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A barba e o menino Yusuf
“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”
Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.
Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.
Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.
Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.
Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.
“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”
— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.
E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.
Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.
Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.
— Claro, Seu Francisco – respondi.
Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.
Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.
O legado de Wiegando Reinke
Tradicional Banca do Wiegando foi fundada em Paranavaí em 1957
Fundada em 1957, na Rua Marechal Cândido Rondon, logo nos primeiros anos a Banca do Wiegando se consolidou como o mais tradicional ponto de encontro dos leitores de jornais e revistas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. No início a banca oferecia também o serviço de engraxataria, bastante atrativo em uma época que a cidade não tinha malha viária.
No final da década de 1950, Wiegando Reinke já desenvolvia com destreza o trabalho de disseminar a informação em Paranavaí. Gostava tanto do que fazia que dedicou quase 45 anos à banca, seguindo uma frequência litúrgica. O tempo permitiu que Wiegando fizesse muitos amigos e testemunhasse o surgimento e o desaparecimento de muitos veículos de comunicação.
Só se afastou do trabalho em 2002, por problemas de saúde, deixando a administração do negócio a cargo da esposa Zenaide Elias de Almeida. Mesmo assim, até 2007, a intensa nostalgia ainda o estimulava a comparecer na banca pelo menos uma vez por semana. Por tal esmero e amor à profissão, é difícil encontrar algum morador de Paranavaí que nunca tenha visto ou ouvido falar do Seu Wiegando, senhor esguio de fala plácida e trejeitos peculiares que fundou a mais icônica banca de jornais e revistas da cidade.
Início
“A banca ficava a 50 metros daqui. Era uma casinha de madeira”, contou Wiegando Reinke. À época, como Paranavaí não tinha asfalto, os homens passavam na banca para engraxar os sapatos aos sábados, antes de irem aos bailes. “No domingo era a mesma coisa, vinham aqui porque iam à missa ou passear com a namorada”, relembrou Wiegando sorrindo.
O serviço era oferecido das 8h às 23h e estimulava a venda de jornais e revistas. “Enquanto o engraxate trabalhava, o cliente precisava de algo para passar o tempo. Então era possível lucrar com as duas atividades”, afirmou. Após dois anos, a Banca do Wiegando conquistou bastante popularidade na região, atraindo toda semana clientes de Tamboara, Santa Isabel do Ivaí, Loanda, Paraíso do Norte e muitas outras cidades. Modesto, Reinke justificou que a freguesia era consequência de Paranavaí ser um polo regional.
Dificuldades
No início, a banca enfrentou dificuldades porque Paranavaí era uma cidade de poucos leitores. “Em torno de 20 pessoas passavam todos os dias aqui, mas poucos compravam. Além disso, se comercializava poucos jornais. Tínhamos apenas umas quatro ou cinco revistas diferentes. Hoje a diversidade é muito maior. Qualquer banca tem pelo menos 50 títulos de revistas”, comparou Wiegando. Outro problema era o analfabetismo local que correspondia a mais da metade da população.
Até a década de 1960, a maior parte dos fregueses da banca eram mecânicos, funcionários de lojas e empresários. “Já era um ponto tradicional para quem gostava de ler”, enfatizou o comerciante. Em 1980, a difusão da informação chegou a um novo patamar, aumentando o interesse por jornais e revistas. “A freguesia já não se restringia mais a quem ocupava um cargo considerado importante dentro da sociedade”, explicou Wiegando que lucrou muito com a venda de periódicos hoje extintos. “A revista que me proporcionou maior faturamento foi a ‘Ilusão’ do final da década de 1970”, revelou.
Jornais e revistas chegavam após quatro dias
Natural de Jaraguá do Sul, o catarinense Wiegando Reinke chegou ao Paraná em 1949. Antes de se mudar para Paranavaí em 1954, viveu em Londrina e em Alto Paraná. “Vim pra cá para trabalhar em uma livraria. Era um bom comércio, mas depois de três anos foi fechado”, relatou.
Desempregado, o ex-vendedor decidiu usar as economias para montar a Banca do Wiegando. O primeiro distribuidor de Reinke foi um colega que trazia jornais e revistas de Londrina. “Recebia diretamente aqui. Foi nesse período que o negócio deslanchou”, afirmou.
