jornalista Mario Camarina em “Confissões de um Anarquista Emérito”, publicada na revista O Cruzeiro de 23 de maio de 1953.

Oiticica defendia que todo anarquista deveria tornar-se vegetariano e trabalhar em prol da extirpação dos vícios. Segundo ele, a saúde do homem, tanto física como mental, deve envolver a alimentação vegetariana e uma nova relação com a natureza, com o corpo e com a mente. “A inteligência e o aprofundamento intelectual, o exercício da vontade associado à moral, a habilidade e a solidariedade, são elementos essenciais para o progresso humano. A forma pela qual os indivíduos usam as suas energias em relação às energias cósmicas como o sol, o ar e a terra chama-se trabalho”, declarou em registro publicado no livro “Nem barbárie Nem Civilização”, de Tereza Ventura.

Entre os anos de 1911 e 1955, José Oiticica lançou 14 livros de poesia, teoria anarquista e filologia. Também escreveu as peças teatrais “Azalan!”, “Pedras que Rolam” e “Quem os Salva”. “Publicou obras de sociologia e linguística, inclusive em jornais populares; difundiu o vegetarianismo entre os trabalhadores; além de ter deixado obras espiritualistas como o opúsculo ‘Os Sete Eu Sou’ e uma tradução dos ‘Versos Áureos’, atribuídos a Pitágoras”, comenta Tereza.

Oiticica vivia um conflito entre o espírito ativo e ativista, portador de conceitos de uma visão política, e o espírito sensível e inspirado de um poeta preocupado com a natureza humana, segundo o artigo “Anarquia nos Sonetos de José Oiticica”, de Maria Aparecida Munhoz de Omena. Considerado pré-modernista, ele produziu muitos sonetos, principalmente nos anos de 1911 e 1919. Ainda assim, passou despercebido pelas publicações que contam a história do modernismo no Brasil – talvez por suas inclinações ideológicas. “Uma primeira leitura do último livro que publicou em vida, ‘Fonte Perene’, de 1954, revela uma poesia vigorosa, à altura dos considerados bons poetas do período”, enfatiza Maria Omena.

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“Ele comprovou ser o homem, animal vegetalivoro” (Foto: Reprodução)

Idealista, José Oiticica que se dividia entre a literatura, o magistério e a militância anarquista, escreveu no livro “Princípios e Fins do Programa Anarquista-Comunista”, de 1919, que o fim mais alto do anarquismo é a elevação da plebe, dos verdadeiros produtores, a sentimentos e gostos aristocráticos, substituindo assim a democracia atual, calcada na ignorância e na pobreza, por uma aristocracia geral, humana. E como o poeta era um desdobramento natural do anarquista, suas insatisfações eram comumente transmitidas em seus poemas:

“Essa invisível causa, que eu procuro

nos meus tormentos de meditação,

inda é o mesmo problema ingrato e obscuro

Que atormenta homens bons desde Platão

 

Esse maldito sonho de ser puro

– Apurado na dor – é sonho vão:

E ira semeando dores no futuro…

Pobres sonhadores que virão!”

O falecido professor e filólogo Olmar Guterres da Silveira, membro da Academia Brasileira de Filologia, definia José Oiticica como um sujeito de semblante fechado, sem refinamentos elementares e de sobrecenho carregado. “Eis o exterior de um homem cujo brilho eterno desmentia a primeira impressão: culto, dedicado, agradável naquilo que fazia e suave no trato com os alunos”, assinalou. Oiticica faleceu em decorrência de infarto no Rio de Janeiro em 30 de junho de 1957, aos 74 anos. Após sua morte, o advogado e escritor Levi Carneiro o descreveu em matéria publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, como um homem de virtudes físicas, morais e intelectuais que não gostava muito de aparecer. Preferia refugiar-se dentro de si mesmo, dedicando-se aos estudos.

O anarquista e escritor foi qualificado como um homem que nada ambicionava a não ser o saber: “Nada receava, senão errar. (…) Erudito, cada vez mais refugiado no seu pensamento, não deserdava das ideias que afirmava, nem transigia com os interesses criados numa sociedade da qual se considerava parte”, publicou o Correio da Manhã, também do Rio de Janeiro, no dia 2 de julho de 1957. É atribuída a José Oiticica uma frase que parece referenciar criticamente tanto as desigualdades sociais quanto a relação da humanidade com os animais: “Quem vence um fraco, sempre sai vencido.”

Saiba Mais

José Rodrigues Leite e Oiticica nasceu em 22 de julho de 1882 em Oliveira, Minas Gerais. Era o quarto filho do senador e constituinte Francisco Leite e Oiticica.

Referências

Neves, Roberto. José Oiticica: Um anarquista exemplar e uma figura ímpar na história do Brasil – Rio de Janeiro (1970).

Oiticica, José. Ação Direta: meio século de pregação libertária. Introdução e notas de Roberto das Neves. Rio de Janeiro. Editora Germinal (1970).

Ventura, Tereza. Nem Barbárie Nem Civilização! São Paulo. Annablume (2006).

Omena, Maria Aparecida Munhoz. Anarquia nos sonetos de José Oiticica. Revista Litteris (2009).

Junior, Renato Luiz Lauris. José Oiticica: reflexões e vivências de um anarquista. Universidade Estadual Paulista (2009).

Camarina, Mario. Confissões de um Anarquista Emérito. Revista O Cruzeiro, 23/05/1953. Ano XXV. Nº 32.

Silveira, Olmar Guterres. Para um ideário do professor José Oiticica. Revista Idioma. Nº 20 (1998).

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Dias Fernandes: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter”

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O poeta e jornalista paraibano que lutou pelo vegetarianismo nas primeiras décadas do século 20

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Dias Fernandes: “Vegetarianismo quer dizer vida de acordo com a natureza”

Teria uns 45 anos. Frugal e vegetariano, nem fumava, nem bebia. Apresentava um aspecto juvenil de atleta, mantendo a forma através da ginástica sueca. Era alvo e corado, o cabelo esvoaçante, castanho claro. Algumas vezes ostentava petulante monóculo nos olhos azuis. Foi quem inaugurou andar sem gravata e sem chapéu. Com essas palavras, o intelectual Osias Gomes narra a chegada do jornalista, escritor e ativista vegetariano Carlos Dias Fernandes à redação do jornal A União, de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, em 1919. Gomes dizia que Fernandes era o maior poeta da Paraíba, inclusive considerava seu trabalho superior ao de Augusto dos Anjos.

E para além das preferências pessoais, de acordo com o jornalista paraibano Gonzaga Rodrigues, Fernandes fez do Jornal A União uma escola de jornalismo por onde passou quase toda a juventude intelectual das primeiras décadas do século 20. Era muito admirado e respeitado, e justamente porque destoava da maioria. Não se importava com casamento formal, tinha uma dieta avessa à das pessoas com quem convivia, gostava de atividades físicas, se vestia sem atender as normas sociais e possuía imensa bagagem cultural.

