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Os torneios da Games House
Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado
Na minha infância, houve uma época em que eu ia toda semana até a Games House jogar videogame. Nos finais de semana, lá era o ponto de encontro de dezenas de crianças e adolescentes de Paranavaí que participavam de campeonatos de Street Fighter, Mortal Kombat e Fatal Fury. Os melhores jogadores ganhavam locações de cartuchos ou podiam levar para casa por um final de semana algum videogame de sua preferência.
Eu saía de casa cedo nos dias de torneio. Subia a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, descia a Cândido Berthier Fortes e virava à direita na Manoel Ribas. Caminhava empolgado, saltava e imitava golpes de lutadores como Dhalsim, Scorpion e Joe Higashi. E o sol contribuía, iluminando meus braços por onde eu passasse, me banhando em fantasia e fazendo eu me sentir imponente. Não era tão anormal quanto pareceria hoje, já que esses jogos eram tão populares que muitas vezes as pessoas reconheciam minhas imitações.
Um dia, eu e meu irmão Douglas descemos correndo pelo gramado da Escola Jean Piaget, simulando uma luta entre Guile e Blanka. Um senhor de aproximadamente 50 anos chamou nossa atenção ao ver a cena. “O brasileiro tem que ganhar nessa. Dá um choque nele, filho! Não pode dar mole pra esses americanos”, disse o homem rindo, movimentando uma velha moeda entre os dedos e andando vagarosamente até a Avenida Juscelino Kubitschek.
Quando chegamos à Games House havia bastante gente. A verdade é que era praticamente impossível encontrar a locadora vazia. Mesmo pequena, era um dos locais preferidos de muitos jovens da minha geração. Me sentia inebriado pelo misto de musiquinhas eletrônicas dos jogos, o que mais parecia aos ouvidos treinados um mashup bem cadenciado de variedades oitentistas e noventistas.
Intrigante também era a olência profusa que tomava conta do ambiente. Aromas de hortelã, menta, cereja, melancia, uva e tutti-frutti se enleavam, proporcionando uma experiência sui generis de sensações. Dentro da locadora, esquecíamos completamente do mundo que existia lá fora, já que tínhamos o nosso próprio, formado por uma grande família de amigos, conhecidos e desconhecidos unidos por horas de diversão.
Era difícil circular em meio a tanta movimentação, mas pouco nos importávamos. Era como se a natureza de nossa realidade não pudesse ser menor do que aquela. A beleza subsistia na entropia, na grazinada, no eco de nossas ações que reverberavam a completude da justa desordem das coisas. Falar, rir, gritar, zombar, pular, agachar, sacolejar, dançar – tudo era permitido desde que o respeito não fosse substituído pela alarvaria.
Ao meu redor, eu observava rostos juvenis com expressões absortas, espontâneas, caricatas e difusas; dignas do expressionismo de Lang, Murnau e Wiene. A motivação? Uma luta entre Ken e Zangief. Segurando o controle com paroxismo, Hélio nem piscava sentado em uma cadeira de madeira.
Mantinha os olhos agigantados em direção à tela de um televisor de caixa cinérea de 21 polegadas. Assim que o Zangief de Beto deu um pilão giratório em Ken, quase o eliminando do torneio, Hélio se levantou e levou seu lutador até o canto esquerdo. Respirou fundo, ignorou as bolhas dos polegares e, com mãos trêmulas e suadas, venceu o adversário com uma sequência de hadouken e shoryuken; sim, com punhos flamejantes.
Para comemorar, levantou uma latinha de 7 Up e tomou um gole enquanto recebia congratulações, reclamações, leves tapinhas nas costas e na cabeça. Menos competitivo e mais circunspecto, Beto também foi elogiado, apesar do sarro tradicional. Calmo, se levantou, sorriu e declarou: “Quem não perde, não aprende a viver, diz meu pai.” Então caminhou até um expositor de jogos de Super Nintendo e começou a ler os encartes.
Quando chegou a minha vez de jogar, sentei na mesma cadeira de Beto e observei que o movimento na locadora tinha aumentado ainda mais. Notei a presença de muitas garotas da minha idade, o que não era tão comum em dias de torneio. Compenetrado e tenso, selecionei Blanka, um personagem improvável e até depreciado por uma maioria que o via como um vilão exatamente pelo seu aspecto carrancudo e burlesco. Eu não! Blanka pra mim representava um contraponto, um anti-herói que mais parecia uma versão brasileira do Hulk.
“Putz, pegou logo o Blanka! Vai apanhar fácil…”, comentou Bruno, campeão do último torneio, que selecionou Ryu, o favorito de sete entre dez garotos que frequentavam a Games House. A escolha do personagem já garantia uma plateia cativa que assobiava, ria e motivava o adversário. Eu seguia na contramão da obviedade, com menos torcedores. O fato de ter tanta gente apostando em Ryu aumentava a minha motivação, me fazia querer vencer mais do que nunca. Não me preocupava a ideia de mais tarde ser eliminado do torneio, mas eu precisava provar que o meu personagem não era inferior.
Apanhei bastante no primeiro round, o que fez muita gente crer que a derrota seria iminente. Bruno tinha um estilo de jogo que privilegiava os mesmos dois golpes de sempre, o que entre meus amigos era chamado de “apelão”. Ele inclinava o corpo pra frente, se aproximando mais da tela, emitia sons miméticos com a boca e mudava de posição frequentemente, alegando que o televisor era muito pequeno para projetar seu talento. Bruno era um showman mirim.
Mais reservado, eu jogava calado, mordendo furtivamente os lábios quando me sentia encurralado. No segundo round, o nível de confiança do meu adversário subiu demais e num átimo de epifania descobri como neutralizar seus golpes mais certeiros. Blanka já não apanhava mais e sua defesa se tornara intransponível. De personagem coadjuvante, foi elevado a protagonista da própria luta. Na minha cabeça ecoava de antemão sua frase clássica: “Now you realize the powers I possess!”, seguida por uma eclética sequência de golpes altos e rasteiros que incluíam electric thunder, lightning cannonball e outros três tipos de ataques de rolamento.
Ryu foi castigado nos dois rounds seguintes, ganhando um curioso aspecto toldado e carunchento. Blanka? Não! Parecia mais fornido, refulgente e faustoso, como se renascesse para provar naquele momento o seu valor subestimado pela sua fisionomia grosseira. “Acho que a pele dele agora tá bem mais verde e o cabelo mais laranja”, “Tá enorme! O Ryu ficou franzino perto dele!”, “Que força insana!”, “Louco demais esse Blanka!”, “Parece que tá possuído de tão forte!”, comentavam crianças e adolescentes da plateia.
A minha vitória, a mais importante de Blanka no torneio, foi selada com um choque elétrico que fez o favorito Ryu desfalecer no canto esquerdo da arena de tábuas velhas. Assim que Blanka comemorou com várias cambalhotas no ar, um repentino silêncio tomou conta da locadora. Bruno ficou calado olhando para o televisor, sem acreditar no que aconteceu. Meu irmão Douglas e alguns amigos gritaram: “Blanka! Blanka! Blanka! Blanka!”
Discreto, só me levantei e sorri, sem dizer palavra, enxergando a presença de novos espectadores na entrada da Games House. Eliminado, Bruno coçou os olhos, tentou disfarçar a decepção, mas levou quase um minuto para soltar o controle do Super Nintendo e aceitar a derrota. Foi minha última vitória naquele dia. Eliminado na semifinal por um Dhalsim mais atilado, não lamentei.
Sem grande alarde, comemorei o fim da hegemonia Ryu, Ken e Guile, celebrada com o triunfo de um pachorrento e engenhoso E. Honda comandado por Augusto, garotinho também subestimado que se identificava com a forma física do lutador de sumô. “Hoje eu sou E. Honda e E. Honda sou eu. Só me resta sorrir diante do meu raro apogeu”, poetizou com simplicidade o campeão, um filho de argentinos que adorava ler “Discurso do Urso”, de Julio Cortázar.
Mirão, um antigo caso de amor ao esporte
Valdomiro Pereira, o homem que dedicou a maior parte da vida ao esporte de Paranavaí

Mirão: “Era uma vida difícil. A gente acabava formando time pra jogar fora e repartir o dinheiro” (Foto: David Arioch)
Em comemoração ao aniversário de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, celebrado no dia 14 de dezembro, nada mais justo que homenagear um dos homens mais importantes do futebol e do futsal de Paranavaí. Valdomiro Pereira, mais conhecido como Mirão, começou a sua história no esporte local em 1960, pouco antes de completar 20 anos.
Para conversar sobre o assunto, Mirão diz que não é preciso agendar horário. “É só chegar”, avisa, me convidando para ir até a sua casa na esquina da Rua Maria Anchieta de Morais. Lá, encontro o pacato e hoje aposentado desportista sentado em uma “cadeira de área”, observando a movimentação tranquila da manhã na Rua do Aeroporto, principal via de acesso ao Jardim Ipê.
Com voz remansosa, o icônico Mirão me cumprimenta e coloca em cima da cadeira uma coleção de publicações sobre a sua trajetória. Em 1955, quando chegou a Paranavaí vindo de São Paulo, um fato lhe chamou a atenção. O Atlético Clube Paranavaí trazia na sua formação seis ou sete titulares paraguaios. “Era interessante isso. Um time do interior do Paraná que tinha mais jogadores estrangeiros do que brasileiros. E eram todos muito bons. Jogavam por amor ao esporte”, afirma.
Em 1959, o desportista fez amizade com os jogadores e a diretoria do ACP. Segundo Mirão, era o tempo dos paraguaios. “Comecei a treinar com eles, mas eu era muito ruim e o Seu Ferreira, um senhor que realizava bingos para arrecadar recursos para o clube, me convidou para ser massagista”, narra. Quando explicou que não entendia nada da profissão, Seu Ferreira argumentou que “tudo se aprende na vida”. “Deixa eu ver sua mão. Sim! Como pensei! Quem tem mão grande serve pra ser massagista”, comentou Ferreira, se valendo de uma crença popular.
