Archive for the ‘Inocência’ tag
A chuva cativa sobre a colina
Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado
Desde criança, tenho sonhos incomuns, abstratos e talvez absurdos para quem gosta de defini-los como sinais, revelações ou tormentos. Na noite passada, por exemplo, assim que dormi me vi em um final de tarde em um casarão de madeira no alto de uma colina. Perto de mim, uma bruma morna envolvia crianças e animais que celebravam o Dia de Cosme e Damião em um vilarejo livre de adultos.
Empolgadas, elas gritavam e corriam por todos os lados numa balbúrdia incessante que vinha de um ponto mais baixo, onde a grama tornada seca tinha aspecto embusteiro de palha dourada – e se movia como pés e mãos de espantalhos disformes que gargalhavam sem boca sob as formas do sopro do vento.
Praticamente imóvel, eu observava a movimentação em meio a uma miríade de ventarolas de papel que balouçavam presas às cordinhas de varal. As dezenas de crianças sorriam e giravam em grandes círculos. O ato era simulado por cães e gatos enquanto balas, pirulitos e outros tipos de doces caíam do céu como chuva paulatina. Os picolés derretiam antes de tocarem a grama, se desfazendo como suco embrulhado. Pincelavam os corpos e as cabeças dos pequenos que tentavam em vão agarrar os palitos nus. Era como creolina em roupa. Grudava, se fixava, temendo o próprio fim.
Eu não interagia. Continuava no mesmo lugar, na minha inércia, observando tudo, sóbrio, mas alheio à consciência do tempo e da minha própria condição existencial. Eu era como um nada que antes fluía inidentificável. Na realidade, eu era a chuva que presa e reduzida a um compartimento do telhado acabou privada de tocar o chão, substituída por uma infinidade de doces.
Era injusto comigo que nasci para sentir a terra, umedecê-la e vivificá-la. Ela sempre corava em minha presença. Amolecia, me abraçava e me deixava penetrar em suas entranhas, onde eu poderia desaparecer ou me enredar pelo lençol freático, correndo junto de águas caudalosas. Uma aventura em tanto! Ela me aquecia e eu a esfriava, e aquilo fazia de nossa relação a mais poética das simbioses.
Deixei de ser onipresente naquele Dia de Cosme e Damião, não sei se por unção ou punição a pagão. E isso também pouco importava para quem numa condição limitada somente ansiava, titubeava diante da torrente cálida do sol que o mundo das crianças inebriava. Havia aroma dulcificado por todos os lados, anestesiando até meus sentidos inominados.
De repente, um silêncio solene se instaurou. Todos se calaram para ouvir o som da terra que se intensificou. “O que será que vem agora?”, refleti em confinamento. Depois vi doces brotando do chão. Alguns eram expelidos enquanto outros se descolavam de galhos minúsculos e retraídos sobre caules diminutos.
A cena que se repetiu muitas vezes em vários pontos do vilarejo deixou as crianças ensandecidas. Corriam tresloucadas, atropelando as esculturas de Cosme e Damião que ficavam pelo caminho. Já não representavam a elas mais do que obstáculos. Enquanto digladiavam pelos doces, saltando e golpeando, arrancando com violência as plantinhas que se encolhiam e tremiam curvadas sobre o solo, os cacos de gesso dos irmãos gêmeos voavam pelo chão, formando um caminho encascalhado de profanação.
As brincadeiras findaram, e como selvagens as crianças no chão se debruçaram. Comiam, comiam e comiam sem pestanejar, até que passando mal começaram a soluçar. Mesmo os mais escanifrados ganharam barrigas esféricas como enormes balões. Não conseguiam caminhar, e rolavam e choravam sobre a terra cada vez mais calcinada que o dorso queimava. Alguns resistiam e tentavam correr sobre as pontas dos pés nus, sem direção ou propósito – fuga pela fuga ou échapper par la fuite, como dizem os franceses.
Infindáveis, doces continuavam brotando do chão. Logo centenas de abelhas se aproximaram para polinizar as pequenas plantas que cresciam vertiginosamente. O calor seguiu aumentando. Em estado líquido, eu nada sentia. As crianças sedentas, vencidas pela hiperglicemia, berravam e praguejavam porque não havia água em nenhum lugar de fácil acesso. Encolerizadas com a gritaria, as abelhas abandonaram a polinização para perseguir e atacar os pequenos.
Uma garotinha cercada pelo enxame ficou dourada como a grama queimada, parando de correr e até de se mover. Estática, não tinha ferida, mas parecia sem vida, e seus olhos lembravam bolinhas recheadas de mel que traziam na íris o talhe de um anel. Ouvi alguém batendo na porta do casarão que me abrigava, enquanto o chão, rendido pela mais severa estiagem, rachava.
“Por favor, deixa a gente entrar! Por favor!”, gritavam dezenas de crianças em uníssono. Sem mãos e pernas, o que eu poderia fazer? Não havia ninguém além de mim no casarão. Uma a uma, elas caíram no chão, vitimadas por calor, sede e torpor. Resfolegavam com dificuldade, até que consumido por agitação sobrenatural tentei me desprender da calha entupida. Não consegui e chorei, multiplicando minhas águas e arrastando comigo tudo que me segurava.
Irritado, desci a colina gelado, numa torrente que se alongava e se dispersava por todo lado. Assim que me lancei sobre as crianças, lavando o corpo e a face, elas despertaram e se levantaram. Observaram o céu desanuviado e reconheceram que o mormaço tinha se dissipado. Abriram a boca e beberam a água límpida e fresca que caía em forma de chuva comunesca. Sim, as abelhas também sumiram, e com elas o chão eivado e os doces. O que restava era a vida que resistia consorte e gentia.
O pendão e o pé de feijão
Me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus
Um dia, quando eu tinha seis anos, eu e meu irmão Douglas estávamos em casa, na sala de estar, ladeados pelos colossais pendões ornamentais de minha mãe. Eram sarapintados e tão bonitos que ficamos em torno deles os observando e tocando. “Parece cabelo de milho, só que colorido!”, comentei.
A maneira como se esforçavam para acariciar o teto quando a brisa invadia a sala me dava a impressão de que queriam romper o telhado e ganhar os céus. Suas formas delgadas e perfiladas convidavam nossas mãos miúdas a fazerem cócegas um no outro com suas franjas. Em pouco tempo, e mais vermelhos do que um dos pendões, rolávamos pelo chão às gargalhadas, coçando a cabeça, o rosto e os braços. As cutucadas nas orelhas intensificavam as casquinadas.
A balbúrdia era tão grande que o piso de tacos, recém-lustrado pela minha mãe, vibrava e ganhava marcas de dedos, cotovelos e solas de pé. A verdade é que os pendões nos serviam até para brincadeiras de esconde-esconde. Sofria diante de nossa presença, e às vezes eu suspeitava que ele tremulava mais por medo do que por incidência fortuita da aragem.
“Agora vêm esses loucos em miniatura”, talvez aventasse, contraindo-se timidamente. Parecia que se encolhia com a nossa chegada, como menina empenhada em não ser notada. Muitas vezes, assim que cheguei da escola, joguei a mochila sobre a cama e fui até a sala. Corria em torno dos pendões, imitando um índio aprendiz de guerreiro. Ocasionalmente, enfiava a cabeça entre eles, observando a ausência de luz de um candeeiro. Fechava os olhos e sentia um quimérico e tenro perfume alvissareiro.
