David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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A casa queimada e o início da alvorada

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Glutão, o fogo tomou conta do local, formando vultosas labaredas que chamuscavam as paredes

Esquina da Rua Antônio Fachin, onde eu morava em 1985 (Foto: David Arioch)

Esquina da Rua Antônio Fachin, onde eu morava em 1985 (Foto: David Arioch)

No dia 6 de novembro de 1985, quando eu ainda era bebê e estava dormindo, minha mãe conversava na sala com um amigo chamado Jamil. De repente, meu irmão, também pequeno, se aproximou e disse: “Nossa! Tem um vermelhão enorme lá na cozinha. Vai lá ver!” Quanto mais se aproximava, mais minha mãe sentia cheiro de queimado. Glutão, o fogo tomou conta do local, formando vultosas labaredas que chamuscavam as paredes nevadas e limpas. Obscurecia tudo sem reservas e derrubava sobre o piso quente e úmido os restolhos que abrasava sem muito esforço.

Sem pensar nos danos materiais, minha mãe me pegou em seus braços, chamou o Jamil e gritou o nome do meu irmão algumas vezes: “Douglas! Douglas! Venha aqui! Venha aqui! A casa está pegando fogo. Vamos sair! Vamos sair!” E continuei dormindo no caloroso aconchego materno que me protegia da destruição que se intensificava. Minha fisionomia persistia serena. Era cedo demais para reconhecer uma tragédia. Estava imerso num mundo cândido de sonhos onde crianças são sempiternas.

Só abri os olhos grandes, pretos e redondos como duas jabuticabas quando estava fora de casa, como se ainda não me fosse permitido testemunhar os infortúnios da vida. Balancei as pernas no colo de minha mãe e num sorriso singelo e desdentado tentei consolá-la involuntariamente. Estiquei os braços para tocar-lhe o queixo, mas eram curtos demais. Mesmo assim, lágrimas mornas escorriam pelo seu rosto e desciam pelos meus braços curtos que formavam uma ponte disforme.

Soltei uma curta gargalhada e minha mãe voltou sua atenção pra mim. Percebeu que as águas salinas que desciam dos seus olhos me levaram ao riso assim que invadiram uma das aberturas da minha camisetinha regata, tocando minhas axilas e fazendo cócegas. Ela riu e me asseou com uma fralda que trazia uma estampa do Pernalonga comendo cenoura. Passivas, muitas pessoas se aproximavam para assistir a desfortuna como se estivessem prestigiando um espetáculo de piromania. As paredes da casa de madeira da Rua Antônio Fachin, perto da antiga Antarctica, em Paranavaí, caíam uma a uma, como num jogo de dominó. Vencidas pelo fogo, retumbavam e deitavam sobre o chão calcinado, expondo ao público a destruição de um todo que exigiu milhares de horas de trabalho.

Em meio ao intenso bodum de queimado, todos sentiam o sutil aroma dos pães que minha mãe fazia todos os dias. Alheia aos cochichos dos estranhos, ela se mantinha inerte, observando o empenho dos bombeiros. Nada mais podia ser feito. Tarde demais. O rompimento do teto e a queda violenta das telhas de cerâmica vermelha ecoavam um som labiríntico seguido por cortinas de poeira trigueira que velavam um vazio vertical. Tudo parecia rasteiro, menos a tristeza de minha mãe que se amplificou com a chegada das suas irmãs Paula e Smaida e do seu pai João. Eles também moravam na casa e não conseguiam acreditar no que viam. Paula que chorou desesperadamente trouxe na cesta da bicicletinha Caloi verde alguns pães caseiros que não teve tempo de vender naquele dia.

Antes que minha mãe pudesse contabilizar os estragos, alguns repórteres se aproximaram e perguntaram como ela se sentia ao ver a casa em ruínas. Apesar da voz fragilizada e rareada, respondeu educadamente: “Me sinto mal. Muito mal. Tudo que eu tinha estava lá dentro.” Minha mãe, com 27 anos, se afastou da plateia e me carregando no colo caminhou em direção aos escombros. A cada passo, sentia uma pontada no peito. O corpo estremecia e ela resistia, mais pela família do que por si mesma.

“Ainda bem que queimou só essa casa aí. Imagine se o fogo se espalhasse até as nossas? Hunf!”, comentou uma mulher. Com a chegada da polícia, os curiosos foram dispersados. Quando ficamos sozinhos, minha mãe circulou por mais de hora no centro da residência que não existia mais. Observava tudo atenciosamente e caminhava com sapatos sujos entre os detritos, tentando encontrar algo que pudesse ser aproveitado. Meu irmão, minhas tias, Jamil e meu avô faziam o mesmo. Mas a verdade era uma suplantadora de crenças e expectativas, reforçada por duas tábuas caídas no chão. Com pregos mirando o chão, formavam uma cruz acinzentada. Então minha mãe, responsável por criar dois filhos e duas irmãs, não chorou mais.

Mais tarde, Seu Dino, um alemão supersticioso que morava na Rua Minas Gerais e era amigo da minha família, nos procurou para dizer que uma casa queimada marcava o início de uma alvorada. “Não fiquem tristes. Olhe, o fogo queima todo o azar e com ele leva o arremedo de um pesar. Marca um renascimento, um sinal de reavivamento”, profetizou e citou a lenda de Benu, o pássaro egípcio nascido do coração de Osíris e que se aninhava entre ervas aromáticas antes de ressurgir após atear fogo em si mesmo.

Trinta minutos depois que Seu Dino partiu, o calor primaveril deu trégua e o sol complacente desapareceu atrás da copa de um enorme pé de manga que cobria e arrefecia nossa casa. A brisa repentina e duradoura afastou o mau cheiro de crestado, trazendo junto com o frescor da tarde, no seio do descampado, um chuvisco vaporoso com gosto adocicado.

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O Circo dos Irmãos Cervantes

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De sua boca, saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas

Local onde o Circo dos Irmãos Cervantes foi montado em 1993 (Foto: David Arioch)

Local onde o Circo dos Irmãos Cervantes foi montado em 1993 (Foto: David Arioch)

Na minha infância, quando o circo chegou a Paranavaí, pedi à minha mãe que me levasse para assistir um espetáculo. Tradicionalmente, o picadeiro foi instalado ao lado da delegacia, na Avenida Heitor Alencar Furtado. Pelas ruas do centro da cidade, eu ouvia carros de som circulando e anunciando atrações quiméricas que na minha imaginação pareciam saídas de alguma série como Amazing Stories ou filme como Freaks. “Alô, alô, criançada, o circo chegou!”, repetia o refrão glutinoso que me lembrava a musiquinha de abertura do programa do Bozo.

Traziam adesivos enormes de personagens histriônicos na lataria. Às vezes, alguns artistas atravessavam a região central e alguns bairros na carroceria de uma caminhonete. Acenavam para as crianças, arremessavam balas, pirulitos e os convidavam para a estreia. Muitos pais se animavam com a ideia dos filhos conhecerem o circo, já outros assumiam um aspecto sorumbático e arreliado que não escondia o fato de que o circo tinha chegado na pior hora, quando lhes faltava dinheiro para gastar com qualquer tipo de diversão. “Porcaria de circo! Melhor seria se não viessem a Paranavaí. Tenho raiva e nojo dessa gente que vem pra cá com esses showzinhos ridículos só pra buscar nosso dinheiro. Lazarentos mercenários!”, esbravejou um senhor dentro de uma F-1000 na primavera de 1993 ao ver o carro de som passar em frente à Escola São Vicente de Paulo, onde ele buscava diariamente um dos filhos que estudava comigo.

Ao perceber a ofensa, o palhaço sorriu, fez uma micagem escalafobética e arremessou algumas balas sobre o chapéu de abas largas do homem. Os doces de cores sortidas deram ao sujeito trombudo uma expressão tão sarapintada e cômica que muita gente gargalhou. Confuso, só depois que a caminhonete do circo se afastou que o homem percebeu o que aconteceu. O episódio levou dezenas de crianças para o centro da Rua Getúlio Vargas. Dois guardas tiveram de interditar a rua para que as crianças da escola vissem de perto o rastro de cores formando inúmeros arco-íris de dimensões irregulares no meio do asfalto. Me aproximei, ajoelhei e senti um perfume floral que me sopitou mais do que o chá de camomila preparado pela minha mãe.

“Como aquele carro criou esse caminho de arco-íris? Como isso é possível?”, perguntavam e se entreolhavam as crianças mais abelhudas. Algumas garotinhas tentavam em vão raspar os arco-íris do asfalto com pedaços de graveto. Parecia feito de tinta sem ser tinta. Continuava impérvio e etéreo, como se entranhado em um chão do qual curiosamente não fazia parte. Para mim, na minha completude meninil, aquilo era mágica, um encantamento para ser visto e sentido sem ser tocado ou compreendido.

Tinha textura vaporosa e astuciosa de um nada revestido de um todo e vice-versa. Se estendia por mais de 50 metros, resplandecendo beleza tão portentosa que fazia os motoristas desviarem com receio dos pneus deixarem marcas de borracha sobre a curta estrada de arco-íris. Insigne era o fato de que um pequeno caminho colorido pacificou tanta gente. Fez muitos sorrirem e se tornarem complacentes, inclusive pais javardos, com fama de serem os mais aterrorizantes e bocudos da escola. Naquele final de setembro, por volta das 17h, o sol incidiu sobre a rua com tanto viço que o caminho de arco-íris ficou parecido com a estrada dos tijolos amarelos do conto “O Maravilhoso Mágico de Oz”, de Frank Baum.

Continuei no centro até escurecer, mas ao retornar com minha mãe pela Getúlio Vargas vi os arco-íris se desvanecendo após os primeiros toques suaves da garoa fleumática. Ainda assim as cores já inexistentes irradiaram uma mescla de cheiros que atravessou o centro da cidade quando a garoa se espessou, transformando-se em chuva delgada. Sem parcimônia, a olência deslizava com graça e paciência pelo asfalto, pelas beiradas dos meios-fios, espalhando fragrâncias que reafirmavam a mais pura das sinestesias. Funcionários em fim de expediente e donos de lojas olhavam de um lado para o outro, procurando a incompreensível origem do bálsamo matizado. Invisível era o vermelho resumido a um aroma de rosa. Havia também olores inebriantes de hibisco, ipê-de-jardim, trevo-de-cheiro, hortênsia, lótus e violeta.