“Aos 15 anos, segundo testemunho de Castro Pinto, amigo de infância, Carlos Dias Fernandes confundia os professores na análise gramatical dos mais difíceis trechos de Os Lusíadas. Foi influenciado por Cruz e Sousa [de quem era muito amigo] e esteve ao lado de outras diversas personalidades jornalísticas e poéticas do cenário brasileiro. Atuou na imprensa de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Pará e da Paraíba. Sua obra é extensa e variada, abarcando romances, discursos, poesias, monografia e livro didático”, informa a pesquisadora Fabiana Sena.

Embora hoje não seja muito conhecido fora do meio literário paraibano, o satírico e prosaico Fernandes lançou importantes obras, como Solaus, de 1901; Palma de Acantos, de 1907; A Renegada, de 1908; O Cangaceiro, também de 1908; Mirian, de 1920 e A Vindicta, de 1931. No entanto, se suas qualidades literárias não fizeram dele um autor famoso, as suas perspectivas sobre o ideal civilizatório fizeram menos ainda.

Um homem à frente do seu tempo, ao longo de anos realizou conferências e palestras sobre vegetarianismo, defendendo que a abstenção do consumo de alimentos de origem animal era o único meio de assegurar o respeito aos animais em um contexto moral e ético. E para reafirmar sua posição, o autor apresentou argumentos envolvendo saúde e higiene, considerando-os imprescindíveis como ferramentas de convencimento.

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Fernandes foi diretor do Jornal A União, de João Pessoa (Acervo: A União)

Controverso, Carlos Dias Fernandes chamou muita atenção quando publicou na edição de 5 de junho de 1918 do Jornal A União uma matéria em que defendeu fervorosamente a prática da medicina natural, confrontando laboratórios farmacêuticos. Também realizou uma grande conferência sobre feminismo em 1924, justificando que os direitos e deveres das mulheres precisavam estar de acordo com suas aspirações. Muito antes de livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, de Carol J. Adams, lançado em 1990, o escritor já argumentava que as mulheres, de forma semelhante aos animais, eram subjugadas, privadas de liberdade.

Para Fernandes, a melhor forma de ampliar a aceitação do vegetarianismo seria incentivando o desenvolvimento intelectual das mulheres e preparando-as para ocuparem grande espaço na vida pública. Ele tinha fé que elas poderiam ser o novo norte de uma educação que mostrava às crianças, logo nos primeiros anos, a importância de uma alimentação isenta de ingredientes de origem animal.

Suas inclinações ideológicas tiveram pouca repercussão no Brasil, mas foram bem recebidas na Europa, tanto que Fernandes aparece com destaque na edição Nº 11 da revista portuguesa O Vegetariano, de 1917. Prolífico, o escritor publicou 38 livros, abordando inclusive temas como feminismo e direitos dos animais. Oscilando principalmente entre o naturalismo e o simbolismo, Dias Fernandes obteve prestígio quando lançou em 1936 o seu romance autobiográfico Fretana, inspirado pelo simbolismo francês.

Sua defesa do vegetarianismo era frequentemente publicada no jornal A União, onde ele tinha total liberdade sobre o que escrever. Exemplos são três matérias veiculadas em agosto de 1916 sob o título O Regime Vegetariano, um desdobramento do que Fernandes já defendia no livro Proteção aos Animais, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.

A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito, que fala dos benefícios do vegetarianismo. Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.

Segundo a pesquisadora Amanda Sousa Galvíncio, Fernandes reforçava seus argumentos sobre o assunto através de referências internacionais. Algumas delas foram os médicos Dujardin-Beaumetz, do Hôpital Cochin, na França; João Bentes Castel-Branco, autor do livro A Cultura da Vida, e Amilcar de Souza – diretor da revista O Vegetariano, além do biólogo Ernest Haeckel e do químico Eduard Buchner.

Porém, foi a própria literatura que conduziu Carlos Dias Fernandes ao vegetarianismo. Ele deixou de consumir alimentos de origem animal depois de ler Liev Tolstói, Lord Byron e Jean-Jacques Rousseau. Conforme Amanda Galvíncio, Fernandes citava com frequência pensadores como Sócrates, Hipócrates e Plutarco, além do Buda e Jesus Cristo, principalmente em suas palestras.

O que também reafirma a influência do vegetarianismo na vida e na obra do poeta são seus personagens que não raramente eram animais. No geral, a natureza sempre foi um tema recorrente em seus poemas e contos. Nascido em Mamanguape, na região da Mata Paraibana, em 20 de setembro de 1874, Carlos Dias Fernandes faleceu no Hospital da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1942.

Infelizmente, poucas pessoas compareceram ao seu enterro, um intrigante paradoxo na vida do homem que vivia rodeado de pessoas. Em seus últimos versos, jamais publicados, os animais ainda ocupavam posição de destaque. E apesar de esquecido pela literatura que tanto amou, uma de suas frases mais famosas, sobrevive ao tempo: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter.”

Briário e Centímano (um dos poemas mais conhecidos de Fernandes)

Solitário coqueiro miserando,

Que as tormentas não deixam sossegar!

E, de contínuo, as palmas agitando

Pareces um vesânico a imprecar.

 

Desgraçada palmeira, como e quando

Irão teus pobres dias acabar;

E com eles ou teu destino infando

De cativo da Terra ao pé do Mar?

 

Hemos conformes nossos tristes fados.

Tu, germente Briaréu dos vendavais

Eu, Centímano de cem mil cuidados.

 

Um retorcido aos ventos outonais

Outro com os seus anelos sossobrados…

Nem sei qual de nós dois braceja mais

Saiba Mais

Carlos Dias Fernandes assumiu a direção do jornal A União em 1913. O convite foi feito em 1912 por Castro Pinto. Em 1928, o governador João Pessoa o demitiu do cargo. Desapontado, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até falecer.

Referências

Galvíncio, Amanda S. Atuação Educacional de Carlos Dias Fernandes na Parahyba do Norte (1913-1925): jornalismo, literatura e conferências (2013).

Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).

Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.

Coutinho, Afrânio; Sousa, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo. Editora Global (1995).

O Vegetariano: mensário naturista ilustrado, Volume VIII, Nº 11 (1917).

Rodrigues, Gonzaga. Surgimento de A União. Disponível em http://auniao.pb.gov.br/nossa-historia/a-uniao-uma-viagem-no-tempo/leitura-contextual-do-surgimento-de-a-uniao.

Vegetarianismo. Imprensa Oficial. Parahyba (1916).

Santos, Idelette Fonseca. Antologia Literária da Paraíba. João Pessoa. Grafset (1993).

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Bernard Shaw: “Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos”

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Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra?

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Shaw: “A vida me foi oferecida na condição de comer bifes. Mas a morte é melhor que o canibalismo” (Foto: Reprodução)

Embora pouco conhecido no Brasil, o irlandês George Bernard Shaw foi um dos maiores nomes da literatura inglesa dos séculos 19 e 20. Com uma bibliografia idealista e humanitarista pautada na sátira heterodoxa e na singular beleza poética, o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1925 e um Oscar em 1938, pela adaptação de Pygmalion para o cinema. Um literato que vivia o que escrevia, Shaw também compartilhava suas inclinações e reflexões sobre o vegetarianismo.