Imaginava um rio caudaloso, para onde eu poderia fluir como suas águas, se me lançasse sem sobrosso. Com as canetinhas de colorir, fazia alguns riscos no rosto. Urrava com voz falsa e continuava a incomodar os pendões até a hora de ir para a escola. Um dia, arrastei o vaso para mudá-lo de posição e senti uma força me impelindo quase à exaustão. Embora dissessem que os pendões não tinham vida, me assustei ao ver um pouquinho de água no piso de tacos, em torno e debaixo do vaso.
Achei que os pendões tivessem chorado por minha causa e parei de incomodá-los até a tarde em que conheci o conto “João e o Pé de Feijão”, do inglês Benjamin Tabart. À noite, em casa, deitei no beliche com olhos intumescidos, divaguei pela história narrada pela professora Inês, e considerei: “Se não tem vida, por que ele parece maior? Estranho…muito estranho…”
No dia seguinte, minhas dúvidas aumentaram exponencialmente quando vi que estavam maiores do que nunca. Contei ao meu irmão Douglas o que aconteceu e ele também se aproximou para confirmar a minha suspeita do pendão se passando por pé de feijão.
Minutos antes do almoço veio a certeza de que algo precisava ser feito. Havia grãos de feijão em torno do pendão. Sorrimos com chiata, coçamos as mãos e olhamos um para o outro, movimentando maquinalmente a cabeça de cima para baixo, em concordância. “Quer dizer que não consegue mais fingir? Uhum…”, concluí.
No dia seguinte, enquanto minha mãe e meu tio conversavam na varanda, eu e meu irmão fomos até a sala. Antes observamos o entorno para ter certeza de que não seríamos surpreendidos por ninguém. Douglas tirou um isqueiro do bolso e eu tirei outro. Frente a frente, acenamos com a cabeça, e acendemos os dois – encostando-os nos pendões que queimaram como gigantescos busca-pés silenciosos, privados de assobiar.
Logo se transformaram em um nada incandescente. O fogo subiu tão rápido que me lancei para trás, sentindo o corpo quente e a visão ligeiramente turva. Inclinando a cabeça para cima, enxerguei o teto esbraseado. O fogo, vivo como nunca tinha visto, transfigurou suas formas até o momento em que Tio Lu, com o auxílio de minha mãe, se aproximou para impedir que ele se espalhasse.
Assistimos tudo em inércia. A intervenção rápida só não impediu que o forro ficasse preto. E assim ganhamos o nosso próprio céu enlutado, sem lua ou estrelas, apenas uma estática escuridão que ofuscava a réstia escabreada que tentava iluminar os restos de pendão.
Ficamos de castigo por um bom tempo. Apesar disso, nos sentíamos heróis, crentes de que evitamos que o gigante comedor de gente jamais desceria pelo pé de feijão transformado em pendão. “Não ia demorar até ele chegar. Fizemos bem”, comentamos. Depois de algumas cintadas e uma semana sem sair para brincar, minha mãe descobriu porque ateamos fogo nos pendões.
No dia da revelação, fiquei sabendo que antes do acontecido o vaso dos pendões foi trocado por outro igual, porém com fundo raso, dando a impressão de que eram maiores. Além disso, a água em torno dos pendões foi derramada na manhã em que minha mãe foi ao nosso quarto com um balde de água para limpar o piso.
“Os grãos caíram no chão quando corri pela sala com um pacote aberto de feijões para atender ao telefone”, confidenciou. Ouvimos em silêncio, entendemos e reconhecemos nossa culpa. De volta ao quarto, sorrimos um para o outro. Atirei um grão de feijão cru em meu irmão e ele atirou outro em mim. Não era preciso articular palavra. “A inocência não se envergonha de nada”, dizia Jean Jacques-Rousseau.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Anu-preto, o sentinela de cauda cor de canela
Ele saltava e corria com astúcia, mantendo o bico levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte
Acredito que tenho sorte de nunca ter sofrido nenhum acidente sério na infância. Nem mesmo quebrei braço, perna ou qualquer outro membro. O que era visto até como anormal na minha rodinha de amigos peraltas. Um dia nos encontramos e cada um disse de que forma já tinha se machucado e quais foram as maiores consequências.
Alguns se orgulhavam de suas cicatrizes e contavam histórias fantasiosas. Na realidade, bem duvidosas. “Ah! Essa aqui na minha perna eu ganhei depois de lutar com um doberman gigante que morava ao lado da casa da minha vó, na Rua Maranhão. Ele me mordeu e eu mordi ele. Ainda fiz dele o meu cavalinho. Hoje, sempre que me vê, ele abaixa o focinho em sinal de respeito”, narrou Henrique com sete anos em 1992.
Naquele ano, Júlio chamou eu e meu irmão Douglas para irmos à sua casa na Avenida Juscelino Kubitschek brincar de pega-pega. Numa das fugas, comecei a circular em torno de uma lixeira presa à calçada. Por descuido, bati a cabeça na quina de ferro e senti a astenia tomando conta do meu corpo. A visão ficou ligeiramente turva e o sangue escorreu pelos meus cabelos, rosto e blusa de moletom.
A poucos metros de distância, no cruzamento com a Rua Chozo Kamitami, enquanto o Seu Roberto, pai de Júlio, tirava o carro da garagem para me levar ao Hospital São Lucas, notei um anu-preto me observando e soltando um pio sibilante. As penas de sua cauda lustrosa se abriam e se fechavam. Quando saímos, olhei pela janela e ele ainda continuava lá, mas já não emitia nenhum som.
No hospital, deitei numa cama e tive a minha primeira experiência com a sutura. Em 15 dias, logo que os poucos pontos foram retirados, fiquei passando a mão, sentindo a lombadinha ainda sensível. Era a minha mais importante cicatriz e todos podiam ver a pequena área raspada com navalha. Curiosos, meus amigos pediam para que os deixasse encostar o dedo. “Que massa, David! Eu nunca tinha visto uma cicatriz na cabeça!”, comentou Thiaguinho.
Durante a minha recuperação, nos reuníamos todos os dias de manhã na Rua Artur Bernardes, no Jardim Progresso, perto da Sanepar. Sentávamos no meio-fio em frente de casa e assistíamos a revoada de um grupo de anus-pretos, moradores de um enorme terreno coberto por matagal. Havia tanta vegetação que nem o muro de quase dois metros de altura impedia que o verde se esforçasse para ultrapassar os limites do cercado de lajotas. Meu avô dizia que a família de anus estava lá antes do surgimento do bairro.
“Esses aí são descendentes dos primeiros que já viviam aqui quando tudo isso era floresta. Eles continuam morando aí porque é onde se sentem mais seguros”, contou. Às vezes eu pendurava sobre o muro para observá-los. Rapidamente notavam minha presença e se aninhavam, protegendo as fêmeas e seus ovos azuis-esverdeados. Suas penugens não eram simplesmente pretas e uniformes. Tinham tons amendoados por causa da terra que pincelava o capim-melado e por consequência suas penas em dia de chuva intensa.
