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Breve reflexão sobre a depressão
Se tenho ou já tive depressão, isso não faz de mim uma referência em depressão, mas apenas alguém que talvez tenha condições de compartilhar suas experiências e impressões do assunto – ou seja, talvez permitir uma compreensão diferenciada, um algo mais, nem completo nem incompleto. Não creio que isso signifique que eu esteja autorizado a falar em nome de outras pessoas que estão vivendo essa realidade, principalmente se isso for feito de forma pétrea. Afinal, os níveis de depressão e suas motivações podem ser visceralmente diversos.
Quando falo de alguém em determinada situação que conjecturo análoga ao que vivi, considero semelhança não equivalência, porque a minha individualidade, as minhas experiências, se traduzem em especificidade, em recortes pessoais. E recortes são mais subjetivos do que objetivos, assim como seu impacto, mesmo que eu tente fazer parecer o contrário.
A minha experiência não pode ser uma baliza para simplificar e julgar a experiência do outro, mas talvez uma possibilidade para criar uma ponte se não de entendimento, pelo menos de consideração à individualidade, porque, na minha concepção, isso é essencialmente uma manifestação de respeito. Por isso, sou da opinião de que a dor de uma pessoa é somente dela, e só ela sabe o que isso representa em sua vida.
Quando me coloco no lugar do outro, tenho como parâmetro tal reflexão: “A dor de alguém não pode ser medida, qualificada como maior ou menor do que a de ninguém, é simplesmente a sua dor.” Isso basicamente resume o que penso em relação à individualidade do sofrer. Creio que quando damos nomes às coisas, não raramente temos uma tendência a apoucar o seu impacto pessoal, e isso pode ser problemático, porque embora duas pessoas vivam uma chamada “mesma realidade”, por exemplo, isso não significa que o peso seja equivalente.
Por que só reconhecemos a exploração animal quando envolve violência explícita?
Por que acredito que o sofrimento de um animal não humano não é menor do que o humano na iminência da morte
Richard Dawkins: “Não temos nenhuma razão para pensar que os animais não humanos sintam dor menos intensamente do que nós”
“Práticas como marcação de gado, castração sem anestesia e touradas devem ser tratadas como moralmente equivalentes a fazer o mesmo com seres humanos”
Em 2011, o biólogo evolutivo e etólogo britânico Richard Dawkins publicou o artigo “But can they suffer?” No texto, ele manifestou publicamente a sua contrariedade em relação à displicência humana no que diz respeito ao tratamento dispensado aos animais não humanos. Ele defende que se não somos capazes de reconhecer o sofrimento dos animais que exploramos em nosso próprio benefício, deveríamos no mínimo dar a eles o benefício da dúvida e considerar as implicações de nossas ações:
O filósofo moral Jeremy Bentham, fundador do utilitarismo, disse: “A questão não é, “eles podem raciocinar?” nem “eles podem falar?”, mas sim “eles podem sofrer?” A maioria das pessoas entende, mas trata o sofrimento humano como algo particularmente preocupante, porque acham vagamente óbvio que a capacidade de sofrer da espécie está positivamente correlacionada com a sua capacidade intelectual. As plantas não podem pensar, e você teria que ser bastante excêntrico para acreditar que elas podem sofrer. É plausível que o mesmo possa ser verdade sobre as minhocas. Mas e as vacas?
E os cachorros? Acho que é quase impossível acreditar que René Descartes, que não é conhecido como um monstro, sustentava com tanta veemência a crença filosófica de que apenas os seres humanos têm mentes, e que ele alegremente seria capaz de colocar um mamífero não humano grávido sobre uma mesa para dissecá-lo. Você pensaria que, apesar de seu raciocínio filosófico, ele poderia ter dado ao animal o benefício da dúvida. Mas ele vinha de uma longa tradição de vivisseccionistas, incluindo [Cláudio] Galeno e [Andreas] Vesalius, seguido por William Harvey e muitos outros.
Como eles podem fazer isso: amarrar com cordas um mamífero que grita e resiste, e dissecar o seu coração vivo, por exemplo? Presumivelmente, eles acreditavam no que veio a ser articulado por Descartes: que os animais não humanos não têm alma e não sentem dor. Hoje em dia, a maioria de nós acredita que cães e outros mamíferos não humanos podem sentir dor, e hoje nenhum cientista respeitável seguiria o horrível exemplo de Descartes e Harvey e dissecaria um mamífero vivo sem anestesia. A legislação britânica, entre outras, os puniria severamente se o fizessem (embora os invertebrados não sejam bem protegidos legalmente, nem mesmo os polvos com seus cérebros grandes).
