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Será que aos olhos dos animais não somos vistos como assassinos?
Vamos esquecer por um instante o conceito legal, tradicional e legitimado socialmente de certo e errado e suas implicações ulteriores. Será que o famigerado Assassino do Zodíaco poderia ser considerado um executor com uma proposta de morticínio que segue os princípios do “abate humanitário”? É inegável que ele era um psicopata que usurpava vidas, e por isso merecia ser responsabilizado por seus atos. Mas, por pior que fossem suas ações, me parece, valendo-me me de sua trajetória, que ele não deixava de ter um código de ética.
Afinal, ele matava suas vítimas com tiros cirúrgicos, com precisão letal. Suas ações, independente de motivação, não deixavam rastros de passionalidade. Como um criminoso organizado, era como se estivesse simplesmente cumprindo um trabalho; tanto que sequer tocava suas vítimas. Ele não as torturava; não tinha qualquer interesse ordinário ou especial pelo sofrimento, mas apenas pelas consequências daquilo que não existiria sem o sofrimento pessoal ou transferível em algum nível. Ou seja, a morte.
O contato direto, a fisicalidade, não o interessava. O seu ritual se resumia ao gatilho. O prazer, se existiu, estava no disparo, e o seu clímax no desvanecimento da existência. E foi isso que impediu que ele jamais fosse capturado. Não era previsível nem imprevisível. Ostensivo e privativo, eu diria. Usava sempre o mesmo uniforme e quase sempre a mesma arma. Seu modus operandi e sua assinatura eram unos e indefectíveis na sua expressão e categoria nos anos 1968 e 1969. Seu método empedernido, mesmo que não motivado economicamente, já que não lucrava para matar, me levou a uma associação, concordem ou não, entre a sua pistola e a captive bolt pistol (no Brasil, conhecida como pistola de atordoamento ou de abate), usada nos matadouros dos países de “Primeiro Mundo” desde as primeiras décadas do século 20.
Me refiro à pistola empunhada pelos magarefes para disparar com brutal naturalidade um dardo que penetra o crânio de um animal não humano e atinge seu cérebro na tentativa de insensibilizá-lo no processo de abate. Se fizéssemos isso com seres humanos, independente de motivação, mesmo que em um caso de reparação ou de “lei de talião”, não seríamos considerados vis, túrbidos, refeces, monstros? Jeffrey Dahmer lobotomizava suas vítimas humanas. Será que o que fazemos com os animais antes de matá-los nas linhas de execução é tão diferente da lobotomização? Já que o disparo da captive bolt pistol rouba-lhes a própria identidade, tornando-os inúteis na sua própria essência, assim como os lobotomizados.
Acredito que há funcionários de matadouros que realmente não sentem prazer em tirar a vida de um animal não humano, já que muitos cumprem esse trabalho por alegada necessidade. Porém, será que isso não impacta em suas vidas? Em seu estado emocional e psicológico? Imagine ter um cotidiano pautado em violentar e matar animais. É preciso crer que está diante de objetos, não de vidas. É imprescindível desligar a compaixão – permitir-se uma dissociação. Do contrário, não serve para o trabalho.
Não que trabalhar em um matadouro transforme essas pessoas em sujeitos terríveis, já que são seres humanos imersos em um universo de legitimação de mortes de outras espécies. Afinal, eles seguem o protocolo da indústria e não ousam questioná-la por diversos fatores – pessoais ou não. A atividade se resume a ser pago, em muitos casos mal pago, para matar sob o respaldo legal. Há uma “roupagem” de atividade comum, impedindo que aquele que dispara uma arma contra a cabeça de um animal reconheça isso como errado, cruel, e menos ainda como assassinato. Claro, porque a humanidade diz que está tudo bem em matar, desde que não seja um ser humano; e desde que aquela morte gere algum produto ou bem de consumo.
O mundo ao seu redor diz que o que ele faz é certo numa proporção muito maior do que a condenatória, já que o valor da vida animal não humana é proporcional ao peso da carcaça no contexto comercial. Porém, há um aspecto tétrico a se considerar. Essa realidade pode brutalizar o ser humano e transformá-lo, se assim o permitir. E se o executor desenvolve prazer pelo que faz, mesmo que isso signifique a morte de ser de outra espécie, ele corre o risco de definitivamente abrir mão de uma das qualidades mais importantes do ser humano, que é a empatia. Isso realmente não é impossível. Vídeos amadores pululam no YouTube mostrando que como os animais não partilham do mesmo código comunicativo que nós, há sempre aqueles que agem, de fato, como violentadores, psicopatas, serial killers, rampage killers ou mass murderers em relação aos animais de outras espécies.
O contato naturalizado com a violência pode asselvajar o ser humano, principalmente aqueles que já têm predisposição à ferocidade; ou a transferir frustrações aos vulneráveis com quem convive – com destaque para aqueles que não podem reclamar do próprio sofrimento por não terem uma voz que inspira respeito e consideração. Quem não se recorda do clássico do cinema de terror intitulado “Texas Chainsaw Massacre?” Nas partes mais pesadas do filme, estamos diante de um matadouro, e tudo que acontece lá dentro choca facilmente os seres humanos porque as vítimas são humanas. Por outro lado, ignoramos que aquela é a realidade ordinária não humana. Desconsidere a figura do serial killer e substitua os personagens humanos do filme por animais e você terá uma representação trivial do cotidiano.
Pessoas penduradas em grilhões, e sendo golpeadas violentamente, assim como fazemos com porcos; e, claro, tendo partes de seu corpo removidas. O código de comunicação do assassino também parece ser outro, e a sua ausência de empatia faz refletir sobre a empatia que negamos aos seres de outras espécies. É como se não ouvíssemos os animais, assim como os assassinos em série não ouvissem os seres humanos – como se enxergassem a si mesmos como uma espécie além – dotada do direito de nos exterminar. Analise alguns discursos de serial killers e você verá que não é difícil perceber que vários deles se referem às suas vítimas como se fossem bovinos e suínos.
Claro que a minha intenção não é chamar de assassino quem sobrevive matando animais, mas o ato em si é análogo a um assassinato quando subtraímos vidas que não nos pertencem, independente de finalidade. Mas o mundo e a nossa realidade social, cultural e econômica nos dizem diariamente que esse assassinato é justo, necessário e legal, porque tem o aval da maior parte da população e do Estado. E a morte de animais, além de cruel e evidentemente desnecessária, já que é possível viver muito bem sem matar outras espécies para consumo, pode preparar alguém para ações que, enfim, despertem a atenção da população, deixando-a em choque, como é o caso dos crimes cometidos pelo Zodiac Killer, citado no início do texto.
Além desse, recordo-me do caso de Jeremiah Burroughs, funcionário de um matadouro, que enfastiado de executar animais dóceis, acabou por matar mais de 70 pessoas. Há quem diga que o meio e a naturalização da violência contra não humanos o levou a matar pessoas. Não posso afirmar, mas não duvido, e creio que ele não seja o único. Ademais, há inúmeros assassinos e serial killers que adotaram em suas execuções métodos comuns em matadouros e na indústria da carne. Outros exemplos são Jeffrey Dahmer, Robert Pickton, os Bloody Benders, Ottis Toole, Albert Fish, Ed Gein, Béla Kiss, Richard Trenton Chase, Joachim Kroll, Armin Meiwes, Andrei Chikatilo, Arthur Shawcross, Issei Sagawa e Robert Maudsley, entre outros.
Será que aos olhos dos animais não humanos que seguem matadouro adentro não existe a possibilidade de que sejamos vistos como serial killers, mass murderers? A verdade que muitos se negam a ver é que assim como vítimas humanas de assassinatos não têm qualquer anseio em morrer, os animais não humanos nos matadouros partilham do mesmo interesse. Uma prova disso? Antes de executar um animal, dê a ele, ou peça que deem a ele, a oportunidade de fugir. Então você terá sua resposta.
A falta de sentido da caça
O que leva uma pessoa a viajar milhares de quilômetros para matar um animal em seu habitat? Como um sujeito desse pode sentir-se forte ou feliz por assassinar um ser vivo que nunca representou ameaça à sua vida? É um dos maiores exemplos de soberba e estupidez. Qualquer dia, quero escrever sobre o perfil de caçadores, porque ninguém me tira da cabeça que tem algo de errado com essas pessoas, e quero saber exatamente o que é.