 Pygmalion, Major Barbara, Arms and the Man, The Devil’s Disciple e Man and Superman são algumas das obras mais importantes do irlandês que em uma carta de 30 de dezembro de 1929 se mostrou enraivecido com a possibilidade de ser homenageado com um banquete. “Um jantar! Que horrível! Estão me usando como pretexto para matar todos aqueles pobres animais. Obrigado por nada. Agora se fosse um jejum solene de três dias, em que todos ficassem sem comer animais em minha honra, eu poderia pelo menos fingir que estou desinteressado. Mas não, sacrifícios de sangue não estão na minha lista”, reclamou.

O escritor se tornou vegetariano em 1881, e aparentemente por influência de uma palestra do ativista H.F. Lester e das obras do poeta britânico Percy Shelley que ele conheceu no Museu Britânico, em Londres. O que também teve peso sobre sua decisão foram os artigos do compositor alemão e ativista vegetariano Richard Wagner, de quem o irlandês era fã. “Minha situação é solene. A vida me foi oferecida na condição de comer bifes. Mas a morte é melhor que o canibalismo. Meu testamento contém instruções para o meu funeral, que não vai ser conduzido por um agente funerário, mas por bois, ovelhas e aves de capoeira, todos vestindo um lenço branco em homenagem ao homem que preferiu perecer do que comer seus semelhantes”, escreveu em seu diário.

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“Vivissecção é um mal social porque ela garante o avanço do conhecimento humano às custas do caráter humano” (Foto: Reprodução)

Quando viajava pela Inglaterra, Bernard Shaw sempre ficava satisfeito ao encontrar dúzias de restaurantes vegetarianos, como bem descritos em seus registros pessoais. No entanto, o mesmo não ocorria quando ele viajava para países como Alemanha e Itália. Com uma alimentação diversificada, o irlandês que adorava doces também consumia cerveja de gengibre, limonada, sopas, nozes, pães, mingaus, bolos, cogumelos, lentilhas, arroz, vegetais, frutas e feijões. Apesar da sua predileção pelo que não era muito saudável, Shaw viveu 94 anos. Do total, 66 foram dedicados ao vegetarianismo.

Ao longo da vida, o escritor lutou contra a vivissecção e a prática de “esportes” envolvendo animais. “Vivissecção é um mal social porque ela garante o avanço do conhecimento humano às custas do caráter humano. Atrocidades não deixam de ser atrocidades porque são realizadas em laboratórios e chamadas de pesquisas médicas. Animais são meus amigos…e eu não como meus amigos. Enquanto formos os túmulos vivos dos animais assassinados, como poderemos esperar uma condição ideal de vida nesta terra? Quando um homem mata um tigre, ele chama isso de esporte, mas quando um tigre mata uma pessoa dizem que isso é ferocidade”, registrou em seu diário.

E a consciência vegetariana do escritor irlandês sempre o acompanhou em tudo que ele fez. Um exemplo é um excerto de um diálogo da peça The Simpleton of the Unexpected Isles: A Vision of Judgement, lançada em 1934.

Uma jovem mulher: Você sabe, para mim esse é um tipo engraçado de almoço. Você começa com a sobremesa, nós começamos com as entradas. Eu suponho que esteja tudo certo, mas eu tenho comido tantas frutas, pães e outras coisas que não sinto falta de qualquer tipo de carne.

Padre – Nós não a serviremos com nenhuma carne. Nós não comemos carne.
 
Uma jovem mulher – Então como você mantém a sua força?
 
Padre – O que servimos já garante boa disposição.
Publicados entre 1878 e 1881, os primeiros quatro livros de Shaw – My Dear Dorothea, Immaturity, The Irrational Knot e Love Among the Artists, foram praticamente ignorados por editoras, críticos e leitores. Sua renda era tão insignificante que ele teve de contar com subsídios de sua mãe para continuar escrevendo. Ainda assim, manteve-se fiel ao que acreditava. No auge da carreira como dramaturgo, Shaw conheceu Mahatma Gandhi. Os dois, de origem completamente distintas, porém com o humanitarismo e o amor aos animais em comum, trocaram elogios e tornaram-se amigos, como num complemento entre o Ocidente e o Oriente.

Em 1924, durante entrevista ao biógrafo, professor e amigo Archibald Henderson, Shaw foi questionado sobre o motivo dele parecer tão jovem aos 68 anos. “Eu não! Acredito que pareço com alguém da minha idade. São as outras pessoas que parecem mais velhas do que realmente são. O que você pode esperar de quem come cadáveres e bebe espíritos?”, replicou o homem que se manteve vegetariano até o dia 2 de novembro de 1950, quando faleceu em decorrência de falhas renais após sofrer uma grave lesão ao cair da árvore que podava em seu jardim.

Saiba Mais

George Bernard Shaw nasceu em Dublin, na Irlanda, em 26 de julho de 1856 e faleceu no vilarejo de Ayot St Lawrence, na Inglaterra, em 2 de novembro de 1950.

Ele deixou a barba crescer na época em que se tornou vegetariano.

Referências

Henderson, Archibald. George Bernard Shaw: Man of the Century. N.Y. Appleton-Century-Crofts (1956).

Adams, Elsie Bonita. Bernard Shaw and the Aesthetes. Columbus: Ohio State University Press (1971).

Carr, Pat. Bernard Shaw. New York: Ungar (1976).

Martin, Stanley. George Bernard Shaw. The Order of Merit. London: Taurus (2007).

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Mark Twain, um porta-voz dos animais

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“De todas as criaturas, o homem é a mais detestável” (Foto: Reprodução)

“O fato de que o homem pode agir erradamente prova a sua inferioridade moral em relação a toda criatura que não pode”

Um dos mais proeminentes escritores dos Estados Unidos, o jornalista, romancista e humorista Mark Twain publicou dois livros que fazem parte da lista de obras essenciais da literatura mundial – The Adventures of Tom Sawyer, de 1876, e The Adventures of Huckleberry Finn, de 1885. No entanto, o que pouca gente sabe até hoje é que Twain foi um importante defensor dos direitos dos animais.

“De todas as criaturas, o homem é a mais detestável. De todas, somente ele possui malícia. Ele é o único que causa dor por esporte e com consciência de que isso causa dor. O fato de que o homem sabe distinguir o certo do errado prova a sua superioridade intelectual em relação às outras criaturas. Mas o fato de que ele pode agir erradamente prova a sua inferioridade moral em relação a toda criatura que não pode”, escreveu Twain em seu livro de ensaios What Is Man?, publicado em 1908.

Na obra, Twain apresenta um homem jovem e um idoso conversando sobre a natureza humana. Enquanto o mais velho, que oscila entre o pragmatismo e o pessimismo, define o ser humano como alguém que vive para si mesmo, o rapaz, como bom questionador, pede que ele se aprofunde em suas explanações, assim equilibrando a discussão. À época, o escritor decidiu lançar What Is Man? de forma anônima, até que se arrependeu de tê-lo publicado quando percebeu que a maioria dos leitores pouco se interessava pelo assunto.

Mesmo após sua morte, em 21 de abril de 1910, em Redding, Connecticut, em decorrência de um ataque cardíaco aos 74 anos, seu livro de ensaios ainda recebeu críticas inflexíveis. A maior delas talvez seja uma do New York Tribune que qualificou seu livro como uma obra antirreligiosa e sombria, mesmo ele chamando a atenção para questões de grande importância como o tratamento que os seres humanos dão aos animais.