O líder do bando possuía cauda cor de canela, e foi assim que o reconheci como o anu-preto que piou em minha direção no dia em que me machuquei. Ele não era o maior, mas nas muitas vezes que o assisti sempre me pareceu o mais observador. Os outros companheiros nem se incomodavam quando ele saltava e corria com astúcia sobre eles, mantendo o bico curvado levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte.
Sempre que algum pássaro estranho ou outro bando de anu invadia o terreno, ele emitia um sinal sonoro curto e estrídulo, preparando os companheiros para uma ofensiva. Ao se deparar com até 15 anus-pretos em estado de alerta, o invasor, em grupo ou sozinho, normalmente não ficava mais de um minuto no terreno, um pedacinho de bosque que contrastava com a urbanidade ainda plácida das quatro vias que o cercava.
Não foram poucas as ocasiões em que vi os anus empoleirados sobre uma árvore se comunicando como se estivessem conversando. Suas vozes mudavam com tanta frequência que eu tinha a impressão de que faziam pilhérias. À tarde, sempre que o sol se lançava sobre os galhos e ramagens de uma sete copas, facilmente observada da janela da sala de casa, eu via três ou quatro anus-pretos se banhando com a luz solar.
Ocasionalmente levantavam a cabeça, abriam as asas e as chacoalhavam. As penas lucilavam com tanta graça que eles reconheciam o seu esplendor ao verem o próprio reflexo no bico reluzente do companheiro mais próximo. Daí estufavam o peito e cantavam em sequência, cobrindo as lacunas de silêncio deixadas pela ausência do vento. Só partiam quando a brisa se intensificava ou o sol se distanciava.
Mais tarde, mudamos para a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra. A minha nova rotina me impedia de ver os anus-pretos com frequência, tanto que cheguei a ficar quase um mês sem visitar o lugar. Num sábado, retornei ao terreno, subi em uma ripa e pendurei sobre o muro. Tive uma grande surpresa. Não havia nenhum anu-preto ou vegetação, apenas um enorme vazio que marcava o fim de uma história iniciada antes da chegada do primeiro pioneiro àquela área.
Percorri as ruas do Jardim Progresso e Jardim Paulista até ser vencido pela estafa. Queria encontrar o bando de Marrom, apelido que dei ao líder dos anus-pretos por causa da sua cauda acanelada. Não encontrei nenhuma pista. Era como se eles nunca tivessem vivido naquele lugar. Fiquei confuso e não me conformei com o fato de que nunca mais ouviria seus cantos maviosos ou veria seus olhos negros – ora escabreados, ora complacentes.
Bati palmas em algumas casas das redondezas para pedir informações. A maioria não se importava ou não fazia questão de me ajudar. “Isso aí traz coisa ruim, mau agouro, morte. Não é coisa de Deus. Foi bom que sumiram daqui”, declarou uma senhora que morava numa casa branca na esquina da Rua Artur Bernardes.
Meses depois, em uma tarde, escorreguei no piso molhado e bati a cabeça no chão quando minha mãe e minha tia Paula estavam lavando a garagem. Levantei estonteado, só que tive a impressão de que estava tudo bem apesar da pancada. Ledo engano. Coloquei a mão na cabeça e senti o sangue fluindo aos pouquinhos. Então chamaram meu pai, abriram o portão e me levaram ao Pronto Socorro.
Curativo feito, retornei para casa e sentei na calçada com as costas escoradas no portão. De repente, ouvi um canto curto e intervalado vindo de uma árvore do outro lado da rua. Olhei para o alto e vi Marrom. Me aproximei e notei que seu bico estava levemente deformado, mas cicatrizado, como se tivesse sido ferido há bastante tempo.
Cheguei mais perto e estendi a mão direita. No mesmo instante o pássaro abriu o bico e me lançou um coquinho que caiu na palma da minha mão. A fechei e desci da árvore. Continuei lá um bom tempo enquanto Marrom estufava o peito e cantava sozinho para o seu único espectador. Me contentava em saber que ele estava vivo, mesmo que eu estivesse imerso no desconhecimento de seu destino.
Antes de partir, emitiu um último som agudo que fez algumas folhas vibrarem e voou. Cada vez mais alto, se afastou do meu diminuto campo de visão. E sua cauda acanelada pelo capim-gordura, banhado em água de chuva e solo arenoso, desapareceu na esquina da Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, onde Marrom foi visto pela última vez.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Meu pai e eu, a despedida que não aconteceu
Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la, mas temia lhe ferir os dedos
No dia 21 de setembro de 1997, domingo, uma semana antes do meu aniversário, eu dormia em um colchão no quarto do meu irmão Douglas quando ouvi minha mãe chamando. Olhei para a porta e a vi nos observando naquela manhã que nem a primavera antecipada garantiu o sol aquecendo nossa janela. As luzes estavam apagadas, assim como o sol que costumava invadir nossa casa com um esplendor enternecido e jubiloso.
Cães e gatos, que se engalfinhavam por brincadeira todas as manhãs, também endossavam um silêncio que ecoava um vazio inenarrável. “David, Douglas, preciso muito dizer uma coisa… É muito sério… Seu pai não resistiu e morreu…”, revelou minha mãe com olhos afogueados e um tom de voz aluído que denunciavam ter ensaiado aquele momento por várias horas. Nos calamos por segundos que pareciam minutos. Então ela se afastou, se esforçando para reprimir a emoção.
Levei as mãos ao rosto e esfreguei os olhos que formigavam mais do que lã em eczema. “Poderia ser apenas uma alucinação, vai saber.” Prossegui com a fleuma, me negando a aceitar a gravidade da situação. Afinal, na minha concepção juvenil de finitude ninguém morria até que eu o visse morto. “Não, ele não pode ter morrido. É meu pai e pais não podem viver menos de 100 anos. Como ele tem 56, ainda restam 44. Não sei onde ele tá, mas tenho certeza que vai se levantar.”
Apesar da descrença no passamento, me sentei, aproximei os joelhos do peito e divaguei pelo passado recente. Lembrei das vezes em que fiquei de castigo sentado no chão ao lado da cabeceira enquanto meu pai lia um dos quatro ou cinco livros escolhidos a cada semana; um castigo que não era tão castigo porque me permitia ler junto. Recordei também das noites em que eu tinha de tocar polca no quarto. Com o passar das horas, parecia um martírio e eu só pensava em dormir. Criança que era, não tinha a mínima ideia de que um dia sentiria falta de suas cobranças, castigos, reprimendas, discursos bravios e das vezes em que simulou me bater e judiou da cama.
Algum tempo depois, me levantei, fui até o quintal e observei o céu. Apesar de tudo, ele continuava igual, na sua apatia que prenunciava a aurora primaveril. Até a pequena plantação de hortelã seguia galharda, exalando profuso frescor. Aquilo era uma ofensa pra mim que perdi meu pai na madrugada. “Vou lá fora!”, pensei. Abri o portão, coloquei os pés na calçada e notei que o mundo não mudou porque meu pai partiu. Crianças atravessavam a rua rindo e correndo. Cães de diversos tamanhos latiam e mostravam os dentes entre as grades dos portões, tudo para tentar intimidar os passantes.