À época, Mirão desempenhava qualquer atividade em benefício do clube. Fazia cobranças, ajudava na secretaria e na venda de cartelas. Foi assim até 1976, quando proibiram a realização de bingos. “Lembro que em 1960 fomos disputar o campeonato em Apucarana porque o nosso campo era com cerquinha e a Federação Paranaense de Futebol não aceitava. Então o time treinava no Estádio Natal Francisco [atual Praça dos Pioneiros] e jogava em Apucarana. Daqui a Maringá a estrada era de terra. Imagine só a dificuldade”, relata.
Naquele tempo, como os jogadores e os funcionários do ACP recebiam apenas por quatro ou cinco meses, o jeito era improvisar. “Era uma vida difícil. A gente acabava formando time pra jogar fora e repartir o dinheiro. Alguns conseguiam bons contratos, só que não era fácil. Só uma ou duas firmas colaboravam com o clube e nunca teve isso de alguém se oferecer para pagar um atleta por conta própria”, desabafa.
Nos anos 1960, o que ajudava o atlético a se manter na ativa era o fato de que alguns atletas de Paranavaí jogavam de graça. “Um exemplo era o Lauro Machado. Ele e mais alguns outros trabalhavam em outras áreas porque sabiam que era impossível viver do clube”, confidencia Mirão que considera o ACP de 1960 como um dos melhores de todos os tempos, assim como o de 1968 que conquistou uma vaga na primeira divisão do Campeonato Paranaense. O desportista se queixa apenas que a equipe já era formada em cima da hora, dificilmente se preparando com dois ou três meses de antecedência. “Uma vez contratamos 10 jogadores de um time faltando apenas alguns dias para o campeonato. Infelizmente em cidade pequena é assim, o futebol funciona aos empurrões”, lamenta.
De acordo com Mirão, inesquecíveis eram as partidas no Estádio Natal Francisco, onde a torcida lotava as arquibancadas de madeira com capacidade para até 10 mil pessoas. “Eu morava no estádio quando era solteiro porque o treino começava às 6h. Alguns jogadores também viviam lá, já que o clube não tinha condições de pagar hospedagem em hotel. Nosso campo somava 110 metros de comprimento e 80 metros de largura. O pessoal era tão fanático por futebol que onde o clube ia a torcida ia atrás”, revela.
Em 1970, a situação financeira do time não era das melhores, tanto que o ACP foi disputar uma partida em Nova Esperança e tiveram de entrar em campo com apenas 10 jogadores porque nem todos atletas estavam registrados. “Ainda assim ganhamos de um a zero. Era muito bom. Participávamos de amistosos em todo o Paraná, além de Presidente Prudente, Marília e cidades de Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. Nossa rivalidade maior era com Maringá e Mandaguaçu. Time de fora quase nunca ganhava aqui porque o campo do Natal Francisco era muito grande, uma das nossas armas”, enfatiza Mirão.
Na esteira da falta de recursos, o atlético desde o início contava com trabalho voluntário, principalmente de médico e fisioterapeuta. O time levou alguns anos para conseguir contratar um preparador de goleiros, garantindo mais profissionalismo ao clube. “Se precisasse de alguém pra ir lá na segunda-feira arrancar grama, eu e o Paulinho íamos. Fazíamos o mesmo empenho se fosse necessário ficar com atleta em hotel na véspera do jogo pra fazer massagem. O time ficava em primeiro lugar nas nossas vidas”, declara.
Embora não ganhasse nada para ajudar, o desportista estava sempre disponível ao ACP no período da tarde, quando o treinamento era intensificado. “Uma das minhas recompensas foi pisar duas vezes no Maracanã. Jogamos lá contra o Madureira e o Olaria. Ganhamos um jogo e perdemos o outro. Depois aproveitamos pra assistir uma partida do Atlético Mineiro contra o Flamengo e outra do Fluminense contra a Portuguesa. Nunca imaginei que isso aconteceria”, rememora Mirão emocionado.
O que também motivava Mirão a continuar ajudando o ACP era a solidariedade dos atletas. Nos anos 1960, alguns chegavam a dividir tudo que recebiam com Mirão e Paulinho. “Tínhamos um grande meia-esquerda que foi para o Corinthians. O apelido dele era Paraná. Não ficava com nada do que recebia. Tinha uma situação financeira boa e se preocupava porque via que a gente ganhava uma mixaria. Se tenho alguma coisa hoje foi graças aos conselhos do Paraná, um cara que se preocupava com os menos favorecidos”, pontua.
O desportista não esconde a satisfação ao se recordar das conversas com o icônico Natal Francisco, fundador do Atlético Clube Paranavaí. “Era um velhinho muito bom que construiu o estádio com as próprias mãos. O filho dele, Tonico, jogava bem no ACP. Uma pena que em 1983 mudaram o estádio para o [distrito de] Sumaré. Os jogos eram muito bons, só que a torcida parou de acompanhar tanto o time. Nunca mais foi a mesma coisa”, reclama.
Para o desportista, quem também se tornou um dos nomes mais importantes do clube foi o jogador Chico Venâncio, o Biga, que à época chegou em Paranavaí sem grandes pretensões. “Ele veio pra jogar pelo Atlético e acabou virando treinador. Na realidade o Biga era mais que treinador, era o pai de todo mundo. Gostou tanto de Paranavaí que viveu aqui até os seus últimos dias”, defende. Pela dedicação ao esporte, Mirão recebeu em 2006 uma homenagem da diretoria do Atlético Clube Paranavaí e outra do Rotary Fazenda Brasileira. Além disso, o prêmio maior do Campeonato Amador de Futebol da Liga de Paranavaí leva o nome de Troféu Valdomiro Pereira.
O jogo mais marcante do Vermelhinho
Para Mirão, o jogo mais marcante da história do Atlético Clube Paranavaí foi contra o Atlético Paranaense em 1968. O ACP venceu por 2 a 1, com dois gols de Aluísio, um jogador do São Paulo que veio a Paranavaí por empréstimo.
“Busquei ele em São José do Rio Preto e depois tive que ir até São Paulo preparar a documentação na Confederação Brasileira de Futebol [CBF]. De lá, fui pra Curitiba entregar em mãos na Federação Paranaense de Futebol [FPF]. Até recebemos dinheiro do Coritiba pela vitória”, confidencia Mirão às gargalhadas.
Aluísio era um dos maiores jogadores da época. No entanto, seu salário era tão caro que conseguiram mantê-lo em Paranavaí somente por um ano. “Tinha mais de 100 pares de sapatos e mais de 100 camisas. Falou que jogaria pra nós, mas não aceitava ficar em república. Reunimos vários apoiadores pra pagar o salário dele”, garante.
Lacerdinha completa 40 anos
O desportista Valdomiro Pereira, o Mirão, que ajudou na construção do Ginásio de Esportes Antônio Lacerda Braga (Lacerdinha), fundado no dia 14 de dezembro de 1975, se recorda com saudosismo dos primeiros jogos há quase 40 anos. “A primeira disputa foi de handebol, nosso cartão de visita. Valeu a pena toda aquela correria, gente trabalhando 24 horas por dia. A prefeitura fez tudo no ‘grito’ e o ginásio ficou pronto em 100 dias. Tivemos o suporte do 8º Batalhão de Polícia Militar. Foi tudo muito bem organizado. Não dá nem pra acreditar que tínhamos ali o Colégio Marins [Alves de Camargo] e depois o [Colégio] Newton Guimarães”, comenta.
No mesmo ano, Mirão foi convidado pelo jornalista Saul Bogoni para coordenar em Paranavaí os Jogos Abertos do Paraná. À época, a cidade tinha uma das melhores seleções de handebol feminino do estado. “Fomos campeões estaduais em 1974 e em 1975. Em Paranavaí, era um esporte até mais popular que o futsal. Fiquei muito feliz em organizar os jogos porque Paranavaí chegou nas finais em quase todas as modalidades. Naquele tempo, só não conseguíamos superar cidades como Londrina e Curitiba. Ficamos em terceiro lugar no geral”, relata e acrescenta que Paranavaí foi a primeira cidade do Paraná a ter os jogos abertos transmitidos pela televisão. A cobertura da TV Tibagi mostrou o desempenho de atletas de 68 cidades.
O melhor time de futsal de Paranavaí
Com a experiência de quem acompanhou a evolução do esporte no Noroeste do Paraná, Mirão defende que o Demafra foi o melhor time de futsal de Paranavaí. “Era um time com boas condições financeiras, dava emprego para jogadores, mas tinha que ser bom. Ninguém passava dificuldade trabalhando para o Demafra. E tinha uma tática interessante que era misturar jogadores de campo e de salão. Não esqueço quando fomos campeões da Taça Tigre em Joinville [Santa Catarina], desbancando grandes equipes de todo o Brasil”, diz Mirão.
Na sequência, o desportista aponta o São Lucas como um bom clube, citando o desempenho da equipe em 2011, quando obteve o segundo lugar no Campeonato Paranaense de Futsal. Em 2006, a equipe ficou em quinto lugar. O clube também traz no currículo conquistas como o vice-campeonato da Taça Paraná em 1982 e o terceiro lugar em 1991. “Gostei muito do time que o São Lucas montou em 1994. É uma pena que não temos condições de segurar bons atletas”, lamenta.
“A sede da Liga de Paranavaí era dentro da minha Brasília”
No final dos anos 1970, quando tinha um escritório no Ginásio Lacerdinha, o chefe de transportes da Secretaria de Educação da Prefeitura de Paranavaí, Mirão, percebeu que a garotada tinha o costume de invadir o local para praticar vandalismo.