No início da noite recortei do jornal o cupom de desconto de 50% do valor do ingresso e pedi para meus pais levarem eu e meu irmão ao Circo Espanhol dos Irmãos Cervantes. Afinal era sexta-feira e não precisaríamos acordar tão cedo no sábado. Chegando lá, por volta das 19h30, havia uma fila enorme como uma centopeia humana. Para entrar no picadeiro era preciso atravessar uma rampa de tábuas, onde um casal de anões recolhia os bilhetes enquanto um homenzarrão de mais de dois metros, com bigode trançado nas pontas e trajando collant, observava a movimentação.

Eufóricas, muitas crianças batiam os pés sobre a rampa. Se aquietavam ao notarem o olhar fixo e enviesado do galerão bigodudo. Para aliviar a tensão pré-espetáculo, o anão chamado Flecha explicou na entrada, num portunhol caricato: “Boa noche, mis amigos. Tengo certeza que verás cosas ahí que nunca olvidará. Quando saírem de qui, no verão o mundo de la misma manera. Diviértete! Boa suerte!” Em seguida, arremessou algumas bolinhas de fogo atiradas com o dedão da mão esquerda, as engoliu, abriu a boca, mostrou a língua, sorriu e exibiu os dentes de ouro. Depois tirou a cartola da cabeça, se curvou e girou os braços em direção ao picadeiro, convidando o público a se sentar nas ásperas, rangentes e modestas arquibancadas de madeira.

Mesmo com a chuva repentina, o ambiente estava quase completamente seco. Havia apenas orvalho nas rebarbas da lona. Assim que nos acomodamos, luzes vermelhas, laranjas, amarelas, verdes, anis e violetas percorreram aleatoriamente o cenário por alguns minutos, até se alinharem e formarem um arco-íris. Logo um homem de meia-idade, vestindo uma curta calça preta, camisa branca com botões pretos, gravata borboleta preta e um colete aveludado vermelho, caminhou até o centro do picadeiro e se apresentou como Ramón Cervantes, El Animal. “Respetable público. Estoy muy feliz de verlos aquí. Es genial estar en Paranavaí. Para los que vieram ver los animales, una advertência: neste circo somos los únicos animales. Y no somos pocos. Somos decenas, muchos. Só peço-te que fecha los ojos. No tengas miedo!”, disse Ramón. O apresentador bateu cinco palmas, as luzes se apagaram e a contragosto de alguns o silêncio tomou conta do ambiente.

Um cheiro de selva rapidamente se alastrou pelo picadeiro. Ouvi passos pesados e um barrir que fez meus cabelos esvoaçarem. Tive a impressão de que um elefante estava próximo de mim, encostando sua pata em meu joelho miúdo, até que desapareceu antes que eu pudesse enxergar alguma coisa. Então escutei o rugido de um tigre acompanhado de um mau hálito ferino que me causou arrepios. Era como se os animais estivessem circulando pelas arquibancadas, nos observando, analisando nossas reações e sentindo a energia emanada de nossos corpos. “No tengas miedo! No tengas miedo! Sinta la belleza de la vida y los sentidos”, repetia Ramón no microfone a cada 20 ou 30 segundos.

Também notei algo voando em minha direção. Senti um par de garras sobre o ombro direito e um bico tocando-me a cabeça. De repente ouvi o crocitar de um falcão que parecia bater as asas e voar para fora do picadeiro. Antes das luzes voltarem, uma mão aparentemente humana sem ser tocou a minha. Escutei um barulho ressonante e indecifrável. Com o retorno da iluminação, Ramón observou atentamente as expressões em nossos rostos. Apesar de não ter ouvido gritos, vi que parte do público tinha deixado o picadeiro sem entender a proposta do apresentador. Ramón não lamentou nem comentou nada sobre a evasão. Apenas agradeceu a compreensão dos que ficaram e convidou seu irmão Juanito Cervantes, El Boticario para comandar a segunda parte do espetáculo.

“Que hermoso! Quantas personas para ver nuestro show. Gracias, muchas gracias, mis amigos!”, elogiou Juanito num sorriso largo evidenciando dentes com as cores do arco-íris. O rapaz de pouco mais de 30 anos, e traje igual ao de Ramón, fechou os olhos, inspirou profundamente e expirou. De sua boca saíram fumaças coloridas que serpenteavam e se fundiam, ganhando formas de animais transformados em pessoas e pessoas transformadas em animais. As cores tinham aromas florais muito mais vigorosos do que aqueles deixados na Rua Getúlio Vargas.

Da plateia, Juanito convidou uma garotinha de sete ou oito anos para acompanhá-lo até o centro do picadeiro. “No tengas miedo. Será muy divertido”, prometeu. El Boticário se afastou aproximadamente um metro e meio e assoprou suavemente. O rosto da criança se coloriu, ganhando aspecto místico e refulgente reforçado pela imagem de um lírio amarelo que tinha o nariz miúdo e afilado da menininha como núcleo. Juanito mostrou o resultado em um espelho e perguntou se ela queria que ele lhe tirasse a pintura do rosto. Como a resposta foi negativa, o artista mostrou o desenho de um mosqueado Olho de Hórus em seu antebraço direito e assoprou. Em poucos segundos o olho se fechou e se apagou.

A plateia naturalmente se levantou e aplaudiu com palmas tão fortes e cadenciadas que El Boticário se ajoelhou e reverenciou o público. Antes de encerrar o espetáculo, Juanito fez um comentário em portunhol que reproduzo num português mais claro. “Se vê, sente ou ouve cores, cheiros e sons sem bolores, onde eles pouco existem ou até inexistem, é porque a liberdade te cativa com a tenra intensidade da sensibilidade.” Lá fora, andei em torno da lona antes de ir embora e percebi que não havia animais ou jaulas, somente uma caminhonete, um caminhão e um velho trailer variegado onde viviam os irmãos Cervantes, Flecha e sua esposa, e o gigante circunspecto.

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Meu amigo Chico

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Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas

Altura da Rua Pernambuco, onde corri para alcançar o meu amigo Chico (Foto: David Arioch)

Altura da Rua Pernambuco, onde corri para alcançar o meu amigo Chico (Foto: David Arioch)

Na fase mais tenra da minha infância, eu tinha amizade com personagens improváveis para alguém da minha idade. Idosos e vendedores ambulantes sempre atraíam minha atenção. Os mais velhos pelas copiosas e esmiuçadas histórias que gostavam de relatar. E os ambulantes pelas altissonantes experiências que faziam questão de compartilhar. Mas hoje quero falar em específico sobre o meu amigo Chico.

Em 1990, Chico passava todos os dias em frente de casa, na Rua Pernambuco, ao final do entardecer. De longe eu via sua roupa lucilando com a incidência vulcânica do sol. Ele corria de um lado para o outro com um par de galochas. Sorria, gesticulava, apontava, ziguezagueava e saltava sobre os meios-fios, arbustos ou qualquer tipo de obstáculo que aparecesse à sua frente.

Chico não tinha mais do que 30 anos, a pele bronzeada, cabelos castanhos ondulados e afogueados na altura da orelha. Seus olhos miúdos e escuros pareciam marias-pretinhas. Sempre que se aproximava de mim, retirava o seu surrado par de luvas, o colocava debaixo do braço esquerdo, segurava minha mão direita com as suas duas mãos, sorria efusivamente e dizia: “Boa tarde, David! Muito bom te ver de novo. O que temos pra hoje, meu amigo?”

Eu retribuía a atenção com um sorriso frugal que destacava boa parte dos dentes, inclusive uma janelinha alinhada ao meu nariz. “Oi, Chico! Tá aqui ó”, respondia com parcimônia. Ele abria um ou dois sacos grandes acinzentados sobre a lixeira, fazia algumas micagens ou trejeitos cômicos e comentava: “Ora, ora, David, quanta coisa boa você comeu esta semana, hein? Continue nesse ritmo e vai se tornar um rapaz mais forte que eu!”

Ele se despedia, piscava e partia segurando os sacos e correndo de costas. A menos de um metro do caminhão, girava o corpo, arremessava cuidadosamente os sacos de lixo e saltava, se apoiando em uma barra lateral esquerda. Acenava pra mim e desaparecia junto com o veículo na curva da Rua Amazonas.

Meu encontro com Chico era no mínimo semanal. De vez em quando, brincando com meus amigos em algum lugar distante de casa, logo que a lua despontava com o poente, eu lembrava do meu compromisso voluntário. “Vixi, o Chico! Ele precisa de mim pra entregar o lixo!” Então eu corria para casa desviando das pessoas nas calçadas, saltando sobre buracos e me esquivando de cães que se sentiam provocados pela minha debandada.

Foi assim que um dia encontrei o caminhão de lixo subindo a Rua Pernambuco, a duas quadras de casa. Quando me viu, Chico pediu que o motorista parasse. Esfregou o punho da mão direita na testa, me chamou e saltou. Como era alto, arqueou ligeiramente as pernas para ficar mais próximo de mim. Frente a frente com ele, me senti um pouco pejoso pela situação. Vendo meu sorriso amarelo e meus olhos retraídos, Chico me deu um tapinha no ombro e falou: “Uau, David! Que demais! Não vai me dizer que você correu tudo isso pra me alcançar? Cara, você é um atleta! O que acha de um passeio rápido de caminhão? Será que seus pais vão brigar?”

A verdade é que eu não tinha a mínima ideia do que eles achariam, mas respondi instantaneamente com a cabeça que não enquanto sentia um comichão de alegria percorrer todo o meu corpo. Meus dedos miúdos se entrelaçavam dentro da botinha camuflada do Rambo. Era impossível desfazer o sorriso. Fiquei tão emocionado e banzado que percebi o maxilar acalorado. Chico e seus dois companheiros de labuta se divertiam com a minha reação. Notei pelo riso fácil e espalhafatoso. Em poucos segundos, me vi sobre uma enorme barra de apoio frisada com uma largura que garantia segurança para pés até quatro vezes maiores que os meus.