Logo ouvi o sino da igreja simulado por um disco de vinil e dezenas de pessoas caminhando até ela, assim como se repetia todo domingo. A padaria a 50 metros de casa estava aberta, recebendo os fregueses. “Por que ninguém se importa?”, me perguntei enraivecido. Quando vi sombras e vozes em frente ao portão de casa, me afastei e retornei a passos rápidos para o quarto do meu irmão.
Deitei no colchão e fiquei por lá, aventando minhas voláteis conclusões: “Claro! Se tá tudo igual é porque meu pai não morreu. Deve ser algum tipo de engano.” Então mirei o teto com a visão ligeiramente difusa e pensei que talvez fosse uma boa ideia ir até o hospital vê-lo. Em poucos minutos, veio um novo choque de realidade. Minha mãe retornou e perguntou se preferíamos ir ao velório ou ficar em casa.
Ilusão desfeita, eu e meu irmão nos entreolhamos e hesitamos por alguns instantes. No entanto, numa situação como essa, a resposta era previsível. “Prefiro ficar…”, respondemos juntos. Ela entendeu e respeitou nossa decisão, pois desde sempre não tínhamos o hábito de ir a velórios nem a enterros. No caso do meu pai em especial, a ideia de jamais vê-lo morto não era simplesmente uma forma de preservar a imagem que tínhamos dele, mas também a esperança de que um dia ele poderia retornar.
Por um momento, fui até o quarto do meu irmão Juninho, contíguo ao da minha mãe, e o observei no berço. Balançava as perninhas rechonchudas com o vigor de uma pedalada. Seus olhos grandes, redondos e castanhos cintilavam como avelãs envernizadas. A agitação hasteava a camisetinha com estampa do “Tico e Teco”, expondo a barriguinha farta. Nascido há um ano, sorria com doçura, mostrando a vivaz gengiva nua e os poucos dentinhos enquanto apontava a mão para um móbile de animaizinhos que giravam sobre sua cabeça.
A vida me parecia um jogo de chegadas e partidas. “Mas por que a partida tinha de ser do meu pai?”, reclamava. E assim minha mãe assumia total responsabilidade sobre três crianças que sabiam nada ou quase nada da vida, do mundo e dos seres humanos. Apesar de tudo, eu e Douglas não choramos, não gritamos, não brigamos com ninguém. Seguimos nossas vidas em silêncio. Nem mesmo na escola tocamos no assunto. Entre nós a reticência também era imperativa. Por que deveríamos dizer algo a alguém? Era um mundo distorcido, tanto quanto uma pintura do Otto Dix.
Com o tempo a consternação se intensificou, despertada num rompante insólito. A ausência tinha consequências progressivas – fustigava e dava lições de vida e morte. Crescia aos poucos, abrindo espaços entre o coração e o cérebro, como se formasse raízes no cerne da existência. O vácuo deixado pelo meu pai amplificava a impressão de um mundo oco em que não é dado aos bons seres a oportunidade de corrigirem suas falhas e renascerem. Com 13 anos, concluí e amarguei no coração diminuto, como uma noz prestes a ser esmagada, a ideia de que o mundo nunca foi justo porque não cabe a ele fazer qualquer tipo de justiça. Apenas segue de acordo com o curso das nossas ações, independente do nosso estado de consciência ou passionalidade.
Tardiamente, me via na esteira da dualidade, interpelando: “Que seja! Por que a vida não poderia imitar um jogo de videogame? Continuar de onde paramos. A morte deveria ser sinônimo da vida, um reinício e não um fim.” Era impossível esquecer que durante um ano e oito meses vi meu pai definhando aos poucos. Ele se esforçou para tentar levar uma vida normal. Quando recebeu a notícia de que estava com câncer de pulmão, deu um sorriso e, com um olhar sereno, comentou: “Vai dar tudo certo. É só um probleminha passageiro.”
Em Maringá, acompanhei meus pais até o Hospital Paraná em muitas sessões de quimioterapia e radioterapia. No começo, tudo ia bem. Meu pai continuava se alimentando normalmente e fazia brincadeiras enquanto aguardava atendimento. Em meses, perdeu os cabelos, mais de 20 quilos e sua pele que era rosácea se tornou translúcida e esquálida. As maçãs do rosto se afundaram a ponto de abrir fendas nas laterais que raleiam o maxilar.
Ele continuava acreditando na própria recuperação, assim como nós. Após um ano recebemos a melhor notícia de nossas vidas. Meu pai estava curado! Saímos até para festejar. Era incrível! Então a doença voltou… Depois de buscar métodos alternativos que não funcionaram, ele começou um novo tratamento no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. O resultado foi ainda mais agressivo e o seu peso caiu pela metade.
Era difícil reconhecê-lo, e eu já não o via tanto porque precisava ir para a escola. Em casa, meu pai repousava em um quarto adaptado à sua situação. Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la calorosamente, mas temia lhe ferir os dedos. Seus olhos estavam mais baixos do que nunca. Quebrantado, fazia poucos movimentos com a boca e seus lábios tinham de ser umedecidos constantemente para não ficarem ressequidos e sangrarem.
Seu corpo escanzelado ocupava pouco espaço em um colchão d’água que evitava escoriações na pele delgada. Era azul como o mar e o céu que contemplou tantas vezes com uma expressão enlevada. Um dia, quando eu estava ao lado da cama sentado em uma cadeira, me pediu, com a voz embargada e paulatina, para ler um trecho de “O Andarilho das Estrelas”, do Jack London.
“…Sorri para mim mesmo um imenso sorriso cósmico e mergulhei na imensidão da pequena morte que fazia de mim o herdeiro de todas as eras e o cavaleiro de reluzente armadura a cavalgar o tempo.” Meu pai me olhou, fechou os olhos e dormiu sem desfazer o terno sorriso. Foi a última vez que conversamos.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
A minha primeira vez no caldeirão do inferno
Imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo
Meu pai gostava muito de viajar. Depois que se aposentou então a frequência aumentou consideravelmente. Às vezes, levantava de madrugada e acordava todo mundo. Pedia para arrumar as malas e avisava que partiríamos em uma hora. Era divertido viajar sem planejamento, até porque quando ele avisava com bastante antecedência eu e meu irmão Douglas ficávamos agitados e ansiosos. Ou seja, não dormíamos.
Amante da cultura paranaense, meu pai tinha predileção por mostrar como o estado onde nascemos possui muitas riquezas que passam despercebidas por tanta gente. Foi assim que conheci o Paraná de Norte a Sul quando criança. Ele enaltecia a simplicidade, as coisas da terra e o teor sereno das pessoas do campo, dos vilarejos e das pequenas formações citadinas, lugares alheios ao tempo, onde tudo parecia transcorrer sem pressa. No caminho, cantávamos canções escoteiras como “A Velha A Fiar”, “A Árvore da Montanha” e “La Bela Polenta”. Meu pai dirigia com tranquilidade enquanto desafiava eu e meu irmão a ler primeiro o que estava escrito nas placas, outdoors e letreiros que encontrávamos em cada trajeto.
