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Nos tornamos hipócritas
Todos nós nos tornamos hipócritas ao longo da vida, e por diversos fatores, incluindo contexto, assimilações, crenças e influências, mas a diferença é que há aqueles que reconhecem a própria hipocrisia partir de algum momento e, considerando implicação, optam por tentar diminui-la enquanto outros preferem ignorá-la e/ou ampliá-la.
Há muitas formas de hipocrisia, e tanto aquelas que aceitamos e incitamos podem ser tão prejudiciais quanto as que falseamos com outras roupagens para defender nossas inclinações, predileções e conveniências.
Para muitas pessoas o mundo diz que elas devem ser hipócritas e elas sustentam que esse é um tipo de lei da sobrevivência – que a hipocrisia permite um tipo de elevação que não a subtrai, mas proporciona algo tão belo e bom na sua artificialidade que subtrai as considerações de impacto da hipocrisia.
Basicamente o ser humano aprecia as hipocrisias convergentes aos seus interesses, mas deprecia as demais, que, pela própria força oposta ao alheamento, e com um pouco de atenção, iluminam o que ele gostaria de velar.
Sempre encontro pessoas reclamando da vida e do mundo
Sempre encontro pessoas reclamando da vida e do mundo, e às vezes algumas se incomodam quando pergunto respeitosamente se elas estão fazendo algo para contribuir com alguma mudança, se elas não concordam com o status quo. Normalmente há uma corrente transferência de culpa a terceiros, como se isso garantisse uma isenção de manifestação prática. Ou pior do que isso, há a defesa consciente ou inconsciente do fatalismo. E isso me leva à conclusão de que a crítica muitas vezes existe somente pela crítica, arredada de seu sentido utilitário, porque a vontade é menor do que o conformismo.
Acredito que o ideal de muitas pessoas não é um mundo melhor para todos, mas um mundo melhor para elas e talvez para aqueles que elas julguem merecedores desse mundo ideal. Vivemos em um mundo onde desde muito cedo as pessoas são condicionadas a buscarem um futuro digno para elas. Mas muitas ignoram que um futuro digno para elas pode depender essencialmente da busca por um futuro melhor para os outros também.
A verticalização em detrimento da horizontalização é comumente ignorada por um viés se não individualista, talvez espuriamente coletivista. Isso é apenas uma simplista inferência sobre a desconsideração em relação à importância de um clamor mais do que pontual da alomorfia ou mudança estrutural em uma sociedade.
Acho que se reunir com amigos em algum lugar para fazer críticas às coisas pode ser interessante, mas se não passa disso, se não há ações nem mesmo partindo da nossa recusa em aceitar algo que consideramos, de fato, inadmissível, e sobre o qual temos poder de reação, esbarramos no clássico tartufismo, na demagogia.
Quando saio às ruas, sempre vejo homens reunidos em algum lugar fazendo críticas – em bares, cafés, sob alguma marquise. Passam horas, dias, meses, anos naqueles lugares. Creio que reclamam apenas para passar o tempo, para ser ouvido (mesmo que minutos depois ninguém se recorde do que ouviu), porque as críticas nunca mudam, e se não mudam é porque, esperando uma mudança que não parta deles, seguem imersos na inação.
Imagine um mundo onde não déssemos a mínima para coisas
Imagine um mundo onde as pessoas não dessem a mínima para coisas, ou pelo menos não as exaltassem em demasia ou atribuíssem valor acima da vida, porque coisas são basicamente o que são – em muitos casos, produtos aos quais atribuímos mais valor pelo que nos custam, pela exceção, pelo distanciamento que existe entre elas e os outros, do que pelo que são em um sentido funcional ou mesmo hedonista.
A ausência de distinção baseada no poder econômico ou no “acúmulo de coisas que não são acessíveis para uma maioria” possivelmente exigiria um esforço intelectual para se destacar, levando em conta que platitudes como “o que eu tenho que você não tem” não chamaria mais a atenção, e simplesmente porque o ter, materialmente, talvez fosse relegado à insignificância, ou pelo menos à adiáfora.
E neste contexto o ser precisaria estar em constante evolução, ao contrário do ter, que não exige evolução moral de ninguém, caso a pessoa não queira. Prova disso são pessoas que nascem em um ambiente de grande poder econômico, e de repente, optam por não fazer nada no decorrer da vida a não ser gastar dinheiro para ocupar o tempo, desconsiderando todo o resto.
Há também pessoas com muito dinheiro que tendem a considerar seus chamados esforços, envolvam eles atividades ilícitas ou não, desrespeito ou não à vida e a dignidade humana e não humana, como sendo únicos, singulares, e por isso devem ser recompensados de forma dissemelhante, mesmo que isso signifique uma diferença do tipo: “O que você jamais ganhará a vida toda eu ganho em uma semana”. “Eu fiz o que você não seria capaz de fazer. Por isso estou onde deveria estar, onde não é o seu lugar.”
“Porque o meu esforço é muito maior que o seu, sou muito mais inteligente que você, então mereço, de fato, ganhar muito mais que você; e a você resta me servir, mesmo que para isso tenhamos que criar um simulacro de evolução para evitar que você ache que sua vida não está melhorando.” Em síntese, uma sutil estagnação oscilante. “Afinal, porque isso é o que cabe à sua limitada competência que está sempre longe de se igualar à minha”, diriam.
Muitas das mazelas que existem no mundo estão intrinsecamente relacionadas ao fato de que muitos daqueles que têm poder encaram sua força e distinção econômica como uma forma de certidão de superioridade, e o mundo diz que eles estão certos, por mais que leis que não valem na prática tentem informar o contrário. Porque leis são fundamentadas na plasticidade. Existem mais para parecer do que para ser.
Qual é a nossa dieta natural?
Collura: “Dietas vegetarianas e veganas podem proporcionar uma vida inteira de nutrição saudável”
Em 2004, o proeminente biólogo Randall Collura, que tem doutorado em biologia molecular e biologia antropológica pela Universidade Harvard, publicou um ensaio intitulado “What is our natural diet and should we really care?” A obra integra o livro “Food for Thought: The Debate Over Eating Meat”, editado pelo conceituado filósofo moral Steve Sapontzis, especialista em direitos animais e ética ambiental com doutorado em filosofia pela Universidade Yale.
No ensaio, Collura, que dedicou uma parcela de sua vida a estudar sobre a evolução das dietas humanas, defende que não existe uma dieta natural humana, mas sim diversas que foram colocadas em prática por inúmeros fatores – muitas vezes desconsiderados. Também critica a ideia de um retorno a um “estado natural”, defendendo que esse “estado natural” nunca existiu na singularidade, já que as sociedades humanas, e aquelas que deram-lhe origem nunca foram uniformes.
Além disso, destaca que estamos distantes de nossos ancestrais há milhares e até milhões de anos – e não há como ignorar as transformações contextuais. Logo, no seu entendimento, não faz sentido o ser humano crer, por exemplo, que a alimentação de seus ancestrais seria a salvação para problemas atuais (chamando isso de soluções simples para problemas complexos) – e ignorando a ideia de uma “tábua de salvação”. Ele aponta falhas em dietas como a paleolítica que culpa o surgimento da agricultura como responsável pelo declínio da saúde humana. “Curiosamente, os defensores da dieta paleo enfatizam a origem recente (nos últimos 100 anos ou mais) das principais doenças que marcaram a civilização ocidental; no entanto, a agricultura tem muitos milhares de anos. Se os alimentos neolíticos eram os culpados por essas doenças, teríamos uma história de vários mil anos dessas doenças”, argumenta.