No entanto, a maioria de nós parece assumir, sem questionar, que a capacidade de sentir dor está positivamente correlacionada com a destreza mental – com a capacidade de raciocinar, pensar, refletir e assim por diante. O meu propósito aqui é questionar essa suposição. Não vejo razão alguma para que haja uma correlação positiva. A dor parece primal, como a capacidade de ver cores ou ouvir sons. Parece o tipo de sensação que você não precisa que o intelecto experimente. Os sentimentos não têm peso na ciência, mas, no mínimo, não deveríamos dar aos animais o benefício da dúvida?
Sem entrar na interessante literatura sobre o sofrimento dos animais (ver, por exemplo, o excelente livro de Marian Stamp Dawkins – “Rethinking Animals”), posso ver uma razão darwiniana por que poderia realmente haver uma correlação negativa entre o intelecto e a suscetibilidade a dor. Abordo isso perguntando para que, no sentido darwinista, serve a dor. É um aviso para não repetir ações que tendem a causar danos corporais. Não meta o dedão do seu pé novamente, não provoque uma cobra ou sente-se em uma vespa, não segure brasas mesmo que brilhem lindamente, tome cuidado para não morder a sua língua. As plantas não têm sistema nervoso capaz de aprender a não repetir ações prejudiciais, e é por isso que cortamos alfaces vivas sem remorso.
É uma questão interessante, incidentalmente, o porquê da dor ter que ser tão dolorosa. Por que não equipar o cérebro com o equivalente a uma pequena bandeira vermelha que, indolor, apenas avisa: “Não faça isso novamente”? Em “O Grande Espetáculo da Terra”, sugeri que o cérebro poderia ser dividido entre impulsos conflitantes e um anseio em rebelar-se, talvez hedonisticamente, contra a busca dos melhores interesses da aptidão genética do indivíduo, caso em que precisaria ser agonizantemente punido para retornar à linha.
Vou deixar passar essa questão e retornar a minha questão principal de hoje: você esperaria uma correlação positiva ou negativa entre a capacidade mental e a capacidade de sentir dor? A maioria das pessoas assume, sem pensar, uma correlação positiva, mas por que?
Não é plausível que uma espécie inteligente como a nossa possa necessitar de menos dor, precisamente porque somos capazes de trabalhar inteligentemente o que é benéfico para nós, e quais eventos nocivos devemos evitar? Não é plausível que uma espécie não inteligente possa precisar de uma grande dose de dor para levar para casa uma lição que podemos aprender com um estímulo menos poderoso?
No mínimo, concluo que não temos nenhuma razão para pensar que os animais não humanos sintam dor menos intensamente do que nós, e de qualquer forma devemos dar-lhes o benefício da dúvida. Práticas como marcação de gado, castração sem anestesia e touradas devem ser tratadas como moralmente equivalentes a fazer o mesmo com seres humanos.
Referência
Richard Dawkins on vivisection: “But can they suffer?” Boing Boing (30 de junho de 2011).
Mãe e Filho (Ou a Vaca e o Vitelo) – Uma reflexão sobre a realidade da vaca e do bezerro
Será que o bacalhau sofre antes de morrer? Com certeza!
Um animal que costuma ser consumido no feriado da Sexta-Feira Santa e na Páscoa é o bacalhau, que por ser um peixe é subestimado enquanto ser senciente. Afinal, será que ele sofre antes de morrer? Com certeza! Assim como outros peixes, o bacalhau agoniza fora da água e morre asfixiado. E claro, ele não se entrega de bom gosto. O peixe luta pela vida o máximo que pode, assim como qualquer um de nós faríamos na iminência da morte.
A espécie mais tradicional de bacalhau, o bacalhau-do-atlântico ou gadus morhua, tem uma expectativa de vida de 25 anos. Porém, devido à intervenção humana, dificilmente ele passa dos primeiros anos de vida. Depois de capturado, se estiver dentro do peso almejado, o bacalhau é degolado e tem sua barriga aberta. Após a retirada das vísceras e guelras, o animal é decapitado.