“Me senti como se eu tivesse cometido um assassinato”
O britânico William Harris, um dos caçadores mais famosos de seu tempo, conta que durante os anos de 1836 e 1837 viajou para longe no coração da África com a mera intenção de perseguir animais, algo que ele definia como uma de suas paixões. Em uma passagem de sua biografia, publicada em Bombaim em 1838, ele descreve como atirou em seu primeiro elefante, uma fêmea.
Na manhã seguinte, indo procurar seu novo alvo, ele descobriu que todos os elefantes tinham fugido da localidade, exceto um jovem elefante que passou a noite toda ao lado de sua mãe morta. Vendo os caçadores, o animal não sentiu medo e, com os mais claros e vivos sinais de tristeza desconsolada, caminhou até eles. Então moveu seu minúsculo tronco como se suplicasse por ajuda. Sobre o episódio, registrou Harris em sua biografia: “Eu estava cheio do mais verdadeiro remorso pelo que tinha feito e me senti como se eu tivesse cometido um assassinato.”
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Roberto, um homem de bem
Roberto teve um irmão que foi assaltado na BR-376 no ano passado. Irritado, não acionou a polícia. Preferiu descobrir quem era o autor, o localizou e o assassinou dentro de sua casa.
Roberto continuou andando armado, até que um dia embriagado, durante uma discussão no trânsito, deu dois tiros no peito do reclamante, que morreu no próprio local.
Quando questionado por que fez isso, Roberto disse apenas o seguinte: “Pra ele, eu estava errado por ter batido em seu carro, mas pra mim quem estava errado era ele que gritou comigo e me xingou. Então no calor do momento resolvi atirar.”
No mundo dos canibais da internet
Um universo desconhecido pela maioria dos internautas, onde pessoas procuram carne humana
No dia 10 de março de 2001, o técnico em informática alemão Armin Meiwes matou e comeu o engenheiro Bernd Jürgen Brandes em sua fazenda em Rotemburgo, na Alemanha. À época, o crime teve repercussão internacional e Meiwes chegou a ser comparado a famosos assassinos em série como o estadunidense Jeffrey Dahmer – o canibal de Milwaukee. No entanto, para surpresa de todos que acompanharam o caso e participaram do julgamento do alemão, apelidado de Der Metzgermeister (O Açougueiro-Mestre), as investigações apontaram que o ato de canibalismo de Meiwes teve o consentimento da vítima que antes de falecer se alimentou de uma pequena parte do próprio corpo.
Para suportar a dor, Brandes engoliu 20 comprimidos para dormir e meia garrafa de aguardente antes de ter o pênis amputado por Meiwes. Mais tarde, os dois se alimentaram do pênis flambado da vítima que provavelmente sofria de distúrbios psicológicos e emocionais. Após o falecimento do engenheiro, o técnico continuou se alimentando de Brandes, chegando a consumir um total de 20 quilos de carne humana. Durante o julgamento, o canibal de Rotemburgo confidenciou que a carne era muito parecida com a suína, com a exceção de que era mais forte.
Contudo, Meiwes alegou que jamais teria matado ou se alimentado da vítima de forma não consentida, embora desejasse consumir carne humana desde a infância. O episódio desafiou a justiça alemã que não possuía legislação específica para lidar com casos de antropofagia envolvendo vítimas voluntárias. Apesar disso, Meiwes foi condenado a oito anos de prisão por homicídio.
Em 2006, após passar por nova análise psicológica, foi constatado que o Açougueiro-Mestre ainda tencionava se alimentar de carne, principalmente de jovens. Com a possibilidade de reincidência, um tribunal de Frankfurt o condenou à prisão perpétua. Mesmo com o veredicto, Meiwes se declarou como vegetariano em 2007 e foi eleito líder de um grupo de conscientização ambiental formado por pedófilos, traficantes e assassinos.
A história de Armin Meiwes chamou a atenção para uma realidade macabra e desconhecida da maior parte dos usuários da internet. O técnico em informática conheceu Bernd Jürgen Brandes no Cannibal Cafe, um fórum da Undernet que mantinha o seu conteúdo oculto, fora dos mecanismos de busca, e que só poderia ser acessado por pessoas com conhecimentos bem específicos.
Há alguns anos, eu tive acesso aos arquivos do fórum e entendi o que Meiwes quis dizer quando falou que ele não seria o primeiro nem o último a conhecer pessoas na internet com a intenção de praticar canibalismo. Segundo o Açougueiro-Mestre, há milhares de pessoas na internet dispostas a comerem carne humana e serem comidas. E uma prova disso era o Cannibal Cafe.
Fundado por um estadunidense de meia-idade conhecido como Perro Loco, o fórum exibia um alerta para pessoas que não gostam de fantasias politicamente incorretas. “Se você não tem esse tipo de fantasia, provavelmente você vai achar o nosso conteúdo chocante e ofensivo, o que significa que nosso site não é para você. Por favor, vá embora. O material que produzimos é fantasioso em muitos aspectos. Não há nada realista sobre o assunto. Nossos espectadores sabem disso. Longe de normalizar a violência, nós a relegamos ao reino da fantasia. Não é a presença de tais fantasias que levam pessoas a atos de violência, mas sim a ausência de uma consciência”, defendia Perro Loco na página de abertura.
O fórum era administrado por mais três operadores, pessoas da confiança do idealizador. Dois foram identificados pelos pseudônimos Fenestrated e Squeeze Toy. Na rede Undernet, acessada através do programa mIRC, o Cannibal Cafe também mantinha um canal chamado #snuffsex, onde eram compartilhadas imagens, informações e bizarras aspirações.
Na guia Livestock Application do Cannibal Cafe, os usuários podiam preencher uma ficha informando dados pessoais, experiências, habilidades sexuais e o tipo de morte desejada – ser assado vivo, decapitado, desmembrado e empalado, entre outras opções. As mulheres oferecidas no site, mediante pagamento ou não, eram classificadas como cows (vacas). Nathalia, uma jovem de 27 anos, apresentada como uma gótica bissexual neerlandesa, foi qualificada como em ótimo estado, com carne firme, magra e com bom tônus muscular. De acordo com as recomendações de Perro Loco, ela poderia ser colocada em suspensão, asfixiada e progressivamente desmembrada. Ao completar 30 anos, Nathalia deveria ser assada viva.
Chelsea, de 19 anos, anunciada como filha de Perro Loco, participava do fórum e dizia que queria se tornar uma atriz pornô de filmes extremos. Mas somente por curto período, até que eventualmente pudesse ser morta e eternizada no vídeo da sua própria execução, um snuff film. O Cannibal Cafe também disponibilizava uma seção sobre empalamento em que Perro Loco falava sobre as suas próprias experiências.
“Há homens e mulheres emocionalmente vulneráveis o suficiente para serem seduzidos e permitirem que outras pessoas os matem por prazeres sexuais. São os verdadeiros masoquistas. Eu não vou entrar em detalhes, mas há sete anos fui atraído por uma jovem perturbada que vivia na área rural da Flórida. E sim, ela era suicida, submissa e masoquista. Um dia, ela abandonou os pais e fugiu de casa em busca da sua emoção final”, escreveu Perro Loco em 2001, na seção de perguntas mais frequentes do fórum.
E ele continuou: “Desde então, tenho a sorte de encontrar meninas e mulheres dispostas a realizarem essas fantasias. Comecei divulgando anúncios discretos na revista Fangoria e em um tabloide nacional que circula principalmente em supermercados. Fiz o mesmo em grupos da Usenet [através de fóruns]. No geral, o retorno aos meus anúncios foi muito maior do que eu poderia esperar nos meus sonhos mais selvagens.”
Analisando o conteúdo do Cannibal Cafe, que se manteve na ativa entre os anos de 1994 e 2002, não é difícil perceber que muitos dos usuários eram fãs de Dolcett, um tipo sinistro de desenhos fetichistas incluindo estupro, tortura, assassinato, canibalismo e incesto. Seus autores até hoje mantêm a identidade anônima. “Após a aceitação de uma nova ‘vaca’, ela recebe treinamento extensivo em todas as formas conhecidas de extrema escravidão e perversão. Ela passa por um processo de doutrinação psicológica completa, baseada em impulsos sexuais naturais, estimulando tendências submissas do subconsciente e eliminando as inibições sexuais e instintos de autopreservação”, escreveu Perro Loco na seção Cattle Training (Formação de Gado).