Chico pediu que eu apoiasse as mãos miúdas com firmeza numa barra lateral tão longa e maciça para a minha pequenez que era impossível fazer as pontas dos meus dedos encostarem na minha palma. Ao mesmo tempo, ele me segurava com uma das mãos que cobriam minhas costas quase que completamente. Eu me sentia imponente sobre a traseira do caminhão de lixo. Era como se aquela máquina de ferro fosse uma extensão da força que eu sonhara em ter.

Lembrei do Bumblebee da primeira geração de Transformers lançada na década de 1980, meu robozinho já velho que assim como o caminhão também era amarelo. “Sou o Bumbleblee! Sou o Bumblebee! Sou o Bumblebee!”, gritava euforicamente dentro da minha própria consciência. Queria mesmo era ficar pulando, só que não podia correr riscos nem preocupar ninguém. Naqueles menos de 200 metros até chegar em casa, nem o mau cheiro exalado por alimentos orgânicos podres, principalmente restos de ovos, legumes e tubérculos, me incomodou. Tudo parecia portentoso demais para que eu me preocupasse com algo tão liliputiano.

Em frente de casa, Chico me colocou no chão, pegou um saco grande sobre a lixeira, sorriu e seguiu sua jornada, acenando com uma luva puída e toldada. Ocasionalmente, Chico me trazia presentes. Não esqueço de um caminhãozinho de lixo e um tratorzinho que me deu, meus brinquedos preferidos ao longo de alguns meses. Minha mãe retribuía seu carinho com alimentos e roupas. Também destinava algo aos colegas de trabalho dele.

Um dia me vesti de Change Dragon, do Esquadrão Relâmpago Changeman, uma das minhas séries preferidas de tokusatsu, e sentei no meio-fio segurando a change fogo, minha pistola de plástico. Ao me ver, a feição de Chico mudou. Espavorido, se aproximou e colocou as palmas das mãos para a frente, na tentativa de se proteger. Se escondeu ao lado do caminhão duas vezes, mudando de posição, arqueando o corpo e abugalhando os olhos.

“Agora vou me aproximar… Por favor, não atire, David! Aqui é seu amigo Chico. Olhe, tenho balas 7 Belo. Vamos fazer uma troca. Você fica com as balas e eu com a minha vida, ok? Não vamos nos precipitar. Não sou nenhum Gyodai da vida”, argumentou, já de joelhos, numa interpretação inesquecível. Quando comecei a gargalhar, a direcionar a cabeça ao céu azul e límpido e encostar as duas mãos na barriga, deitando as costas na calçada, Chico riu junto e me entregou algumas balas.

Em seguida, sugeriu que eu jamais aguardasse o inimigo sentado, porque poderia ser surpreendido. “Tem que se manter em estado de vigília, meu amigão!”, recomendou. Com o tempo, meu sonho de curto prazo passou a ser galochas como as do Chico. Insisti tanto que minha mãe me deu um par. Eu as calçava e me sentia indômito ao me ver no espelho – mais imponente que a turma do Capitão Planeta. No meu universo diminuto, uma galocha não era apenas uma galocha. Era a projeção de um mundo de fantasias, onde eu me via mais alto, mais forte, mais matreiro, mais inteligente e mais rápido. Nunca que eu a consideraria somente como um calçado de borracha. Seria uma blasfêmia.

A primeira vez que me viu de galochas, Chico assobiou para os dois colegas em cima do caminhão, apontou pra mim e gritou: “Olhem, pessoal! O David agora faz parte do nosso clube. Tá preparado pra ser um herói na selva urbana de Paranavaí!” A frase me marcou tanto que eu não queria mais tirar as galochas dos pés. Pedia até para ir com elas à Casa Moreira, na Rua Manoel Ribas, fazer compras com minha mãe. Ela deixava, claro que não sempre, e eu acreditava, com o respaldo do meu candor, que mostrava ao mundo que eu era um grande aventureiro. Afinal, no meu ideário meninil, eu fazia parte da casta dos heróis que usavam a força para livrar a cidade dos monstros que eu idealizava a partir do lixo.

Porém, num dia de 1991, eu estava sentado em uma mureta. O caminhão passou e Chico não saltou. Ele não estava lá. O vácuo da sua ausência parecia alargado por uma corrente de ar que agitava o vazio de um espaço inabitado na traseira do caminhão amarelo. Passou mais um mês e Chico não apareceu. Então comecei a aceitar o fato de que talvez eu nunca mais o visse.

Numa manhã de outono, eu estava na cozinha comendo um pão francês quando ouvi alguém batendo palmas. Caminhei até o portão e levei um susto ao ver Chico mais magro e sem o seu tradicional uniforme de herói urbano. “Bom dia, David. Desculpe interromper o seu café da manhã. Um colega me falou que você ainda me espera em frente à sua casa. Perdão por não ter avisado antes, meu querido amigo. Me colocaram para trabalhar longe da sua casa, em outra cidade. Mas veja que legal! Agora tenho meu próprio caminhão e posso ajudar muito mais pessoas”, justificou.

Fiquei feliz em vê-lo e o abracei. Seus olhos, assim como os meus, ficaram úmidos e lustrosos como bolas de bilhar. Antes de nos despedirmos, ainda disse: “David, deixa eu te contar uma coisa talvez interessante. Sabe por que recolhi lixo por tanto tempo? Porque era o que meu pai fazia e o pai dele também. O lixo nunca foi ou vai ser apenas lixo. Nele encontro sonhos, desejos, desilusões, vazios e esperanças de tanta gente. Em cada saco há pedacinhos de vida, amores, escolhas, preocupações, bem-querença, alegria, tristeza e insegurança. No lixo vejo a fragilidade e a força dos seres. É a minha escola, meu amigo. Nunca deixe de ver coração naquilo que nos toma pela razão, porque uma vida que não irradia emoção é o gatilho da solidão.”

Depois daquele dia, nunca mais vi Chico. Fiquei sabendo meses depois que ele se mudou para Curitiba. Motivado por boa intenção, mentiu sobre a história do caminhão. Segundo a empresa, foi demitido porque suas brincadeiras atrasavam o serviço, custavam tempo. A verdade é que Chico perdeu o emprego porque era humano, demasiado humano.

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A velhinha mais colorida de Paranavaí

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Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel

Minha avó e minha tia-avó Cida (Foto: Arquivo Familiar)

Minha avó, em uma das poucas vezes que não usava roupas coloridas, e minha tia-avó Cida (Foto: Arquivo Familiar)

Minha avó, Dona Clara, mãe de minha mãe, foi a pessoa mais colorida que conheci. Ela e meu avô já tinham se separado quando nasci. Então cada um começou a viver à sua maneira, de forma independente. Dos tempos de pequenez, ecoam na minha mente lembranças da época em que ela chegava em casa sorridente, ajeitando os cabelos lisos, curtos e claros como milho no verão. Sempre trazia algo na mão, chocolate, doce de abóbora, de banana, ou de feijão. Com uma voz bonançosa, não se irritava com facilidade. Me parecia alheia ao mundo e principalmente à modernidade.

Em casa, falava de sua rotina com um lampejo nos olhos dourados e um regalo recalcitrante que faria o mais autoconfiante sentir-se pouco significante. Relatava suas aventuras ao reencontrar ocasionalmente conhecidos e velhos amigos nas suas andanças que ultrapassavam mais de 10 quilômetros diários. Gostava tanto de gente, encontros e desencontros da vida infrequente, que por anos morou em um hotel no centro de Paranavaí. “Oi, vovóó!”, dizia sempre acenando com a mão esquerda. “Ooooi, Deeeivi!”, respondia ela na satisfação sonora de um riso seminal. Quando criança, achei que minha vó tinha nascido vó. Não tinha a mínima ideia de que um dia ela tivesse sido diferente. Afinal, o mundo reconhecido por mim no meu universo diminuto era aquele que conheci a partir do dia em que nasci.

No sofá, vovó me colocava em seu colo e cantava.  Eu segurava suas bochechas rosadas, sutilmente flácidas e macias com as minhas mãos minúsculas e dizia sempre que acabava: “Vamos de novo, vovó!” Ela ria e eu sentia suas contrações abdominais chegando até as solas dos meus pés que vibravam e formigavam a ponto de causarem cócegas. Eu gargalhava junto, até avermelhar, eriçando os pés e tocando o queixo com os joelhos.

A cada intervalo, eu olhava seu rosto níveo e escarmentado com ternura, sem reconhecer rugas, sinais e queimaduras causadas por tanto tempo de exposição ao sol na época em que trabalhava nas roças de café de Paranavaí e Alto Paraná. Suas mãos tinham traços desconhecidos por mim, linhas paralelas que se cruzavam antes do fim. Estava sempre perfumada. Quando eu a abraçava, seu bálsamo me acompanhava. “Que cheiro é esse, David? Onde você tava?”, questionavam meus amigos assim que saíamos às ruas para jogar bola. “É cheiro de vó”, replicava.

Seus pés conheciam Paranavaí de norte a sul. Caminhante que era, chamava a atenção ao longe com alguma longa saia ou vestido colorido. Independente de frio ou calor, o que não podia faltar era o fulgor de uma boa cor. O seu apego à natureza, as flores, trazia no corpo com destreza. Quantas formas de estampas iriantes, combinando com os brincos rutilantes – o mais airoso dos penduricalhos de orelha, a faixa sarapintada na cabeça e uma bolsa grande com rajadas de centelha.

Era vaidosa, sem dúvida, mas de uma vaidade moderada e singela que ocasionalmente a motivava a mudar a cor dos cabelos. “É importante colorir pelo menos até vibrar diante da luz do sol”, dizia ela com um sorriso galhardo enquanto massageava o couro cabeludo com a ponta do dedo sulcado. “Lá vem a Dona Clara…parece que nunca cansa”, uma frase que se repetia dezenas de vezes por tantas ruas da cidade. Aposentada, sempre carregava sua bolsa onde armazenava o que comprava, o que vendia e o que doava. Quando eu a encontrava e oferecia carona, ela gentilmente recusava. Justificava que há uma fase na vida em que passa a ser importante sentir as pedrinhas do asfalto tocando a sola do sapato, ouvir os animais reclamando nos portões, as idas e vindas das pessoas dos rincões.