Collura vai além – aponta inconsistências em relação a todas as dietas radicais. E não só isso, discute o mito do “Jardim do Éden”, o anseio do ser humano que, espelhando-se romanticamente no passado, espera reencontrar a dieta perfeita, como se isso permitisse uma proximidade com a ideia de um paraíso terreno, puro, livre de moléstias. Arrogância dietética e a crença em uma dieta mitológica são vistas por ele como inimigas do bom senso. O biólogo também cita a contradição de quem critica veganos por suplementarem B12, mas consome muitos alimentos enriquecidos com vitaminas – ignorando que “suplementa” diariamente sem perceber ou reconhecer. Randall Collura enfatiza ainda que dietas vegetarianas e veganas podem proporcionar uma vida inteira de nutrição saudável:
Qual é a nossa dieta natural? Essa tem sido uma questão central no movimento vegetariano dos últimos 150 anos ou mais. Autores vegetarianos exploraram a questão por meio de anatomia comparativa e fisiologia de diversificada sofisticação. A conclusão tem sido geralmente de que os seres humanos são mais adequados a uma dieta vegetariana, o que não surge como uma grande surpresa. As evidências apresentadas, no entanto, nunca foram definitivas e acredito que nunca será. Implícita nessa questão é a crença de que nossa dieta natural certamente seria a melhor dieta para nós.
Natural é igual a melhor – não é mesmo? Talvez nossos mitos enuviaram nosso pensamento. Mesmo se pudéssemos determinar nossa verdadeira dieta natural, seríamos capazes de encontrar os alimentos que a compõe? Nós não os encontramos em nossos supermercados locais – nós mudamos nossos alimentos tão dramaticamente quanto mudamos nossos hábitos alimentares. Deveríamos mesmo estar fazendo essa pergunta em primeiro lugar? Ou deveríamos perguntar, em vez disso, qual seria a melhor dieta para nós hoje, com nosso estilo de vida atual e nossas escolhas alimentares, e esquecer sobre a mítica (natural) dieta perfeita já perdida? Vamos explorar a questão.
O Jardim do Éden é um mito poderoso e difundido pelo menos na cultura ocidental. Alusões a esse mito estão em toda parte. Cobras, maçãs, folhas de figueira e o conceito de um paraíso tranquilo ou da “Idade do Ouro” estão tão enraizados na nossa consciência coletiva que são tomados como referência. A ideia é estendida à nossa história evolutiva também. Vivíamos em uma floresta paradisíaca até que alguma coisa (mudança climática?) nos forçou a nos mudarmos para a savana para cuidarmos de nós mesmos até perdermos a nossa inocência.
Talvez esse mito ressoe tão universalmente porque, em parte, a história espelha nosso próprio desenvolvimento como indivíduos. Somos nutridos enquanto crescemos em um lugar seguro onde somos assistidos por seres poderosos com quem partilhamos um interesse emocional. Eventualmente, é esperado que deixemos esse bom lar para cuidarmos de nós mesmos (e isso envolve a perda da nossa inocência). Até mesmo o nosso conto científico da evolução da vida na Terra é contado como um mito da criação, conforme a narrativa sempre começa e termina com a nossa evolução.
Essa mitologia faz com que estejamos abertos a um chamado “retorno à natureza”, para recuperar a “sabedoria antiga” e viver uma vida mais primitiva. A seguinte citação é de um livro publicado em 1896 que defende uma dieta crudívora, baseada principalmente em frutas e castanhas; o autor é Adolf Just, um naturopata alemão:
“No paraíso, o homem originalmente viveu livre do pecado e da doença, em perpétua alegria e límpida felicidade. Mas o homem perdeu o paraíso – foi expulso de lá. Os mitos antigos, especialmente os mitos sobre o paraíso, que encontramos em todos os povos civilizados, incorporam as mais profundas verdades sobre o estado original do homem e a história primitiva da humanidade.”
Como o mito do “Jardim do Éden” se enquadra à realidade? Não muito bem. Os últimos 150 anos ou mais trouxeram uma revolução na compreensão científica sobre os nossos parentes macacos mais próximos e sobre a nossa verdadeira história evolutiva. Até os anos 1970, nossa associação com os primatas era consideravelmente incerta, embora sempre tenhamos sido considerados da mesma família dos grandes símios. Desde então, nossa estreita relação com os chimpanzés foi descoberta, sem qualquer dúvida. É muito provável que os ancestrais dos modernos seres humanos estivessem vivendo (e provavelmente parecendo) como os chimpanzés de hoje, e isto há apenas seis milhões de anos.
Enquanto continuamos a estudar cuidadosamente nossos grandes primos, “a selva paradisíaca” que habitamos há muito tempo começa a parecer um pouco mais desagradável do que amistosa. No habitat do macaco moderno as frutas são abundantes em algumas épocas, mas bastante escassas em outras. As frutas que estão disponíveis não estão de acordo com os nossos gostos domésticos – são bem menos doces e muito mais rica em fibras do que aquelas que encontramos em caixas nos supermercados. Chimpanzés comuns fazem guerra contra os grupos vizinhos – matam os machos e muitas vezes ferem as fêmeas.
Macacos carregam parasitas, sofrem por causa de ossos quebrados e morrem de doenças que também afetam os seres humanos. Agressão e infanticídio são realidades desagradáveis de muitos primatas. Sob qualquer avaliação, estamos muito melhor ou temos potencial para sermos muito melhores do que nossos ancestrais e parentes mais próximos. O mito, no entanto, é muitas vezes mais poderoso do que a verdade – ou talvez seja apenas mais atrativo enquanto crença. A primeira coisa que precisamos fazer para olhar claramente esta questão é abandonar o mito do “Jardim do Éden”.
Como os autores vegetarianos analisaram nossa dieta no passado? Pegue um livro sobre vegetarianismo a partir da década de 1880 ou da década de 1980 e você provavelmente encontrará um capítulo sobre a nossa dieta natural. De fato, provavelmente não haverá muita diferença entre esses capítulos escritos com 100 anos de diferença. A lógica é simples: comparando nossa anatomia e fisiologia com a de outros animais, devemos ser capazes de determinar a dieta mais adequada para nós. Ouvi os mesmos argumentos feitos em um contexto evolucionário ou bíblico.
Chame-o de “determinismo físico dietético”. O foco geralmente é a forma e o tamanho do dente, comprimento e complexidade do trato digestivo e algumas outras características. Somos mais como os carnívoros ou como os herbívoros? E quanto aos onívoros? Humanos são classificadores – gostamos de colocar as coisas em categorias – mas quão rígidas são essas designações? No mundo natural, não há divisões rígidas como “os carnívoros”. Não é que não haja grupos naturais formados por linhas de descendência, mas esses grupos não são necessariamente homogêneos.
Além disso, os animais substituem o que comem ao longo do tempo. E eles devem fazer isso. Porque todos os mamíferos derivam de um ancestral comum, mudanças na dieta devem ter ocorrido em muitos pontos na evolução dos mamíferos, incluindo aqueles que deram origem aos nomes. É claro que não somos carnívoros como os gatos – meticulosamente adaptados a uma dieta de carne. Poucos argumentam que somos, no entanto. É claro que não somos herbívoros como os ruminantes artiodáctilos (isto é, as vacas), também. Eles têm um sistema digestivo evoluído que, com a ajuda de micróbios que digerem celulose, podem processar forragens que outros mamíferos não podem.