Os operadores e usuários do fórum davam a impressão de que a vida é um jogo e a morte um presente. Na seção Snuff Show Previews havia imagens reais de usuários e toscas montagens de rituais de tortura, empalamentos e antropofagia – algumas em forma de fichas pessoais. “Estamos treinando nossas ‘vacas’ para estrelarem nossos vídeos. Os shows ao vivo estão programados para saírem em breve. Acesse o nosso formulário de pedidos online para obter mais informações sobre nossos filmes snuff [com mortes e assassinatos reais]”, informou a administração do fórum.
No dia 28 de abril de 2001, a usuária Stephanie comentou que achou o trabalho de Perro Loco tão original quanto a chamada arte Dolcett. “Você fez um site como nenhum outro. É um mestre entre os mestres, um grande homem”, declarou. Dois dias depois, uma moça identificada como Cath criou um anúncio informando ter 1,75m, cabelos ruivos até o meio das costas e olhos azuis. “Posso render um bom presunto e uma boa alcatra. Como você gostaria de me cozinhar? E você poderia me marcar como um porco ou uma vaca?”, sugeriu.
Outro usuário, Franky, reconhecido como Armin Meiwes, o canibal de Rotemburgo, ingressou no fórum para conhecer homens com faixa etária de 18 a 30 anos. “Se você tiver um corpo normal, venha até mim. Eu vou lhe estripar e comer a sua carne. Me informe sua idade, altura, peso e encaminhe uma foto”, pediu.
As conversas no fórum quase sempre eram sobre pessoas querendo comer carne humana ou se oferecendo para serem comidas. Perro Loco justificava que não iam além da imaginação. Porém, o alemão Armin Meiwes é a maior prova de que fantasia e realidade se confundiam no Cannibal Cafe. Apesar da contestação, havia muitas outras publicações suspeitas.
“Sou um homem saudável de 27 anos e quero me submeter totalmente à sádica escravidão imposta por uma senhora ou um casal extremamente cruel. Quero desaparecer silenciosamente na total e permanente escuridão. Me sinto ansioso com a possibilidade de aparecer em um snuff movie para benefício comercial do meu dono. Posso me mudar de Nova York a qualquer hora. Desejo ser torturado, abatido e cozido para a sua total satisfação. Em particular, gostaria de ser mantido nu, acorrentado e enjaulado. Estou muito interessado em ser espetado como um porco. Isso é real e eu vou responder a todas as ofertas. Continuo aguardando o abate. Obrigado”, postou Alan em 28 de maio de 2001.
Para se ter uma ideia da abrangência do Cannibal Cafe, há publicações em outros idiomas. Em agosto de 2001, um brasileiro criou um tópico enfatizando seu desejo em praticar canibalismo. Não há dados tão precisos, mas acredita-se que milhares de pessoas de todos os continentes participaram do fórum entre 1994 e 2002. Nikolai, um dos usuários mais ativos no último ano do Cannibal Cafe, compartilhava receitas e arquivos sobre preparo de carne humana. Um deles, intitulado “Butchering the Human Carcass for Human Consumption”, foi escrito por um homem chamado Bob Arson.
“É um passo a passo sobre como quebrar o corpo humano de forma a garantir mais opções de corte. Como em qualquer campo, há uma série de métodos para a prática, e você pode ver isso como um conjunto de sugestões em vez de regras concretas”, explica a introdução do arquivo.
Quando o canibal Armin Meiwes confidenciou que frequentava o Cannibal Cafe, o fórum obteve popularidade assombrosa, o que não impediu que fosse desativado em 2001. Ainda assim, o fundador Perro Loco jamais foi responsabilizado por qualquer ação criminosa que tivesse como ponto de partida o seu fórum. Inclusive gozou de certo prestígio e fama junto aos fãs de pornografia extrema e subversão sexual.
Mais tarde, ainda morando na Califórnia em um regime de semi-aposentadoria, optou por uma vida mais pacata, trabalhando em uma loja de artigos de pesca. De fala mansa e ponderada, Perro Loco, que define a si mesmo como um homem privilegiado pelo bom nível cultural, jamais evitou entrevistas ou cogitou desaparecer. Muito pelo contrário, afirma que está sempre aberto ao diálogo.
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Porianna, nascimento e morte de um jovem neonazista
Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes, imigrantes e falava em limpeza étnica
Conheci Piero pessoalmente quando tínhamos 17 anos. Ele era um adolescente comum. Estatura mediana, magro, cabelos e olhos castanhos e uma exímia vontade de existir e ser notado para além dos cravos e das espinhas que o exasperavam. No final dos anos 1990, nos tornamos amigos por meio da música. Eu já gostava muito de heavy metal e ele também. Então começamos a fazer trade em Maringá, onde ele visitava familiares. Eu saía de Paranavaí e ele de São Paulo. Nos encontrávamos na Musical Box, na Avenida Brasil, onde trocávamos CDs e cópias de fitas de shows em VHS.
Piero era mais tímido do que eu. Falava pouco e não saía sozinho, pelo menos a maior parte do tempo. Me parecia sempre inseguro com seu olhar enviesado e vacilante que fortuitamente mirava o chão ou a parede mais distante. “Depois de mais de dois anos trocando ideias, é legal te conhecer, velho!”, eu disse apertando sua mão tão escanzelada que me dava a impressão de que eu estava segurando pés de galinha. Ele deu um sorriso fragilizado e acenou com a cabeça, em concordância, retomando uma postura que se esforçava para velar uma precoce hiperlordose.
Meu primeiro contato com Piero foi pela internet, em um canal de fãs de heavy metal da velha rede social Brasnet, acessada pelo programa mIRC, muito usado pela geração anos 1980. Tínhamos um grupo de dezenas de pessoas e passávamos pelo menos duas horas por dia tentando expandir nosso canal, fazendo brincadeiras e trocando informações sobre música. Era divertido. Eu era um dos operadores do canal, assim como Piero. Na internet ele se soltava mais. Se sentia mais livre e seguro para manifestar suas opiniões, anseios e inclinações. Nessas horas suas mãos não suavam ou tremulavam porque não havia contato físico. Pessoalmente, Piero só perdia a inibição em shows, quando o álcool e a música em volume extremamente alto o livravam das amarras da excessiva ponderação.
Ficava sorridente, falava com estranhos, perdia o medo de se aproximar de garotas e até trocava números de telefone. Sóbrio, continuava vivendo em um mundo que distante da realidade eletrônica parecia-lhe visceralmente acinzentado e taciturno. Mais tarde, descobri que Piero sofria de ansiedade e depressão. Nem mesmo seu pai sabia disso. A verdade é que se sentia feio, deslocado, magro demais e desprezado pelo mundo. Seu único orgulho eram os cabelos longos que movimentava com a destreza de um chicote amendoado nos shows que assistia motivado pela mais bucólica das empolgações. Sorria como criança vendo um pônei pela primeira vez.
A última vez que o encontrei pessoalmente foi em 2001, num festival de bandas de heavy metal no Tribo’s Bar, em Maringá. Ele tinha bebido bastante e estranhei quando percebi que sumiu em meio à multidão. Eram três horas da manhã e Piero estava lá fora, sentado sobre o meio-fio enquanto a aragem repentina fazia seus cabelos velarem seu rosto como uma máscara. Ele ajeitou os fios e vi seus olhos vermelhos e úmidos – vestígios de choro.
“Meu pai me expulsou de casa e agora estou sem rumo. E pra piorar, ele ainda fez eu perder meu emprego. Foi bêbado lá na loja de discos onde eu trabalhava e bateu no meu chefe, falando que ele estava usando a música pra me ensinar a venerar o diabo. Foi punk, mano! Minha sorte é que arrumei um quarto na casa da minha tia em Santo André”, desabafou.
A mãe de Piero faleceu em decorrência de câncer de mama quando ele tinha 13 anos. A convivência com o pai era muito conturbada. Ele não passava um dia sem ouvir críticas e ofensas à sua aparência e estilo de vida. Sempre que o pai bebia demais era obrigado a suportar as consequências. Muitas vezes teve de pular a janela e dormir em banco de praça para não ser espancado no próprio quarto. A hiperlordose de Piero também era resultado de chutes e socos desferidos pelo pai.
Quando se mudou para Santo André, Piero abandonou o nosso canal na Brasnet. O procurei por semanas até encontrá-lo em um canal secreto chamado Porianna. Consegui ingressar no grupo com um novo pseudônimo, me passando por outra pessoa. A liberação levou alguns dias. No grupo, Piero usava o nome de Globocnik, em homenagem ao austríaco Odilo Globocnik, general da SchutzStaffel (SS), a tropa de proteção do Partido Nazista.