Curioso, eu tentava observar tudo à minha volta, mas ocasionalmente sentia náuseas. Em algumas situações consegui evitar o pior ao abrir a janela, colocar o rosto para fora, fechar os olhos e absorver o aroma da relva amplificado pelo vento. Quando não resolvia, o jeito era parar o carro. Eu descia pálido e estonteado. Assim que vomitava, me sentia revigorado em poucos minutos. Percebia até a temperatura corporal retornando ao estado normal. Para me animar, meu pai e minha mãe contavam histórias dos lugares por onde passávamos, o que me fazia sonhar acordado, imerso num universo pessoal mais próximo da fantasia do que da realidade.
Na minha primeira visita as Furnas, no Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa, eu tinha nove anos quando me disseram que iríamos aos “caldeirões do inferno”. Criança que era, e com uma perspectiva de desenho animado, imaginei o mais tenebroso e abissal dos cenários, com chamas flamejantes ao fundo, onde o diabo aguardava um deslize para arrastar crianças desobedientes até as profundezas do desconhecido. Sem dizer nada a ninguém, comecei a pensar em tudo que fiz de ruim naquele ano e me perguntei: “Será? Será que existe algum motivo pra eu ir pro inferno agora que ele tá tão perto de mim?”
Logo lembrei das vezes em que fiquei de castigo na escola por mau comportamento, do dia em que não obedeci minha mãe e tomei banho de chuva. Claro, também de quando comi escondido doces que não eram meus. “Será que o capeta sabe que peguei umas figurinhas do álbum do Campeonato Brasileiro do meu irmão? E aquele dia que faltei na catequese? Tô lascado se hoje for o dia do acerto de contas”, refleti enquanto sentia um gosto de fel na ponta da língua.
Quando entrei receoso, e a passos leves e curtos no elevador panorâmico da Furna 1, percebi uma abrupta revoada de morcegos. Ouvi um guia contando a um visitante que um dia uma noiva cometeu suicídio, saltando lá de cima. Eu que pouco entendia sobre o significado da morte me recordei de um episódio da série Contos da Cripta que assisti escondido dos meus pais. Pensei na possibilidade da mulher reaparecer por aquelas bandas, quem sabe até emergindo das águas caliginosas da lagoa para me levar com ela a contragosto. Pelo menos fiquei mais aliviado quando vi de longe que não havia fogo nem diabo.
Conforme o elevador descia, me senti mais minúsculo e curioso diante daquela enorme e profunda cratera onde uma vegetação primitiva e predominantemente rasteira adornava o cenário. Notei também no entorno algumas lâminas rochosas pontiagudas e assimilei com a matéria-prima do caricato tridente do capeta. Lá embaixo, caminhei sobre a plataforma de madeira, tentando identificar o que havia sob a água. Divaguei, aventando a possibilidade da Furna abrigar algum animal tipo o Monstro do Lago Ness. “E se isso aqui quebrar e a gente cair na lagoa?”, uma reflexão constante cada vez que eu observava a pequena distância entre as águas turvas e os meus pés.
Meu pai se aproximou e disse que o local era território de peixes cegos e albinos, então imaginei como seria viver em um ambiente como aquele – um mundo pequeno e escuro, uma masmorra fluvial, onde animais eram punidos por motivos secretos, condenados à infelicidade até os seus últimos dias. Não! Eu poderia estar errado. Por que pensar no pior? Talvez existissem muitas belezas no fundo daquele caldeirão, coisas tão belas que jamais poderiam ser vistas, mas apenas ouvidas e sentidas, aguçando somente a imaginação. Quem garante que o meu mundo não poderia ser mais limitado do que o deles?
Naquela época, eu tinha lido “Vinte Mil Léguas Submarinas”, de Júlio Verne, o que me influenciou a julgar num rompante de ingenuidade e pessoalidade que houvesse uma maneira de saber se aqueles peixes que viviam nas Furnas eram felizes. Me agachei vagarosamente e com muito esforço fiz um círculo na água com o miúdo dedo indicador da mão direita, o suficiente para emitir uma vibração diferente daquela com a qual os animais da Furna 1 estavam acostumados. Menos de um minuto depois, três peixes pequenos se aproximaram da superfície. Após o contato de breves segundos, mergulharam nas profundezas, numa sequência que parecia ensaiada.
Para qualquer outra pessoa quem sabe não significasse nada, mas pra mim, no meu universo peculiar de criança com nove anos, era um sinal de que a vida naquele lugar não era hostil. Interpretei que aqueles peixes ainda não tinham motivos para desgostarem do ser humano, ainda um visitante, não um invasor. “É, acho que ainda são felizes”, concluí com um sorriso enviesado e a fé cândida de que aquele lugar que me pareceu tão aterrorizante em um primeiro momento era belo, harmonioso, justo e cabalístico à sua maneira.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Inocência e peraltices na Escola São Vicente de Paulo
Foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola
Ser criança em uma escola católica até o início dos anos 1990 era bem diferente de hoje. Naquele tempo, os professores realmente puniam os alunos, não com violência, mas com castigo. Apesar disso, tínhamos liberdade para fazer muitas coisas antes das aulas e durante o recreio. Porém, se abusasse, era preciso se preparar para as consequências.
Agitado que era no primário, o período mais meninil da minha vida, sempre que chegava à Escola Vicentina São Vicente de Paulo, na Rua Getúlio Vargas, uma das mais movimentadas de Paranavaí, eu jogava a mochila e saía derrapando pelo piso liso que começava onde terminava a escadaria da entrada. Eu não gostava de usar tênis antiderrapante porque isso acabava com a diversão. Melhor ainda era chegar mais cedo na escola e contar com a ajuda de um amigo. Assim um agachava e o outro o impulsionava. Um empurrão de poucos metros era o suficiente para atravessar todo o pátio.
E foi numa dessas brincadeiras que um dia caí sobre o maior e mais bonito vaso branco da escola. Quando a orientadora viu o estrago, veio em minha direção. Sem pensar muito, corri de um lado para o outro enquanto ela tentava me pegar. A deixei no vácuo algumas vezes até vê-la resfolegando, já cansada e com uma das mãos apoiadas no abdômen. A plateia de estudantes de 6 a 10 anos gargalhava conforme eu sorria e ziguezagueava. Na realidade, sentia um frio na barriga e um temor indizível de ser severamente castigado. Mesmo assim enfrentei meu destino e me entreguei à punição.
Temia que me colocassem ajoelhado sobre milhos graúdos ou tampinhas de garrafa. Imaginava as bordas de alumínio penetrando minha pele e querendo invadir minha carne. Sentia gastura só de pensar em quantas horas passaria de joelhos. Por sorte, fiquei apenas preso na sala da orientadora até a minha mãe chegar. Ou seja, a punição seria dada por ela. Em casa, depois de algumas cintadas em que eu fingia muito mais dor que a minha mãe infligia, precisava apenas de poucas horas para ficar novo em folha e pronto para a próxima aventura. Melhor ainda quando ela transmitia a responsabilidade ao meu pai. Daí era só deitar e fingir enquanto a cama apanhava, uma coitada que não tinha nada a ver com as minhas traquinagens. O segredo da boa ludibriada estava na sincronia.