Curiosamente, um grupo de macacos do Velho Mundo (e uma ave do Novo Mundo) desenvolveram um sistema similar de forma independente. Outros mamíferos, incluindo alguns primatas, digerem alguns alimentos fibrosos no intestino grosso. O intestino posterior dos humanos não parece ser sido ampliado para esse propósito. Na verdade, nosso sistema digestivo não parece muito especializado. Nossos dentes também não ajudam muito. Uma coisa que define humanos e nossos ancestrais hominídeos (espécies que evoluíram desde nossa divisão com os chimpanzés) são os caninos reduzidos.
Um rápido olhar para os grandes símios (chimpanzés, gorilas e orangotangos) mostra caninos bem grandes, ainda assim eles são supostamente nossos primos vegetarianos. Acontece que esses dentes são usados em competições entre espécies – machos competindo e às vezes brigando por fêmeas. E se os machos não lutam pelas fêmeas (ou seja, formam pares), os caninos grandes podem ser desnecessários. Nossos dentes podem ter mais a dizer sobre nosso sistema social do que nossa dieta. O ponto de partida é que nada sobre a nossa anatomia ou fisiologia dita uma dieta vegetariana (ou a exclui também). Inclusive para o determinismo físico dietético.
E as dietas dos nossos parentes próximos? Estudos sobre os hábitos alimentares dos grandes primatas têm claramente mostrado que os nossos parentes não humanos mais próximos sobrevivem primariamente de vegetais. Mas eles são realmente vegetarianos? É importante ter em mente que o vegetarianismo é um conceito humano. Outros animais podem seguir dietas à base de plantas, mas eles não são vegetarianos no sentido de evitar intencionalmente alimentos de origem animal. Por exemplo, muitos primatas consomem insetos quando estão disponíveis. Chimpanzés adoram cupins e são especialistas em desenvolver ferramentas para capturá-los.
Formigas e vermes também estão entre os alimentos preferidos dos macacos. Chimpanzés comuns também caçam e comem mamíferos, embora isso seja mais raro. Os chimpanzés pigmeus (bonobos) não caçam tanto, mas ainda ocasionalmente comem carne. Esta espécie, tão relacionada aos humanos quanto os chimpanzés comuns, também geralmente é menos agressiva. Ambos os chimpanzés preferem frutas maduras quando estão disponíveis. Em geral, nossos parentes mais próximos têm dietas que são baseadas principalmente em vegetais, mas nenhum deles é vegetariano no nosso sentido da palavra.
E quanto à comida na evolução humana? Desde que aprendemos mais sobre a nossa história evolutiva, autores modernos que defendem várias formas de alimentação ampliaram as comparações dietéticas para incluir espécies e dietas do nosso passado. Ao longo dos últimos seis milhões de anos, nossos ancestrais existiram em pequenos grupos nômades que viviam da caça e da coleta. A quantidade de carne e outros alimentos de origem animal provavelmente subiu de forma gradual até se tornar uma parte significativa de algumas dietas dos nossos antepassados.
Como significativa é uma questão em aberto, opiniões podem dizer mais sobre o pensamento atual em relação à evolução humana do que sobre qualquer estimativa científica real. Essa pilha de ossos com marcas de ferramentas de pedras corresponde a uma refeição ou a um completo estilo de vida? Como poderíamos dizer se a caça era algo que era feito três vezes por semana ou três vezes por ano? Recolher e comer um pedaço de fruta ou desenterrar um tubérculo não deixa registros de traços de fósseis.
Reconstruir dietas antigas não é tarefa fácil. Na verdade, não é tão fácil determinar o que as pessoas estão comendo hoje, seja nas sociedades contemporâneas de caçadores-coletores ou na nossa própria. As dietas mudam frequentemente numa base sazonal e para obter uma imagem completa, as pesquisas precisam ser feitas ao longo do ano. As dietas podem mudar até de ano para ano dependendo da precipitação de chuvas, disponibilidade e outros fatores. Uma análise mundial recente das dietas dos caçadores-coletores apontou uma proporção relativamente alta de grupos de alimentos de origem animal para mais da metade das necessidades energéticas, independente de latitude.
No entanto, o registro arqueológico mostra claramente mudanças substanciais nas capacidades tecnológicas dos nossos antepassados há cerca de 50 mil anos. Como poderia a redução na capacidade de caça do arcaico Homo sapiens ou do Homo erectus alterarem a relação de alimentos caçados vs. alimentos coletados? Se pudéssemos voltar no tempo e pegar uma amostragem das sociedades humanas espalhadas por todo o globo há 30 mil anos atrás e até 90 mil anos atrás – olhando para o que eles comiam, como viviam e morriam – tenho certeza de que encontraríamos uma enorme quantidade de variabilidade.
Mudanças na dieta ocorridas durante a maior parte da evolução humana foram graduais, embora certamente não insignificantes. As mudanças que ocorreram com a invenção da agricultura contudo, tanto em termos de dieta como de estilo de vida, foram rápidas e sofreram guinadas dramáticas em relação a tudo que existia anteriormente. De certa forma, nossas dietas provavelmente se tornaram mais baseadas em plantas e menos dependente de alimentos de origem animal (de acordo com a disponibilidade de milhões de anos atrás).
No entanto, os grãos que se tornaram a base das dietas neolíticas (Nova Idade da Pedra: após cerca de dez mil anos atrás) foram introduzidas pouco antes de sua domesticação. Mudanças nos níveis de atividade, mobilidade e densidade populacional também foram pungentes partindo de um estilo de vida de pequenos grupos de caçadores-coletores que se espalharam pelo mundo no período Paleolítico (Período: antes de 10 mil anos atrás).
Os últimos cem anos trouxeram mudanças ainda mais dramáticas para as dietas e os estilos de vida das sociedades ocidentalizadas. Agricultura mecanizada e outros aspectos da industrialização reduziram ainda mais o gasto médio diário de energia (exercícios). As redes globais de comércio garantem que plantas e animais domesticados em uma parte do mundo sejam criados em climas semelhantes no mundo todo. O Mundo Novo tem domesticado tanto o milho e a batata que são cultivados na África e na Europa quanto a Ásia domestica o arroz criado no Novo Mundo.
Muitas dessas mudanças são benéficas; contudo, algumas reduzem drasticamente a qualidade da dieta. Refinamentos em técnicas de fresagem que separam eficientemente o farelo e o germe do trigo resultam em uma farinha que pode durar mais tempo nas gôndolas, mas com menor valor nutritivo. A produção de açúcar refinado de cana e beterraba também alterou drasticamente a relação entre nutrientes e calorias. Agora é possível consumir uma dieta adequada em total de calorias, mas quase completamente desprovida de nutrientes. Outra mudança substancial nas dietas ocidentais foi a inclusão de maiores quantidades de carne proveniente de animais domesticados, que tende a ser muito maior em gordura do que a carne proveniente da caça selvagem.
Então, até onde devemos ir para encontrar a nossa “dieta natural”? Cem anos, 500 anos, 20 mil anos, mais? Defensores da dieta paleo (que inclui apenas alimentos disponíveis antes do surgimento da agricultura) diriam que os seres humanos modernos têm a genética e constituição dos nossos antepassados paleolíticos, mas dietas e estilos de vida que são muito diferentes dos que eles tinham. As “doenças da civilização” – o que inclui aterosclerose, hipertensão, diabetes, câncer, osteoporose, perda auditiva, cáries, outras doenças e obesidade – são o resultado da discordância entre a nossa antiga genética e nossos estilos de vida e dietas modernas – de acordo com esses defensores. Isso pressupõe que não nos adaptamos a esses novos estilos de vida e dietas.