Porianna era um grupo neonazista criado em 1999 e que contava com dezenas de participantes, talvez muito mais, principalmente das regiões Sul e Sudeste do Brasil. Alguns defendiam o racialismo pacífico enquanto outros pregavam o ódio contra raças não brancas, defendendo inclusive ações pontuais de violência que eram cuidadosamente articuladas. Muitas eram tão bem mascaradas que a polícia acreditava que eram casos isolados.
Acompanhando o grupo pelo canal da Brasnet, notei o embrutecimento e a transformação de Piero. Não o reconhecia. Defendia crimes contra migrantes e imigrantes. Falava em limpeza étnica e na aquisição coletiva de uma fazenda onde fundariam a sociedade Porianna, um novo país dentro do Brasil, onde pessoas armadas impediriam a entrada de pessoas não brancas.
“Estamos em todas as camadas da sociedade. Temos os boneheads na parte mais baixa da pirâmide, agindo junto ao proletariado, e juízes, advogados, médicos, engenheiros e jornalistas, todos bem preparados para influenciar a opinião pública. Não há como isso dar errado. Pode ser que não tão logo, mas um dia chegaremos lá”, declarou um homem, fundador do grupo que usava o pseudônimo de Plínio Salgado, em homenagem ao criador do movimento integralista ultranacionalista.
À época, registrei o discurso de uma mulher de 29 anos que se dizia juíza e era conhecida no Porianna como Vera Wohlauf por causa da sua simpatia pela esposa do oficial da SS Julius Wohlauf. O casal ficou famoso após passar a lua de mel assistindo e participando do massacre de judeus no gueto polonês de Miedzyrzec-Podlaski em 1942.
“A democracia não funciona, só que devemos fingir que sim. O que precisamos é encontrar, forjar ou criar um ponto de ruptura que faça a população, até mesmo inferiores como pretos, amarelos, pardos e outros mestiços, acreditar que o melhor caminho é uma política austera e ao mesmo tempo flexivelmente reacionária. As pessoas precisam achar que existe liberdade demais e que isso está associado à libertinagem. Façamos de conta que a nossa política há de ser maleável e quando ascendermos ao poder colocaremos em prática o nosso segundo plano que é a instauração de um governo verdadeiramente estoico, de extrema direita, mas muito superior ao molde hitlerista e franquista. Pinochet também descambou para o fracasso. O segredo é fingir que todos estão incluídos em nossas propostas. Nossa propaganda deve ser voltar para isso, uma ilusão factível”, dissertou Vera.
Aproximadamente um mês depois de ingressar no canal, conversei com Piero. Ele parecia mais seguro de si. No entanto, eu não tinha a mínima ideia de como isso poderia ser bom, levando em conta que ele se tornou uma pessoa completamente diferente. Estava morando sozinho e me contou que era bem pago para produzir, distribuir e despachar o material de divulgação do Porianna.
“A nossa sociedade foi construída sob os preceitos da cultura branca, totalmente ocidentalizada, então por que devemos absorver uma cultura que não corrobora esses valores? O resto é irrelevante, meu amigo, não tem o mesmo peso, a mesma significância. E quem não aceita isso merece ser expulso do Brasil, nem que seja à base de chutes e socos. Ter a pele clara também não diz nada. O que vale é a sua origem, sua identidade racial. Se você tem sangue não branco, você não é branco, mesmo que sua pele seja a mais clara do mundo. Cor de pele não prova que você seja caucasiano. Os traços também dizem mais do que a cor da pele”, defendeu Piero numa noite de conversa privada.
Ele já não ouvia mais heavy metal, somente bandas nacionais e internacionais de hatecore e rock against communism (RAC), grupos que pregavam racialismo, racismo, xenofobia, separatismo, violência e intransigência política e social. “Pela primeira vez eu tenho família, cara! Sou amado de verdade. Sou Porianna até a morte!”, comentou em outra ocasião. Um dia, não resisti e falei a ele quem eu era de verdade.
O questionei sobre o seu sumiço e o novo rumo de sua vida. Deixei claro que era difícil crer que alguém pudesse mudar tanto e se tornar algo completamente avesso a tudo em que ele acreditava. “Você desprezava violência e preconceito, cara. Tudo aquilo que seu pai era te dava repulsa. O que houve nesse entrementes?”, disparei. Piero demorou a responder e fiquei em silêncio aventando o que me esperava. Talvez me denunciasse e neonazistas viessem atrás de mim. Quem sabe a poucos quilômetros de distância houvesse algum simpatizante do Porianna disposto a atear fogo em minha casa quando soubesse que eu não era um deles.
Mas isso não aconteceu, embora a probabilidade não pudesse ser desconsiderada. Isto porque na chamada mais baixa hierarquia, o grupo contava com pessoas sem perspectivas de futuro. Eram capazes de matar ou morrer por um propósito, mesmo que ruim. Confundiam a ficção com a realidade, crentes de que talvez fossem heróis, que a morte não era o fim e que talvez renascessem como um tipo mais contemporâneo de highlander.
“Você é um merda, David! Sempre com esse papo de tolerância e não percebe que a própria vida é uma guerra. Estamos aqui para mostrar que uns merecem mandar e outros nasceram para obedecer. Nem todo mundo deve ter direito à vida, e muito menos o direito de tomar decisões que exigem reflexão. O mundo deve ser comandado pelos fortes, pelos puros de sangue, que conhecem a sua própria história. Não quero um mundo que prega a mistura de raças, a extinção dos povos caucasianos. Brancos não devem ser influenciados por outras raças”, registrou sem velar a irritação.
Depois daquele dia, desapareci do canal e soube que eles migraram para a rede internacional Undernet, onde criaram um vínculo com neonazistas portugueses. Em 2004, Jonas, um amigo em comum com Piero, dos tempos de shows em Maringá, me informou que ele foi assassinado dentro de casa, em Santo André. Além de mim, havia outro jovem infiltrado no grupo e ele estava lá para preparar uma retaliação pela surra que um grupo de simpatizantes do Porianna deu em seu irmão, um sharp (skinhead contra o preconceito racial), perto da Praça da Sé, em São Paulo, o deixando paraplégico.
Piero, que desconhecia o episódio, ouviu alguém batendo palmas em frente à sua casa numa manhã ensolarada de verão. Assim que se aproximou do portão segurando um copo de café, um homem disparou um tiro certeiro contra seu peito. O copo se espatifou no chão e Piero caiu agonizando, ainda com vida. Porém não resistiu às coturnadas que recebeu na cabeça, causando afundamento craniano e morte cerebral. Sobre a estante na sala de Piero havia uma foto em que aparecia eu, ele e Jonas em frente ao Tribo’s Bar em 2001. Naquela madrugada, Piero imobilizou um ladrão, impedindo que um sharp que também estava no Tribo’s fosse assassinado a facadas por um ladrão no Terminal Rodoviário Urbano de Maringá.
O dia em que Pedro Tenório assassinou Alma de Gato e Bartolo no Líder Bar
Crime aconteceu no centro de Paranavaí no dia 8 de agosto de 1964
No dia 8 de agosto de 1964, um homem bebendo no Líder Bar, na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, no centro de Paranavaí, explicou a um conhecido que estava negociando a venda de uma fazenda que pertencia a uma família de gaúchos em Querência do Norte. “Vou fechar esse negócio, daí pago a minha dívida, né?”, enfatizou o homem, de acordo com Honório Bonfadini, um dos proprietários do Líder Bar na época, que acompanhou a conversa diante do balcão.
Quando chegou a hora de formalizar a venda, o negociante chamado Pedro Tenório se sentiu lesado porque a transação não foi concluída e ele perdeu a chance de ganhar uma boa comissão. Dois dias depois, retornou ao bar por volta do meio-dia. O local estava lotado, tanto que não havia mais cadeiras e mesas disponíveis. Então Tenório se aproximou do balcão e caminhou até dois homens que conversavam. Sem dizer palavra, sacou um revólver de calibre 44, puxou Onofre de Oliveira, mais conhecido como Alma de Gato, pelo braço e deu-lhe um tiro à queima-roupa no peito.