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Book of Animals mostra que Twain se preocupava muito com o bem-estar animal (Foto: Reprodução)

Embora haja controvérsias sobre ele ter sido ou não vegetariano em algum momento de sua vida, já que há pesquisadores que afirmam que Mark Twain consumia alimentos de origem animal, ele demonstrava ser um sujeito de grande sensibilidade em relação aos animais. Um exemplo é a passagem abaixo, revelando grande remorso após atirar em um passarinho na infância:

“Eu atirei em um pássaro sentado em uma árvore alta, com a cabeça inclinada para trás e derramando uma grata canção de seu inocente coração. Ele tombou de seu galho e veio flutuando flácido e desamparado até cair aos meus pés. Sua música foi extinta assim como sua inocente vida. Eu não precisava ter feito isso com aquela criatura inofensiva. Eu a destruí desenfreadamente e senti tudo o que um assassino sente, de tristeza e remorso quando chega em casa e percebe o quanto desejaria desfazer o que estava feito, ter suas mãos e sua alma limpa outra vez, sem acusar sangue”, relata Mark Twain em texto raro que faz parte da obra póstuma Book of Animals.

O livro mostra que Twain se preocupava muito com o bem-estar animal. Inclusive, de acordo com informações biográficas, seu tom de voz suavizava ao falar de algum animal, ao contrário do que acontecia quando o assunto era a humanidade.

“Eu não estou interessado em saber se a vivissecção produz ou não resultados rentáveis para a raça humana. Saber que é um método rentável não reduz a minha hostilidade em relação a isso. As dores infligidas aos animais sem o consentimento deles é a base da minha oposição. Os vivisseccionistas têm em sua posse uma droga chamada curare que impede o animal de lutar ou chorar. É um recurso horrível sem qualquer efeito anestésico. Muito pelo contrário, intensifica a sensibilidade à dor. Incapaz de fazer qualquer sinal, o animal é mantido perfeitamente consciente enquanto seu sofrimento é duplicado”, argumenta Twain em carta enviada a London Anti-Vivisection Society em 26 de maio de 1899.

E a inspiração do escritor para se tornar um protetor dos animais veio de sua mãe, Jane Lampton Clemens, que mantinha a casa cheia de gatos, alguns com nomes curiosos como Blatherskite (Fanfarrão) e Belchazar. “Uma vez, ela repreendeu um homem na rua porque ele estava batendo no próprio cavalo”, revela a editora Shelley Fisher Fishkin no prefácio do livro.

Entre as suas histórias mais célebres, e que destaca com clareza a sua sensível perspectiva em relação aos animais, está Jim Smiley and His Jumping Frog que conta a história de um apostador que tem uma rara habilidade de cativar os animais.

“De 1899 a 1910, ele emprestou sua caneta para reforçar os esforços dos dois lados do Atlântico, sendo o porta-voz do movimento pelo bem-estar animal. O que ajudou muito foi o fato de que ele era o mais famoso escritor americano da época”, declara a pesquisadora Shelley Fishkin, PhD em estudos americanos pela Universidade Yale, em New Haven, Connecticut. Outro fato intrigante é que Mark Twain começou sua carreira literária da mesma forma que a iniciou – escrevendo sobre animais. Após o seu falecimento, sua família descobriu que ele havia deixado inúmeras obras inéditas, principalmente contos sobre distintas figuras animalescas capazes de povoar o ideário popular por dezenas de gerações.

Saiba Mais

Mark Twain nasceu em Flórida, Missouri, em 30 de outubro de 1835.

Ele dizia que o homem é o único animal que cora. Ou que precisa corar.

O Título What is Man? do seu livro de ensaios foi inspirado no Salmo 8.

Referências

Mark Twain’s Book of Animals. Shelley Fisher Fishkin. University of California Press (2011).

R. LeMaster, James Darrell Wilson, Christie Graves Hamric.The Mark Twain Encyclopedia. Taylor & Francis (1993).

Twain, Mark. The Celebrated Jumping Frog of Calaveras County. University of California Press (2011).

Twain, Mark. What Is Man? CreateSpace Independent Publishing Platform (2011).

Kirk, Connie Ann. Mark Twain – A Biography. Connecticut: Greenwood Printing (2004).

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Lord Byron e a abstinência da carne

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Desde que Eva comeu a maçã, a felicidade do homem depende em grande parte do jantar

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O que Byron mais repudiava eram os excessos que ele testemunhava nos jantares da burguesia britânica (Arte: Reprodução)

Um dos poetas mais controversos do Reino Unido, o satírico George Gordon Byron, ou simplesmente Lord Byron, entrou para a história da literatura no século 19, depois de escrever seus dois poemas mais importantes – os longos Don Juan e Childe Harold’s Pilgrimage (Peregrinação de Childe Harold). À época, muita gente acreditava que Byron era um escritor que usava a literatura simplesmente para transmitir o seu cínico desprezo pela humanidade. No entanto, o que ele mais repudiava eram os excessos que ele presenciava nos jantares da burguesia britânica.

Durante os banquetes, não foram poucos os momentos em que o mais antirromântico dos românticos se revoltou ao testemunhar tantos animais mortos sendo servidos à mesa para satisfazer a glutonaria dos abastados. Sem cerimônia, se queixava diante de todos, exacerbando sua cólera muito bem harmonizada através da ironia:

Toda a História humana atesta,

que a felicidade para o Homem – o insaciável pecador! –

Desde que Eva comeu a maçã, depende em grande parte do jantar,

poetizou o britânico em um excerto de Canto XVII, de Don Juan.

No entanto, Lord Byron nem sempre foi vegetariano. Inclusive houve um período em que ele chegou a discutir com Percy Shelley, marido da escritora Mary Shelley, sobre suas contrariedades em relação ao vegetarianismo. Porém, mais tarde admitiu em carta à sua mãe que estava determinado a se livrar completamente dos alimentos de origem animal, uma decisão que pode ter sido influenciada por Shelley.

Segundo o poeta britânico, se abster de consumir carne iria proporcionar-lhe percepções mais claras, um novo entendimento da vida e do mundo. Tomada a decisão, Byron, que até então era considerado tão volátil como ser humano quanto artista, adotou em certo período um estilo de vida surpreendentemente frugal, com uma alimentação baseada em água e bolachas caseiras, preparadas a seu gosto. Das bebidas alcoólicas, apenas o vinho branco ainda o acompanhava. Como alguém que tencionava se afastar cada vez mais das armadilhas do ego e das insídias da vida em sociedade, o poeta escreveu em Childe Harold’s Pilgrimage:

Existe prazer nas matas densas

Existe êxtase na costa deserta

Existe convivência sem que haja intromissão no mar profundo e música em seu ruído

Ao homem não amo pouco, porém muito a natureza

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Lord Byron: “Ao homem não amo pouco, porém muito a natureza” (Arte: Reprodução)

No dia 25 de junho de 1811, de acordo com o livro Life of Lord Byron: with his letters and journals, de Thomas Moore, o poeta informou que havia se tornado vegetariano há muito tempo, e que peixe ou qualquer outro tipo de carne estava fora de cogitação: “Por isso estou estocando batatas, verduras e bolachas. Não estou bebendo nem vinho. Com relação à minha saúde, estou me sentindo bem. Recentemente tive malária, mas me recuperei rapidamente.”