Então o abrem ao meio, retiram parte da espinha dorsal, o lavam e o cobrem com sal antes de expô-lo ao sol. Depois de passar por uma desidratação de mais de 50%, o peixe é comercializado e consumido. Embora cientistas não possam dar uma resposta definitiva sobre os níveis de consciência dos peixes, tudo indica que, além da senciência semelhante a dos mamíferos, o bacalhau tem uma singular sofisticação comportamental e cognitiva.
Mas, claro, são fatores pouco divulgados e costumeiramente ignorados. O bacalhau costuma ser visto apenas como uma “iguaria” a ser servida frita, assada, cozida ou grelhada, e sempre em pedaços, sem qualquer enfática associação com um animal. A maior prova disso é que a maioria das pessoas que consome o bacalhau não sabe citar quais espécies marinhas que deram-lhe origem.
A maioria também desconhece o fato de que o gadus morhua, o melanogrammus, o micromesistius e o pollachius, espécies identificadas como “bacalhau” estão na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN). Ou seja, consumir bacalhau é também uma forma de aproximar essas espécies da extinção.
Isso não é fato recente. Segundo a revista científica The Canadian Journal of Fisheries and Aquatic Sciences, as populações de bacalhau começaram a entrar em colapso na década de 1990. Outro ponto crítico é que há muito tempo o bacalhau é capturado e condicionado a viver em cativeiro por até dois anos, ou seja, distante do seu habitat, simplesmente engordando até o momento do abate.
No artigo “Fish Intelligence, Sentience and Ethics”, publicado na revista Animal Cognition, o professor Cullum Brown, do Departamento de Ciências Biológicas da Macquarie University, em Sidney, na Austrália, escreveu que peixes como o bacalhau têm suas próprias tradições, inteligência sofisticada e capacidade de cooperação e reconciliação, além de facilidade em reconhecer uns aos outros.
“O nível de complexidade mental deles está no mesmo nível de outros vertebrados, e há evidências de que eles podem sentir dor de maneira semelhante aos seres humanos”, registrou. Será que não deveríamos incluí-lo no nosso círculo moral? Ou seja, não faltam motivos para reconhecer que o bacalhau, assim como outros peixes, também deveria ter direito à vida e não merece ser reduzido a alimento.
Sobre o sofrimento de animais selvagens em armadilhas
O tratamento que dispensamos aos não humanos
Para que as pessoas possam se alimentar de uma “carne de qualidade”, os animais, por padrão, são deixados em jejum prolongado. Isto, claro, para que suas reações fisiológicas associadas à última refeição não comprometam a qualidade da carne. Como isso pode parecer justo? Aceitável? Você já considerou o fato de que até mesmo serial killers, ou seja, assassinos que não raramente são considerados os piores seres humanos, recebem melhor tratamento?
Um exemplo? Sujeitos que estupraram e mataram dezenas de pessoas e que são condenados à morte nos Estados Unidos costumam ter o direito de escolher uma última refeição com tudo que lhes agrada. Já os animais não humanos, relegamos à fome antes do golpe mortal. Sendo assim, como alguém pode dizer que reprovar o consumo de animais e lutar pelo direito à vida não humana não é importante? Seres não humanos estão na pior escala de tratamento da história da humanidade. Muito abaixo daqueles que são considerados alguns dos piores criminosos da nossa história contemporânea.
Por que animais criados para consumo chegam a praticar canibalismo
Você já pensou em quais circunstâncias um animal domesticado e criado pelo ser humano com finalidade de consumo pratica canibalismo?
Quando ele passa por um processo visceral de despersonalização, de completa perda de identidade e individualidade. Ele se torna algo desconhecido para os outros e para ele mesmo. E como isso acontece? Como consequência de níveis constantes e excruciantes de privação, ansiedade e estresse, entre outros fatores que podem envolver ou não agressão física.
Animais não humanos, diferentemente de nós, não verbalizam o que sentem e por isso podem sofrer mais perante a incomunicabilidade no contato com seres humanos. Afinal, o seu desespero e ânsia pela vida podem ser facilmente desconsiderados levando em conta as diferenças no código de comunicação. E, evidentemente, podem ser interpretados ou distorcidos à revelia.