Bartolo Sanches Perez, que estava ao lado do amigo ferido, ficou inerte, com os olhos estalados. Antes que reagisse, também foi alvejado no peito. Os dois caíram lado a lado enquanto o sangue se misturava no chão do bar. Durante a ação, alguns fregueses tremiam assustados e encolhidos embaixo das mesas. Outros ficaram tão desesperados que correram em direção à Avenida Paraná. “Todo mundo saiu de perto quando ouviu o primeiro tiro. O atirador não chegou a quebrar nada. Só furou a parede e o forro”, relata Bonfadini.
Com calma, Tenório abaixou o revólver e saiu do bar da mesma forma que entrou, ou seja, calado. “Havia muito sangue no chão e muito medo nos olhos de quem presenciou esse crime”, relata o pioneiro João Mariano. O atirador caminhou com tranquilidade até a Rua Getúlio Vargas, onde foi abordado pelo tenente Walter Porto, da Polícia Militar. Não resistiu à prisão e ainda confidenciou que sua intenção era ir até outro bar assassinar mais duas pessoas que segundo ele faziam parte do grupo que interferiu em seus negócios. Feridos gravemente, Alma de Gato e Bartolo acabaram falecendo no hospital.
O pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira se recorda que foi procurado por João Tenório para testemunhar a favor de Pedro Tenório. “Ele era de família abastada. Eu me dava bem com esse parente dele. Mas um dia ele passou na minha casa e disse: ‘É sobre o Pedro, sei que você faz parte do júri popular e quero pedir que salve ele’. Aí expliquei: ‘Ô Seu João, pra mim é difícil. A única coisa que você pode fazer é pedir pra me tirar do júri porque se eu for lá eu condeno ele. Tenho minha consciência e meu senso de justiça’”, lembra.
Após a condenação, Tenório foi transferido para Curitiba. O que o motivou a matar Alma de Gato e Bartolo foi o desejo de vingança e a sensação de impunidade. “Ele tinha amizade com um juiz e um escrivão que se dispuseram a ajudar ele. Ou seja, tudo gente boa”, ironiza Honório Bonfadini, lembrando que era muito comum as pessoas andarem munidas de revólveres de calibre 22 e 38 em 1964.
O duplo homicídio repercutiu tanto que se tornou o assunto mais falado na região por semanas. Inclusive a polícia exigiu que os Bonfadini fechassem o Líder Bar por alguns dias, reabrindo numa segunda-feira. “E tudo isso por causa da corretagem de uma fazenda. Naquele tempo as pessoas matavam facilmente por causa de comissão de terras. Ainda bem que os outros não quiseram se vingar porque senão ia acabar não sobrando ninguém”, pondera Deusdete.
Vizinho de Bartolo Sanches Perez, o pioneiro João Mariano conta que ele era tranquilo e educado. “Uma vez ele passou por uma situação difícil quando o filho dele foi laçar um boi e o animal o arrastou. Levaram o rapaz ao médico e ele se recuperou, mas ficou sem a mão”, confidencia.
Mariano também defende que Alma de Gato, homem alto e magro que conheceu em 1955, não era má pessoa. “Eu era mais novo que o Alma de Gato e tive o primeiro contato com ele em 1953, um ano depois que cheguei em Paranavaí. A propriedade onde moro hoje [Estância Reno] era do pai dele. Tinham uma fazenda enorme, com muito café e mato. Quando comprei, já tinham loteado. O forte deles sempre foi a cafeicultura”, garante Cerqueira.
Curiosidades
Alma de Gato e Bartolo estão sepultados na primeira seção de gavetas do Cemitério Municipal de Paranavaí.
Alma-de-Gato é o nome de um pássaro originário da Amazônia que tem a cauda longa, o peito acinzentado e a plumagem cor de ferrugem.
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Uma manhã de sangue e morte no Bar do Beni
Traídos por amigos, Canjerana e Macaúba foram assassinados a tiros em 4 de julho de 1955
No dia 4 de julho de 1955, uma segunda-feira, Manoel Rocha, o Macaúba, trajava a sua inseparável capa de gabardine, a mesma usada pelos mafiosos sicilianos da década de 1920, quando passou de manhã na casa de Manoel Alves Canjerana e o convidou para ir até o Bar do Beni, atual Cartório Tomazoni, na Rua Marechal Cândido Rondon, ao lado da Banca do Wiegando. Nem o frio e a chuva que enturveciam Paranavaí, no Noroeste do Paraná, impediu os dois amigos baianos de percorrerem o centro da cidade.
Antes de sair, Canjerana ajeitou a postura, o paletó, o lenço no pescoço e um chapéu de feltro da Casa Ferreira. Chegando ao local, Macaúba entrou no bar e Canjerana ficou do lado de fora, sentado em um banco de madeira enquanto Daniel, um garotinho de não mais que 12 anos, engraxava suas botas. “Ele tinha o costume de ir lá. Só usava botas e gostava de deixar elas brilhando”, conta a filha Nair Alves Silva que estava com 20 anos.
Quando ouviu um tiro, Canjerana, que pela primeira vez saiu desarmado de casa, se levantou rapidamente para checar o que estava acontecendo dentro do bar. Não teve tempo nem de dar alguns passos quando recebeu dois balaços no peito, atravessando o seu pulôver cinza como o céu daquele dia de inverno. Com as costas escoradas sobre as tábuas do boteco, tentou resistir, mas escorregou vagarosamente até cair sentado e cabisbaixo, com o chapéu caído e as pernas entreabertas.
A esposa, Ana, aos 40 anos não imaginava que o marido não retornaria para comer a marmita quentinha que ela preparou e deixou em cima do fogão à lenha, o aguardando. Aos 54 anos, Canjerana estava morto, vitimado por hemorragia interna, transfixação do miocárdio e pulmão, segundo a certidão de óbito. Quando escutou que o seu pai tinha sido alvejado, Jurandir, de 13 anos, correu até o Bar do Beni. Era tarde demais.
Macaúba, de 47 anos, que antes levou um tiro certeiro no ouvido disparado por Pedrinho, um rapaz que também era amigo das vítimas, foi socorrido por quatro homens e carregado com os braços abertos, o rosto mirando o céu e as mãos cobertas pelas mangas longas da capa de gabardine. Ainda com vida, o colocaram sobre a carroceria de um caminhão usado no transporte de madeira, onde dividiu o espaço com o amigo já morto. No Hospital Professor João Cândido Ferreira, atual Praça da Xícara, o homem faleceu.
O autor do assassinato de Canjerana se chamava Napoleão, um rapaz que na noite anterior sentou-se na beira da cama do baiano. “No domingo, meu pai não estava bem e ele veio aqui em casa desejar melhoras. Pegou comida direto do nosso fogão à lenha e comeu com a gente. Meu pai o tratava como um filho”, confidencia Nair. À época, Manoel Canjerana recebeu um convite para trabalhar no Mato Grosso. Recusou porque queria aguardar o nascimento do neto. “Ele achou que seria menino. Tive uma filha que ele nem chegou a ver”, enfatiza.
Dias após o crime, quando estava preso, Napoleão pediu para a mãe de Nair ir até a delegacia porque ele queria se desculpar. “Minha mãe não foi. Disse que isso não tinha perdão. Pra gente foi uma situação tumultuada porque eu estava grávida da minha primeira filha e passei muito mal, tanto que ela nasceu na outra semana”, revela. A família preferiu esquecer o passado e seguir a vida, até porque dos seis filhos de Canjerana a única adulta era Nair Alves.
Um ano depois souberam da libertação de Napoleão e Pedrinho. A soltura foi motivada por influência política. O duplo homicídio teve tanta repercussão no Paraná que jornalistas dos principais veículos de comunicação do estado vieram a Paranavaí. “O que aconteceu foi terrível para as duas famílias. O Macaúba tinha quatro ou cinco filhos”, lamenta Nair Alves Silva, acrescentando que ninguém sabe quais foram os motivos do crime.
Canjerana conheceu Paranavaí em 1949
Nascido em 1900 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, Manoel Alves Canjerana se mudou para São Paulo com Ana Alves em 1930. No mesmo ano, trouxe de Recife, Pernambuco, uma garrafa de pinga de porcelana feita no Engenho São João, um artigo que até hoje está conservado em ótimo estado. “Minha mãe tinha 18 anos quando deixou a Bahia. Eles se casaram em Jabuticabal, São Paulo, e de lá foram para Piquerobi, onde ele trabalhou de guarda-livros, o contador da época”, relata a filha Nair Alves.