Em 1818, quando hospedou Percy e Mary Shelley em sua casa na Vila Diodati, nas imediações do Lago de Genebra, na Suíça, e justamente num período chuvoso em que Mary, com a ajuda do marido, escreveu o esboço de Frankenstein, a dieta de Lord Byron era baseada em uma fatia fina de pão com chá no café da manhã; vegetais e uma ou duas garrafas de água com gás no jantar; e uma xícara de chá verde sem açúcar na ceia. Ao sentir fome, ocasionalmente ele mastigava tabaco ou fumava charutos. “Nenhum outro regime funcionou tão bem para mim até hoje como o meu chá com bolachas, mesmo quando me alimento com moderação”, declarou o poeta em seu diário em 1813.

Um dos problemas que mais o incomodava antes de aderir ao vegetarianismo era o excruciante aumento de fluidos na sua corrente sanguínea, provocando inturgescência vascular. E tudo isso era agravado se Byron consumisse alimentos de origem animal. “O remédio para a sua pletora é simples – a abstinência”, consta em registro pessoal de 28 de janeiro de 1817.

Ele demonstrou através de seus poemas e cartas que por trás de sua abstinência sempre houve uma motivação moral. Além disso, Lord Byron amava os animais, tanto que jamais viajava sem levar pelo menos cinco gatos. Um deles, chamado Beppo, foi inclusive homenageado com um poema homônimo. Outro de seus amigos inseparáveis era Boastwain, um cão da raça newfoundland que o inspirou a conceber Epitaph to a Dog em 1808.

Quando seu companheiro canino faleceu, Byron erigiu um monumento para eternizar a imagem de Boastwain em verso. E seguindo suas recomendações, assim que o poeta faleceu com apenas 36 anos em 19 de abril de 1824, em decorrência de imperícia médica após contrair febre reumática na Guerra de Independência da Grécia, sua família atendeu ao mais expresso dos seus pedidos: “Que o monumento em minha homenagem não seja maior do que o de Boastwain.” E assim foi feito.

Observações do autor

Há pesquisadores que creem que o vegetarianismo de Lord Byron era estimulado simplesmente por distúrbios alimentares. Independente do que o levou a adotar o vegetarianismo, a verdade é que Byron, com seu perfil antiacademicista, até hoje é uma figura labiríntica da literatura inglesa, o que significa que por mais que estudem ou escrevam a seu respeito, sempre vai perseverar a controvérsia.

Em síntese, o texto acima tem o propósito de apresentar a outra face de George Gordon Byron, que ficou mais conhecido pela fama que fizeram dele do que pela sua própria história. Ainda hoje sua imagem quase sempre é associada a orgias, relacionamentos carnais com centenas de mulheres e muitos relatos envolvendo bebedeiras, além de outras extravagâncias consideradas profanas no contexto do cristianismo.

Curiosidade

Lord Byron foi vegetariano por muito tempo e o mais intrigante é que o poeta John Polidori escreveu uma obra prosaica chamada The Vampyre, inspirada em alguns dias que ele conviveu com Byron e o casal Shelley na Suíça. E mais tarde, a história de Polidori inspirou Bram Stoker a escrever Dracula. Muita gente crê que Drácula é um personagem baseado em pesquisas sobre o conde Vlad Tepes, mas na realidade o início de tudo foi a inspiração que veio através de Byron. Sendo assim, o Drácula foi inspirado em um vegetariano.

Saiba Mais

Lord Byron, nascido em Dover, no Reino Unido, em 22 de janeiro de 1788, faleceu em Missolonghi, quando lutava contra os turcos pela independência da Grécia.

Byron tinha um defeito no pé direito, por isso mancava quando andava.

O vegetarianismo do poeta também foi inspirado no filósofo e matemático grego Pitágoras.

Referências

Moore, Thomas. Life of Lord Byron: with his letters and journals (1854). Disponível em archive.org.

Byron, Lord. Childe Harold’s Pilgrimage. CreateSpace Independent Publishing Platform (2009).

Byron, Lord. Don Juan. CreateSpace Independent Publishing Platform (2009).

McGann, Jerome. Byron, George Gordon Noel (1788–1824). Oxford Dictionary of National Biography. Oxford University Press (2013).

MacCarthy, Fiona. Byron: Life and Legend. Farrar, Straus and Giroux; First edition (2002).

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Como o vegetarianismo entrou na vida de Franz Kafka

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“Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês”, disse aos peixes no aquário

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Franz Kafka teve de enfrentar o preconceito quando se tornou vegetariano (Foto: Reprodução)

Um dos escritores mais influentes do século 20, o tcheco Franz Kafka, famoso por clássicos intrapessoais como A Metamorfose, O Processo e Um Artista da Fome, é um exemplo de ser humano que, contrariando todas as expectativas, se tornou vegetariano ainda na juventude. Seu pai, Hermann Kafka, vinha de uma linhagem de açougueiros que comercializavam carnes kosher. E foi justamente por causa dessa herança cultural que em 1910 ele ficou encolerizado quando soube que o filho não se alimentaria mais de animais.

Um dia, depois de se tornar vegetariano estrito, Kafka passeava em Berlim acompanhado da namorada do seu melhor amigo – Max Brod. Ele observou alguns peixes em um aquário e disse: “Agora posso olhar para vocês em paz. Eu não como mais vocês.” Declarações como essa podem ser encontradas na biografia que Brod escreveu sobre o amigo e publicou em 1937, baseando-se em cartas e diários.

O escritor tcheco comparava os vegetarianos aos primeiros cristãos, destacando que eles também eram perseguidos e insultados na sala de jantar. Apesar dos infortúnios, ele anotou em seu diário em dezembro de 1912 que não poderia estar mais satisfeito com a sua digestão depois de um jantar vegetariano. Tudo indica que Kafka conheceu o vegetarianismo por meio do seu tio e médico Siegfried Löwy.

Inspirado no livro Mein System, do atleta vegetariano dinamarquês Jorge Peder Müller, que ministrou uma palestra em Praga em 1906, ele adotou outros hábitos saudáveis, como a prática de atividades físicas. Também aprendeu a mastigar corretamente, seguindo os ensinamentos do especialista em alimentação saudável Horace Fletcher, conhecido como “O Grande Mastigador”.

De acordo com Jan Stastny, que ministrou a palestra “Franz Kafka – Vegetarian Activist” no Congresso da União Vegetariana Internacional em Dresden, na Alemanha, em 2008, quem também ajudou Kafka na transição foi o alemão Moriz Schnitzer, da União Vegetariana Internacional, que recomendou que ele seguisse uma dieta vegetariana, tomasse ar fresco, dormisse com a janela aberta e trabalhasse com jardinagem nas horas vagas. Kafka seguiu todas as sugestões. Sempre que terminava o seu expediente como advogado, ele atuava como ajudante de jardineiro, e sem cobrar nada em troca.