Algumas facilidades da época contribuíram para a evolução do negócio. Wiegando não precisava efetuar o pagamento antes de receber a mercadoria, ao contrário de hoje. Porém a maior dificuldade era a entrega das encomendas. “Quando chovia, levava até quatro dias para recebermos jornais e as revistas. Às vezes a situação era tão crítica que só avião conseguia chegar aqui, então tinha de ir buscar no aeroporto. Foi assim até 1959”, garantiu.
Muita gente tentou convencer Wiegando Reinke a mudar a banca de local para conquistar mais fregueses, só que ele insistiu em continuar no mesmo ponto, justificando que perto do estabelecimento havia o Cine Theatro Paramounth e alguns hotéis. “Sempre vinham comprar algo quando terminavam de assistir ao filme”, reiterou o pioneiro mantendo o olhar disperso.
Reinke destacou que jamais se arrependeu de manter a banca na Rua Marechal Cândido Rondon, inclusive fez questão de ressaltar o erro daqueles que o tentaram convencer do contrário. “Enquanto o movimento no comércio não passa das 18h, na minha banca já se estendia até as 19h30”, argumentou.
“Tudo que tenho foi graças à banca”
O período mais lucrativo da Banca do Wiegando foi de 1980 até 1990, quando a maior parte dos clientes tinha faixa etária entre 25 e 30 anos. “A boa freguesia me permitiu construir minha casa e o prédio da banca, além de me dar condições para comprar um carro novo. Tudo que tenho foi graças à banca. Além disso, fiz amizade com a cidade inteira. Conheço muita gente”, afirmou o comerciante, lembrando que a queda no número de fregueses só se acentuou a partir de 1997.
O fluxo de pessoas circulando diariamente pela banca ainda é grande, mas nem todos levam algum exemplar para casa. A Banca do Wiegando se mantém na ativa por causa dos fregueses mais tradicionais. Alguns buscam jornais e revistas na banca há mais de 50 anos. Na opinião de Reinke, a emergência de novas tecnologias é responsável pela redução do interesse pela leitura impressa.
Últimos anos
Desde 2002, quando Wiegando Reinke ficou impossibilitado de trabalhar em decorrência de problemas de saúde, Zenaide Elias de Almeida assumiu a responsabilidade de comandar a banca. “Dona Zenaide”, como é mais conhecida, começou a auxiliar o marido no final da década de 1980, assim que Wiegando teve o primeiro problema cardíaco. “Nossos filhos eram pequenos, então só a partir de 1988 pude ajudar ele”, assinalou.
Zenaide trabalha em parceria com Neusa Gonçalves, funcionária da Banca do Wiegando desde julho de 1991. “Já faz tempo que nós duas cuidamos de tudo aqui”, conta Neusa. O horário de funcionamento da banca é das 7h15 às 19h30. “Só há horário diferenciado aos sábados, domingos e feriados, quando abrimos às 7h15 e fechamos às 16h”, frisou Zenaide.
Para quem trabalha no comércio de jornais e revistas não há diferença entre a segunda-feira e o domingo, por exemplo. “Esse é o ponto negativo da profissão. Não existe feriado para quem é do ramo”, destacou Wiegando, acrescentando que apesar de tudo o prazer do trabalho amortecia as dificuldades.
Curiosidade
Wiegando Reinke nasceu em 7 de agosto de 1926 e chegou a Paranavaí em 9 de janeiro de 1954.
Saiba Mais
Em 2007, tive a oportunidade de conversar com o pioneiro Wiegando Reinke, que em decorrência de graves problemas de saúde faleceu em 20 de junho de 2008. O longo e prazeroso diálogo foi lapidado e o resultado é a reportagem acima que oferece uma díspar perspectiva de quem amadureceu na cidade que adotou como lar. Em síntese, uma homenagem ao primeiro homem que trouxe a Paranavaí a informação por meio da imprensa escrita, de âmbito local, regional, estadual, nacional e internacional.