Anos depois, se mudaram para Presidente Venceslau, onde Manoel Canjerana atuou como fiscal de colonos em fazendas de café. Só saiu do interior de São Paulo quando o candidato a prefeito que apoiou perdeu a eleição, custando-lhe o emprego. “Ele era doido por política. Saiu procurando serviço, mas não encontrou. Ouviu falar da Fazenda Brasileira [atual Paranavaí] e veio pra cá sozinho em 1949. Em 6 de janeiro de 1951, trouxe todo mundo. Dos seis filhos, eu era a mais velha”, destaca Nair.
A família se surpreendeu ao se deparar com uma “cidadezinha” com casinhas cobertas de tabuinhas. “Ficamos em um hotel perto de onde é hoje os Correios porque não tínhamos arrumado uma casa ainda”, afirma. Na Brasileira, Canjerana começou a atuar como fiscal de peões para um homem de sobrenome Saião. “Depois trabalhou para o comendador Remo Massi”, frisa a filha. Em Paranavaí, conheceu o também baiano Manoel Rocha, o Macaúba, que desempenhava a mesma função. Logo se tornaram vizinhos e amigos.
O baiano fiscalizava uma turma de peões na mata
Em 1954, Manoel Canjerana levava para a mata uma caderneta comprida de capa dura escura em que anotava todas as despesas dos peões. Tudo era cobrado, até mesmo a comida e a enxada usada no serviço de capina. Detalhista, o baiano registrava o máximo possível de informações. Ao final, anotava o valor da dívida e quanto cada peão poderia receber pelo serviço. Alguns chegavam a gastar mais do que ganhavam, o que deixava o trabalhador comprometido com o dono da fazenda.
A filha Nair se recorda das vezes em que viu o caminhão partindo com uma turma de peões e muitos fardos de alimentos, principalmente jabá. Na mata a comida era preparada por uma cozinheira conhecida como Dona Alaíde. Quando retornavam a Paranavaí, após até mais de dois meses longe de casa, a chegada dos peões na madrugada era marcada por grande euforia em cima do caminhão. Do alto da carroceria, o som de uma sanfona, a cantoria e as muitas batidas de pé acordavam dezenas de famílias nas imediações da Avenida Rio Grande do Norte.
De vez em quando Canjerana convidava amigos, colegas de trabalho e autoridades locais para almoçarem em sua residência perto dos Correios. “Não dispensava a carne de jeito nenhum e odiava verduras. Sempre que faço salada lembro que ele dizia que não comia mato”, revela Nair.
“Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços”
Na década de 1950, Manoel Canjerana e Manoel Macaúba eram nomes que inspiravam muito medo nos moradores de Paranavaí. “Falavam que meu pai e o Macaúba eram jagunços. Sei que eles saíam pra derrubar mato. Alguns diziam que os dois eram chamados para expulsar invasores de fazendas. Se um dia trabalharam para grileiros, isso eu nunca soube”, garante Nair Alves Silva que sempre teve uma imagem bem diferente do pai e também de Macaúba, a quem considerava o amigo mais fiel, educado e cordial de Canjerana.
A filha se recorda das vezes em que viu os dois amigos felizes, cantando música caipira nos bares de Paranavaí. A preferida era “Chico Mineiro”, de autoria de Tonico e Tinoco, um hino caboclo que celebra a amizade. Nair admite que tinha mais liberdade para conversar abertamente sobre qualquer assunto com o pai do que com a mãe. “Ele falava sorrindo: ‘Filha, tô vendo alguém passar ali e não sei não, hein? Acho que ele quer alguma coisa. E já sem graça eu respondia: ‘Ah pai, nem vi!’”, confidencia.
No dia em que o namorado de Nair decidiu pedi-la em casamento, o rapaz ouviu muitas críticas de amigos e conhecidos. “Você tá namorando a filha daquele homem? Aquele sujeito é um perigo!”, narra a filha de Manoel Canjerana. Apesar da campanha contra, o rapaz insistiu. Combinaram um jantar, mas na hora o jovem ficou hesitante. Já impaciente, depois de coçar a barriga algumas vezes, Canjerana falou: “Ué, você não veio falar um negócio aqui comigo? Então fala!” Assim que explicou que queria pedir a mão de Nair em casamento, o baiano comentou: “Então tá falado. Tô dando a mão dela em casamento!” Surpreso com a resposta, o rapaz sorriu e saiu mais do que satisfeito da casa da família Canjerana.
Saiba Mais
Nair Alves Silva nasceu no distrito de Vera Cruz, em Marília, São Paulo, mas foi criada em Pequerobi e Presidente Venceslau.
Foi a filha Nair quem fez o pulôver usado por Canjerana no dia do assassinato.
Outros fiscais que trabalhavam com o baiano eram conhecidos como Preto e Galvão.
Curiosidade
Canjerana e macaúba são nomes de árvores. A primeira possui uma madeira vermelha mais nobre do que o cedro e a segunda é uma palmeira conhecida como o “ouro brasileiro”.
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O assassinato de Raphael Azambuja na Areia Branca do Tucum
Amigo de Leonel Brizola e primo de Erico Verissimo, empreendedor foi assassinado em 1962 durante negociação de terras na região de Paranavaí
Em 1962, o empreendedor gaúcho Raphael Verissimo Azambuja costumava vir a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, pelo menos uma vez por mês para comprar terras e investir no desenvolvimento da Gleba Areia Branca do Tucum, às margens do Rio Paraná. Sempre telefonava do Rio Grande do Sul pedindo que o gerente da Reta Táxi Aéreo, Augustinho Borges preparasse um avião para levá-lo até o local.
“Ô Augustinho, e no domingo, tal hora, você me pega lá pra eu tomar o avião da Varig para o Rio Grande do Sul, mas antes ligo confirmando”, lembra Borges, reproduzindo as palavras de Azambuja na primeira semana de julho de 1962. O então gerente estranhou que o final de semana terminou e não recebeu nenhum telefonema de Raphael Verissimo.
Na segunda-feira de manhã, logo depois de levar alguns pilotos e passageiros para o Aeroporto Edu Chaves, o telefone tocou. Era o governador do Rio Grande do Sul. “Ô meu jovem, é o seguinte: Falei com a diretoria da Reta em Londrina e eles recomendaram que eu entrasse em contato com você. Preciso que me faça um grande favor”, disse Leonel Brizola.
O governador explicou que o seu amigo Raphael Verissimo Azambuja foi assassinado no sábado. “Perguntei o que ele queria que eu fizesse. ‘Olha, arruma o corpo, põe dentro do avião e manda ele pra mim. Pago todas as despesas aqui’”, prometeu Brizola após detalhar a situação.
Surpreso com a educação e cordialidade do governador que preferiu resolver tudo por conta própria em vez de transferir a responsabilidade para alguém, Borges se tornou fã do político. “Levei um susto. De todos os homens públicos com quem conversei até hoje, o Brizola foi o que mais se destacou pra mim. Tinha grandes valores e conversava com todo mundo de igual para igual”, justifica Augustinho Borges.
Naquele tempo, Azambuja tinha uma fazenda que ficava próxima a Nova Londrina e Marilena. Acostumado a viajar pela região, o empreendedor de 53 anos não imaginava que seria assassinado por um amigo na manhã do dia 7 de julho de 1962. A traição aconteceu quando o homem percebeu que as terras que vendeu a Raphael Verissimo conquistaram um bom valor de mercado em pouco tempo. “O sujeito de sobrenome Volpato ficou enciumado e desferiu cinco tiros à queima-roupa contra meu pai, um homem de bem e que andava desarmado”, afirma Alan Verissimo Azambuja.
Sobre o episódio, o conceituado escritor Erico Verissimo declarou que a discussão começou quando o suposto amigo de Azambuja exigiu um reajuste de preços por compensação. “Meu primo disse que o negócio estava feito e pronto. Quando se recusou a concedê-lo, o outro meteu-lhe vários balaços no corpo, matando-o quase instantaneamente”, escreveu Verissimo na biografia Solo de Clarineta, lançada em 1973.
De acordo com Augustinho, Azambuja era um sujeito excepcional, de caráter inquestionável. No entanto, foi iludido pela própria ingenuidade, pois não sabia que a Gleba Areia Branca, nas imediações do Porto São José, tinha uma das piores famas do Paraná. “A demanda de terras naquele lugar era tão grande quanto a criminalidade. Era violência em cima de violência. Pra você ter uma ideia, meus parentes moravam lá e chegavam a juntar sacos de cápsulas de balas”, confidencia Borges.