Apesar de não existir nenhuma prova de que ele era um membro da União Vegetariana Internacional, o escritor aparece na edição de junho de 1911 da revista alemã Reformblatt como um doador de uma campanha antivivissecção. “Seis meses depois, o vegetarianismo, aliado aos exercícios físicos, não apenas curou o meu sistema digestivo como permitiu que eu não tivesse mais vergonha do meu corpo ao frequentar a piscina pública”, escreveu em seu diário.

Na comemoração de ano-novo de 1911, ele jantou schwarzwurzeln, um tipo de raiz comestível conhecida no Brasil como escorcioneira, com espinafre e 250 ml de suco de frutas. Era hábito comum de Kafka falar sobre a sua alimentação cotidiana em cartas enviadas a amigos e familiares. “Estou comendo repolho recheado, sopa de frutas e bebendo suco de oxicoco”, contou à sua irmã Elli em 1911. Sua empolgação aumentava a cada dia. Em 1912, ele revelou em seu diário que gostaria de fundar uma organização de cura pela natureza.

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A maior resistência ao novo estilo de vida de Kafka veio do seu pai (Foto: Reprodução)

Quando entrava de férias ou precisava se internar para tratamento médico em algum sanatório, Kafka sempre escolhia lugares com opções para vegetarianos estritos. E por isso teve muitos conflitos com a família, principalmente com o pai. O novo estilo de vida incomodava tanto Hermann que por meses ele se negou a olhar para o filho durante o jantar.

Sobre o vegetarianismo, não há dúvidas de que a escolha do jovem Franz foi motivada pelo seu frágil estado de saúde. Mesmo assim, Kafka daria grandes demonstrações de que a sua ética também tinha peso sobre a sua decisão. A maior prova disso é que frequentemente ele escrevia sobre a natureza e o estado de consciência dos animais – cães, chacais, ratos, cavalos, bois e toupeiras, entre outros.

Um exemplo é o conto Ein Bericht für eine Akademie (Um Relatório para a Academia), de 1917, que conta a história de um macaco que aprende a se comportar como um ser humano para fugir do cativeiro. Nesse ínterim, o animal escreve para a academia sobre a sua transformação.

“Quando em Hamburgo fui entregue ao primeiro adestrador, reconheci logo as duas possibilidades que me estavam abertas: jardim zoológico ou teatro de variedades. Não hesitei. Disse a mim mesmo: empregue toda a energia para ir ao teatro de variedades; essa é a saída. O jardim zoológico é apenas uma nova jaula, se você for para ele, estará perdido”, narra em Ein Bericht für eine Akademie.

Entre as mais surpreendentes experiências vividas por Kafka está uma registrada em outubro de 1918, quando ele contraiu a nefasta gripe espanhola, epidemia que dizimou aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo todo. Enquanto jovens saudáveis de sua idade morriam às centenas, Kafka conseguiu se recuperar rapidamente e atribuiu a vitória ao seu estilo de vida vegetariano.

“O açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate, e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim, tudo isso para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair, já fazia silêncio há muito tempo. Como bêbados em tomo de um barril de vinho, eles estavam deitados e mortos de cansaço ao redor dos restos do boi”, registrou no conto Ein altes Blatt (Uma Folha Antiga).

Outra característica intrigante de Kafka é que em muitas de suas histórias seus personagens comem carne crua e ensanguentada, talvez um recurso usado pelo autor para avultar a barbárie que envolve o consumo de carne.  Idealista, o escritor tcheco confidenciou em um de seus diários o desejo de se mudar para a então Palestina e abrir com sua namorada Dora um restaurante vegetariano em Tel Aviv. “Eu trabalharia como garçom. Gostaria de servir as pessoas”, informou.

Perto do fim da vida, e sofrendo em decorrência de uma tuberculose laríngea que o acompanhava desde 1917, ele foi pressionado a voltar a consumir carne. Desesperado e sentindo-se impotente, fez um acordo com a irmã Ottla, pedindo que ela se tornasse vegetariana para compensar sua iminente falha jamais concretizada. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, argumentou ele. A irmã manteve a promessa por toda a sua vida, até que foi executada em um campo de concentração nazista em 1943.

Saiba Mais

Frank Kafka nasceu em Praga em 3 de julho de 1883 e faleceu em 3 de junho de 1924.

Seu pai também possuía uma loja de presentes para homens e mulheres em Praga.

Referências

Brod, Max. Franz Kafka, eine Biographie. Berlin S. Fischer Verlag (1937).

Kafka, Franz. Ein Landarzt – Ein Bericht für eine Akademie/Ein altes Blatt. Stroemfeld Verlag. (1920).

União Vegetariana Internacional. Stastny, Jan. Franz Kafka – Vegetarian Activist (2008).

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Tolstói: “O vegetarianismo é um sinal da aspiração séria e sincera da humanidade”

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Sobre a carne como alimento, o escritor russo Liev Tolstói a desqualificava sob qualquer aspecto

Leo Tolstoy (1828-1910), Russian author and philosopher, 1926. As a fiction writer, Tolstoy is widely regarded as one of the greatest of all novelists, particularly noted for his masterpieces War and Peace and Anna Karenina. As a moral philosopher Tolstoy was notable for his ideas on non-violent resistance through works such as The Kingdom of God is Within You, which in turn influenced such twentieth-century figures as Gandhi and Martin Luther King, Jr. From An Outline of Christianity, The Story of Our Civilisation, volume 4: Christianity and Modern Thought, edited by RG Parsons and AS Peake, published by the Waverley Book Club (London, 1926). (Photo by The Print Collector/Print Collector/Getty Images)

Tolstói: “Não se pode duvidar que o vegetarianismo tem progredido dessa forma” (Foto: The Print Collector/Print Collector/Getty)

Um dos maiores nomes da literatura mundial, Liev Tolstói, além de romancista, filósofo, humanitarista e pacifista, também chamou a atenção e conquistou muito respeito nos séculos 19 e 20 por ser um grande defensor do vegetarianismo. Levando uma vida frugal, ele se alimentava basicamente de pães, frutas e vegetais.

Sobre a carne como alimento, Tolstói a desqualificava sob qualquer aspecto, e não apenas ponderando sobre o sofrimento dos animais, mas também a supressão da capacidade espiritual humana – que deveria se voltar para a simpatia e compaixão pelos seres vivos. “Ao violar esses sentimentos, o ser humano abre as portas para a crueldade. Mas afirmando que Deus ordenou o abate dos animais, o que acima de tudo é tão somente um hábito, as pessoas perdem inteiramente o seu sentimento natural”, escreveu Tolstói em ensaio publicado no livro Recollections and Essays, lançado em 1937, 27 anos após sua morte.

Na obra, há diversos textos raros em que ele aborda suas experiências com o vegetarianismo. E se alguns deles se voltam para a introspecção e interiorização, outros consistem em retratos da comezinha hipocrisia. Exemplos são os relatos sobre o que ele testemunhava tanto nas áreas urbanas quanto rurais da Rússia tsarista.