Mas quanto tempo leva para se adaptar a uma nova dieta? O consenso emergente sobre a evolução genética é de grande variabilidade nas taxas de mudança. Nossos genes são uma colcha de retalhos de notável estabilidade e mudanças incrivelmente rápidas, dependendo das pressões seletivas nos genes individuais. Embora seja verdade que compartilhamos uma grande porcentagem de nossa composição genética com nossos ancestrais e outras espécies de primatas, assim como todos os outros animais, isso de forma alguma nega a importância das distinções genéticas.
As diferenças genéticas entre chimpanzés e nós mesmos são muito pequenas, mas as manifestações dessas diferenças são bem significativas. Além disso, mudanças na dieta parecem ser capazes de induzir mudanças evolutivas devido à importância central da dieta na sobrevivência das espécies. Um exemplo é a retenção da atuação da lactase (para digerir açúcar do leite ou lactose) em adultos cujos antepassados utilizaram o leite animal como fonte de alimento. Mudanças genéticas só começaram a ser investigadas recentemente e podem ter havido muitas adaptações genéticas em relação às mudanças dietéticas que ocorreram nos últimos 10 mil anos.
É muito menos provável que as mudanças na dieta e no estilo de vida que ocorreram desde a revolução industrial tiveram impacto significativo em nossa constituição genética. Curiosamente, os defensores da dieta paleo enfatizam a origem recente (nos últimos 100 anos ou mais) das principais doenças que marcaram a civilização ocidental; no entanto, a agricultura tem muitos milhares de anos. Se os alimentos neolíticos eram culpados por essas doenças, teríamos uma história de vários mil anos dessas doenças.
Por que autores que promovem a dieta paleo sugerem um retorno a uma dieta de mais de 10 mil anos para a prescrição de doenças que se tornaram um grande problema apenas desde a revolução industrial? Não há razões convincentes para começar a comer como um “homem das cavernas”. Talvez então, em vez de uma receita paleolítica para as doenças da moderna civilização, precisemos de uma receita neolítica. Ao contrário de questões relativas à proporção de alimentos de origem vegetal ou de origem animal nas dietas de nossos distantes ancestrais, é uma tarefa mais fácil realizar escolhas nos baseando em mudanças que ocorreram tão recentemente que temos registros escritos delas.
A dieta neolítica seria baseada em grãos integrais com uma proporção muito maior de alimentos não refinados, e muito menos carne e açúcar (a dieta macrobiótica, bem como dietas vegetarianas integrais poderiam ser consideradas neolíticas). Mudanças no estilo de vida incluem maiores quantidades de exercícios – embora não ao nível dos caçadores-coletores contemporâneos. Não estou sugerindo que todos os aspectos da vida neolítica devem ser replicados. No entanto, existem muitos aspectos da ecologia industrial que devem ser questionados. O generalizado uso de pesticidas, herbicidas, conservantes e outros produtos químicos em nossa comida têm consequências a longo prazo que são pouco consideradas e estudadas. Muitos desses têm benefícios incontestados, mas sem uma verdadeira compreensão dos custos – e decisões apropriadas sobre seu uso nunca podem ser tomadas.
Outro movimento dietético popular que olha para trás em sua busca por uma dieta perfeita é o crudivorismo. Os defensores das dietas crudívoras gostam de dizer (com escárnio) que os humanos modernos são os únicos animais que cozinham a comida. Quanto tempo faz que os humanos cozinham a comida é ainda uma questão ativa na antropologia. É seguro dizer que em algum ponto na evolução humana começamos a cozinhar alimentos e antes disso nossas dietas eram todas cruas. Essa mudança pode ter sido tão antiga quanto a origem do Homo erectus (1,8 milhão de anos atrás) ou tão tarde quanto a origem do Homo sapiens (40-100 mil anos atrás).
De qualquer forma, não há provas de que começar a comer alimentos cozidos foi prejudicial para nós – muito pelo contrário, se ponderarmos relatos imparciais que os humanos estão fazendo muito bem em comparação com os nossos parentes macacos que comem alimentos crus. O atual movimento crudívoro é um desdobramento do movimento vegetariano, e comer cru é por vezes considerado o “próximo nível dietético”. Onde exatamente essa progressão pode levar não está realmente claro. “Respiratorianismo” talvez? De qualquer forma, pode ser instrutivo olhar para um assunto do movimento crudívoro – enzimas alimentares.
O conceito de enzima alimentar pode ser resumido da seguinte forma: As células vivas contêm enzimas que mediam todas as atividades dentro da célula. Alimentos crus, incluindo aqueles que foram aquecidos, mas não acima de uma temperatura crítica (essa temperatura varia de autor para autor) mantêm suas enzimas intactas. Estas enzimas ativas, obtidas a partir de alimentos crus, são um componente essencial da nossa dieta. Ao consumir alimentos que contêm enzimas ativas, nós conservamos nosso próprio suprimento de enzimas que pode então ser utilizado para funções celulares importantes, em vez da digestão.
As enzimas alimentares podem também ser absorvidas, redistribuídas e usadas em todo o corpo. Há quase uma importância de qualidade mística atribuída às enzimas. Dizem que elas contêm “a vida e a força”, e isso é destruído pelo cozimento (ou seja, pelo calor). É por isso que as dietas de alimentos crus também são chamadas de dietas de “comida viva”. Infelizmente, não há mérito para esse conceito, e como qualquer reflexivo estudante de biologia do ensino médio poderia provar, de forma alguma enzimas ativas em alimentos poderiam ser um componente dietético essencial.
O conceito de enzima alimentar começa com uma importante observação sobre a bioquímica das células vivas; o papel central das enzimas na mediação das reações bioquímicas. Por enquanto, tudo bem; mas um fato crucial sobre as enzimas é encoberto nesse argumento – as enzimas são MUITO específicas. Existem milhares de enzimas diferentes em uma típica célula, cada uma mediando uma reação bioquímica específica. Enzimas são proteínas, muitas vezes trabalhando em conjunto com íons de metal e cofatores. Proteínas são feitas de longas cadeias de cerca de 20 aminoácidos diferentes que estão dispostos em uma ordem específica. Essa ordem é ditada pela sequência de DNA que codifica a proteína.
A atividade das enzimas específicas é regulada pela produção de proteína quando necessária e pela complexa interação de enzimas que regulam as atividades de outras enzimas. O fato importante é que as enzimas não são intercambiáveis. Especificamente, enzimas de alimentos, não importando quão ativas, seriam inúteis para nós como enzimas porque elas foram produzidas para mediar as atividades das células na planta (ou nos animais) que se tornaram nossos alimentos. Enzimas necessárias para produzir um broto de grama de trigo são muito diferentes daquelas necessárias para produzir células de sangue vermelho.
Em qualquer caso, enzimas e outras proteínas estruturais não passam intactas por nosso sistema digestivo. Todo o propósito do sistema digestivo é quebrar macromoléculas para os seus componentes por absorção. As proteínas são quebradas em aminoácidos, amidos se convertem em açúcares e lipídios em ácidos graxos. Esses componentes são então transportados para as nossas células para se tornarem os blocos de construção das proteínas (incluindo enzimas), carboidratos e lipídios que requeremos em nossas células. Isso é biologia muito básica.
Além disso, não há nada místico sobre as enzimas. Algumas operam em altas temperaturas, e outras preferencialmente em baixas temperaturas. Algumas em pH alto, outras em Ph baixo. Algumas são muito instáveis e vão quebrar rapidamente enquanto outras (como a lisozima) podem ser fervidas em ácido e, em seguida, funcionam muito bem (na verdade é assim que os pesquisadores purificam a lisozima). Estas diferenças funcionais são resultado de pressões evolutivas específicas ao longo de períodos de tempo. Agora chega de enzimas.