Após o crime, os funcionários da fazenda de Azambuja encaminharam o corpo para uma funerária de Nova Londrina. De lá, Augustinho o trouxe a Paranavaí, onde preparou um quadrimotor de Havilland DH.114 Heron para 16 passageiros. “O avião tinha o apelido de Constellation Baiano. Aluguei ele com piloto e copiloto para levar o caixão porque naquela época não tinha aeronave própria pra esse tipo de transporte”, explica Borges que contou com a ajuda da Star Taxi Aéreo, de Londrina.
Como não podia se ausentar do trabalho, Augustinho relatou a situação para o Major Valle, responsável por comandar o trabalho policial na região de Paranavaí. “Falei que veio um pedido do Brizola para que o major acompanhasse o transporte do corpo. Então o comandante contou que tinha medo de andar de avião, tanto que nunca entrou em um”, destaca.
Para convencer o Major Valle a embarcar na aeronave, Borges o levou até um boteco em frente ao Aeroporto Edu Chaves. Lá, garantiu que o homem ganharia coragem depois de tomar algumas doses de uma pinga com cascavel. “O couro da cobra chegava a balançar no fundo da garrafa. Consegui arrumar tudo e coloquei ele dentro do avião. Mas, rapaz, quando era mais ou menos 6h recebi um telefonema”, enfatiza.
Augustinho despertou com os berros do Major Valle. O homem gritava: “Filho da puta, você vai me pagar quando eu chegar aí. O avião pegou fogo na descida, perto de uma mangueira. Esfumaçou tudo!”, recorda Borges às gargalhadas. Apesar dos imprevistos, o comandante cumpriu a missão. Em Porto Alegre, entregou o corpo de Raphael Azambuja para o governador Leonel Brizola que o agradeceu pessoalmente e cobriu todas as despesas.
Ainda assim, o Major Valle se recusou a voltar de avião e embarcou em um ônibus. Chegou bravo em Paranavaí, mas se acalmou e convidou Augustinho para tomar chimarrão. “Só me deu uns tapas na cabeça por ter que ficar mais de oito horas passando medo dentro da aeronave”, conta sorrindo.
Azambuja queria transformar o Noroeste no celeiro do Brasil
Segundo o filho Alan Verissimo Azambuja, Raphael Verissimo Azambuja acreditou tanto no desenvolvimento da região de Paranavaí que abriu mão de ser ministro da agricultura quando o amigo João Goulart assumiu a presidência do Brasil. “Mesmo com os apelos dos mais próximos, meu pai preferiu dedicar-se integralmente ao grande projeto de sua vida que era transformar o Noroeste do Paraná no celeiro do Brasil. Seu empreendimento colonizador ia de vento em popa”, assinala.
No livro Solo de Clarineta, de 1973, o escritor Erico Verissimo narrou que nos últimos anos de vida a atenção e energia de Azambuja se voltaram para a região de Paranavaí. “Comprou terras de um sujeito de maus bofes que ele, Raphael, na sua boa-fé, julgava seu amigo. Organizou loteamento de terras e fez ruas com entusiasmo e esperança. Quando nos encontrávamos, me expunha seus planos para o futuro: novas cidades, fundação de um banco e construção de um grande edifício. Acreditou sempre no futuro do Brasil e costumava lançar longe o dardo de seus bem arquitetados sonhos”, registrou Verissimo, falecido em 1975.
No livro, o escritor relata que de uma das janelas da casa onde morava em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, avistava o cemitério onde o corpo do primo foi enterrado. “Raphael, assim como tantos outros amigos, como a minha própria mãe, na realidade não se encontra em seu túmulo. Com maior ou menor intensidade, continua ainda vivo dentro de mim. Por um desses milagres da memória, eu o tenho sempre ao meu lado”, poetizou.
Raphael Verissimo coordenou as campanhas de Brizola
Raphael Verissimo Azambuja nasceu em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, em 1º de março de 1909. Nos anos 1940, trabalhou como assistente do ministro João Alberto de Lins e Barros e desempenhou os cargos de chefe do Setor do Abastecimento Nacional e do Serviço de Fiscalização de Preços do governo federal. Atuou também na chefia de propaganda do Partido Social Democrático (PSD). À época, chegou a receber uma carta de agradecimento do presidente da República, Eurico Gaspar Dutra.
Em 1947, quando estava hospedado em um hotel em frente a um lago em Velden am Wörther See, na Áustria, Azambuja conheceu a jovem Marion Mitterling, antes chamada Doina Sturza. Era uma jovem romena que perdeu pai, mãe e seis irmãos na Segunda Guerra Mundial e na Ocupação Soviética da Romênia.
Marion trabalhava como assistente da rainha da Bélgica e estava de férias na Áustria no mesmo período em que Raphael Verissimo chefiou uma missão diplomática de seleção de estrangeiros dispostos a se mudarem para o Brasil. “Ele a convidou para um passeio de barco a remo e ela aceitou. Assim começou um grande romance”, frisa Alan Verissimo Azambuja, o primeiro filho, nascido em 1948.
Em 1950, o casal deixou Salzburgo, na Áustria, e se mudou para o Rio de Janeiro, onde Raphael Azambuja trabalhou no Ministério da Agricultura. Em 1955, se tornou chefe do jornal O Clarim, de Porto Alegre, e coordenador das campanhas eleitorais de Leonel Brizola.
A partir de 1956, desempenhou muitas atividades. Comandou o Departamento de Administração e Finanças do Instituto Nacional de Imigração e Colonização e, atendendo a um pedido do governador Brizola, assumiu a Comissão Interestadual para Estudos dos Problemas da Bacia Paraná-Uruguai. “Em 1960, ele foi chefe de assessoria técnica do Ministério da Agricultura e no ano seguinte o nomearam como ministro interino”, cita Alan Azambuja.
Um gaúcho à frente do seu tempo
Um gaúcho à frente do seu tempo é a expressão que melhor define o perfil de Raphael Verissimo Azambuja. “Foi o primeiro sujeito em Cruz Alta [no Rio Grande do Sul] a sair à rua sem chapéu, chocando os nativos. ‘Que desaforo!’, ‘Que desrespeito para com as famílias!’, exclamavam as comadres”, escreveu o primo e escritor Erico Verissimo na biografia Solo de Clarineta.
Azambuja era conhecido como um sujeito questionador, que herdou a inteligência do pai e a vivacidade e capacidade de fazer amigos da mãe. “Ganhou dos dois a coragem para opinar. Nunca deixou de manifestá-la livremente. Era ávido leitor e quando se tornou homem maduro passou a acreditar na vida e na capacidade do ser humano de traçar o próprio destino”, testemunhou Erico Verissimo na obra.
Nos bailes, desde a mocidade atraía atenção pelo costume de dançar com todas as moças menos desejadas. “Ele as enlaçava e saia a rodopiar pelo salão. Dizia coisas agradáveis. Fazia elogios à beleza ou à elegância. Em suma, tornava-as felizes”, declarou o escritor que também fez menção à maneira impecável como o primo se vestia. Azambuja era habilidoso para escrever, mas nunca pensou em dedicar-se à literatura.
Frase de Erico Verissimo sobre o primo Raphael Azambuja
“Desde mocinho revelara uma grande generosidade, dessas que se manifestam nas menores coisas.”
Agradecimento especial
Alceu O. Annes, autor da Genealogia dos Annes Verissimo – material que serviu como principal fonte de pesquisa para a elaboração da reportagem.
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Anjo da Morte pode ter morado em Graciosa em 1954
Pioneiros de distrito de Paranavaí suspeitam que médico nazista viveu no Seminário Imaculada Conceição
Em 1954, um grupo de criminosos armou uma emboscada para assassinar o comerciante Ludovico Selhorst na colônia germânica Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Para não serem identificados, os homens usaram máscaras e se esconderam em uma roça de milho nas imediações do comércio de Selhorst.
À noite, assim que o comerciante ficou sozinho, aguardaram alguns minutos, atiraram nele e fugiram. Quando Ludovico caiu, quem estava próximo do local estranhou o barulho e correu até lá para saber o que aconteceu. “Ele foi atingido perto do braço e não teve tempo nem de ver de onde a bala saiu”, relata a pioneira Francisca Bruning Schiroff que à época tinha 19 anos. Os irmãos da vítima, inclusive Jacob Selhorst que era o delegado do distrito, foram os primeiros a socorrer Ludovico, assim como João Bruning, pai de Francisca, que pediu para alguém chamar um médico hospedado no Seminário Imaculada Conceição.