Não queria perder nada de um dia a dia rasteiro que a motivava. Estar a pé na rua bastava. Com tantas expressões impolutas e dissolutas de gente conhecida e desconhecida, ela se jubilava. “O mundo aqui fora é engraçado porque é feito de caretas”, brincava. A mixórdia de perfumes, a zaragata do tudo e do nada, quanta coisa frugal a cativava. Ainda a ouço abrindo o portão de casa, o som de sua rasteirinha conduzida por passos bailaricos de quem raleia o chão extraindo som cadenciado do piso. Suas inúmeras pulseiras nos braços brandiam com suavidade. “Chegou minha vó, a senhora dos ventos e da liberdade”, concluía. Pela sua natureza, perfil esotérico e exotérico, muitos achavam que a Dona Clara era cigana, uma autêntica romani importada da Romênia. Despreocupada, ela ria, se divertia, crente de que todos tinham o direito de acreditar em coisa qualquer, desde que aquilo não prejudicasse uma pessoa sequer.

Na cozinha, se aproximava da mesa, abria a bolsa e tirava de dentro algo que trouxe para a minha mãe, para mim e meus irmãos. Os olhos intumesciam na esperança de ver saltar alguma guloseima. E sempre acertava. Perdi as contas de quantas vezes ela levou e meu irmão Douglas numa mercearia sem fachada na Rua Piauí. Era um paraíso recluso para crianças. Íamos lá à noite, uma vez por mês, depois do horário comercial. Seu Luiz, homenzarrão de quase dois metros, abria a porta de acesso dos funcionários e percorríamos todos os corredores numa felicidade tangente e columbina. Havia doces artesanais que já não existem mais, embalados com desvelo num papel cinéreo, o mesmo que usavam para armazenar pão. Se sorríamos, ela sorria. Nos despedíamos do Seu Luiz, trazendo nas mãos e nos bolsos taliscas moderadas embora adocicadas de alegria. Assim que a porta se fechava, desvanecia o feixe de luz que tocava a soleira da mercearia.

Vovó não ignorava o aniversário de ninguém, jamais deixou de presentear alguém. Sabia a data de aniversário de todos os parentes e amigos. Não tinha apego material, tanto que esqueceu as muitas vezes que emprestou dinheiro e nunca recebeu. Narrava esses fatos da vida gargalhando e galhofando. Sequer franzia a testa ou arvorava as sobrancelhas. Mantinha o semblante quiescente, sentada com as pernas cruzadas, a postura perfilada e as mãos sobre o joelho direito em um banco de madeira na varanda de sua casa. “Quer suco? Também tem bolo de laranja, Deivi”, oferecia em tom melífluo nas visitas semanais que eu lhe fazia desde os primeiros anos de vida.

Independente, sempre preferiu morar sozinha. Ninguém conseguia convencê-la do contrário, mesmo após alguns episódios em que supostos amigos furtaram-lhe eletrodomésticos e a modesta aposentadoria. “Não tem problema. No mês que vem recebo e compro de novo”, replicou sem qualquer indício de exaltação. Se comprazia em viver rodeada de gente, principalmente excluídos sociais. Ainda criança, eu via minha vó como a rainha dos marginalizados.

Foi em sua casa que tive o primeiro contato com picaretas, vagamundos, usuários de drogas, viciados em jogatina, estelionatários, cafetões, mendigos, prostitutas, travestis e ex-detentos. Suas portas estavam abertas para todos os tipos. No entanto, quem não respeitasse suas regras não poderia retornar. Um dia, quando a visitei, me deparei com um homem de aproximadamente 30 anos sentado na varanda. Usava uma camisa branca tão surrada que só não expôs sua débil forma física por causa da sujeira e do sangue seco, além de uma calça social cinza esfarrapada.

Estava descalço e a sola do seu pé era tão espessa que parecia calçar alguma coisa. A barba se confundia com os cabelos desgrenhados, carpelados e grisalhos. “Oi, Deivi. Esse é o Gibé. Ele vai ficar aqui até arrumar um emprego ou um lugar pra ficar”, confidenciou depois de servir uma sopa de legumes ao indigente que só meneava a cabeça e sorria expondo alguns dentes vaporosos e amolecidos. O malfadado tinha apanhado na noite anterior quando dormia ao lado do pombal no Terminal Rodoviário Urbano.

A Dona Clara era um desses seres que Nietzsche definiria como espírito livre. Avessa à raiva e ao ódio, tinha mais o que fazer do que guardar rancor ou perder tempo com o que não enobrece a alma ou a vida. Aos 74 anos, adorava dançar. Não perdia um baile no Clube Idade Dourada e no Tênis Clube de Paranavaí, onde fazia amizade em poucos minutos de conversa. Girava pelos salões com um desprendimento transcendental, entregando-se à alegria sem ressalvas, porque a reconhecia na essência como fortuita e passageira.

Com minha vó e minha mãe, eu ia todos os anos ao Cemitério Municipal de Alto Paraná visitar os túmulos de minha bisavó e de meus dois tios-avôs. No dia 2 de novembro de 2008 estávamos perto do túmulo do tio João quando uma brisa solene massageou meu rosto. A Dona Clara se aproximou de mim e comentou: “Deivi, nunca deixe de vir aqui. Eles precisam da nossa lembrança, da nossa presença. Sempre que venho aqui sinto um afago, uma quietação no coração.”

Aquele dia ela chorou diante de cada túmulo, numa despedida não declarada. Em 20 de dezembro do mesmo ano minha avó faleceu em decorrência de um ataque cardíaco. Compareceu tanta gente ao velório que eu não conhecia nem 1/3 do total. Ainda assim reconheci prostitutas, ex-usuários de drogas e andarilhos, pessoas que minha avó ajudou. Quando saí da capela para ficar um pouco sozinho, observei os galhos de uma sibipiruna se movendo com placidez.

Por trás da copa, a lua começou a despontar. Um homem sorriu diante de mim e perguntou se eu o reconhecia. Respondi prontamente que não. Era o Gibé. Parecia bem saudável. Estava corado, bem vestido, com os olhos grandes como duas jabuticabas e tão perfumado que até quem passava na esquina sentia no ar um aroma oriental – amadeirado e apimentado. “Moro em Maringá. Tenho uma empresa de consultoria em commodities”, revelou.

 

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O amor e a romã

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Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta

Eu nos tempos de amizade com Seu Onofre (Foto: Arquivo Familiar)

Eu nos tempos de amizade com Seu Onofre (Foto: Arquivo Familiar)

Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa. Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.

O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo. Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.

Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.

Com não mais que sete anos, eu morava com meus pais e irmão em uma velha casa na Rua Pernambuco. À época, uma parte da população de Paranavaí ainda tinha o costume de realizar velórios na sala da própria residência. Um dia, do outro lado da rua, a pouco mais de 50 metros de casa, caminhando e passando os dedos da mão direita pelo muro pintado com cal, parei em frente a um portão onde vi e ouvi pessoas num choro tacanho, conversando e coçando os olhos.

Estavam ao redor de um caixão preto tão lustroso que parecia um sapato desmesurado recém-engraxado. A sala era pequena e as pessoas, dependendo da estatura, quase roçavam o umbigo e o peito na cabeça da falecida para chegarem ao banheiro. Por causa da distância, eu não conseguia ver seu rosto coberto por um tecido níveo que mais lembrava um véu de noiva. Sabia que era mulher porque ouvi alguém dizer que a finada era a Dona Estela. “Ué, tão enterrando ela com pano de festa?”, me perguntei num rompante de espontaneidade e singeleza.

Na manhã seguinte, quando saí pra comprar pão, encontrei Seu Onofre, marido de Dona Estela, caminhando a passos lentos, rindo sozinho, e sem apontar os olhos para nada que o cercava nas imediações de uma padaria na Avenida Distrito Federal. Parecia num transe solene e talvez disparatado na concepção de alguns. Me aproximei, o cumprimentei, e num ato tipicamente irrefletido de criança, questionei: “Seu Onofre, por que o senhor tá rindo se sua mulher morreu ontem?”

Então ele continuou em silêncio por três ou quatro segundos enquanto me observava e ajeitava o penúltimo botão superior de uma camisa florida, dessas que os aposentados usam quando saem de férias para um paraíso tropical. Sua tez e seus olhos reluziam tanto que eu podia ver o meu pequeno reflexo distorcido nas suas pupilas amendoadas e aveludadas.

“Olhe, David, você ainda é muito criança, não sei se vai entender, mas vou lhe revelar um segredo. Não me sinto feliz, só que me comprometi em reencontrar um novo sentido na minha vida. Antes de Estela falecer, ela sabia o quanto eu era dependente dela. Ela foi minha primeira e única companheira por mais de 40 anos, desde a adolescência. Então sabe o que ela fez quando ficou doente e lhe contaram que não viveria por muito tempo? Não se lamentou. Tirou um caderninho de dentro do criado-mudo, pegou uma caneta e planejou minha vida, meu dia a dia pelos próximos cinco anos. Ela sempre soube que sou relaxado. Disse que era pra eu seguir direitinho, assim não me sentiria perdido. Se antes eu conseguisse recomeçar uma nova vida, eu poderia abandonar o caderninho. Senão, bastaria reiniciar as tarefas. O primeiro dia é hoje. Dê uma olhada!”

Peguei o caderninho com as duas mãos e lá estavam as primeira sugestões. “Querido Onofre, meu grande amor, se levante amanhã, tome um bom banho, vista a camisa florida que está no primeiro cabide, a bermuda bege da segunda gaveta e as sandálias castanhas que estão na primeira fileira da sapateira. Vá até a padaria caminhando vagarosamente e sorria. Lembre-se da primeira vez que nos vimos, de quando nos casamos, de quando Laurinha nasceu. Não deixe de sorrir, mesmo que as pessoas o julguem. Ignore toda a negatividade. Mais cedo ou mais tarde esse exercício há de contagiar o seu coração, transformando a dor em uma nova forma de amor.”