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Um homem marcado pela tragédia
Quando a riqueza material ofusca a importância da vida
Na infância, meu avô me contou uma história que jamais esqueci. É sobre um homem que teve a vida transformada por uma sucessão de tragédias em 1958 e 1959. Até o ano passado, sempre me questionei se o que ouvi quando criança era verdade ou não. A confirmação chegou até mim há alguns meses, quando encontrei uma sobrinha do protagonista desta sinistra e pitoresca história.
Hésio Oscar Azeredo era um investidor de grandes posses que vivia com a família em uma fazenda a pouco mais de 20 quilômetros da área urbana de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Passava o tempo todo ocupado, tentando encontrar novas formas de multiplicar os lucros. Havia época em que dormia menos de três horas porque achava que repousar mais o impediria de alcançar seus objetivos. “Ele tinha uma boa família e era uma boa pessoa, mas colocava o dinheiro e a ambição acima de tudo”, diz a sobrinha Maria Aparecida Lorelli.
Hésio Oscar era filho único de um falecido casal de multimilionários que até as primeiras décadas do século XX administrava investimentos de capital estrangeiro no Brasil. Ainda jovem, já possuía propriedades rurais em sete estados, além de fazendas no Paraguai e Argentina. Algumas eram maiores do que muitas cidades do Brasil. Também investia em beneficiamento de grãos e cereais, telefonia e transportes fluviais. Era muito influente, tanto que na sua biblioteca particular, um ambiente inspirado no gabinete do presidente dos Estados Unidos – o Salão Oval, deixava em destaque uma grande foto em que aparecia ladeado pelo ex-presidente Dwight Eisenhower.
“A moldura do quadro era de ouro maciço. Poucas pessoas podiam entrar lá. Somente alguns familiares conheciam o lugar. Meu tio ainda pedia que por discrição ninguém falasse sobre o que viu lá dentro”, declara Maria que na infância e adolescência teve três oportunidades de visitar o local. Apesar do apego aos bens materiais, o investidor era considerado pelos empregados como um patrão rigoroso, mas justo. Fazia questão de acompanhar de perto todos os seus negócios. Ainda assim, muitos boatos se espalhavam sobre o Tymbara, apelido que um místico colono de origem kaingang deu a Hésio Azeredo. “Era o único índio da nossa turma. Ele inventou esse apelido e não explicou o significado. Só que ninguém nunca teve coragem de chamar o ‘Dr. Hésio’ de Tymbara, então isso ficava mais entre a gente”, comenta o ex-colono aposentado Inácio Durval Reis que naquele tempo era mais conhecido como Mizim.
Em 1957, já circulava entre os colonos um boato de que Azeredo se referia ao dinheiro como se fosse um tipo de deidade. “Falavam que ele tinha um altar cheio de dinheiro e que não saía de lá sem se ajoelhar e rezar pra ganhar mais um punhado a cada dia”, conta Mizim, acrescentando que talvez tenha sido apenas conversa fiada de gente à toa.
Há quem diga que uma cozinheira da fazenda jurou ter visto paredes forradas com notas de cem dólares em alguns dos cômodos da casa principal. “Todo mundo ouvia falar. Só que não conheço ninguém que testemunhou isso. Sei que tinha cômodos da casa que o ‘Dr. Hésio’ não permitia a entrada de ninguém, nem das empregadas”, enfatiza Reis. Embora as lembranças não estejam mais tão frescas na memória, Maria se recorda com carinho da tia Clara e dos primos Tadeu e Joaquim. “Eram bem espertos e adoravam correr pelo campo. Na fazenda, perto de uma bica de mina, tinha um morrinho coberto por uma grama bem verdinha onde eles adoravam escorregar e rolar. Às vezes eu e uma babá cuidávamos dos dois”, comenta.
Tadeu, de cabelos negros que chegavam a azular com a incidência do sol vespertino, era bem comunicativo e agitado. Já Joaquim, de cabelos loiros, era calmo e parcimonioso. Os dois sofriam de heterocromia. “Tadeu tinha um olho preto e um azul. Joaquim possuía um olho preto e um verde. Por causa disso, eu ficava sabendo de muitas bobagens ditas pelos mais ignorantes”, lembra Maria Lorelli. Hésio Azeredo pouco participava do cotidiano familiar. Assistia ao desenvolvimento dos filhos como um espectador desatento. Tinha o hábito de viajar antes do amanhecer, retornando apenas semanas mais tarde e normalmente de madrugada. A pressa era tanta que nem se despedia dos filhos. Se o lucro fosse muito alto e exigisse mais tempo fora de casa, não se importava em se ausentar por alguns meses. Uma vantagem é que o empresário sempre teve pessoas de sua confiança para garantir o bom andamento dos seus muitos empreendimentos.