“Ficamos sabendo desse doutor. Só que ninguém sabia quem era”, conta a pioneira. Descrito como alto, forte e aparentando ter mais de 40 anos, o médico pouco comunicativo estancou o sangramento, aplicou um antibiótico injetável e o encaminhou para o Hospital Professor João Cândido Ferreira, conhecido como Hospital do Estado, em Paranavaí. Para transportá-lo, como não havia ambulância naquele tempo, o colocaram sobre um colchão em cima de um caminhão. A princípio, Ludovico reagiu bem, mas não resistiu e faleceu na manhã seguinte.
A suspeita é de que os envolvidos no assassinato trabalhavam explodindo pedreiras com dinamite. “Achamos que o crime foi cometido por homens contratados para retirarem pedras de um rio perto de Graciosa. Eles estavam atuando na construção do seminário e se desentenderam na hora do pagamento. Me parece que queriam receber mais, então é provável que tenha sido um ato de vingança”, declara Francisca.
A pioneira se recorda do dia em que o frei Bonaventura Einberger falou sobre a chegada de um médico alemão para ajudar os mais necessitados. “Explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da guerra. Como a gente era bem jovem, ninguém tinha coragem de perguntar demais. Além disso, o ‘frei Bona’ não gostava de comentar sobre a Alemanha do período nazista”, relata. Apesar do conhecimento básico de português, o médico não enfrentou nenhum problema no distrito, até porque nos anos 1950 muitos moradores de Graciosa se comunicavam mais em alemão do que em português.
“Ele se vestia com simplicidade, acho que até para não chamar a atenção. Só que era fácil perceber que não era um médico comum”, avalia Francisca que certo dia foi até o seminário acompanhada da mãe para se consultar com o alemão de quem ninguém sabia o nome.
O médico demonstrava muita experiência profissional, tanto que soube lidar com todos os problemas de saúde dos pacientes. “As consultas com ele eram rápidas e quem não sabia alemão ia acompanhado de um intérprete. Me recordo que a primeira pergunta dele para a minha mãe foi: ‘Como está se sentindo?’”, cita a pioneira.
Polido, parcimonioso e reservado, o médico atendeu praticamente todas as famílias que viviam em Graciosa em 1954. Ainda assim, um fato curioso chamou a atenção dos moradores. O misterioso alemão não registrava prescrições médicas em papel nem pedia que alguém o fizesse para que ele apenas assinasse. “Era tudo falado, de boca mesmo”, garante Francisca Bruning Schiroff.
No distrito, o médico auxiliava o frei Bonaventura na distribuição gratuita dos medicamentos enviados da Alemanha pela Caritas Internacional, entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. “Eles também levavam remédios para o frei alemão Ulrico Goevert em Paranavaí. Era uma assistência muito boa. Realmente fazia a diferença”, pondera a pioneira.
Após ajudar muita gente em situação de carência social, um dia o homem partiu. A notícia foi lamentada pelos moradores de Graciosa. “Ele ficou mais ou menos um ano aqui. Ninguém sabe exatamente quando chegou nem quando foi embora”, confidencia Francisca. No distrito, o médico morou em um pequeno quarto no Seminário Imaculada Conceição. Poucas vezes foi visto em outros locais.
Alguns meses depois, Lidia Selhorst, esposa de Ludovico Selhorst, e também falecida, foi surpreendida ouvindo rádio, quando o locutor noticiou que estavam procurando o médico nazista Josef Mengele, conhecido como Todesengel, Anjo da Morte. A descrição era a mesma do médico que morou em Graciosa. “Falaram que o Mengele tinha inclusive uma cicatriz perto do pescoço. Quando ele se abaixou para prestar atendimento ao Ludovico, a Lidia viu essa cicatriz”, enfatiza Francisca Schiroff.
Como o frei Bonaventura Einberger foi enfermeiro da Wehrmacht, Forças Armadas da Alemanha nazista, até o final da Segunda Guerra Mundial, pode ser que eles tenham se conhecido anos antes. “Não dá pra afirmar até que ponto o ‘frei Bona’ o conhecia, mas a partida do médico foi suspeita. Acho que o frei ficou com medo de alguma coisa e recomendou que o homem partisse para outro lugar”, supõe a pioneira.
“Ele preferia crianças, gêmeos e anões”
Nascido em 11 de março de 1911 em Günzburg, na Alemanha, Josef Mengele se tornou um dos personagens mais famigerados da Segunda Guerra Mundial. Discípulo do geneticista Otman von Verschuer, com quem trabalhou em Frankfurt, Mengele tinha um doutorado em antropologia e outro em medicina.
Em 1937, ingressou no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e se voluntariou para trabalhar na SS Medical Corps como pesquisador de genética no reassentamento da Província de Posen, na Polônia. O papel de Mengele consistia em preservar a pureza racial dos membros da Schutzstaffel (SS). Sendo assim, casamentos só eram aprovados após análises invasivas e estudos sobre a árvore genealógica da noiva.
Em 1942, enviaram Josef Mengele para atuar na Frente Leste como cirurgião da 5ª Divisão Panzer. Ferido em combate, teve de ser transferido para o Oeste. Na Alemanha, foi promovido a capitão e se juntou mais uma vez ao geneticista von Verschuer no Instituto Kaiser Wilhelm, onde se concentravam os maiores estudos de antropologia, hereditariedade e eugenia da Alemanha, temas com os quais Mengele se identificava muito.
No instituto, o médico seguiu uma hermética linha de pesquisa baseada na qualificação racial e limpeza étnica. O seu trabalho foi determinante na criação do Aktion T4, programa de eutanásia e esterilização voltado para a identificação de pessoas consideradas “inaptas a se reproduzir ou viver”.
Meses mais tarde, transferiram Mengele para a rede de campos de concentração de Auschiwtz-Birkenau, na Polônia. Com o apoio incondicional do governo alemão, realizou experiências com pessoas que ele mesmo escolhia e qualificava como fracas ou inúteis. Documentos do The National WWII Museum, de Nova Orleans, nos Estados Unidos, responsabilizam Josef Mengele pelo envio de 400 mil pessoas para as câmaras de gás dos campos de concentração. “Ele preferia crianças, gêmeos e anões, pessoas com quem ele fazia experiências sem qualquer tipo de remorso”, comenta o pesquisador e historiador estadunidense Tom Gibbs.
Von Verschuer e outros cientistas receberam de Mengele muitos cadáveres, órgãos, esqueletos e amostras de sangue de crianças judias e ciganas. “Ele gostava de ‘cortejar’ suas vítimas, tanto que oferecia melhores condições de moradia e alimentação. Também tinha o hábito de presentear crianças com leite e doces”, relata Gibbs.
Em janeiro de 1945, após a evacuação de Auschwitz-Birkenau, Mengele percorreu alguns campos menores até ser capturado. Ficou preso na Alemanha até junho do mesmo ano, quando conseguiu fugir para a Argentina com um nome falso. Mais tarde, partiu para o Paraguai e depois se mudou para o Brasil. Supostamente, Mengele morreu afogado em 7 de fevereiro de 1979 em Bertioga, no litoral paulista. No entanto, até hoje há pesquisadores que refutam o motivo e a data da morte.
Enterrado no Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, na grande São Paulo, Josef Mengele teve os ossos exumados em 1985, quando uma equipe de especialistas do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) confirmou a sua identidade. Em 1992, foi feita uma ratificação por meio de análise em DNA.
Saiba Mais
Há inúmeros relatos de moradores de Graciosa e de Paranavaí que viram o médico caminhando sozinho pelo Bosque de Graciosa em 1954.
O que também despertou a suspeita dos moradores de Graciosa é que o misterioso alemão raramente circulava pela área central do distrito.
A 137 quilômetros de Paranavaí, pioneiros de Mamborê, no Centro Ocidental Paranaense, afirmam que Josef Mengele, usando o nome de Josef Kanat, trabalhou como médico no então distrito de Campo Mourão em 1956.
No mundo todo, o médico nazista inspirou livros, filmes, documentários, músicas e programas especiais para a TV. No Brasil, a obra mais conhecida é o filme “Meninos do Brasil”, de 1978. Em 2013, a cineasta argentina Lucía Puenzo lançou o filme “Wakolda”, também inspirado na vida do médico, principalmente em sua passagem pelo Sul da Argentina.
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