Segundo o escritor russo, o ser humano, por ter hábitos onívoros, ignora o fato de que o primeiro elemento da vida moral é a abstinência. “Não faz muito tempo que falei com um soldado aposentado. Ele ficou surpreso quando eu disse que é uma pena matar animais e reduzi-los à comida. Justificou que era a ordem natural das coisas. Falei que sentia mais pena ainda quando os animais surgiam silenciosos, como gado manso. ‘Eles vêm, coitados, confiando em ti. É muito lamentável.’ Até o final da nossa conversa, ele já estava concordando comigo”, narra.

Tolstói também relata uma experiência que teve quando decidiu visitar um matadouro em Tula, ao sul de Moscou. Naquele dia, ele convidou um amigo para acompanhá-lo. A proposta foi declinada e o homem alegou que não suportaria ver o abate dos animais. “Vale a pena observar que ele era também um desportista que caçava pássaros”, enfatiza o escritor, desvelando a contradição especista do amigo.

De acordo com o russo, em qualquer lugar, sempre há uma senhora refinada devorando a carcaça de um animal, crente de que está agindo corretamente. Ela é tão frágil que diz não ter condições de se alimentar somente de vegetais. Também é tão sensível que jamais conseguiria causar dor a si mesma ou a qualquer outro animal. Na realidade, seria incapaz até de vê-lo sofrer. E ela é fraca justamente porque foi ensinada a se alimentar daquilo que não é natural ao homem. E, ainda assim, ela não consegue evitar de causar dor aos animais porque prefere continuar comendo eles.

Para Tolstói, se alimentar de animais é uma injustiça e uma imoralidade que tem sido aceita pela humanidade durante toda a vida consciente dos seres humanos. Apesar disso, há séculos cresce o número de pessoas que não reconhecem o ato de comer carne como sendo certo. No século 19, o escritor russo percebeu que a humanidade já passava por um progresso moral lento, mas ininterrupto.

“Não se pode duvidar que o vegetarianismo tem progredido dessa forma. O progresso do movimento deve provocar especial alegria naqueles que se esforçam por trazer o verdadeiro reino de Deus à Terra. O vegetarianismo é um sinal da aspiração séria e sincera da humanidade em direção à perfeição moral”, defende Liev Tolstói em Recollections and Essays. Sua contribuição para o vegetarianismo foi tão significativa que desde a década de 1950 seus ensaios são usados em congressos realizados no mundo todo.

Referências

Tolstoy, Leo. Recollections and Essays. Nabu Press (2011).

IVU World Vegetarian Congress, Souvenir Book (1957).

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As trapalhadas de Alexandre Dumas

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Célebre autor de Os Três Mosqueteiros viveu aventuras dignas de um mosqueteiro trapalhão

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Depois de discutir com um soldado durante uma partida de bilhar, Dumas o desafiou para um duelo (Foto: Nadar)

Famoso por obras como Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, o escritor francês Alexandre Dumas, o Père (Pai), viveu aventuras dignas de um mosqueteiro trapalhão. Uma das mais célebres transcorreu quando ele tinha 23 anos.

Depois de discutir com um soldado durante uma partida de bilhar, Dumas o desafiou para um duelo, confiante de que o impasse seria resolvido com pistolas. Porém, para sua surpresa, ficou decidido que eles deveriam duelar com espadas. Mesmo preocupado, ele compareceu ao compromisso pontualmente. Uma hora mais tarde, seu oponente ainda não havia chegado. Então o escritor soube que o soldado continuava dormindo, e assim o desafio foi adiado.

No dia seguinte, 5 de janeiro de 1825, apesar do frio, Dumas aceitou retirar a capa e aproveitou para remover a parte de cima do seu traje. No mesmo instante, sua calça foi arriada e os espectadores foram às gargalhadas. Com ar de irritado e confuso, ele deu o passo inicial do duelo, fazendo seu oponente saltar para trás, tropeçar em uma raiz e dar uma cambalhota na neve.

Sentindo-se enganado perante a evasiva, Alexandre Dumas esbravejou: “Eu mal o toquei!” O combate foi encerrado após o oponente argumentar que ficou chocado ao perceber como a lâmina da espada de Dumas estava fria. “São histórias que ele definiu como o início de sua carreira como um romântico. No entanto, é preciso levar em conta que suas memórias são tão confiáveis quanto suas obras em que mistura história e ficção. Mesmo assim não deixam de ser relatos cômicos e gloriosos”, declara o escritor canadense e professor de literatura Steve King.

Entre outras aventuras protagonizadas por Alexandre Dumas está uma em que o seu oponente não pôde comparecer ao duelo porque ficou resfriado depois de atravessar o canal a nado. E o terceiro desafio também não aconteceu porque o desafiante perdeu dois dedos em um combate anterior. Mais tarde, prevendo que uma das armas poderia falhar em um duelo de pistolas, Dumas e um político com quem se desentendeu em uma discussão concordaram com um novo tipo de peleja.

Arremessaram uma moeda e quem perdesse deveria atirar em si mesmo. Derrotado, o escritor francês foi até um quarto e fechou a porta. Quando o silêncio já deixava o público apreensivo, ouviram um disparo e correram até o quarto. Assim que a porta se abriu, Dumas apareceu: “Cavalheiros, o mais lamentável aconteceu. Eu perdi!”

Ao longo da carreira, Alexandre Dumas escreveu 250 livros com a ajuda de 73 assistentes. E muitas de suas obras trazem passagens de outros autores que jamais foram citados. Porém, como à época não havia nenhum impedimento legal, seus leitores não se importavam ao saber a verdade. E mesmo em outras circunstâncias ainda o defenderiam.

“Ele era alguém que levava sua espada e seu talento com um sorriso”, enfatiza King, acrescentando que no capítulo um de Os Três Mosqueteiros os leitores estão diante de um Dom Quixote de 18 anos, vestido com um gibão de lã. Assim como o ingenioso hidalgo, D’artagnan também foi humilhado. Derrotado até pelos camponeses das grandes cidades, o jovem viu a espada de seu pai sendo quebrada ao meio. Depois zombaram dizendo que ele deveria montar seu cavalo engraçado e voltar donde veio.

Saiba Mais

Alexandre Dumas nasceu em 24 de julho de 1802 em Villers-Cotterêts, no departamento de Aisne, e faleceu aos 68 anos em 5 de dezembro de 1870 em Puys, no departamento de Seine-Maritime.

Referências

http://www.todayinliterature.com/

http://www.dumaspere.com/pages/vie/biographie.html

Ross, Michael. Alexandre Dumas. Newton Abbot, London, North Pomfret (Vt): David & Charles (1981).

Gorman, Herbert. The Incredible Marquis, Alexandre Dumas. New York: Farrar & Rinehart (1929).

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George Orwell, a redenção de um artista

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As obras de Orwell revelam como ele se sentia em relação ao violento sistema em que estava inserido

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Richard Blair ficou decepcionado quando soube que o filho queria se tornar um escritor (Foto: Reprodução)

Richard Walmesley Blair passou 35 anos trabalhando no Departamento de Ópio do Serviço Civil Indiano, uma agência do governo britânico que abalizava a produção de papoula no país. Mesmo assim, Eric Arthur Blair, que cresceu na Inglaterra sem a presença do pai, se dispôs a seguir um destino semelhante, ou seja, tornar-se um filho fiel do Império Britânico.