Devolvi o caderninho e caminhamos até a padaria. Lá, me pagou um doce e uma sodinha. Preservou o sorriso a maior parte do tempo, inclusive quando me relatou as dificuldades que passaram nos anos 1950 em Paranavaí. “Nossa casinha era praticamente um ranchinho. A gente não tinha geladeira, então só podia comprar alimento que não estragasse rápido. Éramos jovens, muito jovens, só que felizes num lugarzinho no meio do mato”, disse, já com os olhos marejados.

Na volta, notei que durante o trajeto Seu Onofre acariciava com esmero a aliança na mão esquerda. Havia um silêncio morno e abafado como o de um escafandro que se misturava aos sons de motos, carros e caminhões atravessando a Avenida Distrito Federal. De repente, a rescendência desconfortável daquela fugaz amostra de poluição foi ofuscada pela olência uniforme e sutil de um buquê de lírio azul transportado a pé por uma jovem funcionária de uma floricultura. “Era a preferida da Estela. Ela chamava de Xodó Azul”, comentou Seu Onofre num riso lacônico.

Em frente ao portão de sua casa nos despedimos. Quando eu estava me afastando, gritou meu nome e pediu que eu o aguardasse. Logo voltou trazendo nas mãos de palmas rosadas uma porção de romãs colhidas no quintal. “Que nunca falte amor na sua casa, assim como nunca faltou na minha”, falou com um lhano sorriso. Continuei visitando Seu Onofre até 1993, quando morávamos no Jardim Progresso. Com o tempo, minha rotina mudou e a dele também, até que perdemos contato.

Um dia, em 2002, recebi uma carta assinada pela sua filha Laurinha que vivia em Curitiba há mais de 15 anos. Achei até que a correspondência foi enviada por engano, pois já não me recordava dela. Quando abri o envelope, encontrei sementes de romã, trazidas da Palestina, e uma pequena carta. “Meu querido e bom amigo David, o que morre hoje, renasce amanhã, desde que o coração assim o aceite. Saiba que nem mesmo o Mar Morto conseguiu ofuscar o perfume das romãs que irradiavam até Jericó”, escreveu Seu Onofre.

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Meu pai e eu, a despedida que não aconteceu

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Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la, mas temia lhe ferir os dedos

Douglas, meu pai e eu dois anos antes de descobrirmos a doença (Foto: Acervo Familiar)

Douglas, meu pai e eu dois anos antes de descobrirmos a doença (Foto: Acervo Familiar)

No dia 21 de setembro de 1997, domingo, uma semana antes do meu aniversário, eu dormia em um colchão no quarto do meu irmão Douglas quando ouvi minha mãe chamando. Olhei para a porta e a vi nos observando naquela manhã que nem a primavera antecipada garantiu o sol aquecendo nossa janela. As luzes estavam apagadas, assim como o sol que costumava invadir nossa casa com um esplendor enternecido e jubiloso.

Cães e gatos, que se engalfinhavam por brincadeira todas as manhãs, também endossavam um silêncio que ecoava um vazio inenarrável. “David, Douglas, preciso muito dizer uma coisa… É muito sério… Seu pai não resistiu e morreu…”, revelou minha mãe com olhos afogueados e um tom de voz aluído que denunciavam ter ensaiado aquele momento por várias horas. Nos calamos por segundos que pareciam minutos. Então ela se afastou, se esforçando para reprimir a emoção.

Levei as mãos ao rosto e esfreguei os olhos que formigavam mais do que lã em eczema. “Poderia ser apenas uma alucinação, vai saber.” Prossegui com a fleuma, me negando a aceitar a gravidade da situação. Afinal, na minha concepção juvenil de finitude ninguém morria até que eu o visse morto. “Não, ele não pode ter morrido. É meu pai e pais não podem viver menos de 100 anos. Como ele tem 56, ainda restam 44. Não sei onde ele tá, mas tenho certeza que vai se levantar.”

Apesar da descrença no passamento, me sentei, aproximei os joelhos do peito e divaguei pelo passado recente. Lembrei das vezes em que fiquei de castigo sentado no chão ao lado da cabeceira enquanto meu pai lia um dos quatro ou cinco livros escolhidos a cada semana; um castigo que não era tão castigo porque me permitia ler junto. Recordei também das noites em que eu tinha de tocar polca no quarto. Com o passar das horas, parecia um martírio e eu só pensava em dormir. Criança que era, não tinha a mínima ideia de que um dia sentiria falta de suas cobranças, castigos, reprimendas, discursos bravios e das vezes em que simulou me bater e judiou da cama.

Algum tempo depois, me levantei, fui até o quintal e observei o céu. Apesar de tudo, ele continuava igual, na sua apatia que prenunciava a aurora primaveril. Até a pequena plantação de hortelã seguia galharda, exalando profuso frescor. Aquilo era uma ofensa pra mim que perdi meu pai na madrugada. “Vou lá fora!”, pensei. Abri o portão, coloquei os pés na calçada e notei que o mundo não mudou porque meu pai partiu. Crianças atravessavam a rua rindo e correndo. Cães de diversos tamanhos latiam e mostravam os dentes entre as grades dos portões, tudo para tentar intimidar os passantes.

Logo ouvi o sino da igreja simulado por um disco de vinil e dezenas de pessoas caminhando até ela, assim como se repetia todo domingo. A padaria a 50 metros de casa estava aberta, recebendo os fregueses. “Por que ninguém se importa?”, me perguntei enraivecido. Quando vi sombras e vozes em frente ao portão de casa, me afastei e retornei a passos rápidos para o quarto do meu irmão.

Deitei no colchão e fiquei por lá, aventando minhas voláteis conclusões: “Claro! Se tá tudo igual é porque meu pai não morreu. Deve ser algum tipo de engano.” Então mirei o teto com a visão ligeiramente difusa e pensei que talvez fosse uma boa ideia ir até o hospital vê-lo. Em poucos minutos, veio um novo choque de realidade. Minha mãe retornou e perguntou se preferíamos ir ao velório ou ficar em casa.

Ilusão desfeita, eu e meu irmão nos entreolhamos e hesitamos por alguns instantes. No entanto, numa situação como essa, a resposta era previsível. “Prefiro ficar…”, respondemos juntos. Ela entendeu e respeitou nossa decisão, pois desde sempre não tínhamos o hábito de ir a velórios nem a enterros. No caso do meu pai em especial, a ideia de jamais vê-lo morto não era simplesmente uma forma de preservar a imagem que tínhamos dele, mas também a esperança de que um dia ele poderia retornar.

Por um momento, fui até o quarto do meu irmão Juninho, contíguo ao da minha mãe, e o observei no berço. Balançava as perninhas rechonchudas com o vigor de uma pedalada. Seus olhos grandes, redondos e castanhos cintilavam como avelãs envernizadas. A agitação hasteava a camisetinha com estampa do “Tico e Teco”, expondo a barriguinha farta. Nascido há um ano, sorria com doçura, mostrando a vivaz gengiva nua e os poucos dentinhos enquanto apontava a mão para um móbile de animaizinhos que giravam sobre sua cabeça.

A vida me parecia um jogo de chegadas e partidas. “Mas por que a partida tinha de ser do meu pai?”, reclamava. E assim minha mãe assumia total responsabilidade sobre três crianças que sabiam nada ou quase nada da vida, do mundo e dos seres humanos. Apesar de tudo, eu e Douglas não choramos, não gritamos, não brigamos com ninguém. Seguimos nossas vidas em silêncio. Nem mesmo na escola tocamos no assunto. Entre nós a reticência também era imperativa. Por que deveríamos dizer algo a alguém? Era um mundo distorcido, tanto quanto uma pintura do Otto Dix.

Com o tempo a consternação se intensificou, despertada num rompante insólito. A ausência tinha consequências progressivas – fustigava e dava lições de vida e morte. Crescia aos poucos, abrindo espaços entre o coração e o cérebro, como se formasse raízes no cerne da existência. O vácuo deixado pelo meu pai amplificava a impressão de um mundo oco em que não é dado aos bons seres a oportunidade de corrigirem suas falhas e renascerem. Com 13 anos, concluí e amarguei no coração diminuto, como uma noz prestes a ser esmagada, a ideia de que o mundo nunca foi justo porque não cabe a ele fazer qualquer tipo de justiça. Apenas segue de acordo com o curso das nossas ações, independente do nosso estado de consciência ou passionalidade.

Tardiamente, me via na esteira da dualidade, interpelando: “Que seja! Por que a vida não poderia imitar um jogo de videogame? Continuar de onde paramos. A morte deveria ser sinônimo da vida, um reinício e não um fim.” Era impossível esquecer que durante um ano e oito meses vi meu pai definhando aos poucos. Ele se esforçou para tentar levar uma vida normal. Quando recebeu a notícia de que estava com câncer de pulmão, deu um sorriso e, com um olhar sereno, comentou: “Vai dar tudo certo. É só um probleminha passageiro.”

Em Maringá, acompanhei meus pais até o Hospital Paraná em muitas sessões de quimioterapia e radioterapia. No começo, tudo ia bem. Meu pai continuava se alimentando normalmente e fazia brincadeiras enquanto aguardava atendimento. Em meses, perdeu os cabelos, mais de 20 quilos e sua pele que era rosácea se tornou translúcida e esquálida. As maçãs do rosto se afundaram a ponto de abrir fendas nas laterais que raleiam o maxilar.

Ele continuava acreditando na própria recuperação, assim como nós. Após um ano recebemos a melhor notícia de nossas vidas. Meu pai estava curado! Saímos até para festejar. Era incrível! Então a doença voltou… Depois de buscar métodos alternativos que não funcionaram, ele começou um novo tratamento no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. O resultado foi ainda mais agressivo e o seu peso caiu pela metade.

Era difícil reconhecê-lo, e eu já não o via tanto porque precisava ir para a escola. Em casa, meu pai repousava em um quarto adaptado à sua situação. Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la calorosamente, mas temia lhe ferir os dedos. Seus olhos estavam mais baixos do que nunca. Quebrantado, fazia poucos movimentos com a boca e seus lábios tinham de ser umedecidos constantemente para não ficarem ressequidos e sangrarem.