Na sala de aula eu também tomava parte na bagunça. A verdade é que muitas vezes fui o autor da algazarra, uma desordem ingênua que envolvia piadas, armadilhas, brincadeiras e jogos com papel e caneta. Por essas e outras, a irmã Angelina, minha professora, me colocava atrás da porta com o rosto mirando a parede. Quando ela não via, eu virava e fazia alguma micagem. Ia para o castigo sorridente, como se ganhasse um prêmio, sem entender o que aquilo representava no ideário adulto. Ocasionalmente era deixado de costas para o quadro e sem poder falar nada quando a professora apresentava um conteúdo novo. De vez em quando era obrigado a colocar a minha carteira escolar ao lado da mesa da irmã Angelina.
Era um alívio quando ouvia o sinal do recreio. Saía ligeiro com a minha lancheira do Rambo, já ansiando por pão com Amendocrem que minha mãe me permitia comer em dias bem específicos. Às vezes comprava salgado e sodinha ou comia o tradicional pão preparado pelas freiras. Depois do lanche, eu ficava em frente ao mini palco da quadra esportiva. Lá, no horário de sempre, alguém arremessava a sobremesa: dezenas de balas de cores, tipos e marcas diferentes. Cada guloseima que voava era acompanhada de gritos, saltos, empurrões e uma onda de mãos pequenas.
Antes do recreio chegar ao fim, eu encostava as costas no muro da quadra e os pés no tronco de uma árvore a meio metro de distância. Então subia o máximo que podia, o que era proibido. Mas a alegria de simular um gigante naquela altura, enxergar tantas coisas à minha volta, inclusive quem passava em frente a escola, fazia o risco valer a pena. No entanto a alegria da entrada nem sempre era partilhada na saída. Quando chovia, me arrependia de usar calçado de sola lisa para deslizar pelo pátio. A pé, eu percorria com pernas curtas um trajeto que incluía passar em frente à Panificadora Pão de Açúcar, Bar Ginasial, Mercado Minibox e Sorveteria Cremone, todos na Avenida Distrito Federal.
Sentia um misto de alegria e arrependimento porque me via obrigado a brincar de escorregar sem querer. Tentava ser cuidadoso enquanto me distraía observando a movimentação de pessoas nas ruas e o som da água em atrito com o guarda-chuva desproporcional à minha estatura. Eu não gostava de me proteger do salseiro. Achava que isso era coisa de adulto e que a chuva me daria algum tipo de poder quando tocasse meu corpo. Bom, assim eu acreditava sempre que desviava rapidamente o guarda-chuva e inclinava a cabeça para trás.
Um dia, depois de abrir a boca e experimentar o gosto da chuva, me questionei como poderia ser tão parecido com a água benta. Logo me recordei da vez em que visitei a Paróquia São Sebastião com a turma da catequese e bebi água benta da caldeirinha. “Por que você fez isso? Você vai pro inferno!”, disse meu amigo Toninho. Sorri acanhadamente e falei que não iria. Passei os cinco dias seguintes com medo do chão do meu quarto se abrir e me arrastar para as profundezas do inferno enquanto eu dormia. Cheguei até a me amarrar na cama com um lençol em uma madrugada.
Quando a lembrança se desvaneceu, lembrei da bronca ou surra que levaria da minha mãe se chegasse em casa ensopado. Eu poderia dizer que um carro jogou água em cima de mim, mas ela não acreditaria. Perita no assunto, reconheceria se a água veio diretamente do céu. Achei melhor não arriscar, mesmo que meus pensamentos se voltassem para um filme que assisti com meu pai na época. O sujeito parecia tão feliz cantando e dançando na chuva que eu não entendia porque aquele era o único adulto do mundo com espírito de criança. Concluí que talvez fosse tipo um Peter Pan.
Assim que me aproximei do cruzamento da Avenida Distrito Federal com a Rua Pernambuco, decidi me arriscar. Fechei o guarda-chuva e deixei a água cair sobre mim numa torrente expurgadora. Não estava gelada nem fria. Também percebi o céu clareando e algumas poças d’água invadidas por fragmentos de arco-íris que surgiam por todo o caminho. Fiquei feliz e encharcado nos primeiros minutos. Só senti a mochila pesada e os pés enrugados quando atravessei uma rua próxima da Sanepar.
Em frente de casa, respirei fundo e abri o portão. Fui recepcionado por Pretinha e Mussum – conhecido como Rabo de Biscoito, dois cãezinhos mestiços. Quando olhei pela janela, minha mãe lançou um olhar de reprovação. Então refleti: “Será que é dia de cinta?” Sorri com os lábios molhados e ouvi silenciosamente sua reprimenda. Quando se calou, repliquei, tentando fugir das cintadas: “Se o paraíso fica no céu por que a gente não pode ser divertir com aquilo que cai da beirada? Ué, chuva tem até gosto de água benta!”
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Lembranças do jardim de infância
Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas
Lembro como se fosse hoje das aulas do jardim de infância da Escola Vicentina São Vicente de Paulo, no final dos anos 1980. Eu tinha cinco anos e estava aprendendo a passar algumas horas longe da minha família. No primeiro dia de aula, enquanto meu irmão mais velho não soltava a mão da minha mãe, chorava e pedia pra voltar pra casa, eu me silenciava diante de um mundo totalmente novo. Também me sentia mais seguro porque estava usando a minha botinha do Rambo. Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas.
Nunca tinha visto tanta gente pequena como eu junta em um mesmo local. Naquele tempo, as crianças chegavam à escola carregando doces nos bolsos. Tudo era permitido para que se comportassem pelo menos até os pais irem embora.
Os mais desajeitados eram asseados pelas mamães com lenços de pano sempre ao alcance das mãos. A pressa mais do que constante se intensificava quando uma das freiras da escola acionava um botão que emitia um som semelhante ao de um sino. Então um barulho dissonante de passos e vozes ecoava pelo pátio de piso liso e cintilante que sempre me parecia enorme, mesmo não sendo.
Antes da minha mãe ir embora, eu era conduzido a uma fila por ordem alfabética ou de altura. Então cantávamos o hino nacional em posição de sentido. Me sentia um soldadinho quando observava várias crianças perto de mim com o corte de cabelo igual ao meu, o chamado surfista, asa delta ou “corte de penico” para os zombadores.
Na sala de aula, um ambiente multicolorido que estimulava tanto o raciocínio lógico quanto o abstrato, eu enxergava apenas diversão e passatempo. Sentado em uma cadeirinha azul a poucos centímetros do chão, gostava era de ouvir historinhas fantasiosas sobre bichos e crianças. “João e Maria”, “O Pequeno Polegar”, “João e o Pé de Feijão”, “O Soldadinho de Chumbo” e “Rumpelstichen” me acompanharam por muito tempo, nutrindo a minha imaginação. Mas nenhuma outra história me fez sonhar tanto no jardim de infância como “A Festa no Céu”.
Empolgado, um dia cheguei em casa, joguei a mochila e contei ao meu pai o que tinha ouvido. Então ele narrou uma versão mais pomposa, imitando os sons dos animais. Entre palavras e coaxos, dublava um sapo mágico como ninguém. Mesmo assim eu ficava triste e com dó dos bichos que não sabiam voar e não poderiam se fartar em um banquete edênico.
Como eu ainda estava aprendendo a ler e escrever, acabei por criar as minhas próprias versões em sonhos. Na primeira, corri pela floresta, gritando os nomes dos animais e distribuindo asas para que pudessem voar. Na segunda, encolhi com assopros todos os bichos da mata que não sabiam voar e os escondi dentro da viola do urubu convidado para animar a festa no céu.