Criado em uma família que há várias gerações se dedicava a multiplicar riquezas, Azeredo foi o primeiro a romper o ciclo, e não por vontade própria, mas por uma sucessão de acontecimentos que transformaram sua vida. Em dezembro de 1958, após uma séria discussão com o marido, Clara chamou os dois filhos e disse a eles que iriam passar alguns dias na casa da avó em Curitiba. “Ajudei eles a arrumarem as malas e os acompanhei até o aeroporto da família, onde um avião e um piloto estavam sempre à disposição”, relata Maria. No último momento, apesar da resistência em deixá-los partir, Hésio Oscar achou que contrariar a mulher poderia piorar a situação. No início da noite, se arrependeu amargamente ao receber a notícia de que o piloto Julião Martins Bastina sofreu um mal súbito e perdeu o controle da aeronave. O avião que caiu na região dos campos gerais foi encontrado por um caminhoneiro que viu uma criança ensanguentada acenando e gritando por socorro.
“A tia Clara, o Joaquim e o piloto não resistiram aos ferimentos. Acho que morreram na hora do impacto. O Tadeu sobreviveu por um milagre. Ele teve só escoriações e não precisou ficar internado”, destaca Maria Aparecida. A maior parte do sangue sobre o corpo do garoto era do irmão e da mãe que o envolveu nos braços instantes antes da queda. Pelo menos por dois meses após o enterro, a tragédia fez de Azeredo um homem incomunicável, agressivo e ostracista. Não tinha vontade de ver ninguém, nem mesmo o filho sobrevivente. Depois retornou à rotina sem avisar ninguém. E não aceitava que falassem das mortes da mulher e do filho, negando a si mesmo a partida dos dois, mesmo tendo participado da cerimônia fúnebre.
Sem saber como lidar com a vida pessoal, até mesmo esquecendo que tinha família, se afundou ainda mais em trabalho. Esqueceu muitas vezes que Tadeu continuava morando na mesma casa. “O pai dele tinha atitudes de alguém que perdeu tudo. Em vez de se basear naquele exemplo para mudar de vida, fez exatamente o contrário. Fiquei muito nervosa com a situação”, desabafa a sobrinha. Isolado por Hésio Oscar, Tadeu começou a agir como se o irmão Joaquim continuasse com ele. Maria Lorelli foi a primeira a perceber que o primo divagava e tinha alucinações. Parecia falar com outras pessoas, mesmo quando estava sozinho. Quem o via de longe, pensava que havia alguém acompanhando o garoto.
“Ele corria lá pelos lados das plantações. Se embrenhava no meio do cafezal e brincava de se esconder. Lembro que perguntei se tinha mais alguém com ele. Me respondeu que era o irmão. Achei que fosse uma traquinagem inocente, nem comentei com ninguém”, revela Mizim. Episódio semelhante se repetiu uma semana mais tarde, quando Tadeu estava sozinho no quarto, escondido e cochichando dentro do guarda-roupa. Com a insistência dos mais próximos, Azeredo concordou em procurar um tratamento psiquiátrico para o filho. Tadeu foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático. Mesmo com acompanhamento médico, o estado do garoto só piorou. Embora se preocupasse com a situação, Hésio preferia deixá-lo aos cuidados de familiares e empregados.