Seu corpo escanzelado ocupava pouco espaço em um colchão d’água que evitava escoriações na pele delgada. Era azul como o mar e o céu que contemplou tantas vezes com uma expressão enlevada. Um dia, quando eu estava ao lado da cama sentado em uma cadeira, me pediu, com a voz embargada e paulatina, para ler um trecho de “O Andarilho das Estrelas”, do Jack London.

“…Sorri para mim mesmo um imenso sorriso cósmico e mergulhei na imensidão da pequena morte que fazia de mim o herdeiro de todas as eras e o cavaleiro de reluzente armadura a cavalgar o tempo.” Meu pai me olhou, fechou os olhos e dormiu sem desfazer o terno sorriso. Foi a última vez que conversamos.

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Uma lição sobre vida e morte em dia de chuva

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Encontrei o céu mais esbraseado do que nunca, como se estivesse prestes a sangrar sobre nossas cabeças

Ignoravam a veemência da chuva e aceleravam pelas vacilantes rodovias estaduais (Arte: Elizabeth Patterson)

Ignoravam a veemência da chuva e aceleravam pela vacilante rodovia estadual (Arte: Elizabeth Patterson)

Presenciar um grave acidente de trânsito era uma das experiências mais chocantes na vida de uma criança, pelo menos até a metade da década de 1990. Mas que poderia muito bem ser transformada em uma grande lição de vida. Falo por experiência ao me recordar de um episódio que vivenciei em abril de 1994, quando ainda não existia internet no Brasil.

Era um final de manhã ameno, marcado por uma borrasca que lavou completamente a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, no Jardim Progresso, arrastando um restolho de areia grossa abandonado em uma construção perto de casa. Aproveitando o declive da água, crianças corriam e sentavam rente ao meio-fio, posicionando barquinhos de papel e plástico, além de pilotos acrobatas com os braços colados nos guidões dos jet skis. As embarcações à base de folha de caderno venciam a disputa facilmente. Desciam com tanta celeridade que pareciam movidas à vela. Um momento de glória dos brinquedos mais rudimentares e seus módicos donos que após a brincadeira depositavam os intactos campeões dentro de sacolas de mercado.

Na tarde daquele dia comentei com meu irmão Douglas que eu não via a hora de lançarem o álbum de figurinhas da Copa do Mundo, uma apreensão que fazia divagar incansavelmente, a ponto de nos reunirmos com quatro amigos para tentarmos adivinhar quais seriam as escalações. Além do Brasil, nossa atenção se voltava para as seleções da Bélgica, Romênia, Bulgária, Suécia, Irlanda e Noruega, países sobre os quais pouco sabíamos. “A Transilvânia fica na Romênia e a Romênia é um país pequeno. Será que o Gheorghe Hagi é parente do Drácula?”, perguntei num tom sincero e pascácio. A resposta veio em forma de nenhuma palavra e muitas gargalhadas.

Horas depois, quando estávamos sentados na calçada conversando sobre a construção de uma tirolesa que nos permitisse atravessar a rua por meio das árvores, meus pais chamaram eu e meu irmão para irmos a Campo Mourão. Saímos de Paranavaí no final da tarde, com o testemunho altaneiro de um céu índigo transmutado em escarlate, principiando o adormecer do sol. Na BR-376, perto da entrada de Alto Paraná, abri a janela do carro e senti uma brisa fugaz massageando meu pescoço com a canícula de um bafejo. O que me pareceu muito atípico num dia com temperatura média de 20 graus.

Julguei por precipitação que talvez fosse culpa do escapamento de um fenemê azul com rodas desalinhadas que transportava uma carga fedegosa de lixo orgânico. Trafegando com malemolência, o caminhoneiro seguia sua jornada, ignorando buzinas, faróis altos, palavrões e gestos obscenos. Na carroceria trazia um adesivo luminescente aos desavisados: “Quem em caminho leva pressa, em caminho chão tropeça.” Ao ultrapassar o caminhão que se lançou ao acostamento para permitir a nossa passagem, meu pai acionou a buzina rapidamente e disse: “A paciência é amarga, mas seu fruto é doce.” Achei a frase curiosa, engraçada e divertida. Anos mais tarde, descobri que o autor era o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau.

Antes da escuridão selar o horizonte, tentei localizar o sol. Encontrei o céu mais esbraseado do que nunca, como se estivesse prestes a sangrar sobre nossas cabeças. Com a compleição de uma série de asfaltos bifurcados em lugar algum e uma sequência de rotundas da PR-317, o limiar da noite trouxe também a cerração, a insolência e a perdição dos incautos. Veículos dos mais diversos tamanhos e com placas de cidades do Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais entranhavam-se no desconhecido sem poltronaria.

Minha mãe, sempre inimiga da pressa nas estradas, combinava muito bem com meu pai. Ele desprezava fervorosamente o ímpeto juvenil dos motoristas que independente de idade serpenteavam como se não existissem faixas ou qualquer tipo de limite. Que tresloucados! Não reconheciam a fealdade de suas ações porque eram vilões travestidos de heróis por falhas de semântica e paroxismo. Ignoravam a veemência da chuva e aceleravam pela vacilante rodovia estadual como se estivessem numa Autobahn. Com o rosto perto da janela, monologuei: “1…2…3…4…5…6…7…8…9…10…11…12…13…carros ultrapassando a gente em 30 segundos. Que loucura!”

Dois patinaram na pista e por pouco não se chocaram contra um caminhão-tanque. Pelo vidro embaçado, onde as gotas se arrastavam até as canaletas, senti a fúria dos pneus que ricocheteavam água sobre o para-brisas do nosso carro. E para piorar, vez ou outra meu pai tinha de recuar para dar espaço a algum motorista que não conseguia concluir a ultrapassagem. Raramente alguém agradecia. O beneficiado só aguardava uma nova oportunidade de se despedir jogando água suja sobre o nosso capô. Assim a ansiedade velada dinamitava meu corpo com a mesma ferocidade da água que envergava galhos e arrastava as ramas com a cumplicidade da aragem.

Campo Mourão me parecia cada vez mais distante e eu cada vez mais inquieto. Não conseguia evitar de pensar que dentro de tantos veículos não havia somente seres humanos. “Só pessoas ali? Acho que não! Deve ter algo bem além disso!”, refleti. Então imaginava monstros empertigados, com a tez cinza e macilenta. Na minha divagação quimérica, seus corpos se inclinavam ao volante sem qualquer indício natural de lucidez. Os olhos parcialmente opacos reluziam o temor de ser ultrapassado por alguém mais lesto e astuto.

O som vertiginoso dos pneus em atrito com a água da chuva, se intensificando como se quisesse descobrir do que eram capazes aqueles seres, fazia o coração dos mais obcecados trepidarem. A proximidade de alguns veículos era ameaçada por oscilações subversivas dos roncos dos motores. A verdade é que se rendiam sem ressalvas a um capcioso senso de invencibilidade. Como se sentiam imortais! No banco do motorista, eu só enxergava bocas abertas, dentes afilados e verdolengos, que serviam de porta de saída para gosmas espessas e ácidas que caíam diretamente sobre os pedais dos aceleradores. Ao mesmo tempo magnetizavam os pés, impelindo-os a correrem mais e mais, numa sanha infindável e espinoteada. Aquilo me arrepiava sobremaneira. Meus olhos intumesciam, trazendo lembranças fortuitas de filmes como Christine, The Hearse e Maximum Overdrive.

Quase chegando ao nosso destino, fomos surpreendidos por uma torrente que percorreu um paredão de pedras com tanta violência que quem estivesse absorto ou distraído seria facilmente arrastado para fora da rodovia. Por sorte ou pelo acaso, não testemunhei nenhum acidente. Em Campo Mourão deixamos minha mãe em um hotel no centro, onde ela ficaria uma semana para resolver pendências profissionais. Nos despedimos por volta das 21h e retornamos para a estrada. A chuva tinha se dissipado e os motoristas pareciam mais cordatos. Notei uma tranquilidade tão sublime que ao descer dois dedos do vidro da janela percebi pela primeira vez naquele dia o sortido frescor das árvores conduzido pelo vento. Conseguia ouvir até o ramalhar das mais seivosas.

A quietude não durou muito tempo. Perto de Peabiru, um automóvel em alta velocidade passou sibilando e quase rasurando o nosso carro. Mais adiante o motorista perdeu o controle da direção na pista escorregadia e invadiu a contramão. Ciente da iminente tragédia, um caminhoneiro tentou desviar. Tarde demais. O impacto foi tão grande que até o ônibus que vinha logo atrás foi jogado para fora da pista. Meu pai parou o carro no acostamento e desceu para oferecer ajuda. Havia muito sangue no asfalto. Pessoas agonizavam, choravam e gritavam. Alguns estendiam os braços pelas janelas do ônibus e balbuciavam os próprios nomes e os de seus familiares. Antes de falecer, um passageiro preso entre as ferragens do ônibus suplicou para que salvassem seu filho desacordado ao seu lado: “Pelo amor de Deus, me deixem aqui! Tô condenado já. Nem sinto direito meu corpo. Não liguem pra mim. Peguem meu filho. Ele tem só cinco anos! Por favor, eu imploro!”

Em poucos minutos, tive dificuldade em associar a experiência com a realidade. Me vi em um pesadelo, tormento kafkiano, principalmente quando os voluntários e os bombeiros enfileiraram alguns corpos no acostamento. Eram pessoas que, assim como tantos viajantes, estavam rindo, sonhando e fazendo planos há poucos minutos. De repente, não tinham mais vida. Seus pés descalços me pareciam tão frágeis encostados nos feixes de gramíneas. Seus olhos miravam o céu sem vê-lo, incapazes de sentir a sua plenitude.

Uma moça com cerca de 20 anos usava maquiagem que deve ter exigido muito tempo de dedicação. Restou-lhe a metade, ocultando algumas imperfeições superficiais nas formosas maçãs do rosto, tão comum e natural na juventude. Seus lábios ainda preservavam o vermelho do batom que se confundia com um filete de sangue quase seco no canto da boca. Um idoso também falecido teve de ser retirado do ônibus junto com a esposa. Os dois mantinham as mãos entrelaçadas. Em respeito ao casal, ninguém ousou separá-los. Será que alguém imagina que um dia há de deitar no acostamento de uma rodovia? Sobre um chão áspero e pedregoso…esperando a hora de ser enterrado. Quantos passageiros e motoristas não passaram por aquele lugar sorrindo e cantando?