Mais tarde, a ideia de animais falantes continuou me acompanhando, tanto que um dia cheguei em casa e contei à minha mãe que tinha encontrado um cãozinho mestiço ferido perto da Avenida Distrito Federal clamando por ajuda. “Ele estendeu a patinha, olhou pra mim com cara de choro e disse: ‘por favor, me ajude! Tô com muita dor, me leve daqui. Deixa eu ir pra sua casa’. Quando tentei levantar o bichinho, ele colocou as patas em volta do meu pescoço, fechou os olhos e morreu”, relatei bastante sensibilizado.
Na escolinha, eu e Fabrício entrávamos furtivamente na casa das bonecas, um ambiente rosa proibido aos meninos, para ver como era e o que tinha lá dentro. Arteiros, mudávamos muitas coisas de lugar, saíamos de fininho e íamos direto ao parquinho, fingindo que não tínhamos feito nada. Quando as suspeitas recaíam sobre nós, sorríamos com certa inocência diante do olhar reprovador da orientadora, uma freira corpulenta, alta e sisuda que diziam carregar no bolso uma palmatória borrachuda que fazia as mãos formigarem por até uma semana.
Fiquei mais assustado quando espalharam um boato de que no piso superior da escola existia um quartinho sem janela e iluminação, onde as crianças mal comportadas ficavam presas e recebiam ocasionalmente golpes de férula. Meu corpo miúdo estremecia, meus olhos estalavam e eu sentia uma ligeira fraqueza quando pensava na possibilidade de ser enviado para aquele lugar.
Meus medos só eram amenizados quando a professora Angela falava comigo. Então o breu dos meus pensamentos eram descortinados por rajadas de cores e luzes que me faziam flutuar na inércia de um paraíso cinematográfico. No recreio, a imaginava ao meu lado no banquinho dividindo um lanchinho Recreio ou Mirabel. “Talvez um dia a gente partilhe um Dedito. Humm…será que ela prefere pão com Cremutcho?”, refletia enquanto balançava os pés que mal alcançavam o chão.
Em tempo de parque de diversões, nem prestava atenção no que a professora dizia. Ficava pensando em nós dois na roda gigante vendo as luzes da cidade, comendo maçã do amor e eu ganhando pra ela um urso de pelúcia depois de dar um tiro certeiro com uma espingardinha de rolha na testa de um gremlin.
Também foi com cinco anos que tive minha primeira experiência com a morte. Meu amiguinho Fabrício, que morava nas imediações da Rua Silvio Vidal, perto do NIS Central, estava passeando de bicicleta quando foi atropelado por uma carreta. Fiquei confuso porque não sabia o que a morte significava exatamente. Nem tinha ideia de que seu corpo miúdo seria sepultado dentro de um caixão lacrado. Então eu perguntava à minha mãe se eu teria a chance de brincar com ele algum dia; se o Fabrício não estava apenas dormindo e um dia iria acordar e juntos iríamos até a Padaria Pão de Açúcar comprar sodinha.
Com o passar dos meses, comecei a entender que a morte era um desencontro sem data para chegar ao fim. Falavam que ele foi para o céu, mas eu olhava pra cima, o procurava e não o enxergava. “Será que existe um céu diferente ou essas nuvens estão escondendo ele?”, me questionava sentado no meio-fio na entrada de casa. Queria voar que nem o urubu da “Festa no Céu” e procurar o Fabrício. Achava que ele poderia estar deitado num lugar tão alto que só quem tinha asas poderia alcançá-lo.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
O universo de Mateus
Inocência e fantasia na praça da Igreja São Sebastião
Em uma terça-feira, às 9h50, eu estava na praça em frente à Igreja São Sebastião aguardando a chegada de uma equipe de uma emissora de TV para dar uma entrevista sobre a história e o trabalho do artista plástico húngaro Bálint Fehérkúti. Enquanto eu esperava, uma criança de três anos se aproximou e segurou minha mão.
Quando olhei para o lado, o garotinho de cabelos castanhos emitiu alguns sons com a boca, mas não o entendi. Então perguntei a moça, sua tia que o acompanhava, se ela sabia o que ele queria. Surpresa, me explicou que nunca o viu se aproximar de um estranho, mas que de alguma forma o menino simpatizou comigo, gostou de mim.
Com um olhar fixo e um sorriso largo e fácil, o garotinho apontou para uma construção do outro lado da rua Getúlio Vargas. Sua atenção foi atiçada por sons graves e agudos emanados de trás de um paredão enorme de tapumes. Conforme o barulho aumentava, a sua excitação também. Vez ou outra apertava minha mão com força, puxava meu braço e levantava o seu dedo indicador da mão direita num gesto reflexivo digno de Arquimedes de Siracusa.
Descobri que Mateus fala poucas palavras, mas com ajuda profissional está aprendendo a formular as primeiras frases. Tem grandes chances de conseguir falar perfeitamente antes de ingressar no ensino fundamental. Por enquanto, quando fica muito ansioso, os sons se tornam indecifráveis para quem não o conhece bem. Ainda assim, pelo menos durante o período em que esteve próximo de mim o vi sorrindo quase toda hora. Cheio de energia, andava de um lado para o outro, batia palmas e sempre que ouvia um novo som chamava minha atenção querendo saber se eu também partilhava a mesma sensibilidade e audição apurada.
Me recordo que Mateus me pediu 13 ou 14 vezes para levá-lo até a obra do outro lado da rua. Com o tempo a sua curiosidade só aumentava. A cada pedido me vi obrigado a pensar rápido e encontrar uma forma de convencê-lo que ele poderia se distrair com outras coisas. Com palavras diferentes, expliquei várias vezes que não permitem a entrada de crianças em áreas de construção, nem mesmo de adultos, já que os tapumes também servem para coibir a presença de desconhecidos. Além disso, ele poderia se machucar.
Depois de observar atentamente tudo que eu dizia, Mateus ficava em silêncio e aceitava a explicação por alguns minutos. O que ajudava a minimizar sua ânsia era o barulho que ocasionalmente cedia ao silêncio e permitia que os cantos dos pássaros e os galhos balançados pelo vento fossem notados. No entanto, estava tão atento e curioso que logo um som diminuto e esparso vindo das ferramentas dos pedreiros fazia com que ignorasse até o barulho intempestivo de motos, carros e caminhões.
Parecia que não havia mais nada ao seu redor, a não ser a própria inocência cativada pela curiosidade. Para a maioria das pessoas uma obra costuma ser apenas uma obra, ou seja, um evento ordinário. Mateus via muito mais do que isso. Foi o que eu percebi quando vi seus olhos amendoados se agigantarem. Talvez imaginasse até batalhas por trás dos tapumes, pedreiros voadores, martelos e marretas que trabalham sozinhos, buracos que funcionam como portais para outros mundos, máquinas falantes e um universo multicolorido digno do desenho animado “Bob, o Construtor”. Afinal, a imaginação e a criatividade de uma criança é inestimável.