Para ser perfeitamente claro, não há nada de errado com alimentos crus. Frutas frescas e vegetais são excelentes fontes de muitos nutrientes e até mesmo os guias nutricionais mais conservadores promovem o seu consumo. Por outro lado, cozinhar não deve ser considerado um pecado. Cozinhar destrói alguns nutrientes, mas torna outros mais disponíveis. Também garante uma ampla variedade de alimentos comestíveis que são quase inúteis como alimentos. Os seres humanos se saíram muito bem seguindo uma dieta baseada na mistura de alimentos crus e cozidos. Então, por que as pessoas são atraídas por dietas extremas, como a dieta crudívora ou a dieta paleolítica?
Parte é a mentalidade do “Retorno ao Éden”, delineada acima: soluções simples para problemas complexos. Testemunhos são outro fator poderoso para convencer as pessoas a mudarem suas dietas. Eles geralmente envolvem curas milagrosas de doenças graves e potencialmente fatais. E se alguém diz que estavam perto da morte e uma certa dieta os curou, outros tomam nota. Dessa forma, essas dietas assumem um caráter quase religioso e os seguidores desenvolvem um tipo de fé e fervor. Testemunhos não são provas científicas, no entanto, e as pessoas que promovem dietas completamente diferentes, muitas vezes apresentam depoimentos que são virtualmente intercambiáveis (talvez qualquer mudança de uma dieta de coca-cola e “junk food” seja uma boa mudança em potencial).
Se metade de um por cento das pessoas que tentam uma determinada dieta têm uma melhoria acentuada na saúde e os outros não mostram alterações (ou poucas), isso não é realmente um grande endosso (e as melhorias podem ter ocorrido por acaso). No entanto, se cinco mil pessoas tentarem essa dieta, ainda haverá 25 testemunhos impressionantes soando por aí. Para muitas pessoas em dietas extremas, comida torna-se uma obsessão. Um autor cunhou um termo para obsessão na busca por uma dieta perfeitamente saudável: “ortorexia nervosa”.
Isso não é para sugerir que a alimentação saudável é um distúrbio, mas que algumas pessoas em um esforço para encontrar uma dieta que seja uma combinação de promoção de saúde e pureza perfeita podem desviar-se para o caminho do transtorno alimentar. Nenhuma dieta permitirá que você viva para sempre – nossos primos símios certamente não. Por toda a nossa impureza alimentar, em média, superamos os chimpanzés por décadas.
O que tudo isso significa para vegetarianos e veganos? Essas dietas são naturais? Eu argumentaria que os humanos não têm uma dieta natural. Nós evoluímos seguindo uma ampla variedade de dietas contendo alimentos de origem vegetal e animal. Poderíamos gastar tempo e energia tentando descobrir o que eram, mas isso só nos diria por onde passamos, não onde estamos.
Realmente não sabemos quão saudáveis nossos ancestrais eram ou por quanto tempo viveram, de qualquer forma. Podemos ter certeza de que eles sobreviveram, é claro; de outra forma não estaríamos aqui. No entanto, como seres humanos modernos nas sociedades industriais ocidentais (ou qualquer sociedade contemporânea), queremos saber quais opções de alimentos e estilo de vida fornecem a melhor chance de uma vida longa e saudável aqui e agora. Há muita evidência científica que mostra que as dietas vegetarianas e veganas são tão potencialmente saudáveis quanto as dietas mistas. Não há razão para vegetarianos e veganos éticos sacrificarem suas éticas e alterarem seus hábitos de consumo para que suas dietas pareçam mais “naturais”.
Na verdade, pode-se argumentar que nenhuma dieta consistindo de alimentos hoje seja natural – e isso não é necessariamente uma coisa ruim. Nos últimos dez mil anos, não apenas houve uma mudança em relação ao tipo de alimento que comemos como também em relação aos próprios alimentos. Alguém do período paleolítico não reconheceria a maioria das frutas e legumes nos supermercados. Seleção artificial (pessoas escolhendo apenas certas sementes, geralmente das melhores plantas a serem semeadas no ano seguinte) tem produzido alimentos com menos fibras, mais doces e maiores que seus parentes naturais.
Eles também são selecionados por conterem menores quantidades de compostos que as plantas produzem para repelir herbívoros, como taninos, alcaloides e oxalatos. Lembre-se, é apenas no mito do Jardim do Éden que as plantas são criadas para o nosso benefício. No mundo real, as plantas normalmente não “querem” ser comidas e evoluíram todos os tipos de defesas. Nossa seleção qualitativa de alimentos (estou me referindo a alimentos integrais, não processados) pode não ser realmente “natural”, mas provavelmente é melhor do que em qualquer ponto do passado.
No entanto, é importante que veganos e vegetarianos não ignorem o potencial problema da deficiência de vitaminas e outros nutrientes sob a falsa suposição de que suas dietas são “naturais” e, portanto, perfeitas – uma noção comum em minha experiência. No mesmo filão, embora na direção oposta, é curioso perceber como a comunidade dietética tradicional sempre aponta a falta de vitamina B12 como um problema em uma dieta vegana – o que implica na ideia de que sem suplementos há uma dieta inerentemente deficiente e restritiva – faz isso enquanto ignora as muitas vitaminas e suplementos minerais adicionados aos alimentos comuns (iodo em sal, vitamina B em grãos, vitamina D no leite, cálcio em muitos alimentos, etc).
Fazer essas importantes adições tornam as “padronizadas” dietas mistas inerentemente deficientes e restritivas? Deficiência de certos nutrientes podem ter sido uma característica comum da existência ao longo da evolução humana, ou pode ser o resultado de mudanças muito recentes nas tecnologias de processamentos de alimentos e estilo de vida – e até mesmo ambos.
Em qualquer caso, as dietas vegetarianas e veganas não devem ser apontadas como exclusivas em relação a isso, mas vegetarianos e veganos não devem ser complacentes nesse sentido. Arrogância dietética e mitologia antiga não têm lugar na política alimentar moderna e na nutrição. Nem pressões de produtores e indústrias específicas de alimentos. Precisamos olhar, de maneira imparcial, quais regimes dietéticos promovem vidas saudáveis para as pessoas de acordo com suas opções de alimentos e estilo de vida. Financiadas por entidades que buscam uma resposta específica, muitas pesquisas nutricionais procuram respostas que são muito limitadas para responder questões maiores.
Inquéritos mais abrangentes que buscam abordar relações mais amplas entre longevidade, doença e dieta podem fornecer algumas respostas, e esta certamente é a melhor maneira de proceder. Nenhuma dieta jamais fornecerá uma vida potencialmente infinita, mitológica e 100% livre de doenças. Contudo, dietas vegetarianas e veganas podem proporcionar uma vida inteira de nutrição saudável.
Tradução: David Arioch
Referência
Sapontzis, Steve. Collura, Randall. What is our natural diet and should we really care? Food for Thought: The Debate Over Eating Meat. Prometheus Books (2004).
A criação de animais em regime industrial é um dos piores crimes da humanidade
O destino dos animais criados em regime industrial é uma das questões éticas mais urgentes do nosso tempo. Dezenas de bilhões de animais sencientes, cada um com sensações e emoções complexas, vivem e morrem em uma linha de produção. Os animais são as principais vítimas da história, e o tratamento dado em fazendas industriais aos animais domesticados é talvez o pior crime da história.