Em vez de repreendê-los ou chamar a polícia, ele usou uma tática diferente. Convidou a molecada a formar times e disponibilizou a eles uma hora diária de uso gratuito do ginásio. “Vou dar a vocês uma missão. Vocês podem jogar aqui, mas em troca peço que cuidem do ginásio. Não deixem ninguém fazer nada de errado aqui, tudo bem?” À época surgiram dois novos times em Paranavaí: o Time dos Engraxates e o Time dos Moradores de Rua.
Naquele tempo, a quadra do Lacerdinha era considerada a melhor do Paraná e Mirão se empenhava para evitar que alguém comprometesse essa imagem. “Eu e o zelador da época não deixávamos ninguém entrar na quadra usando kichute ou sapato. Eu fazia amizade com todo mundo, tanto que nunca mais nenhum garoto jogou pedra no ginásio”, garante. Uma vez Mirão levou ao Lacerdinha o célebre lutador Ted Boy Marino, atraindo um público de milhares de pessoas.
“A sede da Liga de Paranavaí era dentro da minha Brasília. Eu organizava o campeonato e os jogos. Fundei e fui presidente por 26 anos, inclusive hoje ela tem uma sala com meu nome – Valdomiro Pereira”, destaca em tom de orgulho. O desportista foi mesário por muitos anos, tanto no futebol de campo quanto de salão. Como trabalhava para a prefeitura de Paranavaí, muitas vezes atuava na arbitragem em finais de semana e feriados sem receber nada.
“Às vezes ligava gente de Curitiba para a prefeitura pedindo minha liberação para que eu fosse pra lá apitar em algum campeonato juvenil. Era bom porque entrava um bom dinheiro. Nos Jogos Abertos, por exemplo, eu ganhava em um mês o que equivalia a seis meses de salário na prefeitura”, segreda. Outro ponto positivo é que Mirão se divertia bastante. Encarava o trabalho como uma oportunidade de viajar e conhecer outros lugares.
Era um contraponto na rotina atribulada como chefe de transportes. Em Paranavaí, Mirão se responsabilizava pelos 14 ônibus da prefeitura usados no transporte de estudantes. “Tinha de ficar disponível das 4h às 23h. Se desse algo errado, saía com o mecânico atrás do ônibus. A gente cobria uma área de 900 quilômetros de estradas. Muitas vezes vim pra casa dormir lá pelas 11 horas da noite”, ressalta.
Frases de Valdomiro Pereira, o Mirão
“Temos o mau hábito de vender jogadores por preços muito baixos. Os atletas costumam sair daqui quase de graça. Só me lembro de uma exceção em 1968, quando vendemos o Didi para a Portuguesa. Foi uma negociação um pouco mais justa.”
“O São Paulo veio jogar aqui em 1959 e em 1965 foi a vez do Corinthians. Não esqueço também que o Ferroviária, de Araraquara já disputou um torneio em Paranavaí, assim como o Prudentina, de Presidente Prudente. Foi uma época inesquecível.”
“Com 16 anos eu jogava no time do Mário de Souza. Tinha bons jogadores. Aí fomos jogar contra o ACP e perdemos. Então decidimos acabar com o time.”
“Uma vez o treinador Muca encheu uma Kombi com jogadores de um time de Lins [no interior paulista] e trouxe pra cá porque o campeonato estava prestes a começar e o Atlético não tinha jogadores.”
“Sempre ajudei todos os esportes de Paranavaí. Não priorizava mais um ou outro. Só diminui o ritmo quando me aposentei depois de 32 anos trabalhando na prefeitura.”
Happy e Chemmy
Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens
Em 1991, meu pai chegou em casa com dois filhotes de poodle. Eu, muito pequeno, olhei atentamente aqueles desconhecidos animaizinhos de pelos grossos e brancos. “Que bichinho de pelúcia é esse? Parece de verdade!”, comentei sorrindo, com a experiência de quem nunca viu um cãozinho daquela raça, enquanto cutucava o dorso do menor que reagiu lambendo minha mão e pulando em minha direção.
Na minha concepção meninil, era como se a neve pudesse ser morna, fragmentada em pequenos flocos que se juntavam formando vidas diminutas. Surpreso e empolgado, deitei no chão e os dois, tão miúdos que os pelos da barriga chegavam a lustrar o piso coberto de cera vermelha, percorreram meu rosto, pescoço e braços com suas linguinhas ásperas, vigorosas e quentes. Me davam a sensação de uma paradoxal lixa exposta ao sol, com a principal diferença de que a deles acariciava e não raleava ou machucava.
Cheios de energia, circulavam pela sala e a reconheciam como um universo de possibilidades. Saltavam de forma tão espontânea e chistosa que pareciam confundir a própria natureza com a dos pôneis. Dóceis, roçavam a lateral do dorso pelo meu corpo e seguiam deslizando até se enfiarem debaixo de cada um dos meus braços. Espiavam minha reação e quando eu ria eles se aproximavam, subiam sobre o meu peito e davam latidos finos, curtos e briosos, acompanhados de olência vaporosa de leite que intensificava o meu deleite.
O toque de seus pelos me lembrava a suavidade e o conforto das almofadas que minhas tias-avós faziam, sempre bem distribuídas pelo sofá onde Happy e Chemmy não conseguiam subir nem descer. Resmungavam tanto à sua maneira, como se seus desejos fossem uma ordem e não um pedido, que subíamos eles com as mãos. Irrequietos, não demoravam a cair de forma desajeitada, às vezes batendo a cabeça num tapete grande acastanhado. Reclamavam brevemente, num alarido que principiava o choro canino.
Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens, chacoalhando os rabinhos e mirando os olhos escuros e vistosos por todas as direções. Happy e Chemmy gostavam de se enfiar dentro de calçados, gavetas, caixas, qualquer abertura que proporcionasse inéditas experiências. Apesar disso, partilhavam de expressão serena em todas as situações, mesmo quando arrastavam objetos desconhecidos que em seu mundo nanico ganhavam novas significações. Tênis viravam travesseiros, camisetas se tornavam cobertores e assim por diante.
Conforme cresciam, suas personalidades iam se modificando. Happy tornava-se mais desajeitado e expansivo, e Chemmy mais amorável e introspectivo. Em casa, as recepções prosseguiam calorosas. Happy ia na frente, boquiaberto e saltitante, com um semblante desirmanado de sorriso fácil. Chemmy se aproximava sem muito alarde. Galhardo, preferia demonstrar sua satisfação através de seus passos aéreos e fátuos que se tornavam vibrantes com a minha chegada.
No verão, íamos com bastante frequência à AABB. Happy e Chemmy percorriam o estacionamento do clube meneando orelhas que se agitavam como se fossem pequenas asas. Disputavam corrida na escadaria e se acalmavam no piso fresco da lanchonete, onde posicionavam o dorso das patas traseiras para baixo. As patas da frente ficavam sobrepostas, em poses indefectíveis que imitavam um x. Os dois roçavam a barriga branca e peluda com tanta sofreguidão que chegavam a fechar os olhos, numa tentativa de amplificar a sensação de regalo despertada pelo chão geladinho.
Prestes a tomar uma ducha a céu aberto antes de entrar na piscina, eu os chamava e eles se aproximavam, circulando em torno do perímetro onde a água escorria mais morna do que fria. Happy e Chemmy me observavam com candura e assim que eu movimentava a cabeça em concordância, eles afundavam as patinhas na poça formada em torno do ralo. Era como se estivessem pescando alguma coisa incompreensível e invisível aos olhos humanos. Naquele momento os dois pareciam somente um, imersos numa brincadeira sem competição ou vencedores.
Quando eu diminuía a intensidade da água que caía do chuveiro, eles ameaçavam colocar o focinho na água – aproximando e afastando a cabeça. Ocasionalmente tiravam a língua para fora, como se quisessem avaliar a temperatura da água. Em poucos minutos de diversão ficavam tão molhados que os pelos da fronte se inclinavam sobre os olhos, com topetes desfeitos. Envolvidas em pequenas cortinas felpudas e nevadas, as íris, que pouco sobressaíam, resplandeciam serenas e amiudadas.
Após um salto na parte mais funda da piscina grande, eles me seguiam até a borda e latiam. Era uma crítica, pois sabiam que lá não poderiam entrar. Entre mergulhos, eu emergia vez ou outra ameaçando puxar suas patas para dentro da piscina. Eles se afastavam e rolavam no piso úmido e aquecido pelo sol que parecia dourar seus pelos. Enfastiados, corriam até o parquinho do clube, afundavam as patas na areia e saltavam sobre o gira-gira com tamanha tarimba que o brinquedo girava sem que precisassem fazer muito esforço.
Ao redor, os curiosos sorriam e gargalhavam assistindo Happy e Chemmy brincando como se fossem crianças. A gangorra também não passava despercebida. Chemmy subia na extremidade mais baixa e corria até a mais alta. Depois era a vez de Happy. E assim, numa harmonia impoluta e fugaz, capaz de inspirar o melhor nos homens, revezavam até cansar. No parque da Praça dos Pioneiros, os dois preferiam o escorregador. Desciam sozinhos, juntos, na nossa frente, apoiados em nossas costas. Ao final da diversão, sempre me intrigava ver como seus olhos rutilavam como bolas lustrosas de bilhar. A intensidade oscilava de acordo com o nível de contentamento.
Quando abríamos as portas do carro, Happy e Chemmy pulavam sobre os bancos traseiros e se posicionavam nas janelas, aguardando que alguém as abrisse. Então colocavam a cabeça para fora e aspiravam o vento. Rapidamente se acalmavam. Inertes, fechavam os olhos, sentindo a aragem massageando e acariciando suas cabeças. Apesar de rasteiro, não tenho dúvida de que o mundo de Happy e Chemmy era um grande universo de sensações, de sensibilidades que jamais são negligenciadas por quem vê na mais trivial das experiências uma fonte de fruição.