Um dia, quando se machucou ao saltar sobre uma cerca, a perna de Tadeu começou a sangrar. Ele se aproximou do pai e disse: “Por que o senhor não gosta de mim? É por que o que sai do meu corpo é um líquido vermelho sem valor? Mas e se fosse amarelo e brilhante como ouro?” Azeredo não respondeu. Surpreso, se calou e abraçou o filho, clamando por perdão. A cena foi testemunhada ao longe pela prima Maria. Na semana seguinte, três dias antes de completar 12 anos, Tadeu foi encontrado deitado na própria cama, abraçado a uma foto em que ele aparecia brincando com a mãe e o irmão. Havia um pequeno frasco de estricnina ao seu lado. Tadeu estava morto e com os olhos fechados, como se estivesse se preparando para dormir. Quando viu o filho de pijama e sem vida, Hésio saltou pela janela do quarto que ficava no andar superior. O impacto provocou apenas um corte na cabeça, escoriações e um desmaio que durou cerca de duas horas. Ao acordar, teve uma cefaleia intensa que desapareceu só no fim da noite.
Maria Lorelli tentou conversar com o tio sobre a necessidade de velar e enterrar Tadeu, mas Hésio não quis dialogar. Deixou claro que não precisava da ajuda de ninguém, assumindo o compromisso de fazer tudo sozinho. Só exigiu que dois empregados levassem um enorme refrigerador horizontal, que estava na maior despensa da casa, até um quarto ao lado do seu. Mandou que todos saíssem, tomou Tadeu nos braços e o carregou para a sua suíte. Chaveou a porta do quarto e disse aos familiares que retornaria em algumas horas. Antes que alguém fizesse alguma pergunta, entrou em um jipe Land Rover e desapareceu na escuridão, retornando antes do amanhecer, acompanhado de um húngaro misterioso e com um forte sotaque a quem chamava de Gazda. Transferiram Tadeu para o quarto ao lado da suíte e não permitiu que ninguém entrasse no local.
No dia seguinte pela manhã, Azeredo estava mais calmo e convidou parentes e amigos mais próximos para participarem de enterro do filho no cemitério particular da família. Estranharam a atitude porque Hésio nem mesmo havia planejado o velório. Por comiseração e até por medo de uma má interpretação, ninguém cogitou questioná-lo por não deixar ninguém ver Tadeu antes de fechar o caixão. Algumas das pessoas que participaram da cerimônia, segundo Maria Lorelli, comentaram que Azeredo parecia mais lúcido e provavelmente, após o rompante de desespero, logo entraria na fase de aceitação. Quando todos os parentes foram embora, Azeredo dispensou parte dos empregados, justificando que como estava sozinho não precisava mais de tantas pessoas trabalhando na casa principal. Maria insistiu em continuar com o tio por mais alguns dias, mesmo ciente de que talvez não fosse mais bem-vinda. “Desconfiei de algo estranho acontecendo porque o tal húngaro que ninguém conhecia ficou na casa quase uma semana. Além disso, ele não parecia o tipo de pessoa com quem o tio costumava negociar”, argumenta.
Algumas horas antes de Gazda partir, Maria o ouviu cochichando algumas palavras ininteligíveis a Hésio. Sem motivo para prolongar a estadia, a jovem partiu para Curitiba, onde ingressou no curso de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nas férias, Maria sempre passava alguns dias na fazenda do tio para saber como ele estava e também para reviver lembranças do tempo em que ajudava a tia Clara e os primos Tadeu e Joaquim. Azeredo estava mais comunicativo e não viajava com muita frequência. Na realidade, raramente deixava a fazenda. A propriedade do empresário se tornou o seu mundo, tanto que as negociações diminuíram consideravelmente. Em 1962, apenas nove dos empregados continuaram trabalhando na propriedade. Era o suficiente para manter a operacionalização das atividades locais.
No final daquele ano, por intermédio dos pais, Maria ficou sabendo que Hésio, sem dar explicações, desfez de grande parte dos imóveis e empresas que possuía. Mas a surpresa maior veio em janeiro de 1963, quando Maria encontrou a fazenda abandonada. As plantações estavam morrendo e não havia ninguém no campo. Na casa principal, a sobrinha sentiu um forte mau cheiro vindo da cozinha, onde muitos alimentos estragaram há bastante tempo. Maria também se deparou com móveis cobertos por lençóis brancos. Nada disso pareceu tão estranho quanto uma bem disposta e linear trilha de notas de cruzeiro que começava no cemitério particular da família e terminava no quarto de Hésio Azeredo.