Como havia só uma ambulância no local e muitas pessoas estavam em estado grave, correndo risco de morte, meu pai se dispôs em transportar um rapaz ensanguentado com severos ferimentos na cabeça e algumas vértebras quebradas. Apesar da dor, o homem me observava com olhos amiudados e um sorriso fraterno. Não dizia nada, não gemia nem se desesperava, mesmo com o rosto coberto pelo sangue que ele ocasionalmente observava no retrovisor. O acerejado no entorno de seus olhos contrastava com a lividez da pele. Também ajudamos uma moça. Com cortes em várias partes do corpo, inclusive um grande ferimento na perna direita e uma larga mancha púrpura no rosto fino que se escondia entre os cabelos longos, ondulados e escuros, ela se mostrava mais agitada e feria a si mesma com as unhas da mão esquerda. Seria um ato de desvario? Não. Era o temor de perder a sensibilidade da mão direita.

Na Santa Casa de Campo Mourão os dois foram recebidos prontamente. O rapaz que usava uma jaqueta preta me olhava ao longe conforme a enfermeira o empurrava em uma cadeira de rodas. A moça sorria pra mim com ternura enquanto apoiava um braço sobre a muleta e o outro em um enfermeiro. Ficamos no hospital até receber as primeiras informações sobre o estado de saúde dos dois. O rapaz não corria risco de morrer, mas sim de nunca mais andar. A moça também estava em situação delicada. Tinha poucas chances de recuperar os movimentos da mão direita.

Nunca soube seus nomes, de onde eram, o que faziam. Jamais nos despedimos. Sei apenas que quando a chuva se lança sobejamente sobre as rodovias, orvalhando todas as formas de vida e enternecendo os prazeres da existência, ela muitas vezes prenuncia o destempero e a soberba de quem não se importa em ver a venusta translucidez da água substituída pela consternação do vermelho. E assim como ponderava o caminhoneiro, segue-se a sina de quem em caminho leva pressa, em caminho chão tropeça.

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Reminiscências de um suicida

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As imagens persistem como se a altivez da morte me espreitasse a vida mais do que nunca

"Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais" (Pintura: Rudolf Brink)

“Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais” (Pintura: Rudolf Brink)

As reminiscências ecoam na minha mente como bruscos flashes do que vivi. Lembro dos momentos de corriqueira harmonia, mas que me foram plenos como o infinito. Os cães correndo pela casa ao encontro de um abraço humano amortecido por pelos grossos e brancos. O aroma vindo da cozinha e deslizando como ondas radiantes ao encontro de minhas narinas que o absorviam com um suave suspiro a olhos fechados.

Sinto como se fosse hoje os dissabores das discussões durante as viagens, mas que sempre terminavam num resplandecente ar de calmaria e reflexão. Época em que os sorrisos eram mais preciosos que a matéria-prima de qualquer ourivesaria. Ao momento que a representação dos sons, imagens e fragrâncias vão me confortando, sinto a pontada que me sorve a existência. Minhas têmporas dilatam a cada imagem do passado, como se a dor rogasse pelas simples, mas representativas alegrias.

Percebo meus lábios secos que um dia já foram úmidos e corados como morangos frescos e silvestres. O abstêmio azedo em minha boca sorvendo um entorpecente filete de sangue. Sangue formador de pequenos traços que fomentam uma abstração do vermelho; obra de fazer inveja a Tristan Tzara. Decidido por uma ignóbil saída, abracei as mãos da finitude, esta que me fora apresentada como um doce caminho percorrido por quem tropeçou no abismo das inverdades.

A pólvora fora uma das grandes invenções da humanidade, e talvez sem a qual eu não tivesse decidido por evitar o futuro da lúdica realidade. A bala que se aloja em minha cabeça gera aflição enquanto forma uma pequena cascata à sua volta. O sangue derrama-se como uma pequenina bica de mina ao mesmo tempo em que se confunde com as inquilinas lágrimas de meus olhos. Como a relação do pequeno riacho com a sua nascente (essa que preconiza o fim das ilusões em chão). O salgado orvalho transparente em ablução com o doce vermelho (segundo os falsos princípios da vida).

Apresento-me imóvel e relativamente lúcido a derrocada do meu mundo paralelo, ao tempo que pressinto a lugubridade do meu final se aproximando da emancipação da carne. As imagens persistem em meu espólio mental como se a altivez da morte me espreitasse a vida mais do que nunca. Sinto-me como a tela de uma arte despojada de seus valores morbidamente conceituais.

O universo paradoxal me deixa a melindrar entre o falso puritanismo e a misantropia, como se a minha existência fosse desvanecendo numa macabra, mas pueril e complacente liturgia. Tornei-me um todo poderoso, senhor da própria morte, que antes do meu último suspiro deixei levar com o sangue toda uma enganosa virtuosidade ideológica. Mas, previamente ao mortiço, antes do meu consciente estardalhaço, consenti uma reflexão que me acalmou as células, o fato de que o mundo em que vivi era tanto de Odin como de Fenrir.

A crônica acima, a minha primeira publicada em um jornal, foi escrita em 2004.

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Written by David Arioch

August 15th, 2015 at 6:45 pm

Quando Alex Kidd nos inspirou a viver

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“Por um momento, quis ser admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos”

"Pensamos em prender Pozinho no guarda-roupa para jogarmos Alex Kidd por algumas horas" (Foto: Reprodução)

“Pensei em prendermos Pozinho no guarda-roupa para jogarmos Alex Kidd por algumas horas” (Foto: Reprodução)

A primeira vez que joguei videogame foi em 1988, quando meus pais trouxeram para casa um Atari 2600. O ligávamos em uma TV com caixa de madeira de 21 polegadas. Eu achava o controle engraçado porque me lembrava o estribo de uma bicicleta na posição vertical. No dia do teste, minha empolgação era tão grande que eu não conseguia parar de sorrir. Parecia o Animal do desenho animado Muppet Babies. Também tive uma repentina crise de comichão que só desapareceu depois de 30 minutos jogando Enduro. Para mim, aqueles carrinhos que mais se assemelhavam com aranhas deformadas representavam a mais fidedigna perfeição. “Olha, Douglas! Legal demais, né? Tem até disputa na neve”, comentava com meu irmão mais velho.

Depois de Enduro, conhecemos uma infinidade de outros jogos, como River Raid, H.E.R.O, Keystone Kapers, Space Invaders, Pac-Man, Pitfall, Boxing, Ice Hockey, Freeway, Sneak ‘n Peek, Spider-Man, Adventure, Donkey Kong, Skiing e Mario Bros. O que facilitava o acesso eram os cartuchos multijogos. A maior diferença de se jogar Atari quando o videogame ainda estava no auge era a oportunidade de ver as reações de crianças, adolescentes e adultos. Não era difícil testemunhar pessoas chorando de alegria ao jogar pela primeira vez. O videogame também funcionava como um tipo peculiar de “medidor de solidariedade”. Ou seja, você podia perceber facilmente quem eram seus amigos, colegas e conhecidos mais egoístas. Alguns chegavam a chamar vizinhos apenas para assistir aos jogos, sem oferecer qualquer possibilidade dos convidados encostarem as mãos em um controle.

Participei de um episódio assim na casa do garoto mais rico do meu bairro em 1989. Detentor de um Master System novinho, ele fez questão de chamar a minha atenção e a de mais outras seis crianças. Na tarde daquele dia, brincávamos de esconde-esconde nas imediações de um terreno baldio perto da minha casa, na Rua Pernambuco, em Paranavaí. “Olha, meu pai trouxe pra mim dos Estados Unidos o melhor videogame do mundo. É um Master System. Hum…aposto que nunca ouviram falar dele, né? É muito, muito melhor do que o seu Atari. Quem quiser pode ir lá em casa daqui meia hora que vou mostrar como ele é perfeito”, disse o menino. Imediatamente, sem se despedir, virou as costas e foi embora.

Na hora, nem me importei com o tratamento dado pelo garoto. Ignorei a sua altivez, arrogância e pedantismo. Me preocupei apenas com as palavras Master System. A princípio, o resto foi descartado como se eu jamais tivesse ouvido qualquer outra frase saída de sua boca descarnada. Aquele nome mexeu tanto com a nossa imaginação que paramos de brincar de esconde-esconde. Sentamos no meio-fio e comentei em tom de contemplação: “Master System parece um nome bonito, né? Maaa…sss…teer…Syyysss….teeem. Aaaah, mas será que existe coisa melhor que Atari? Atari é Atari!” Na nossa turma de jovens de quatro a sete anos, todo mundo concordou. Alguns balançaram a cabeça e outros emitiram apenas um monossilábico “aham” seguido por risos. Chegada a hora, fomos até a casa do “Pozinho”, um apelido oculto que atribuímos àquele garoto que vivia no palacete branco da esquina. Como passamos boa parte da tarde brincando de esconde-esconde, escalando árvores e atirando com pistolas de água, não estávamos bem limpos.

Quando chegamos à esquina, do alto de seu quarto, contíguo a uma sacada romanesca, Pozinho nos observou com um olhar displicente e sobranceiro. Talvez nos enxergasse como formigas obreiras que estavam ali para cultuá-lo, levá-lo ao êxtase com nossa inferioridade reafirmada na falta de acesso a um videogame, um objeto de desejo recém-despertado em nós por ele mesmo, na gana de tentar ferir nossos sentimentos. Sim, lá em cima estava uma criança de seis anos, mas com anseios perniciosos tão sobressaltados que despertava admiração até em adolescentes celerados. Assim que Pozinho se afastou da janela, fiquei na ponta dos pés para acionar o interfone. Martinha, uma senhora negra, alta, simpática e de pele reluzente que trabalhava como empregada doméstica na casa há mais de 20 anos, destravou o portão. Quando coloquei meus pés sobre um tapete felpudo dourado que ornava o antepasso da sala, percebi como meu tênis chinesinho branco estava demasiado sujo.