Um dia subimos em uma balsa no Porto São José com destino ao Mato Grosso do Sul. Logo que descemos do carro, Happy e Chemmy estranharam ao ver a ruidosa movimentação. Ainda assim se aproximaram de um velho banco de madeira ladeado por alguns coletes salva-vidas e assistiram de longe a pequenez do porto com suas casinhas e velhos prédios comerciais. Quase dez minutos depois, água era tudo que viam enquanto a balsa gestava plácidas ondas no seio do Rio Paraná.
Observei Chemmy aproximando o focinho da água, como se quisesse cheirá-la. Quando me agachei, percebi que alguns peixes serpenteavam perto de nós. Eufórico, Happy latia e saltava como um cabrito. Ele nunca tinha visto um peixe. E aqueles dourados lucilavam como citrinos lapidados e volteavam formando o símbolo do infinito. Assim que os peixes desapareceram, Happy latiu em reprovação. Chemmy simplesmente repousou a cabeça sobre as patas cruzadas, amiudou os olhos e manteve expressão quiescente enlevada por um tépido raio de sol que iluminou uma lata de óleo vazia presa à barra de proteção.
Meses depois, num dia rotineiro, saímos de casa e quando retornamos não encontramos nenhum dos dois. Percorremos o Jardim Progresso, Jardim Paulista e Jardim Maringá. Fizemos panfletos e ampliamos as buscas pela região central e por outros bairros de Paranavaí. Não adiantou. Na manhã seguinte, Happy e Chemmy não lamberam minhas mãos nem saltaram sobre as minhas costas para me acordar. Senti a ausência de seus passos pavonados, dos latidos dissonantes e do perfume floral que traziam logo cedo após incursão pelo canteiro de flores de minha mãe.
Fiquei sabendo tardiamente que um estranho invadiu nosso quintal e levou nossos cães. Bonachões, Happy e Chemmy entraram em um carro desconhecido, crentes de que foram presenteados com mais uma curta viagem ao éden das brisas. “Será que abriram a janela um pouquinho pra eles sentirem o vento?”, perguntei a minha mãe.
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A vizinha do Jardim Progresso
Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada
Eu tinha 12 anos quando vi pela primeira vez a vizinha do meu amigo Marco Aurélio. O seu nome era Bárbara e ela morava a poucos passos da casa dele no Jardim Progresso. Quando saíamos para brincar na calçada, me recordo que eu sempre a via fazendo alguma coisa para chamar a atenção. Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada.
Na rua, eu a observava somente após me certificar de que seus olhos dificilmente encontrariam os meus. Sua beleza era mediterrânea, mas não do tipo comum ou excelsa. Tinha pele oliva, dotada de um fulgor que não esmorecia nem no inverno. Seus olhos eram escuros e redondos como groselhas pretas das mais maduras, o que destoava dos cabelos castanhos que se estendiam até o meio das costas.
Era o tipo de graça reforçada pela personalidade, que existia nas entrelinhas, nos detalhes de suas expressões e na capacidade de conduzir as reações dos garotos ao seu bel-prazer. Até eu, que resistia a ceder aos seus caprichos de me ver inclinado diante de sua presença, desconhecia os meandros e artifícios da malícia e ocasionalmente era fisgado por sua argúcia.
De longe, ela sorria e até ria com frugalidade quando percebia que tinha alcançado seu intento. Uma vez, enquanto estávamos sentados sobre o meio-fio, ela caminhou bem devagarinho trajando um vestido branco que realçava o formato sinuoso do corpo jovial. Mirando o horizonte a olhos ensimesmados, passou os vãos dos dedos entre os cabelos, sobrepondo-os como ondas serenas de fios correntes, e seguiu numa linha reta tão hermética que chegava a ser geométrica.
Seus passos imitavam o som sutil da marcha dos cocos, perfazendo um caminho em que as batidas céleres e harmoniosas de nossos corações cobriam as lacunas deixadas pelo silêncio. Conforme ela se distanciava, e suas panturrilhas se contraíam formando dois diamantes triguenhos, eu assistia o tecido claro, num fortuito diáfano, cingindo seu corpo como um casulo tardio envolvendo uma borboleta.
Bárbara transportava por onde fosse o perfume leve e floral que seu corpo exalava em nossa direção, deixando um rastro invisível e efêmero de provocações que despertavam ideias e sensações. “Você é bonitinho, sabia?”, disse ela um dia apoiando meu queixo entre os seus dedos polegar e médio da mão direita. Observei meu próprio reflexo em suas íris, então maiores do que nunca, e fiquei preocupado se ela poderia ver muito mais do que eu gostaria nas minhas.
Para Bárbara, parecia pouco me ver corar. Em seguida, assoprou graciosamente meus olhos, me trazendo olência adocicada e refrescante de bala de hortelã. Aquilo mexeu tanto comigo que senti arrepiar até os pelos que eu ainda não possuía. Engoli a seco minha saliva tornada rara e senti meu peito chiar, abrasado pelo incompreendido desconhecido. Escondi as mãos trêmulas para que ela não as notasse. Era tarde demais. Bárbara percebeu e me hipnotizou com um sorriso tão esmerado que me deixou embriagado.
Pensei em dizer alguma coisa, uma frase de despedida, só que eu já não sabia mais falar nem pensar em português. As palavras que invadiam meus pensamentos não faziam sentido. Eram confusas, sem significados, um amontoado de letras que se embaralhavam com o alfabeto cirílico que vi pela primeira vez numa coleção de enciclopédias de meu pai. E para piorar, fiz um esforço desmesurado para articular um som complacente, mas só consegui transmitir um nada padecente.
Meus pés estavam tão fixos e hirtos na calçada de mosaico português que pareciam feitos de pedra calcária. O transe chegou ao fim quando sua mãe a chamou para ajudar o irmão caçula em uma das tarefas da escola. Ainda assim, sem esconder o semblante aparvalhado, assisti Bárbara correndo contra a brisa com encanto singelo que fazia inveja às folhas do pé de marmelo. Seus cabelos serpenteavam pelo ar como forças livres de um mundo hedonista. Talvez fossem curvas incertas de uma realidade menos maniqueísta. Antes de fechar o portão, sorriu, mandou beijo e disse de supetão: “Depois a gente continua.”
Fiquei parado por mais alguns instantes, tentando fugir da minha fisionomia encabulada e corada que vi refletida na janela de um Escort estacionado a menos de dois metros. Lhano, eu balançava a cabeça e saracoteava o dorso. Mas o coralino da vergonha era casmurro e não dava brechas para a libertação. Queria me castigar pela ingenuidade que não me permitia compreender sua intenção. “Nossa, olha como tô vermelho! Nem quando planto bananeira por muito tempo fico desse jeito”, pensei, me sentindo como um personagem daquelas canetas vendidas na rodoviária e que traziam mulheres peladas nos tubinhos.
Dias depois, escalando uma árvore em frente à casa de Marco Aurélio, vimos Bárbara chegar acompanhada de um rapaz de pelo menos 18 anos dirigindo um Monza Barcelona. Lá dentro, o sujeito se portava como se guiasse um possante pelas estradas do Arizona. Observamos em sincronia a porta do carro se abrir e seus pés pequenos e delicados encostando no meio-fio, envolvidos por um par de rasteirinha clara, talvez bege. Bárbara usava saia preta evidenciando pernas bronzeadas e bem esculpidas, fazendo nossos olhos saltarem sem a menor polidez.
Pendurado em galhos, assisti a cena numa euforia contida tão impetuosa que tive a impressão de que havia miniaturas minhas gritando e correndo pelos meus órgãos. Num breve momento de delírio, vislumbrei dois David saltando para fora de minhas orelhas, percorrendo os galhos numa velocidade sobrenatural e cutucando meus pés com agulhas de pau. “Vai lá! Vai lá! Vai lá! Você é trouxa? Deixa de ser bocó! O cara já vai embora”, gritavam as réplicas num tom estridente, revezando palavras.
Por azar, assim que Bárbara se despediu do tal sujeito que julguei ser seu namorado, me distraí e caí de cima da árvore como um bufão atarantado. Com o impacto, Marco Aurélio riu ruidosamente, como se aquilo fosse artificio de um demente. Caído sobre o braço esquerdo, num titubeante referto, sentei cabisbaixo na calçada e, sem olhar pra lado algum, amarguei as consequências da patuscada. Comecei a limpar os ralados nos cotovelos e joelhos, ignorando de meus amigos os conselhos.
A vergonha naquele momento tinha cheiro de ipê, sete-copas, hera-de-inverno e pingo-de-ouro. Mal sabia eu qual seria o desdobramento vindouro. “Por favor, não me veja! Por favor, não me veja! Por favor, não me veja!”, repeti com olhos fechados e franzindo a testa, crente de que a vida talvez pudesse imitar a fábula vez ou outra. Não, ela não macaquearia. Aos poucos, ouvi passos, o atrito de calçados leves com as pedrinhas cobertas de piche, e senti o indefectível perfume floral que me fazia mergulhar num sonho frugal.
Estremeci ao ver sua sombra se projetando na calçada. Bárbara estava quase ao meu lado e minha reação já era esperada. Coloquei os cotovelos contra a barriga e cobri os joelhos com pedaços de folhas secas esparramadas aos pés da árvore. Ela achou graça da minha reação, se abaixou e passou a mão direita pelos meus cabelos. “Tadinho! Vamos lá pra casa que vou cuidar dos seus ferimentos”, declarou com voz remansosa e tão melíflua que parecia acariciar os ferimentos do meu corpo. “Muito melhor que Merthiolate!”, teria refletido. Não falei nada, até porque nem conseguiria. Só movimentei a cabeça em concordância, sem saber o que me aguardaria. Àquela altura, nem sentia mais minhas pernas e braços ardendo.