Por um momento consegui redirecionar o seu foco de atenção quando mostrei quatro homens instalando corrimãos na escadaria da Igreja São Sebastião. Rapidamente descrevi para ele o que estavam fazendo. Ao perceber que dois homens usavam ferramentas elétricas a pouco mais de 30 metros de distância, deu um grito abafado e ao mesmo tempo extasiado, seguido por um sorriso e um aperto de duas mãos na minha mão direita.
Mais uma vez não tenho dúvida de que aquela cena, para mim trivial, representava no universo de Mateus muito mais do que eu possa imaginar. Mostrei a ele mais algumas situações comuns do cotidiano que estavam ao nosso redor. Para cada descrição, aquele garotinho tinha uma nova reação de satisfação. É o tipo de experiência que surge com o acaso e faz qualquer adulto se questionar sobre a forma como encara a vida e o mundo.
Antes de eu me despedir, Mateus levantou os dois braços para que eu o pegasse no colo. Ficou o tempo todo sorrindo e olhando fixamente para mim. Quando o desci, segurei na sua mão mais uma vez, me despedi e caminhei em direção ao interior da igreja. Mateus me acompanhou, com os olhos.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Periferia, sonho, funk e invisibilidade social
Ontem, na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, o artista plástico Luiz Carlos Prates de Lima, o Tio Lú, preparou um almoço para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social que participam de uma oficina de artesanato em madeira. Aproveitei a oportunidade para conversar algumas horas com a garotada, já que normalmente a turma se divide no decorrer da semana.
Após o almoço, perguntei a cada um dos 15 garotos quais são seus sonhos. Eric, um garotinho de 12 anos, me respondeu com um sorriso tímido: “Ah, meu sonho mesmo é ser MC.” Então interpelei: “Sério? Que tipo de MC? Me dê um exemplo, só pra eu ter uma ideia. A resposta foi a seguinte: “Igual o MC Daleste!” Ingênuo e sonhando com um futuro melhor, Eric não sabia que o seu ídolo, MC Daleste, foi assassinado em 2013. Ficou surpreso quando contei.
Sobre o conteúdo das letras do MC, Eric disse apenas que nunca entendeu muito bem, mas que o estilo sempre o agradou pela “batida” e também porque fala de “coisas” que ele gostaria de ter um dia. Tem gente que prefere generalizar e dizer que quem gosta de funk é isso ou aquilo. Quando se conhece a realidade desses jovens, por exemplo, você percebe que a identificação com o funk tem a ver com um mundo de sonhos, a ingênua vontade do ter para poder existir. “Se eu ganhar um bom dinheiro, não serei mais humilhado”, comentou Tales, de 15 anos.
“Não tenho nada, então as pessoas não me enxergam”, disse outro garoto de 14 anos. Robson, de 12 anos, que adotou um visual de MC e descoloriu os cabelos para ficar parecido com um ídolo, explica que quando um pobre faz sucesso com funk significa que eles também têm uma chance de conseguir se destacar. O gênero também é condenado por quem vive na Vila Alta, mas lá muitos reconhecem que é sim uma forma de cultura, mesmo que famigerada, já que dita paradigmas, tendências, costumes e até mesmo linguagens.
Dos 15 garotos com quem conversei, só um me disse que acredita que um dia vai para a faculdade. Felipe, de 15 anos, que também adotou um visual de MC, gosta do estilo, mas não quer saber de virar funkeiro. Ele sonha em ser engenheiro. A maioria afirma acreditar que não vai conseguir terminar o ensino médio. “Não sei até onde vou chegar, mas aqui muitos pais falam que estudar é perda de tempo”, comenta Robson que tatuou sozinho os nomes dos pais nos braços, apesar de ter sido deixado na rua pela mãe quando tinha só três anos.
Inocência e carência
Quando eu estava indo embora, Yuri, de seis anos, e Gabriel, de oito anos, chamaram a minha atenção: “Ô tio, dá uma carona pra gente até ali em cima.” Então respondi: “Claro, podem entrar!” Yuri e Gabriel sorriram e abriram as portas do carro. Tive que estender a mão para o Yuri subir porque ele é bem pequeno. Os dois se ajeitaram no banco traseiro e começaram a rir, segurando dois pratos de plástico que levaram para participar do almoço na casa do Tio Lú.
Duas quadras depois, Gabriel falou: “É aqui, tio! A gente mora logo ali.” Os dois agradeceram, mas antes de fechar a porta, Gabriel perguntou: “Ô tio, quando é que você volta? Você vai voltar, né?” Respondi que sim e saíram rindo, balançando os pratos de plástico. O que eles queriam não era exatamente a carona, mas passear de carro, mesmo que por um minuto, e também receber mais um pouquinho de atenção antes de partirem para casa.
A fábula de Amélie Poulain
Jeunet e a beleza embutida de simplicidade
Lançado em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é um filme popular de estética leve e colorida do cineasta francês Jean-Pierre Jeunet que aborda a beleza da natureza humana a partir de uma jovem que tenta se distanciar das complexidades da vida.
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet. O filme transmite beleza e uma peculiar pureza do início ao fim, tendo como elemento central da história a graciosa Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma jovem que após a morte da mãe se muda sozinha para o boêmio Montmartre, em Paris, onde consegue um trabalho como garçonete.
O maior hobby de Amélie é observar pessoas; a ela, seres tão desconhecidos, mas ao mesmo tempo fantásticos. O passatempo surge a partir de um episódio vivido na infância. O pai, Raphael Poulain (Rufus), após realizar alguns exames com a filha, a diagnosticou com um problema cardíaco crônico, a privando de ir ao colégio, ter amigos e até mesmo sair de casa. Poulain nunca soube que o coração de Amélie sempre acelerava justamente pela sua presença, um contato tão raro.
Amélie poderia ter se tornado alguém com graves distúrbios psicológicos e emocionais. Mas nada disso acontece. Já adulta, deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida. A cena em que entrega um relicário com brinquedos ao ex-proprietário do apartamento onde mora é uma das mais memoráveis. A satisfação do homem é transcendental.
Amélie percebe algo que conjugado a sua sensibilidade não é comumente notado pela maioria das pessoas: pequenas coisas tornam a vida mais rica e a inflam de sentido não pelo que são, mas pelo que representam. A partir daí, o mundo da personagem se materializa num espectro de ações altruístas.
Sobre a estética usada por Jeunet, é destacável o uso e abuso de cores nos planos de filmagens, o que proporciona vivacidade surreal e representa a exteriorização da beleza interior de Amélie. Em cor pastel, os tons leves da fotografia remetem à pureza existencial da garçonete. Além disso, a presença de um narrador em off garante um caráter didático e descritivo.
Há também muitas cenas de cortes rápidos, flertando com a edição objetiva usada em videoclipes, além de outras em plano-sequência; tudo contribuindo para tornar a obra mais dinâmica. No mais, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme humanista com características de fábula que cria uma ponte entre a realidade física e a fantasia psicológica.
Trilha Sonora
Após o lançamento do filme, a trilha sonora do compositor francês Yann Tiersen ganhou projeção mundial, sendo regravada por centenas de artistas e usada como background de milhares de espetáculos por todo o mundo, além de programas televisivos. Sem dúvida, a canção mais popular da soundtrack é Comptine d’Un Autre Été que recebeu várias versões do próprio Tiersen.