Os cadarços encardidos me deixaram constrangido ao ver tudo brilhando no interior daquele cômodo. Um aroma suave e cítrico, simbolizando a mais devotada das limpezas domésticas, amplificava o meu pré-remorso. “Que vergonha! Ela limpou aqui agora”, pensei comigo mesmo. No canto, um vaso grande com lírios-da-paz, uma das plantas preferidas da minha mãe, realçava ainda mais o perfume do ambiente. Ao ver minha hesitação, Martinha disse que não tinha problema nenhum. “Entre, menino! Não vão ser seus pés miúdos e menores que a palma da minha mão que vão atrapalhar o meu trabalho. Pode ficar sossegado!”, garantiu ela com um sorriso tão confortável que fez sucumbir o meu mal-estar.  Na mesma esteira, seguiram-me as outras crianças. Martinha então nos levou até o quarto de jogos do Pozinho, situado no terceiro piso.

Éramos como os sete anões seguindo os comandos de Martinha, a nossa laboriosa Branca de Neve nos guiando aos aposentos da Rainha Grimhilde. Antes de abrir a porta e se despedir, ela recomendou que ignorássemos o jeito grosseiro e a metidez do juvenil patrão. Assim que entramos, Pozinho nos deu uma olhadela e comentou: “Todos vocês vieram? Certo! Só não fiquem muito perto de mim nem da TV porque preciso de espaço pra me concentrar.” Olhamos uns aos outros e seguramos o riso com as mãos, ignorando nossas unhas com resíduos de terra e de cascas de árvore. Sem perceber nossa reação, o garoto ligou o videogame e se acomodou em uma confortável poltrona inclinável que trazia uma etiqueta com a bandeira dos Estados Unidos. Ao alcance de sua mão direita, havia uma bandeja com Dadinho, Ice Pop, balas Fizz, pirulitos do Zorro, 7 Up e Sukita.

Ensaiando uma centelha de educação, sugeriu que sentássemos onde quiséssemos. Não havia lugar para todo mundo, então fomos todos para o chão. Em poucos minutos, nos mostrou Alex Kidd, um jogo de plataforma em que um garoto orelhudo destrói pedras com os punhos. Nossos olhos brilhavam ao ver tantas cores em um game. O que era aquilo? Quem era aquele herói cabeçudo serpenteando por bosques e cavernas? Pensei que estivesse sonhando. Quis morar naquele quarto para sempre. Não! Por um momento, quis viver dentro do jogo, sendo admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos. Como o jogo estava em inglês, Pozinho fez questão de dizer sem base alguma que ele entendia tudo e nós não entendíamos nada.

O ignoramos e trocamos olhares maliciosos. Nos comunicamos muito bem sem precisar abrir a boca. Havia um desejo unânime, não verbalizado, de tapar a boca de Pozinho com esparadrapo e trancá-lo dentro do guarda-roupa. Jogaríamos Alex Kidd por algumas horas e então o soltaríamos. Sim, na teoria parecia plausível. Só que a realidade era muito diferente. Não tínhamos coragem, nem achávamos aceitável fazer algo assim. Fabiano e Mariana, dois da nossa turma, não resistiram, se levantaram e pediram para jogar. Pozinho desdenhosamente declinou a proposta com um olhar de desprezo seguido por uma careta de nojo. A negativa os emocionou sobremaneira que ao longe se podia notar a transparência e o aspecto orvalhado de seus olhos. “Rá! Até parece! Chamei aqui só pra vocês passarem vontade mesmo. Agora podem sair daqui. Tchau!”, declarou sem velar o sorriso sardônico e a intenção capciosa.

Nos levantamos, abrimos a porta e descemos os degraus. Olhei para trás e mais uma vez ele estava nos observando. Se regozijava com a nossa pequenez, já que a sua anormal baixa estatura para alguém de seis anos não permitia tal comportamento tão empertigado quando estávamos de pé diante dele e sobre o mesmo piso. Para quebrantar sua satisfação, acenei, sorri e agradeci o convite. Lá embaixo, a iluminada Martinha nos aguardava com doces e refrigerantes. “Olha o que separei pra vocês. Coloquem em seus bolsos ou escondam em suas roupas e vão com Deus”, sugeriu numa despedida afetuosa. De volta ao meio-fio, entre goles de Soda Limonada, dividimos sorvete fura bolo, arrozinho em flocos, azedinho de morango e balas. Ao escurecer, fomos para casa. No dia seguinte, eu soube que três amigos adoeceram de tanta vontade de jogar Alex Kidd no Master System. Ficaram febris e passaram dias sem consumir alimento sólido.

Irritado, me senti tentado a retornar à casa de Pozinho para destruir o seu videogame a marteladas. Consegui me controlar e também evitei de contar a algum adulto o que aconteceu. Ninguém da nossa turma relatou nada. Uma semana depois, já não nos importávamos muito com o Master System. Continuamos jogando Atari, realizando pequenos torneios de jogos de corrida e luta. Quando enjoávamos, saíamos para escalar árvores, colher frutas ou brincar de esconde-esconde, pega-pega e “balança, caixão”. Em frente à Sanepar, subíamos em um muro alto que permitia uma visão privilegiada da baixada do Jardim Paulista, onde mais tarde desceríamos com carrinhos de rolimã.

Azul e límpido ou enuviado e chovediço, o céu nunca nos mostrou limites, assim como as sibipirunas, os ipês, as sete-copas e os jamelões que se refaziam conforme as estações do ano. Os muros e as escadas cada vez maiores também reconduziam nossas aventuras. As novas construções instigavam nossas visitas tanto quanto as casas e os barracões abandonados. Cães de diversos tamanhos ainda nos perseguiam, não por maldade, mas porque no dia a dia eles eram personagens dos jogos de plataforma que eram nossas vidas. No final de 1989, Pozinho ainda me observava ao longe. Tentando me provocar, um dia balançou o controle retangular do Master System para fora da sacada do seu quarto. O cumprimentei e sorri brevemente. Não, não quis ser irônico. Senti pena e compaixão ao ter certeza de que enquanto ele simulava ser um personagem aventureiro de um videogame, nós éramos felizes por sermos os Alex Kidd do mundo real.

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Protestando com frutas e vegetais ou compras à brasileira

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Por pouco, o consumidor não descontou sua fúria na banca de brócolis

Por pouco, o consumidor não descontou sua fúria na banca de brócolis

Como parte do meu estilo de vida, vou ao mercado com frequência. E nessas minhas idas, sempre reparei que algumas histórias se repetem, embora com personagens diferentes. As mais inusitadas acontecem no setor de hortifruti. Certo dia, eu estava lá tranquilamente escolhendo algumas laranjas (priorizo as de casca mais lisa e as mais pesadas por ter aprendido empiricamente na infância que são as que contêm mais suco), quando escuto um homem chamando a atenção de um desconhecido e apontando para o preço da alface. “Nossa! Esses dias paguei 50 centavos mais barato. Isso é um absurdo! Não vou levar!”, alardeou com orgulho o homem, levantando o queixo e batendo as mãos sobre o apoio do carrinho. Parecia que tentava chamar atenção de outros clientes para um protesto em prol de uma alface alguns centavos mais barata.

Um ou dois minutos depois, o homem deu mais alguns passos, aproximou os olhos de uma bancada e lamentou enquanto limpava as espessas lentes dos óculos na gola da camisa. Dessa vez, a vítima era a fileira de brócolis com preço unitário de R$ 4,99. “Isso é o cúmulo! Consigo direto do produtor por cerca de R$ 2,50!”, falou em voz alta, num tom tão desafiador que parecia querer fazer murchar o firme pedúnculo floral do pobre vegetal.

Alguns dos repositores, preocupados em serem interrogados, tentavam desviar os olhos, fingir que não viam nada, mas nem todos escaparam ao olhar reprovador do homem. De vez em quando, o sujeito, talvez um aposentado, girava o corpo em 360 graus procurando uma motivação para continuar a investigação. Numa das arrastadas de sandálias, flagrou, talvez por um segundo, um repositor o observando. O rapaz estava terminando de alinhar uma modesta carga de caixinhas de morangos. Inquisidor, o homem olhou e sorriu com ironia. Sabia que por ser uma fruta de inverno, o morango o satisfaria em sua gana de se rebelar mais um pouco.

Quando se aproximou, uma das rodas do carrinho que empurrava travou. Tentou forçar mais um pouco e nada. Foi a salvação do repositor que se afastou e caminhou até o setor de frios. Até o imaginei fazendo o sinal da cruz pela satisfação em se livrar do temido cliente. Irritadiço, o homem deu um chute colocado na rodinha que logo voltou a circular, desalinhada e rangendo com sofreguidão. Já diante das caixinhas de morango, segurou uma e disse: “Cadê o resto dos morangos? Porque aqui dentro não deve ter nem dez!”, satirizou. Foi recompensado com alguns sorrisos tímidos da plateia que rodeava as bancas de verduras, legumes e frutas.

Acompanhei parte do trajeto do homem pelo setor. Lembro ainda que enquanto eu selecionava um pé de brócolis, o sujeito se revoltou contra o maracujá que para ele tinha um preço mais azedo que o sabor. “Meu Deus, onde vamos parar desse jeito? Maracujá é uma fruta que se acha até em quintal! É o fim da picada!”, protestou, referindo-se ao preço de pouco mais de R$ 6. Tentou dialogar com uma idosa que portava um aparelho de surdez e selecionava alguns limões, mas foi em vão. Ela não entendeu o que ele disse.

Quando saí daquele setor, não vi mais o homem por um bom tempo, até que depois o encontrei logo atrás de mim em uma fila do caixa. Percebi que realmente fez valer o seu protesto. No interior do carrinho do sujeito não havia nenhuma fruta, legume ou verdura, mas sim caixas de cerveja em lata, algumas garrafas de destilados e quantidades surpreendentes de salame, bacon e toucinho. Ah! Antes que me esqueça! Quando fui até o setor de produtos de limpeza, cortei caminho pelo departamento de bebidas e o vi silencioso e contido. Sem olhar preços, simplesmente posicionou os produtos no interior do carrinho.

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