Essa incomunicabilidade com o ser humano, logo animal de outra espécie, amplifica o desespero e o sofrimento no esteio de uma vida não natural que tem como consequência ordinária a figuração da violência em suas mais diferentes formas. Afinal, a violência contra um animal está muito além de espancá-lo ou de matá-lo.
A violência pode ser manifestada a partir do simples e iterado ato de privá-lo de sua natureza, do trivial e pernicioso ato de não permitir que ele seja ele mesmo; de não permitir que ele crie vínculos sociais à sua maneira, nem mesmo desenvolva uma rotina condizente com seus anseios inerentes ou atávicos.
A natureza de um animal criado para consumo, logo objetificado, é comumente suplantada para dar lugar a uma natureza de viés mecanicista, em que ao animal não é permitido nenhum direito de escolha no decorrer de sua vida, nem mesmo o direito de escolher com quem se relacionar, como se alimentar. Enfim, nenhum direito em relação a nada.
Assim, seus hábitos são precocemente suprimidos e sua natureza inerente gradualmente obliterada. Dependendo do nível de obliteração, ele pode praticar ou não o canibalismo, que neste caso talvez seja um dos símbolos maiores do aviltamento e da degradação não humana em uma sociedade imersa na desconsideração e na negação de direitos não humanos.
Richard D. Ryder: “Todos nós conhecemos pessoas que podem desistir da carne com facilidade”
“Há também a luxúria [do consumo] de carne que é muito forte, digamos que atinge 30% da população humana”
Richard D. Ryder é um psicólogo, defensor dos direitos animais e escritor britânico que em 1970 cunhou o termo “especismo”, uma forma de discriminação que se baseia na ideia de que pelo fato do ser humano considerar outros seres inferiores, ele ignora seus interesses em não sofrer, inclusive negando-lhes o direito à vida. Ao longo de mais de 40 anos, Ryder escreveu importantes livros como “Victims of Science”, de 1975; “Animal Revolution: Changing Attitudes Towards Speciesism”, de 2000; “A Modern Morality”, de 2001; “Putting Back Into Politics”, de 2006; e “Speciesism, Painism and Hapiness”, de 2011.
Em 2010, Richard D. Ryder publicou na Critical Society, Issue 2, uma versão comentada e atualizada do seu folheto “Speciesism”, distribuído em Oxford em 1970 como uma reação contrária às experiências com animais. Logo o termo especismo passou a ser estendido a todas as formas de exploração contra animais não humanos, incluindo, claro, criaturas reduzidas a produtos e alimentos.
Na publicação da Critical Society, Ryder afirma que as revoluções de 1960 contra o racismo, sexismo e classismo ignoraram completamente os animais. Todos pareciam estar preocupados em reduzir somente o preconceito contra seres humanos. “Eles não tinham ouvido falar de Darwin? Eu odiava o racismo, sexismo e classismo também, mas por que parar nisso?”, declarou e acrescentou que como cientista ele já sabia que outras espécies de animais também sentem medo, dor e aflição, assim como nós.
A princípio, o panfleto “Speciesism”, que Ryder distribuiu em Oxford, não teve nenhum efeito. Então ele mudou a sua tática. Reimprimiu o texto com uma ilustração de um chimpanzé usado em experiências e infectado com sífilis. “Pedi a um amigo, David Wood, que incluísse seu nome para que o folheto tivesse um endereço universitário e o enviei às universidades. Desta vez tive algumas respostas. Um dos destinatários era um jovem filósofo australiano chamado Peter Singer. Em poucos meses, ele entrou em contato comigo. Muita coisa aconteceu desde então”, revelou.
No panfleto, o psicólogo afirma que desde Darwin os cientistas têm concordado que não há uma diferença essencialmente “mágica” entre seres humanos e outros animais, falando biologicamente. “Por que então moralmente fazemos uma distinção quase total? Se todos os organismos estão em um contínuo físico, então eles também devem estar no mesmo contínuo moral”, defendeu.