Maria Lorelli seguiu as notas e quando abriu a porta do quarto viu o tio deitado na cama abraçado com o filho Tadeu. Mesmo sem vida, o garoto estava com a aparência do dia em que foi encontrado morto. “Como participei do enterro dele três anos antes, pensei que eu estivesse louca. Até a expressão no rosto de Tadeu ainda era a mesma”, comenta. Após o susto, Maria viu que Hésio também estava morto. Ao lado do corpo, somente um frasco quase vazio de estricnina. Preocupada com a repercussão, a família de Maria evitou comentários e fez o possível para impedir que a história fosse divulgada. Até mesmo no registro de óbito consta que a causa da morte foi um ataque cardíaco. O caixão onde supostamente colocaram o corpo de Tadeu em 1959 sempre esteve vazio. O substituíram por outro e realizaram uma nova cerimônia fúnebre para pai e filho. Desta vez, com a participação de cinco pessoas. Antes de morrer, Hésio Azeredo deixou um testamento destinando 80% da fortuna para orfanatos, asilos e entidades sociais que cuidavam de crianças de rua.
O restante foi dividido entre sete familiares e dois irmãos de criação. Em um bilhete queimado no mesmo dia em que foi lido, Hésio explicou brevemente que o húngaro Gazda era um artista da matéria humana que lhe proporcionou, mesmo que por pouco tempo e com certo requinte ilusionista, se comunicar e se despedir do filho de uma maneira que ninguém jamais entenderia. Anos depois, Maria Lorelli ouviu novamente falar de Gazda em São Paulo. Então soube que o homem misterioso foi um dos mais revolucionários taxidermistas do Leste Europeu, onde trabalhou para czares, aristocratas e líderes socialistas. Se mudou para o Brasil nos anos 1940, fugindo da perseguição nazista aos ciganos.
Curiosidade
Tymbara é uma palavra de origem tupi-guarani que significa “aquele que enterra”.
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Um índio por um velho chapéu de aba larga
Garoto caiuá foi comprado para ajudar a escrever um dicionário de guarani
Em 1951, um frade capuchinho foi enviado a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a missão de evangelizar os poucos índios que ainda viviam nas matas virgens da colônia. “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios, os aborígenes do lugar”, escreveu o frei alemão Ulrico Goevert em publicação da revista alemã Karmel-Stimmen, sobre as experiências em Paranavaí.
Embora seja verdade, o missionário capuchinho conseguiu encontrar nativos de etnia caiuá vivendo na região. Como era impossível estabelecer a comunicação falada, o homem apelou para gestos. No começo foi difícil. Foram necessários dias para conquistar a liberdade de se aproximar dos índios.
Mesmo sem entender quase nada sobre os caiuás do Noroeste Paranaense, o frade ficou intrigado com os costumes e a língua guarani. Então um dia foi até um dos chefes da tribo, mostrou o próprio chapéu de aba larga e apontou para um jovem índio, sugerindo uma troca. Depois de avaliar bem o item, o líder caiuá acabou aceitando. “Ele literalmente o comprou com um velho chapéu”, registrou Goevert no relato escrito em um diário em 1957 e publicado no ano seguinte na Alemanha.
O garoto foi trazido até a área urbana de Paranavaí, onde serviu de referência para o frade escrever um dicionário de guarani. Todas as perguntas eram feitas por meio de sinais. Um trabalho moroso e não muito produtivo. Mas, obstinado, o capuchinho só retornou à aldeia depois de um bom tempo estudando a língua. Ainda hoje, não há informações sobre o destino do jovem subalterno trocado por um chapéu surrado. “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado. Não tinha pra onde voltar”, comentou o pioneiro José Francisco de Oliveira.
Quem também viveu por muitos anos em Paranavaí e teve bastante contato com os caiuás, descendentes dos índios que sobreviveram às investidas dos bandeirantes paulistas e portugueses entre as décadas de 1620 e 1640, foi o frei alemão Alberto Foerst que tinha grande experiência como missionário.