Aos 19 anos, Blair foi aprovado em sétimo lugar, de um total de 27 classificados, para ingressar como assistente da superintendência da Polícia Imperial Indiana na Birmânia. De acordo com o escritor e professor de literatura canadense, Steve King, o que Eric testemunhou mudou o rumo de sua vida.

“Suas novelas e ensaios revelariam como ele se sentia sobre o sistema de espancamentos, enforcamentos, vigilância e escravidão social em que estava inserido. Blair escreveu mais tarde que independente de tempo e treinamento, ele nunca conseguiu se sentir indiferente à face humana. Por isso, renunciou à função em 1927, depois de cinco anos de ‘trabalho sujo’”, explica.

Richard recebeu a decisão do filho com decepção, principalmente quando soube que seu desejo era tornar-se escritor. Eric iniciou sua jornada para alcançar um tipo peculiar de redenção por meio da literatura. Estava empenhado em  se dedicar a um tipo peculiar de redenção. Como forma de compensação por tudo que viu e viveu na Birmânia, ele se colocou entre os oprimidos para tentar entender como era ser um deles.

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Orwell usou a literatura para combater o totalitarismo (Foto: Arquivo da BBC)

Visitou minas e estaleiros, viveu com andarilhos e vagabundos, aceitou os piores trabalhos e passou fome. São experiências que deram origem ao seu livro de estreia Down and Out in Paris and London, de 1933, lançado no Brasil como Na Pior em Paris e Londres. O jovem autor não gostou muito da obra e antes de publicá-la decidiu adotar o nome George Orwell. Pensou também em outros nomes como P.S. Burton, identidade que adotou quando virou andarilho, Kenneth Miles e H. Lewis Allways.

Os 15 anos seguintes da vida do escritor foram dedicados a combater o totalitarismo e defender através de suas obras a forma mais genuína de socialismo. Quando se juntou à causa republicana na Guerra Civil Espanhola, eles queriam que ele contribuísse escrevendo, fazendo propaganda, porém o seu desejo era lutar. E foi o que conseguiu. A experiência o inspirou a escrever o livro Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha), de 1938.

Como voluntário, George Orwell participou de inúmeras incursões, ficando conhecido pela imprudência nos campos de batalha. E o que fazia dele um alvo fácil era a inexperiência e altura – ele tinha mais de 1,90m. Na primavera de 1937, Orwell quase morreu após levar um tiro na garganta.

“Durante a Segunda Guerra Mundial, como ele sempre sofreu com doenças brônquicas e pré-tuberculosas, teve de se contentar em atuar como guarda territorial, dando palestras sobre combate e cuidando de suprimentos de bombas caseiras que ele resguardou na sua própria casa, perto da lareira”, declara King.

Em 1940, o escritor pressionou o governo britânico para custear exibições do filme O Grande Ditador, de Charlie Chaplin, por toda a Inglaterra. Também fez uma campanha para distribuir armas, inclusive granadas, a cada morador, com a intenção de criar um exército civil capaz de se defender se necessário. “Um rifle pendurado na parede de um operário ou de um camponês é um símbolo da democracia”, escreveu George Orwell.

Primeira edição do livro 1984, lançado em 1949 (Foto: Reprodução)

Primeira edição do livro 1984, lançado em 1949 (Foto: Reprodução)

Depois dos 40 anos, Orwell percebeu que não viveria muito. A tuberculose piorou e ele continuou evitando repouso. Contrariando todas as recomendações, se mudou para a remota Ilha de Jura, na costa oeste da Escócia. Sua casa não tinha eletricidade e se situava a 12 quilômetros de uma estrada que só poderia ser alcançada a pé. E a loja mais próxima ficava a 40 quilômetros. Para piorar, sua esposa, Eileen O’Shaughnessy, faleceu repentinamente em 1945. Então o escritor teve de encarar a realidade de criar sozinho o filho Richard, um bebê que adotaram em junho de 1944.

Quando a guerra acabou, em 2 de setembro de 1945, ele começou a criar a sua novela mais famosa – 1984, até hoje considerada um dos maiores manifestos literários contra o totalitarismo. “Seus heróis vieram das fileiras das classes operárias porque ele acreditava que os horrores gerados pela polícia do pensamento, novilíngua e o ritual Dois Minutos de Ódio deveriam ser combatidos pelos Winston Smith do mundo, não pelos Winston Churchill”, enfatiza King.

Em 1946, Orwell tentou encontrar uma companheira que pudesse ajudá-lo a criar Richard, mas suas três propostas foram declinadas, até porque ninguém queria morar na isolada Ilha de Jura. Três anos depois, o escritor foi surpreendido por Sonia Brownell que aceitou se casar com ele. E ela admitiu que foi conquistada por uma frase: “Procuro uma mulher para ser viúva de um homem de letras.”

O romance distópico 1984 foi concluído em dezembro de 1948 e logo o estado de saúde de george Orwell piorou, tanto que acabou internado no The Costwold Sanatorium, em Gloucesterhsire, no sudoeste da Inglaterra. Quando seu editor o visitou em 21 de janeiro de 1949, eles decidiram que seria melhor mudar o título da obra, então chamada The Last Man in Europe (O Último Homem na Europa).

O New York Times Book Review definiu a receptividade do livro como esmagadoramente admirável, com gritos de horror que superaram os aplausos. Muitos viram o título como ameaçador, mas ele só foi escolhido porque 84 é o inverso de 48, ano em que Orwell terminou de escrevê-lo. Ele faleceu em 21 de janeiro de 1950, exatamente um ano depois da escolha definitiva do título.

Saiba Mais

George Orwell nasceu em 25 de junho de 1903 em Motihari, na Índia, e faleceu em 21 de janeiro de 1950, no University College Hospital, em Londres, na Inglaterra. Ele tinha apenas 46 anos.

Obras mais importantes de George Orwell

1984 (1949), Animal Farm (A Revolução dos Bichos – 1945), The Road to Wigan Pier (O Caminho para Wigan Pier – 1937), Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha – 1938) e Down and Out in Paris and London (Na Pior em Paris e Londres – 1933).

Passagens do livro 1984, lançado em 1949 (Página 63)

Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal senão o único motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava da Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos.

Winston nada tinha que ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os prêmios eram imaginários. Na realidade, só eram pagas pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre uma parte e outra da Oceania, não era difícil arranjar isso.

Mas se esperança havia, estava nas proles. Era preciso agarrar-se a isso com unhas e dentes. Quando se traduzia o pensamento em palavras, parecia razoável: mas quando se considerava os homens que passavam pela calçada, a ideia se transformava em ato de fé.

Referências

http://www.todayinliterature.com/

Taylor, D. J. (2003). Orwell: The Life. Henry Holt and Company.

Ingle, Stephen (1993). George Orwell: a political life. Manchester, England: Manchester University Press.

Crick, Bernard R. (1980).George Orwell: A Life. Boston: Little, Brown and Company.

“The Orwell Prize | Life and Work—Exclusive Access to the Orwell Archive”Pesquisa realizada em 29 de maio de 2016.