A marcha do progresso humano está repleta de animais mortos. Há dezenas de milhares de anos, nossos antepassados da idade da pedra já eram responsáveis por uma série de desastres ecológicos. Quando os primeiros humanos chegaram à Austrália há cerca de 45 mil anos, eles rapidamente promoveram a extinção de 90% dos grandes animais. Esse foi o primeiro impacto significativo que o Homo sapiens teve no ecossistema do planeta. E não foi o último.
Cerca de 15 mil anos atrás os humanos colonizaram a América, eliminando cerca de 75% dos mamíferos. Numerosas outras espécies desapareceram da África, da Eurásia e das miríades de ilhas ao redor de suas costas. O registro arqueológico de país a país conta a mesma triste história. A tragédia se abre com uma primeira cena que mostra uma população rica e diversificada de grandes animais, sem nenhum vestígio do Homo sapiens.
Na segunda cena, humanos aparecem, evidenciados por um osso fossilizado, um lança pontuda e talvez uma fogueira. A terceira cena se segue rapidamente, em que homens e mulheres ocupam o centro do palco e os animais mais grandes, juntamente com muitos pequenos, desaparecem. No total, os sapiens levaram à extinção cerca de 50% de todos os grandes mamíferos terrestres do planeta antes de cultivar o primeiro campo de trigo, moldar a primeira ferramenta de metal, escrever o primeiro texto ou cunhar a primeira moeda.
O próximo marco importante nas relações entre humanos-animais foi a revolução agrícola: o processo pelo qual nos transferimos de nômades caçadores-coletores para agricultores que viviam em assentamentos permanentes. Isso moldou uma forma de vida completamente nova na Terra: a dos animais domesticados. Inicialmente, esse desenvolvimento parece ter sido de menor importância, já que os humanos conseguiram domesticar menos de 20 espécies de mamíferos e aves, em comparação com inúmeras milhares de espécies que permaneceram “selvagens”.
No entanto, com o passar dos séculos essa nova forma de vida tornou-se uma norma. Hoje, mais de 90% de todos os animais grandes são domesticados (“grande” indica alguns animais que pesam pelo menos alguns quilogramas). Considere o frango, por exemplo. Há dez mil anos, era uma ave rara que se limitava a pequenos nichos do sul da Ásia. Hoje, bilhões de frangos vivem em quase todos os continentes e ilhas. O frango domesticado é provavelmente a ave mais difundida nos anais do planeta Terra. Se você medir o sucesso em termos de números, você vai perceber que frangos, bovinos e porcos são os animais mais rentáveis de todos os tempos.
Infelizmente, as espécies domesticadas pagaram pelo incomparável sucesso coletivo com um sofrimento individual sem precedentes. O reino animal conheceu muitos tipos de dor e miséria ao longo de milhões de anos. No entanto, a revolução agrícola criou tipos de sofrimento completamente novos, que só pioraram com o passar das gerações.
À primeira vista, os animais domesticados podem parecer muito melhores do que seus primos e ancestrais selvagens. Os búfalos selvagens gastam seus dias procurando comida, água e abrigo, e são constantemente ameaçados por leões, inundações e secas. O gato domesticado, ao contrário, goza de cuidados e proteção contra predadores e desastres naturais. É verdade que vacas e bezerros mais cedo ou mais tarde serão enviados para matadouros. No entanto, isso torna seu destino pior do que o dos búfalos selvagens? Os dentes do crocodilo são mais gentis do que as lâminas de aço?
O que torna a existência de animais domesticados e criados em fazendas particularmente cruel não é apenas a forma como eles morrem, mas sobretudo como vivem. Dois fatores concorrentes moldaram as condições de vida dos animais de fazenda: por um lado, os seres humanos querem carne, leite, ovos, couro, força animal e entretenimento; por outro, os humanos têm de garantir a sobrevivência e a produção a longo prazo dos animais de fazenda.
Teoricamente, isso deve proteger os animais da crueldade extrema. Se um produtor de leite ordenhar a sua vaca sem oferecer comida e água, a produção de leite cairá, e a própria vaca morrerá rapidamente. Infelizmente, os seres humanos podem causar um tremendo sofrimento para criar animais de outras maneiras, mesmo garantindo sua sobrevivência e reprodução.
A raiz do problema é que os animais domesticados herdaram de seus ancestrais selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que são superabundantes nas fazendas. Os criadores rotineiramente ignoram essas necessidades sem qualquer prejuízo econômico. Eles prendem animais em pequenas gaiolas, mutilam seus chifres e caudas, separam as mães da prole e criam seletivamente monstruosidades. Os animais sofrem muito, mas eles vivem e se multiplicam.
Isso não contradiz os princípios mais básicos da evolução darwiniana? A teoria da evolução sustenta que todos os instintos e movimentos evoluíram a partir do interesse pela sobrevivência e reprodução. Sendo assim, a reprodução contínua de animais criados para consumo provará que todas as suas necessidades reais são atendidas? Como uma vaca pode ter uma “necessidade” que não é realmente essencial para a sobrevivência e reprodução?
Certamente é verdade que todos os instintos e movimentos evoluíram para atender pressões evolutivas de sobrevivência e reprodução. Quando essas pressões desaparecem, no entanto, os instintos e unidades que se formaram não se evaporam instantaneamente. Mesmo que eles não sejam mais instrumentais para a sobrevivência e para a reprodução, eles continuam a moldar as experiências subjetivas do animal. As necessidades físicas, emocionais e sociais das vacas, cães e humanos atualmente não refletem suas condições atuais, mas sim as pressões evolutivas que seus antepassados encontraram há dezenas de milhares de anos.
Por que as pessoas modernas adoram tanto os doces? Não porque no início do século 21 devemos comer vorazmente sorvete e chocolate para sobreviver. Em vez disso, é porque quando nossos antepassados da idade da pedra encontravam frutos doces e amadurecidos, a coisa mais sensata a fazer era comer o maior número possível deles e o mais rápido possível [ponderando o contexto].
Por que os jovens dirigem imprudentemente, envolvem-se em protestos violentos e hackeiam informações confidenciais de sites? Porque eles estão obedecendo antigos decretos genéticos. Há 70 mil anos, um jovem caçador que arriscou sua vida a perseguir um mamute superou todos os seus concorrentes e ganhou a mão da mais bela jovem do lugar – e agora estamos presos aos seus genes.
Exatamente a mesma lógica evolutiva molda a vida de vacas e bezerros em nossas fazendas. Os antigos animais selvagens eram animais sociais. Para sobreviver e se reproduzir, eles precisavam se comunicar, cooperar e efetivamente competir. Como todos os mamíferos sociais, o gado selvagem aprendeu as habilidades sociais necessárias por meio desse jogo. Cachorrinhos, gatinhos, bezerros e crianças gostam de brincar porque a evolução implantou esse impulso neles.
Na natureza selvagem, eles precisavam brincar. Se eles não brincassem, eles não aprenderiam as habilidades sociais vitais para sobreviver e se reproduzir. Se um gatinho ou um bezerro nascesse com alguma mutação rara que os tornasse indiferentes às brincadeiras, eles provavelmente não gozariam de habilidades para sobreviver ou se reproduzir, assim como eles não existiriam se em primeiro lugar os seus antepassados não tivessem adquirido essas habilidades. Da mesma forma, a evolução implantada em cachorros, gatinhos, bezerros e crianças é um desejo irresistível de criar um vínculo com suas mães; uma mutação casual que enfraqueceu o vínculo mãe-bebê foi a sentença de morte.