Levantei e andei ao seu lado, evitando observá-la diretamente. Ainda assim, me mantive sobrolho. Caminhando a passos hesitantes, fui invadido por turbilhão de pensamentos. Tentei clarear a mente e logo reconheci que era impossível. Quanta agitação, ansiedade e tensão. Dentro da casa, não havia ninguém; só nós dois diante de um balcão. Ela me levou até o seu quarto e falou pra eu sentar na cama e aguardá-la. Observei tudo ao meu redor. Em segundos, memorizei o cenário e aprendi um pouco sobre seus interesses que incluíam livros, CDs, filmes em VHS e uma coleção de bichos pequenos de pelúcia, inclusive réplicas de gremlins.
Bárbara então retornou com um kit de primeiros socorros, limpou meus ferimentos e fez quatro curativos em meus braços e joelhos. Enquanto suas mãos delicadas, aveludadas e mornas tocavam minha pele, notei que ela era muito mais bonita se observada em profundidade. Tinha algumas pintinhas acastanhadas no busto e uma minúscula cicatriz na cintura. Sua tez bronzeada era tão singular e rutilante que fazia meu coração se projetar com a ressonância de um alto-falante.
Em menos de dois minutos, me vi imerso num universo silencioso, onde as belezas triviais das ruas inexistiam. Vizinhos não falavam, carros não passavam, pássaros não cantavam e galhos não balouçavam. Eu não ouvia nem enxergava nada para além da porta do quarto de Bárbara. Por um momento, ela se levantou e me lançou um olhar que fez eu me sentir como se estivesse nu. Deslizou vagarosamente o dorso da mão direita pelas minhas maçãs, aproximou seu rosto, segurou o meu com as duas mãos e me beijou vagarosamente.
Seus lábios, quentes como chuva de verão, vinham acompanhados de um sol que principiava a chegada da nova estação. A ansiedade e rigidez de meu corpo se esvaíam como se nunca tivessem me habitado, fazendo-me sentir como um renascido jovem sopitado. E assim, Bárbara, com 15 anos e sua essência medicinal, um dia se mudou para longe depois de mergulhar minha natureza no prazer hominal.
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Neusa Sanches conta a história do Femup
Neusa fez parte da turma de estudantes que criou um dos festivais mais antigos do Brasil em atividade

Neusa Sanches: “A ideia de se chamar de festival partiu do professor Gomes da Silva” (Foto: Amauri Martineli)
“Nós éramos a turma pioneira do curso clássico do Colégio Estadual de Paranavaí [CEP]. Nos reunimos em 13 alunos para discutir sobre a formatura e pensamos em realizar alguma promoção”, conta a professora Neusa Sanches, uma das fundadoras do Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), criado em 1966.
A princípio, por iniciativa de Osvaldo Cruz, vários estudantes cogitaram a possibilidade de fazer um baile, até que Neusa Sanches sugeriu uma noite de artes. Todos concordaram com a ideia e procuraram o professor Gomes da Silva, do Rio de Janeiro, que ministrava aos alunos um curso de oratória e liderança. “Fomos até o Hotel Elite, onde ele estava hospedado. Falamos a nossa ideia e ele achou ótima”, lembra Neusa.
A primeira sugestão da turma foi a abertura de inscrições de poemas inéditos. Como não havia categoria música, a animação do evento era feita por professores e alunos do Conservatório Nice Braga. “A ideia de se chamar de festival partiu do professor Gomes da Silva. Ele disse o seguinte: ‘Façam o primeiro festival e depois deem continuidade’. Começamos o trabalho antes das férias, em junho. Não tivemos muito tempo. Mas tudo deu certo com a orientação dele. Logo saímos às ruas colando cartazes”, relata.
O primeiro festival teve um formato elitizado, já que os convites eram vendidos para pessoas que os alunos consideravam interessadas em arte. Além dos envolvidos na organização, 50 convidados participaram da primeira edição realizada no Paranavaí Tênis Clube. Quem fez a apresentação foi o professor Ângelo Sebastião de Andrade, diretor do Colégio Estadual de Paranavaí.

Gomes da Silva à esquerda e Neusa Sanches ao centro no primeiro festival em 1966 (Acervo: Neusa Sanches)
Dos 16 poemas inscritos, um era “Maria Rio Bahia”, do professor Gomes da Silva.
Toda a divulgação do evento era feita a pé e o dinheiro arrecadado com a venda de convites era destinado às despesas gerais, incluindo confecção dos pequenos e simplórios troféus. Para evitar imprevistos e desorganização, como a maior parte dos estudantes trabalhava, eles assumiram o compromisso de usar a hora do almoço para contribuir na coordenação do evento. “Eu, por exemplo, fazia o curso clássico à noite e escola normal durante o dia. Ninguém tinha muito tempo. Era preciso fazer sacrifícios”, garante Neusa.
No segundo festival, que teve um público três vezes superior ao primeiro, o radialista Fernando da Silva declamou “João das Dores” e também “Maria Rio Bahia”. “Ele foi excelente e ajudou a dar uma cara popular ao festival. O segundo Femup foi realizado em parceria com o pessoal da turma do clássico do período noturno. Não tinha mais a turma da manhã. A repercussão só foi melhorando”, declara Neusa que se emociona ao se recordar do empenho do professor Gomes da Silva.
A partir do terceiro festival, ainda sob coordenação da turma pioneira do curso clássico, não houve mais cobrança de convite nem de ingresso. O 4º Femup, realizado no Cine Ouro Branco em 1969, e pela primeira vez fora do Paranavaí Tênis Clube, contou com o 1º Concurso de Contos de Paranavaí. O grande vencedor foi o escritor Paulo Marcelo Soares da Silva com o conto “O Cafezal”, publicado no Diário do Noroeste.
Desde as primeiras edições os organizadores convidavam professoras de português para participarem da comissão julgadora. “Sempre tivemos essa preocupação. A professora Maria Alice Penteado, que depois casou com o João Vitorino Franco, depois de estreitarem contato através do festival, teve importante participação na comissão de poesia”, declara Neusa Sanches.
Se nos dois primeiros festivais a participação se restringia mais a Paranavaí, a partir do terceiro o Femup começou a atrair atenção de pessoas de todo o Paraná. “Vinha muita gente de Londrina. E com a criação do concurso de contos o festival cresceu muito. Tínhamos apoio do radialista Fernando da Silva que fazia entrevistas com artistas e organizadores do Femup em horário nobre. O Diário do Noroeste e a Folha de Londrina também ajudaram muito”, garante.
Outra característica que distingue o Festival de Música e Poesia de Paranavaí de muitos outros festivais é que desde o surgimento já existia uma preocupação em publicar os trabalhos vencedores. “Começamos em 1966 com um livrinho bem simples, encadernado, até feinho, feito no mimeógrafo. Fazíamos tudo com material doado, desde a tinta até as folhas. Não tínhamos condições financeiras de ir além”, justifica Neusa, lembrando que só os quatro melhores trabalhos eram premiados.
Após décadas de envolvimento com o festival, a professora Neusa Sanches se afastou para cuidar dos filhos pequenos. “Quando me tornei professora do Colégio Estadual, eu sempre participava das comissões julgadoras de contos e poesia. Mais tarde, preferi me distanciar para não fazer um trabalho mal feito. Mas posso dizer que passei muitos anos sem perder nenhum, era macaca de auditório”, comenta às gargalhadas.
João Franco e Leonar Cardoso se emocionam ao falar do Femup
João Vitorino Franco e Leonar Araújo Cardoso também fizeram parte da primeira turma do curso clássico do Colégio Estadual de Paranavaí (CEP) que criou o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup). Os dois se recordam com muita emoção das primeiras edições. “Até então a gente nem pensava em festival. Queria só fazer uma atividade cultural. E a pessoa mais indicada para nos ajudar era o professor Gomes da Silva. Ele abraçou a ideia e explicou o que era preciso fazer”, conta Franco.

Leonar Cardoso: “Tínhamos mais público e mais experiência. Não estávamos mais restritos ao curso clássico e ao Colégio Estadual de Paranavaí” (Foto: Arquivo Pessoal)
Leonar relata que o 1º Femup teve um público modesto, mas que serviu de estímulo para levar a iniciativa mais a sério, ampliando a qualidade do festival. “Procuramos algumas empresas de Paranavaí porque já achávamos importante fazer um troféu para entregar aos vencedores. Todos ajudaram. Só não vou citar nomes dos patrocinadores porque posso esquecer algum e ser injusto”, justifica João Vitorino.
O segundo festival trouxe novo fôlego e começou a chamar a atenção da população de Paranavaí. “Tínhamos mais público e mais experiência. Não estávamos mais restritos ao curso clássico e ao Colégio Estadual de Paranavaí”, comenta Leonar Cardoso. A comissão organizadora do 3º Femup foi presidida por João Franco que considera um privilégio a oportunidade de organizar um festival que hoje tem abrangência nacional e quase 50 anos. “Se tudo deu certo em 1968 é porque todos os meus colegas contribuíram. A gente ainda não tinha ideia da dimensão que o festival alcançaria. Foram anos inesquecíveis no Paranavaí Tênis Clube e Cine Ouro Branco”, avalia Franco.
Hoje, os ex-alunos do curso clássico do Colégio Estadual acham mais do que justo dizer que o mérito também é de Paranavaí. “A cidade, indireta e indiretamente, tomou consciência do festival a partir da segunda edição e se tornou muito participativa”, defende João Vitorino, lembrando que o festival não existiria hoje sem o apoio da população e da classe artística local.
Neusa Sanches, Leonar Cardoso e João Franco, que estão entre os homenageados do 50º Festival de Música e Poesia de Paranavaí, lamentam apenas a ausência de importantes nomes que ajudaram a moldar o Femup desde a primeira edição. “Dói saber que um amigo como Osvaldo Cruz, uma figura extraordinária, já não está mais entre nós. Mas a vida é assim. Também sentimos a falta de Hermenegildo Garcia que foi embora de Paranavaí há muito tempo. Ele trabalhava na Rádio Cultura e ajudou demais na divulgação. Torcemos para que o Femup nunca chegue ao fim”, declara João Franco.