No panfleto, Richard D. Ryder faz uma observação bem crítica em relação ao especismo ao frisar que sob condições especiais de laboratório talvez seja possível acasalar um gorila com um professor de biologia. “Será que a prole peluda será mantida em uma gaiola ou em um berço? […] É costume descrever o homem de Neandertal como uma espécie diferente de nós, uma especialmente equipada para sobreviver à Era do Gelo. No entanto, a maioria dos arqueólogos agora acredita que essa criatura não humana praticava o enterro ritual e possuía um cérebro maior que o nosso. Suponha que o elusivo e abominável Homem das Neves, quando apanhado, acabe por ser o último sobrevivente desta espécie de Neandertal, daríamos a ele um assento na ONU ou implantaremos elétrodos em seu cérebro super humano?” As questões levantadas lembram os conflitos e a “evolução” do símio Peter apresentada por Franz Kafka no conto “Ein Bericht für eine Akademie” ou “Um Relatório para a Academia”, publicado em 1917.
Exemplos hipotéticos como os citados anteriormente por Ryder podem chamar a atenção para a falta de lógica da nossa posição moral em relação à exploração animal. Independente do direito à vida, ele pondera que um critério moral claro é o sofrimento, o sofrimento ocasionado pelo confinamento, medo, tédio e dor física, entre outros exemplos.
Se assumirmos que o sofrimento é uma função do sistema nervoso, então é ilógico argumentar que outros animais não sofrem de maneira semelhante a nós. Na realidade, é precisamente porque alguns outros animais têm sistemas nervosos tão parecidos aos nossos que eles são extensivamente estudados. Em relação aos argumentos a favor de experiências com animais, Ryder aponta inúmeras inconsistências. Há cientistas que dizem que o avanço do conhecimento justifica todos os males. Será que realmente justifica?
Suponhamos que em um determinado experimento as chances de sofrimento de um animal são mínimas, e as probabilidades dessa experiência auxiliar a medicina aplicada é excelente, ainda assim isso não seria especismo? “E como tal é um argumento emocional egoísta, não fundamentado. Se acreditamos que é errado infligir dor a animais humanos inocentes, então a única lógica, falando filogeneticamente, é estender a nossa preocupação sobre direitos elementares aos animais não humanos”, escreveu Richard D. Ryder no panfleto publicado originalmente em 1970.
Além de lutar pela proibição de testes em animais, Ryder, que tem mestrado em psicologia experimental e doutorado em ciências políticas e sociais pela Universidade de Cambridge, se envolveu diretamente em campanhas contra a criação de animais para consumo, e campanhas de proteção aos elefantes, baleias e focas. Desde 1985, o psicólogo qualifica a sua posição moral como painism (painismo), que diz respeito ao reconhecimento de direitos para todas as criaturas que sentem dor, um assunto que é exaustivamente abordado no seu livro “Speciesism, Painism and Happiness”, de 2011.
Na perspectiva do psicólogo, o painismo é uma terceira via entre a posição utilitarista do filósofo australiano Peter Singer e a visão deontológica de direitos do filósofo estadunidense Tom Regan, já que combina a visão utilitarista de que o status moral vem da capacidade de sentir dor com a proibição sob a ótica de direitos de que é errado usar outros seres sencientes como meios para um fim, desconsiderando as implicações disso para vítima.
O painismo considera o utilitarismo falho porque nesse sistema ético a tortura ou estupro é “justificável quando os benefícios totais compensam as dores da vítima”, o que é um absurdo, segundo Ryder, se considerarmos que os limites da experiência são os limites do indivíduo. Ou seja, não é porque várias pessoas tiveram prazer em um ato que o sofrimento de uma vítima pode ser considerado secundário. Uma ação não deixa de ser errada ou imoral porque dezenas, centenas ou milhares foram beneficiados.
Embora o trabalho de Richard D. Ryder contra a objetificação animal tenha ganhado mais visibilidade nas últimas décadas, a sua luta começou há muito tempo. Em 1969, ele participou de um protesto contra a caça às lontras em Dorset, no sudoeste da Inglaterra. Foi nessa época que ele realmente se interessou pela questão dos direitos animais e enviou três cartas sobre o assunto para o jornal The Daily Telegraph. Em um dos textos, intitulado “Rights of Non Human Animals” ele usou como referência o seu próprio trabalho como pesquisador para condenar as pesquisas com animais.