O que acontece quando os criadores pegam uma novilha, a separam de sua mãe, a colocam em uma pequena gaiola minúscula, a vacinam contra várias doenças, dão-lhe comida e água, e então, quando ela tiver idade o suficiente, a inseminam artificialmente com o esperma de um touro? De uma perspectiva objetiva, essa novilha não precisa mais de vínculos maternos ou de companheiros para sobreviver ou se reproduzir. Todas as suas necessidades estão sendo atendidas por seus mestres humanos. Mas de uma perspectiva subjetiva, a novilha ainda sente um forte desejo de se unir à sua mãe e brincar com os outros bezerros. Se esses impulsos não forem satisfeitos, ela sofrerá muito.
Esta é a lição básica da psicologia evolutiva: uma necessidade formada ao longo de milhares de gerações continua a ser sentida subjetivamente, mesmo que não seja mais necessária para a sobrevivência e para a reprodução no tempo presente. Tragicamente, a revolução agrícola deu aos humanos o poder de garantir a sobrevivência e reprodução de animais domesticados, ignorando suas necessidades subjetivas. Em consequência, os animais domesticados são coletivamente os animais mais bem-sucedidos do mundo e, ao mesmo tempo, são individualmente os animais mais miseráveis que já existiram.
A situação piorou nos últimos séculos, período em que a agricultura tradicional cedeu à agricultura industrial. Nas sociedades tradicionais, como a do Antigo Egito, do Império Romano ou da China Medieval, humanos tinham uma compreensão muito parcial da bioquímica, genética, zoologia e epidemiologia. Consequentemente, seus poderes de controle e manipulação foram limitados. Nas aldeias medievais, as galinhas corriam livremente entre as casas, colhendo sementes e minhocas com o bico, e criando ninhos no celeiro. Se um campesino ambicioso tentasse confinar mil galinhas, mantendo-as em um espaço lotado, uma epidemia mortal de gripe aviária provavelmente teria eliminado todas as galinhas, assim como muitos aldeões.
Nenhum padre, xamã ou feiticeiro poderia ter impedido isso. Mas uma vez que a ciência moderna decifrou os segredos de aves, vírus e antibióticos, os seres humanos começaram a sujeitar os animais a condições de vida extremas. Com a ajuda de vacinas, medicamentos, hormônios, pesticidas, sistemas de ar condicionado e alimentadores automáticos, agora é possível colocar dezenas de milhares de frangos em pequenas gaiolas e produzir carne e ovos com uma eficiência sem precedentes.
O destino dos animais em tais instalações industriais tornou-se uma das questões éticas mais urgentes do nosso tempo, certamente em termos de números. Hoje em dia, a maioria dos grandes animais vive em fazendas industriais. Imaginamos que nosso planeta é povoado por leões, elefantes, baleias e pinguins. Isso pode ser verdade para o canal National Geographic, filmes da Disney e contos de fada infantis, mas já não é verdade para o mundo real. O mundo possui 50 mil leões. Em contraste, há cerca de um bilhão de porcos domesticados, 500 mil elefantes e 1,5 bilhão de bovinos domesticados; 50 milhões de pinguins e 20 bilhões de frangos.
Em 2009, havia 1,6 bilhão de aves selvagens na Europa, contando todas as espécies juntas. No mesmo ano, a indústria europeia de carne e ovos aumentou a produção de frangos para 1,9 bilhão. No total, os animais domesticados do mundo pesam cerca de 700 milhões de toneladas em comparação com 300 milhões de toneladas para humanos e menos de 100 milhões de toneladas para grandes animais selvagens.
É por isso que o destino dos animais de fazenda não é uma questão ética unilateral. Refere-se à maioria das grandes criaturas da Terra: dezenas de bilhões de seres sencientes, cada um com um mundo complexo de sensações e emoções, mas que vivem e morrem em uma linha de produção industrial. Há 40 anos, o filósofo moral Peter Singer publicou o seu livro canônico “Libertação Animal”, que fez muito para mudar a mente das pessoas sobre essa questão. Singer afirmou que a agropecuária é responsável por mais dor e miséria do que todas as guerras da história juntas.
O estudo científico dos animais tem desempenhado um papel sombrio nesta tragédia. A comunidade científica usou seu crescente conhecimento sobre os animais principalmente para manipular suas vidas de forma mais eficiente a serviço da indústria humana. No entanto, esse mesmo conhecimento demonstrou, sem qualquer dúvida razoável, que os animais de fazenda são seres sencientes, com relações sociais intrincadas e padrões psicológicos sofisticados. Eles podem não ser tão inteligentes quanto nós, mas certamente conhecem a dor, o medo e a solidão. Eles também podem sofrer, e eles também podem ser felizes.
Já é tempo de levar essas descobertas científicas ao coração, porque, à medida que o poder humano cresce, a nossa capacidade de prejudicar ou beneficiar outros animais cresce com ela. Por quatro bilhões de anos, a vida na Terra foi governada pela seleção natural. Agora é governada cada vez mais pelo design inteligente. Biotecnologia, nanotecnologia e inteligência artificial permitirão aos seres humanos remodelar os seres vivos a partir de novas formas ainda mais radicais, que redefinirão o próprio significado da vida. Quando chegarmos a projetar esse admirável mundo novo, devemos levar em consideração o bem-estar de todos os seres conscientes, e não apenas do Homo sapiens.
O artigo “Industrial farming is one of the worst crimes in history”, de autoria do professor de história israelense Yuval Noah Harari, foi publicado em 25 de setembro de 2015 no jornal britânico “The Guardian”. Harari conquistou fama internacional após a publicação do best-seller “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, lançado oficialmente em 2014.
Tradução: David Arioch
Considerações sobre a guerra civil síria que já matou mais de 470 mil pessoas
A batalha em Ghouta Oriental, na Síria, deixou mais de 600 mortos, principalmente crianças, desde o último dia 18 de fevereiro – 393 mil pessoas estão presas no cerco. De acordo com o Centro Sírio de Pesquisas Políticas, 470 mil pessoas já morreram desde o início da guerra civil síria em 2011. E cerca de cinco milhões já deixaram o país. Os dois lados já cometeram atrocidades, logo crimes contra a humanidade, ao longo dos anos. E claro, já foram financiados por “grandes e persuasivas nações”. Mais uma vez, seres humanos brigando por território ao custo de muitas mortes. De que adianta conquistar um território e perder muitas vidas? Qual é a coerência disso?
Veja a história da humanidade; civilizações e cidades que desapareceram por causa de guerras, restando apenas ruínas. É esse o presente que amargamos e o futuro que esperamos para a humanidade? Acredito que não seja novidade que os verdadeiros comandantes das guerras costumam ser aqueles que na realidade não vão à guerra, e pouco se importam, de fato, com aqueles que morrem nela; menos ainda se são inocentes – algo que chamam de “efeito colateral”. Simplesmente enviam seus intratáveis, inclementes, tolos ou ingênuos asseclas para matar ou morrer.
Quanto mais baixo o nível intelectual, mais fácil a persuasão. Egotismo, fundamentalismo religioso, ufanismo, patriotismo, nacionalismo, antropocentrismo, etnocentrismo ajudando a afundar a humanidade mais um pouco, e arrastando aqueles que nunca tomaram parte nessas ações – ideológicas ou não. Enquanto a vida não for vista como parte de uma unidade geral que deveria ser respeitada porque é essencialmente indissociável em termos de valores, para além das origens e de outras disparidades, vamos continuar cometendo os mesmos erros do passado; erros estes que por sinal podem ter até mais motivação econômica do que ideológica.
Às vezes, o que na realidade significa todo dia, penso em quantos seres humanos e não humanos estão morrendo enquanto digito algumas palavras. A vida vale pouco ou nada para aquele que não respeita nem a sua própria humanidade, logo menos ainda o direito dos outros. Creio, e há muito tempo, que guerra entre mocinhos e vilões é mais parte de uma fantasia, um conto romanesco, do que de uma realidade concreta, ponderando que em uma guerra os excessos são práticas usuais dos dois lados quando se visa atingir um fim.