Primeira página da antologia mimeografada do 1º Femup, resguardada pela professora Elmita Simonetti Pires (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)
Quem era o professor Gomes da Silva
O professor José Gomes da Silva, graduado em letras e professor no Rio de Janeiro, é considerado pelos criadores do Femup como a “alma do festival”. Responsável por ensinar como fazer um bom evento de artes, inclusive como julgar, morou em Paranavaí até o final do terceiro festival. “Uma das declamadoras, a Célia, se casou com ele. Numa das viagens para Curitiba, eles sofreram um acidente e caíram na serra. A Célia morreu e o professor Gomes da Silva conseguiu salvar o bebezinho deles depois de subir a serra para pedir socorro. Eu soube que ele deixou a criança no hospital e desapareceu”, confidencia a professora Neusa Sanches.
Comissão organizadora do 1º Femup
Professor José Gomes da Silva, Alzira Suguino, Clóvis Costa Cordeiro, Edna Parpinelli, Elizeu Petrelli de Vitor, Else Ravelli, Gentil Carraro, Hermenegildo Garcia, João Vitorino Franco, Juarez Echeli, Leonar Araújo Cardoso, Luiz Geraldi Sobrinho, Luiz Volzzi Neto, Mara Watanabe, Neusa Sanches, Osvaldo Cruz (In memoriam), Pedro Jardim e Terezinha Silva de Oliveira.
Vencedores do 1º Concurso de Contos de Paranavaí
Curiosidades
Na primeira edição o Femup recebeu cerca de 60 inscrições.
Em 1987, o troféu Barriguda, então feito de ferro e desenvolvido pelo artista plástico Saulo Suguimati, foi entregue pela primeira vez aos participantes que ficaram em primeiro lugar no festival.
Outra boa lembrança era frequente participação do declamador José Maria Cavalcanti.
Frases da professora Neusa Sanches
“O falecido Osvaldo Cruz era da linha de frente em 1966. Muito companheiro, assim com o Hermenegildo Garcia.”
“A Elmita Simonetti Pires era pequeninha e já declamava nas primeiras edições. Era muito bonito de se ver.”
“O Paulo Cesar de Oliveira depois injetou mais ânimo no Femup com o Grupo Gralha Azul.”
“Quando o doutor Atílio planejou criar o curso clássico em Paranavaí, a menina dos olhos dele, trouxe muita gente de fora. Veio o professor Apolo e vários outros professores de português, francês e latim que eram de Curitiba. Todos deram sua contribuição.”
“O professor Gomes da Silva foi o melhor orador que conheci na minha vida.”
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Briga de rua
Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto apartou eu e Fabiano

Meu irmão Douglas à frente, Fabiano à esquerda e eu à direita quando brincávamos de lutinha (Foto: Arquivo Familiar)
Eu tinha nove anos, meus punhos estavam cerrados e levantados à altura do meu queixo enquanto meus pés descalços raleavam a terra arenosa do quintal da nossa casa branca na Rua Artur Bernardes. Os movimentos rasteiros faziam a poeira castanha emergir do chão, polvilhando meus tornozelos. Ao redor das jabuticabeiras que neutralizavam a invasão do sol por vários pontos, Mussum latia ocasionalmente, saracoteando de um lado para o outro e tentando retesar o próprio rabo em forma de biscoito.
Preto que chegava a azular, o cãozinho ranheta, com uma barriguinha desnuda em pelos e temido pelos vizinhos, era naquele momento o nosso juiz. À minha frente, Douglas, meu irmão mais velho, também mantinha os punhos firmes e os olhos fixos em minha direção, esperando qualquer investida inesperada. Fabiano, Henrique e Thiaguinho assistiam tudo e faziam provocações, arremessando jabuticabas podres no centro da nossa arena demarcada com gravetos. Rindo, meu irmão me golpeou de leve no peito e eu retribui dando-lhe um soco canhestro na barriga. A cada murro a arena ficava menor. Íamos nos aproximando, arrastando os pés encardidos, até que a luz do sol, mais forte a certa hora, atravessava as jabuticabeiras e queimava nossos ombros nus, deixando marcas disformes que pareciam tatuagens adâmicas dos Homens do Sol.
Em seu esplendor, avisava sem fazer barulho que era hora de findar a distância. Então nos lançávamos um sobre o outro e caíamos na terra, rolando com destemor. Às vezes íamos tão longe que batíamos as costas na base da jabuticabeira, sentindo suas raízes ocultas pela relva nos impulsionando para cima. Cada choque violento na parte mais baixa do tronco chegava à minha mente em forma de frases curtas: “Levante-se, levante-se agora!”, “Você é tonto?” “Quer sair daqui com as costas raladas?” “Depois não adianta resmungar quando deitar na cama com as costas queimando”, “Vamos, moleque!”, me imaginava sendo advertido pelo pé de jabuticaba balouçando seus galhos como as mãos de um sujeito escalafobético.
Os golpes nos causavam pouco ou quase nada, mas as polpas das jabuticabas podres roxeavam nossos corpos depois de esmagadas, criando uma ilusão de ringue sangrento. Parecendo sapos-arlequins da Costa Rica, nos levantávamos rindo, exibindo os dentes brancos de forma caricata. Afinal, era a única parte não colorida pelo intenso violáceo da fruta. E assim a brincadeira continuava. No nosso ritual pós-luta, nos aproximávamos e tirávamos as cascas de jabuticaba que se fixavam nas partes que nossos braços curtos não alcançavam. Um ajudava o outro e apontava os desenhos que surgiam a partir dos diferentes matizes de roxo. Éramos duas telas que a natureza se encarregava de pincelar de acordo com nossas ações, previsíveis ou não.
Através do sol, das árvores e do solo firme como nossa crença de que nada era mais importante que o tempo presente, a natureza enchia meus olhos, apresentando um universo de infinitas possibilidades. O mundo era limitado para quem o via arestado, inclinado sobre um flanco debilitado. Arteiros, subíamos nas jabuticabeiras e esfregávamos o nariz púrpuro entre as flores brancas, pequenas e perfumadas. Sentia minhas narinas tingidas nas bordas como se fossem o botão do floreado.
No alto, com os pés nus escorados em suas curvas finas e medianas, comíamos jabuticaba até alguns galhos ficarem lisos. Mussum, que não aceitava o fato de não saber subir em árvores, girava até estontear e deitava na relva com os olhos já amansados. Era o apoteótico desespero do curvilhão. Vencido, movia a cauda argolada com sutileza contra um punhado de frutas que se esfacelavam no chão, protegidas pelo silêncio da leveza. Seu prêmio de consolação era o rabo roxeado que ele usava como bastonete de tira-gosto. Esfregava a cauda sobre as jabuticabas e a lambia com cuidado e atenção. Só parava quando recobrava o seu negrume natural.
Ocasionalmente, as lutinhas eram realizadas ao ar livre. Ninguém se machucava de verdade, e a encenação proporcionava mais realismo à brincadeira, tanto que passantes paravam e nos observavam, talvez refletindo se deveriam ou não intervir no que estava acontecendo. Em meio a socos, chutes de peito de pé e hadaka jime, um dia um senhor alto e corpulento de pouco mais de 40 anos, recém-chegado ao bairro, apartou eu e Fabiano. Descalço e concentrado sobre a calçada de casa, vi apenas uma grande sombra me cobrindo e bloqueando o sol. Pequeno, me senti diante de um eclipse. “Por que vocês tão brigando?”, disse o vozeirão retumbante que parecia emanado dos céus. Estremeci e pensei até que pudesse ser Deus me repreendendo pelas minhas traquinagens.
“Vocês já sentiram a espora de um galo de combate no calcanhar? Acho que eu não seria capaz de suportar isso, ou a perda de um olho, ou dos dois olhos, e continuar a lutar como os galos de combate. O homem não é tão forte quanto os outros animais”, defendeu, citando Hemingway em “O Velho e o Mar”. “E mesmo que fosse, de que valeria isso se as palavras são sempre mais vigorosas que os braços? O corpo cansa justamente quando a mente descansa. Não se enganem, meus amigos”, advertiu o homem de origem ucraniana que tinha apelido de Polaco. O nariz de Fabiano sangrava e provavelmente aquele homenzarrão pensou que eu fosse o culpado. A verdade era que nosso amigo sofria de epistaxe, um sangramento nasal que o impedia de se expor ao sol nos dias mais quentes. “O forasteiro que ali chegasse, mesmo para breve visita, era praticamente obrigado a tomar logo partido”, escreveu Érico Veríssimo em “Incidente em Antares”, que anos depois me fez rememorar o episódio.
Ex-atleta de levantamento de peso básico, Polaco nos convidou para sentar em um banco de madeira da casa vizinha e relatou com voz pausada como seu irmão caçula morreu em 1991. Conhecido como Mão de Tijolo, Ivan Ferdoska caminhava sozinho pelo centro de Paranavaí quando viu um casal discutindo perto do Restaurante Chapelão, na Rua Manoel Ribas. Em menos de minuto, o homem se lançou sobre a própria namorada e deu-lhe dois murros na cabeça e três chutes nas pernas. Assistindo a cena, Mão de Tijolo não se conteve e acertou um soco em cheio na boca do agressor que caiu no chão desnorteado, ladeado por lascas e pedaços de dentes que voaram sobre a calçada. A mão de Ivan era tão grande e a cabeça do agredido tão pequena que era impossível encontrar uma parte do rosto do rapaz que não estivesse roxa.