A romancista Brigid Brophy, também defensora dos direitos animais, leu as cartas de Ryder e o apresentou a Rosalind Godlovitch, Stanley Godlovitch e John Harris, três estudantes de pós-graduação da Universidade de Oxford que estavam editando a obra “Animals, Men and morals: An Inquiry into the Maltreatment of Non-Humans”, uma coleção de ensaios sobre direitos animais lançada em 1971.
O grupo que mais tarde recebeu o nome de Oxford Group, e atraiu novos membros, sedimentou o caminho de Ryder como ativista pelos direitos animais. Eles não apenas produziam material, mas também realizavam encontros, reuniões, imprimiam e distribuíam folhetos em crítica à exploração animal. Logo a luta contra exploração de animais para consumo se tornou uma das prioridades, assim como à rejeição à experimentação animal.
Em 1973, Peter Singer escreveu uma resenha do livro “Animals, Men and morals” para o The New York Review of Books, enfatizando que o artigo “Experiment on Animals”, que integra a obra, e escrito por Richard D. Ryder, era um apelo à criação de um movimento de libertação animal. O trabalho influenciou Singer a escrever o livro “Animal Liberation”, de 1975. Na obra, Singer aborda o especismo no quinto capítulo; o que ajudou a popularizá-lo mundialmente, passando mais tarde a ser incluído inclusive nos mais importantes dicionários.
Em 1977, Richard D. Ryder assumiu a posição de chairman do conselho da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) e ajudou a coordenar a primeira conferência acadêmica de direitos animais realizada em agosto de 1977 em Cambridge. O resultado foi a criação de uma “Declaração contra o Especismo”, assinada por 150 pessoas. Com a ajuda de Ryder, o conselho, que se dedicava principalmente à proteção de animais de companhia, passou a dar grande importância às questões envolvendo fazendas industriais, experiências laboratoriais caça e esportes com animais.
Em 9 de março de 2011, a “AR Zone – A Record of Rational Discourse” publicou uma entrevista histórica e bastante esclarecedora com Ryder. O psicólogo relatou que uma tática usada por ele para divulgar o termo “especismo” foi mencioná-lo sempre que era convidado a dar alguma entrevista. “Naquele tempo, a mídia gostou porque era algo novo, mas o meio acadêmico demorou para reagir em relação a isso”, comentou.
Segundo Richard D. Ryder, o especismo ainda não chegou ao fim, embora as pessoas estejam se tornando mais conscientes, porque existe um consolidado discurso que atrela a existência dos animais à utilidade em benefício humano. “Há também a luxúria [do consumo] de carne que é muito forte, digamos que atinge 30% da população humana. Essas pessoas vão lutar com unhas e dentes para proteger o seu ‘direito’ de comer carne. Eles ficam muito irritados se forem desafiados. A carne é uma forma genuína de dependência? Ou é basicamente um impulso básico carnívoro que está geneticamente incorporado em alguns seres humanos, mas não em todos nós? Realmente não sei se essa pesquisa foi feita. Todos nós conhecemos pessoas que podem desistir da carne com facilidade, e sem sentir falta. Mas também há outros que determinam as políticas que parecem ‘precisar’ de carne tanto quanto sexo. Eles desejam isso! Esse problema requer pesquisa”, informou em entrevista à AR Zone.
Para Ryder, se quisermos realmente fazer a diferença na vida dos animais, não devemos ter medo de expressar nossas opiniões sobre isso. “Entre em contato com deputados, professores e editores, assim aumentando a importância moral dessa questão. Agora temos de tentar argumentar contra o preconceito do especismo no resto do mundo, e particularmente nos novos centros de poder econômico como Índia, Brasil e China”, escreveu na versão atualizada do panfleto “Speciesism”, publicado em 2010.
Saiba Mais
Richard D. Ryder se candidatou duas vezes ao parlamento inglês. Também é conhecido por suas incansáveis campanhas para convencer os partidos políticos a tratarem a proteção animal como uma questão política.
Referências
Ryder, Richard D. Speciesism (1970). Privately printed leaflet. Oxford (2010).
Ryder, Richard D. Speciesism, Painism and Happiness: A Morality for the 21st Century. Societas. Imprint Academics (2011).
The Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare. The Oxford Group. Páginas 261-262 (2009).
Ryder, Richard D. The Struggle Against Speciesism (1979).
Singer, Peter. Animal Liberation (1975). New York Review Books. Página 269.
http://www.62stockton.com/richard/index.html