Se alguém busca reparação por meio da violência, é preciso estar preparado para um possível ciclo interminável, como já havia referenciado Ismail Kadaré no romance “Prilli i Thyer” ou “Abril Despedaçado”. Talvez o símbolo que melhor represente a fealdade e a intransigência humana dos tempos atuais seja um ouroboros, a serpente que engole a própria cauda – e não no sentido simbólico mais auspicioso.
Eu exploro, tu exploras, ele explora, nós exploramos
Viver é um paradoxo, existir e resistir para não cair em contradição o tempo todo. É não explorar explorando, como um eterno espetáculo que denuncia a exploração, mas é financiado por quem a edifica e a avulta. Tartufismo, mendacidade, jacobice. Vivo imerso nessas palavras que não reconheço.
Eu exploro, tu exploras, ele explora, nós exploramos. É isso. É alentador não cair em armadilhas por alguns instantes. Minutos, talvez horas do dia em que não me torno refém de incongruências, degenerescências legitimadas. Amanhã vai ser diferente. Ou não. Farisaísmo. Arataca. Estratagema.
Não sou tão ruim. Não. Sou muito bom. Fecho os olhos. Me entorpeço com a minha ablepsia, inculpabilidade, condescendência, torpor. Sou ineludivelmente bom. Compro sorrindo o que alguém chorou produzindo. Não sei se quero reconhecer que morreu para ser transformado num algo ausente de i-den-ti-da-de.
Dissociado da verdade. É bonito. Não, é lindo. Mais lindo ainda se acredito que nasceu como produto final, sem gênese. Não tenho do que me queixar se enxergo apenas o que anseio vislumbrar. É só mais um dia, da bonomia à hipocrisia.
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Será que os animais que matamos são capazes de nos ver como demônios?
Será que os animais que matamos são capazes de nos ver como demônios no instante final? Não sei, porque até nisso existe uma certa nobreza por parte dos animais não humanos mais comumente explorados.
Nobreza? E qual seria a nobreza? O fato de que é possível que os animais reduzidos a alimentos e produtos nem saibam o que são demônios.
Não duvido que sejamos os únicos seres vivos capazes de ver, idealizar ou conceituar demônios. Os outros não são como nós, e principalmente aqueles que morrem subjugados pela malícia e pelo desconhecimento da própria força aliada à inocência, talvez morram nos observando e quem sabe apenas se perguntando:
“Por que não posso viver? Por que terminei assim?” Ou não. Quem sabe, desvanecem simplesmente sem saber quem são e quem somos. Morrem confusos, como é natural da vida curta que finda.
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Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das desigualdades
A redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa
Um dos fundadores da filosofia ocidental, o filósofo ateniense Sócrates ficou conhecido principalmente pela sua contribuição no campo da ética e da epistemologia. Suas crenças e ideias tornaram-se mundialmente famosas por meio de seus diálogos e discursos registrados por seus discípulos Platão e Xenofonte. Embora não seja possível afirmar se Sócrates foi vegetariano ou protovegetariano, na obra “A República”, escrita por Platão, está clara a sua preocupação sobre as consequências do consumo de carne e da exploração animal, além das implicações desse hábito na saúde humana.
Na página 77 de “A República”, Sócrates comenta com Glauco que levando em conta a forma como as pessoas viviam nas cidades, logo seria considerada imprescindível a criação de gado de todos os tipos. “Mas, levando este tipo de vida, teremos necessidade de muito mais médicos do que antes”, diz Sócrates a Glauco, que concorda com a associação do consumo de carne com o surgimento de problemas de saúde.
Sócrates também critica o hábito dos pastores da época de treinarem os cães para auxiliá-los no trabalho com os rebanhos de carneiros, reconhecendo que esse costume poderia endurecer a natureza dos animais, excitando a intemperança dos cães e tornando-os seres brutos. “A fome ou qualquer hábito vicioso os levaria a fazer mal aos carneiros e a tornarem-se iguais aos lobos [que apenas agiam instintivamente] dos quais os deveriam proteger”, declarou o filósofo ateniense na página 147 de “A República”. A observação de Sócrates revela uma preocupação com o fato da humanidade subverter a natureza animal para benefício próprio.
Na segunda parte de “A República” Platão apresenta Sócrates como um sujeito preocupado com as implicações morais do abate de animais, embora ele demonstre que, primariamente, o que o incomodava era a possibilidade de que o consumo de animais pudesse corromper cada vez mais a humanidade, a distanciando de sua natureza justa e complacente. “Esse hábito de comer animais não exigiria que abatêssemos animais que conhecemos como indivíduos, e em cujos olhos poderíamos olhar e ver-nos refletidos, apenas algumas horas antes de nossa refeição?”, questiona, ao que Glauco responde prontamente: “Esse hábito exigiria isso de nós.”
A coisificação dos animais não humanos é apontada por Sócrates e Glauco como algo capaz de impedir a humanidade de alcançar a felicidade. “E, se seguirmos esse modo de vida, não teremos de visitar o médico com mais frequência?”, questiona o filósofo, que recebe a confirmação de Glauco: “Teríamos tal necessidade.” Sócrates prevê ainda que o hábito de comer animais e criá-los com a finalidade de vendê-los transformaria o ser humano em alguém não somente ambicioso, mas ganancioso a ponto de espoliar propriedades vizinhas para ampliar suas pastagens:
“Se nosso vizinho seguir um caminho semelhante, não teremos que ir à guerra contra o nosso próximo para garantir maiores pastagens? Porque as nossas não serão mais suficientes para o nosso sustento, e nosso vizinho terá a mesma necessidade e entrará em guerra conosco?” Glauco corrobora o receio do ateniense ao confirmar que sim, deixando subentendido que a humanidade se tornaria mais suscetível à decadência e às tentações de uma sociedade imersa em desigualdades. Para Sócrates, a redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa – e um distanciamento cada vez mais crescente da forma mais genuína de felicidade.
Essas reflexões de Sócrates envolvendo a exploração animal e o consumo de carne vão ao encontro do estudo da virtude. Ele dizia que é mais importante a busca do desenvolvimento humano do que a busca pela riqueza material – um dos principais motivos da exploração de animais enquanto produtos. Sócrates acreditava tanto nisso que nem mesmo quando foi sentenciado à morte por questões políticas, segundo as obras “Apologia” e “Críton”, de Platão; e pessoais, de acordo com Xenofonte, cogitou curvar-se ao júri ou fugir em vez de enfrentar a injusta condenação. Nascido em 470 a.C., Sócrates, que preferiu à morte ao exílio, faleceu em 399 a.C, depois de ser obrigado a ingerir cicuta após 30 dias preso.
Referências
Platão. A República. Nova Fronteira (2014).
Platão. A República – Parte II. Escala Educacional (2006).
The Republic of Plato. Translation by F. Sydenham and T. Taylor, revised by W.H.D. Rouse. With introduction by Ernest Barker. London – Methuen (1906).
Kofman, Sarah. Socrates: Fictions of a Philosopher (1998).
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A humanidade provocou a extinção de 322 espécies de animais em 500 anos
De acordo com um levantamento feito pelo jornal Science, a humanidade provocou a extinção de 322 espécies de animais nos últimos 500 anos. Dois terços dessas espécies desapareceram nos últimos dois séculos. Na foto, o rinoceronte-negro do oeste, animal que já não existe mais em decorrência da caça.