Sem dizer palavra, Mão de Tijolo ajeitou a camiseta regata preta e seguiu andando, como se nada tivesse acontecido. Nesse ínterim, o homem deitado no chão e com um olho tão caído quanto o do Quasímodo, de Victor Hugo, sacou uma pistola pequena escondida na botina e disparou, com uma arma mais carregada de cólera do que de balas, três tiros contra Ivan que tombou no chão apoiando-se contra os braços flexionados na calçada de petit-pavé. Entre as pedras brancas e pretas, escorria seu sangue, formando um mapa famigerado do acaso, da poltronaria e da torpeza.
O rapaz morreu três horas depois. Polaco ficou ao lado do irmão na Santa Casa de Paranavaí até o suspiro final, observando-lhe os olhos acinzentados e ternos, a boca levemente entreaberta, a tez pálida e o aspecto sorumbático de quem reconhecia o próprio fim aos 28 anos. Apesar dos olhos marejados, evitou que as lágrimas escorressem pelas maçãs descoradas. Nos últimos minutos de vida, abraçou o irmão e jurou que não estava triste. Mão de Tijolo pediu que Polaco tirasse de seu bolso um bilhete premiado de loteria e revelou:
“Saí pra caminhar e pensar no que fazer com o dinheiro. Eu realmente não sabia, agora já sei. Fique com ele e não lamente por mim. No fim, talvez a vida não seja justa, mas é coerente e equilibrada. Poderia ser aquela moça em meu lugar e isso eu não poderia admitir. Se pra cada morte há um nascimento, acho que não devemos reclamar tanto, somente agradecer pela oportunidade de que mais pessoas tenham a experiência de viver. Pouco ou muito ela sempre vai valer a pena. Ah! Amanhã eu iria buscar minha CBX 750 na oficina depois de tanto tempo sem dinheiro. Tudo bem, que assim seja. Meu irmão, só peço a você que não se vingue pelo acontecido. Se quiser fazer algo por mim, espalhe compreensão por onde for, lute contra a violência. Combata o ódio e qualquer outro sentimento que amargue no coração a morte precoce. Acho que não adianta ser aparentemente pacífico se dentro de você habita a violência. A paz também é aquilo que fazemos dela quando estamos sozinhos.”
Após a morte de Ivan, o solitário Polaco continuou morando perto de mim por mais alguns anos, até que vendeu a própria casa e doou todo o dinheiro. Numa véspera de Natal, visitou alguns bairros pobres de Paranavaí e empurrou por baixo das portas envelopes recheados de dinheiro. Sem se despedir e sem chamar a atenção para si, desapareceu. Não sei até que ponto Polaco me influenciou, mas cresci avesso às brigas, como um Alex De Large, de Burgess, naturalmente reformado.
Com 19 anos, fui colocado à prova num início de noite na Avenida Paraná, em frente à antiga Imobiliária Gaúcha, onde alguns amigos marcaram um encontro. Na realidade, era uma armadilha de jovens ébrios. Chegando lá, um deles inventou histórias a meu respeito. Me provocou em vão, pois não reagi. Em silêncio, observei as atitudes dos três que me instigavam a brigar. Sem mover os pés da calçada, me mantive calmo num ambiente hostil. Ainda assim, um deles se aproximou de mim e acertou um soco na minha boca.
O sangue escorreu pelos meus lábios espessos. Experimentei a queimadura do corte no canto superior direito. Na mesma posição, passei o polegar direito pelos lábios, vi o sangue denso, levantei meu dedo banhado em carmesim e perguntei: “Cara, por que você fez isso? É uma pena…” Meu amigo Edson quis bater no agressor, só que eu o impedi porque nada naquele momento me causava medo. “A Morte tinha desaparecido de sua frente e em seu lugar via a luz”, refleti, lembrando-me de Ivan Ilitch, de Tolstói.
Contrariando todas as expectativas, me calei, lavei minha boca em uma torneira instalada no mesmo local e fui em direção à Praça dos Pioneiros, retornando com a roupa avermelhada em algumas partes. Não senti raiva, apenas um misto de pesar e náuseas. Em casa, o sangue foi lavado com lágrimas pachorrentas que já não se repetiam mais. Observava no espelho a abertura no lábio com olhos grandes, então amiudados, e o palato esbraseado pela nebulosa bonomia. Tudo que era palpável no fundo era impalpável.
Ao longo de 10 anos, assisti cada um dos envolvidos no episódio aparecer no portão de casa pedindo desculpas, fazendo ecoar na minha mente um pequeno fragmento de “Só vim telefonar”, de García Márquez. “Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite.”
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Enquanto o ônibus não chega
A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena

Fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança (Foto: Reprodução)
Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.
Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.
Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.
Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.
A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.
Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.
Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.
Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.
Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.
Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.
Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”
Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.
“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.
Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.
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Uma noite em Paranavaí
Me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia
Uma vez, assim como outras, saí à noite para dirigir sem propósito específico ou destino. Era por volta das 22h, e a luz anilada da lua descortinava o meu caminho. Nas imediações, um silêncio singular contrastava com pios de uma pequena coruja com as garras presas ao galho mais robusto de uma flamboyant que repousava em nossa casa, esparramando-se em formas menores que pareciam dedos de mãos disformes. Nas extremidades, o vento a acariciava com suavidade e ela estremecia, fazendo suas vagens se moverem como unhas longas em maturação.
Conhecedora da natureza, a coruja mantinha-se imóvel exatamente na altura em que a brisa era mais deleitosa, eriçando suas penas e a estimulando a inclinar a cabecinha amolgada para trás. Inflamada, observava atentamente o entorno e ajeitava as garras sobre um grande galho verdejante que cobria nosso quintal. Então emitia um canto prolongado que soava como sinal de agradecimento. Naquele dia, não vi muitas estrelas no céu. Bonançosas, as nuvens não tinham intenção de impressionar os mais desatentos. Tudo ao meu redor estava especialmente apolíneo e assim me perdi refletindo sobre como a escuridão também aspira à vida, revela belezas inexistentes à luz do dia, quando a clareza realça mais o perceptível do que o imperceptível.
“Por que relegam à noite tantos sinônimos funestos?”, pensei enquanto observava da entrada de casa a luz amarelada e desbastada sobre um poste do outro lado da rua. O sopro noturno prosseguia e me trazia o aroma orvalhado e fresco das hortelãs que minha mãe sempre plantou no quintal. Sentei no meio-fio por alguns minutos, e Kika, a cachorra mestiça de casa, se aproximou, emitindo sons miméticos que tentavam imitar a fala humana. Em situações de grande excitação, ela nunca latia. Queria uma autorização para ganhar as ruas tranquilas de uma noite acirrante. Concedida, correu empolgada, meneando o rabo torto que oscilava como ponteiro entre as pernas finas. Suas orelhas sacolejavam como pequenas e vigorosas bexigas amendoadas, recheadas de alguma coisa impalpável como um pouquinho de ar sem sê-lo.
Na praça da catedral, Kika manteve a boca aberta e os olhos intumescidos. Escorregou pela grama e fez balizas embaixo dos bancos de concreto. Quando cansou, retornou sem se importar com manchas de cal, punhado de carrapichos fincados no dorso e cheiro acentuado de sarça. Ela não ia longe. Nunca foi. Seu senso de liberdade não exigia mais de 500 metros de distância de casa. Assim que ela retornou, tirei o carro da garagem e fechei o portão. Coloquei um CD do Mogwai e comecei a ouvir “Take Me Somewhere Nice”.
O horizonte da Rua John Kennedy, no Jardim Iguaçu, parecia afunilado, entranhado numa escuridão cerúlea e silenciosa que principiava muito mais do que os olhos são capazes de ver num primeiro momento. Guiei o carro pela descida, observando mais adiante a brisa aproximando as copas das árvores, como se quisesse uni-las num túnel seivoso com uma base forrada de flores matizadas. Iam se amontoando nas ruas e calçadas, sincronizadas com o ritmo plácido e gracioso da música.
A ausência de aspereza era tão solene que as folhas e o floreado afagavam o asfalto ferido pelo descaso, remendando-o com suas figuras e cores que contrastavam com a opacidade da fuligem fedegosa de cana. A noite era dos felinos. Com poucos cães na rua, os gatos reinavam solitários. Brancos, pretos, acinzentados e mesclados atravessavam por todos os lados sem pressa, fazendo da cauda uma bandeira, um chicote e uma antena.
Antes de chegar à Avenida Parigot de Souza, um deles correu na minha frente. Ficou parado me observando com uma expressão cabalística. Depois lambeu o próprio pelo escuro como a noite. O rabo longo serpenteou remansado. As patas pouco se moviam e os olhos afogueados reluziam um vermelho portentoso. Desviei e o bichano continuou lá, imóvel no seu capitólio de piche. Assisti pelo retrovisor o reflexo dos seus rubis acompanhando o movimento das rodas do carro.
No semáforo perto do cruzamento da Avenida Paraná com a Rua Pernambuco, um catador de latinhas sem teto fez reverência medieval e estendeu as mãos calejadas, pedindo contribuição dos motoristas para comprar algo pra comer. A maioria se recusou a ajudar, até que alguém o chamou e estendeu através da janela do carro uma sacola com um lanche embalado e uma lata de refrigerante. Sem velar o sorriso largo, o rapaz agradeceu e caminhou rapidamente até um terreno baldio. Lá, abriu a sacola, retirou o lanche e de pedacinho em pedacinho alimentou uma cadelinha mestiça com as patas enfaixadas que repousava sobre um lençol surrado.
Desci mais um pouco, até as imediações do Terminal Rodoviário, onde três travestis, com cabelos bem escovados e usando saias e sapatos de salto agulha, apontavam as mãos para um homem de meia-idade embriagado e segurando uma faca de cozinha. “Se ele me chamar de corno outra vez, vou enfiar a faca nele!”, gritou cortando o vento com a lâmina apontada para o jovem que gargalhava em tom de deboche. Assistindo a cena e prevendo final trágico, o dono de um bar se aproximou e disse:
“Olha, Afonso, te conheço há muito tempo e sei que ainda não é o suficiente pra entender sua dor, mas se a vida não vale o amor, muito menos ela recompensa o desamor. Desilusão amorosa não destrói ninguém. O que te mata é a inexperiência em ver e sentir além. Perdi duas mulheres na minha vida, uma pra outro homem e outra pra morte. O amor não se trata de azar ou sorte. Não culpo Deus, não culpo ninguém. Aprendi há muito tempo que a vida é sempre maior do que nós. Ela é tão grande que muitas vezes não a enxergamos porque estamos cabisbaixos. Tenho certeza que amanhã cedo você vai perceber isso. Vá pra casa, meu amigo. Suas filhas vão precisar de você mais do que nunca.”
Afonso soltou a faca no chão e ela tiniu contra a calçada de mosaico português. Mirando o chão, falou obrigado com a voz embargada e abafada. Levou as mãos ao rosto para esconder as lágrimas, virou as costas e correu arrastando o par de chinelos pela Avenida Salvador, até desaparecer no breu da Rua Serafim Afonso Costa.
Subi pela Rua Paraíba, onde quase em frente ao Shopping Cidade um casal discutia, atraindo curiosidade e comentários até de quem passava a metros de distância. Alguns pareciam esperar e até torcer pelo pior. Não prestei muita atenção na conversa, apenas no momento em que o rapaz puxou a moça para si e a calou, segurando-a pela cintura e dando-lhe um beijo vulcânico que diminuiu até o ritmo do trânsito na Rua Getúlio Vargas.
Depois segui em direção à Avenida Distrito Federal e por um descuido entrei na rotatória sem dar preferência a uma caminhonete que vinha acelerada. Segurando uma lata de cerveja, o motorista buzinou, me ultrapassou na contramão, reduziu a velocidade, abriu o vidro e manteve o dedo médio apontado, aguardando minha reação e me impedindo de passar dos 20 quilômetros por hora. Quando levantei o polegar da mão esquerda, ele simplesmente desapareceu do meu campo de visão, deixando uma rajada de fumaça que em poucos segundos se desvaneceu como sua ira.
Continuei dirigindo, sentindo o vento brando no rosto, o bálsamo volátil das ruas e de tudo que a habita. O tráfego seguia fleumático na entrada do Jardim São Jorge. Acompanhava a lentidão que contagiava um grupo de adolescentes encostados na parede de um prédio comercial abandonado. Bebiam tubão e uns zombavam das tatuagens dos outros, numa brincadeira de ressignificações.
No entorno da Praça dos Expedicionários, um idoso sentado sobre os próprios pés monologava num tom que parecia um exercício de dicção. Quando me viu, se aproximou e me convidou pra descer do carro. “Chega aí, gente fina. Vou te contar uma história”, adiantou. O homem parecia um jovem habitando um corpo de mais de 70 anos. Mantinha a postura ereta e se movia com leveza.
“Não tenho problema na coluna porque a vida toda andei mais inclinado pra cima do que pra baixo. Como você vai enxergar o mundo se não fizer isso?”, ponderou às gargalhadas. Me puxou pelo braço e me levou até o centro da praça, onde as cinzas de seu pai foram lançadas décadas atrás. Em poucos segundos, senti perfume de hortênsia. Quando olhei para o lado, vi aquele homem de quem nunca soube o nome tirando um sem número de pétalas azuis dos bolsos de uma calça larga. Ao caírem no chão, ajudavam a completar um grande círculo apoteótico.
Era uma homenagem ao seu pai, um pracinha que participou da Segunda Guerra Mundial e sobreviveu a um bombardeio em Montese, no Norte da Itália, mas morreu atropelado no mesmo lugar onde a praça foi construída, após salvar um cão abandonado. “Ele continua por aqui. Sei disso porque o mesmo vento que tantas vezes levou suas cinzas para longe daqui as trouxe de volta. Elas vêm e vão, indeléveis, na brincadeira do sopro sul com o sopro norte. A presença do meu velho vem acompanhada do som de um assobio que ele dava sempre que ria. Defendia que a noite era o início, nunca o fim do dia.”
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O dia em que Pedro Tenório assassinou Alma de Gato e Bartolo no Líder Bar
Crime aconteceu no centro de Paranavaí no dia 8 de agosto de 1964

Líder Bar (ao fundo), cenário de um dos crimes mais macabros da região na década de 1960 (Acervo: João Carlos Antunes)
No dia 8 de agosto de 1964, um homem bebendo no Líder Bar, na Avenida Paraná, perto do cruzamento com a Rua Getúlio Vargas, no centro de Paranavaí, explicou a um conhecido que estava negociando a venda de uma fazenda que pertencia a uma família de gaúchos em Querência do Norte. “Vou fechar esse negócio, daí pago a minha dívida, né?”, enfatizou o homem, de acordo com Honório Bonfadini, um dos proprietários do Líder Bar na época, que acompanhou a conversa diante do balcão.
Quando chegou a hora de formalizar a venda, o negociante chamado Pedro Tenório se sentiu lesado porque a transação não foi concluída e ele perdeu a chance de ganhar uma boa comissão. Dois dias depois, retornou ao bar por volta do meio-dia. O local estava lotado, tanto que não havia mais cadeiras e mesas disponíveis. Então Tenório se aproximou do balcão e caminhou até dois homens que conversavam. Sem dizer palavra, sacou um revólver de calibre 44, puxou Onofre de Oliveira, mais conhecido como Alma de Gato, pelo braço e deu-lhe um tiro à queima-roupa no peito.

Alma de Gato foi sepultado na gaveta superior e Bartolo na gaveta inferior do Cemitério Municipal de Paranavaí (Foto: David Arioch)
Bartolo Sanches Perez, que estava ao lado do amigo ferido, ficou inerte, com os olhos estalados. Antes que reagisse, também foi alvejado no peito. Os dois caíram lado a lado enquanto o sangue se misturava no chão do bar. Durante a ação, alguns fregueses tremiam assustados e encolhidos embaixo das mesas. Outros ficaram tão desesperados que correram em direção à Avenida Paraná. “Todo mundo saiu de perto quando ouviu o primeiro tiro. O atirador não chegou a quebrar nada. Só furou a parede e o forro”, relata Bonfadini.
Com calma, Tenório abaixou o revólver e saiu do bar da mesma forma que entrou, ou seja, calado. “Havia muito sangue no chão e muito medo nos olhos de quem presenciou esse crime”, relata o pioneiro João Mariano. O atirador caminhou com tranquilidade até a Rua Getúlio Vargas, onde foi abordado pelo tenente Walter Porto, da Polícia Militar. Não resistiu à prisão e ainda confidenciou que sua intenção era ir até outro bar assassinar mais duas pessoas que segundo ele faziam parte do grupo que interferiu em seus negócios. Feridos gravemente, Alma de Gato e Bartolo acabaram falecendo no hospital.
O pioneiro e ex-prefeito Deusdete Ferreira de Cerqueira se recorda que foi procurado por João Tenório para testemunhar a favor de Pedro Tenório. “Ele era de família abastada. Eu me dava bem com esse parente dele. Mas um dia ele passou na minha casa e disse: ‘É sobre o Pedro, sei que você faz parte do júri popular e quero pedir que salve ele’. Aí expliquei: ‘Ô Seu João, pra mim é difícil. A única coisa que você pode fazer é pedir pra me tirar do júri porque se eu for lá eu condeno ele. Tenho minha consciência e meu senso de justiça’”, lembra.

Deusdete Cerqueira, Honório Bonfadini e João Mariano conheciam Pedro Tenório e as vítimas (Foto: David Arioch)
Após a condenação, Tenório foi transferido para Curitiba. O que o motivou a matar Alma de Gato e Bartolo foi o desejo de vingança e a sensação de impunidade. “Ele tinha amizade com um juiz e um escrivão que se dispuseram a ajudar ele. Ou seja, tudo gente boa”, ironiza Honório Bonfadini, lembrando que era muito comum as pessoas andarem munidas de revólveres de calibre 22 e 38 em 1964.
O duplo homicídio repercutiu tanto que se tornou o assunto mais falado na região por semanas. Inclusive a polícia exigiu que os Bonfadini fechassem o Líder Bar por alguns dias, reabrindo numa segunda-feira. “E tudo isso por causa da corretagem de uma fazenda. Naquele tempo as pessoas matavam facilmente por causa de comissão de terras. Ainda bem que os outros não quiseram se vingar porque senão ia acabar não sobrando ninguém”, pondera Deusdete.
Vizinho de Bartolo Sanches Perez, o pioneiro João Mariano conta que ele era tranquilo e educado. “Uma vez ele passou por uma situação difícil quando o filho dele foi laçar um boi e o animal o arrastou. Levaram o rapaz ao médico e ele se recuperou, mas ficou sem a mão”, confidencia.
Mariano também defende que Alma de Gato, homem alto e magro que conheceu em 1955, não era má pessoa. “Eu era mais novo que o Alma de Gato e tive o primeiro contato com ele em 1953, um ano depois que cheguei em Paranavaí. A propriedade onde moro hoje [Estância Reno] era do pai dele. Tinham uma fazenda enorme, com muito café e mato. Quando comprei, já tinham loteado. O forte deles sempre foi a cafeicultura”, garante Cerqueira.
Curiosidades
Alma de Gato e Bartolo estão sepultados na primeira seção de gavetas do Cemitério Municipal de Paranavaí.
Alma-de-Gato é o nome de um pássaro originário da Amazônia que tem a cauda longa, o peito acinzentado e a plumagem cor de ferrugem.
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Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud
Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial

Benílio, que não aparece na foto, participava das discussões do Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)
Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.
Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.
Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.
Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.
Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.
Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.
Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.
Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.
Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.
Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.
Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.
Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.
Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.
Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.
Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.
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