No artigo “Noch Ein Missionsberich”, da edição número 10 da revista Karmel-Stimmen, de outubro de 1954, Foerst diz que para se aproximar dos caiuás, causando boa impressão, era preciso primeiro presenteá-los. “Dessa forma, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo, tornando nosso trabalho mais fácil”, revelou. À época, um dos presentes preferidos era a caneta-tinteiro, pois a consideravam um lindo ornamento para colares.
Ainda assim, segundo Oliveira, os nativos costumavam evitar ao máximo o contato com outros povos. “Eles eram até pacíficos e bem tolerantes. Quando viram o chamado progresso chegando, em vez de nos atacar, eles partiram para uma grande área de mata fechada lá pelas bandas do Rio Ivaí, pra lá de Paraíso do Norte”, conta o pioneiro.
No pequeno livro “História e Memória de Paranavaí”, um lançamento póstumo de 1992, Ulrico Goevert lembrou dos episódios em que, não se sabe se por represália ou escassez de alimentos, os caiuás invadiram muitas roças da região para furtar milho e mandioca. “Era muito diferente daquela enaltecida raça com a qual o Karl May [um dos mais populares escritores alemães – criador de personagens heroicos como Mão de Ferro e Mão de Fogo] nos entusiasmou na adolescência”, queixou-se.
Em uma análise hermética e ocidentalizada, Goevert definiu os caiuás como figuras primitivas alheias à própria cultura. Ficou chocado nas diversas vezes em que os testemunhou comendo lesmas. “Não colocam mais em prática os conceitos morais e praticam a justiça por conta própria. E que mania eles têm de dormir a céu aberto. Não é de se admirar que tenham saúde tão precária”, reclamou em referência aos muitos que adoeceram e até morreram nos anos 1950 em decorrência da tuberculose. No entanto, é válido ressaltar que a doença chegou à região com migrantes e imigrantes.
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Pedro López, o serial killer que matou mais de 300 garotas
Psicopata atuou principalmente no Equador, Peru e Colômbia
Conhecido como o “Monstro dos Andes”, o colombiano Pedro Alonso López, é considerado o serial killer que praticou o maior número de homicídios da História. Ao psicopata, é atribuído o estupro e assassinato de mais de 300 garotas do Equador, Peru e Colômbia.
Filho de uma prostituta, López vivia com doze irmãos em Santa Isabel, no departamento colombiano de Tolima, até que em 1957, aos oito anos, foi expulso de casa pela mãe que o entregou a um homem que o sodomizava diariamente. Aos 12 anos, uma família estadunidense o levou e o matriculou em uma escola para órfãos. Novamente, Pedro Alonso foi vítima de abuso sexual. Dessa vez, por parte de um professor.
Aos 18, após ser preso por pequenos delitos, foi estuprado por dois homens que mais tarde assassinou na prisão.Quando foi libertado, iniciou sua jornada de crimes no Peru. Em 1978, López já havia matado pelo menos cem garotas, até que foi capturado por uma tribo nativa. Quando se preparavam para executá-lo, um missionário estadunidense interveio e os convenceu a entregá-lo à Polícia Estadual.
Por falta de provas dos crimes cometidos por López tiveram de liberá-lo. Entre Peru, Colômbia e Equador, Pedro Alonso manteve uma média de três mortes por semana. Em 1980, López foi detido em uma tentativa de sequestro malsucedida. À época, confessou a autoria de mais de 300 homicídios. Só começaram a crer no colombiano quando encontraram no Equador a primeira vala de corpos com 53 vítimas entre nove e doze anos. Anos depois, em 1994, o Governo Federal do Equador o libertou e o deportou para a Colômbia, onde viveu na ala psiquiátrica de um hospital de Bogotá.
Em 1998, foi declarado são e ganhou a liberdade após pagar uma fiança de 50 dólares. Em uma entrevista à BBC de Londres, Pedro Alonso López definiu a si mesmo como “O Homem do Século”. Em 2002, a Interpol encontrou uma nova vítima do colombiano que até hoje continua desaparecido.
Algumas frases do Serial Killer Pedro López:
“Eu gosto das meninas do Equador. Elas são mais gentis e inocentes. Elas não são tão desconfiadas com estranhos como as meninas da Colômbia”.
“Eu perdi minha inocência aos oito anos, então eu decidi que faria o mesmo com o maior número de meninas que eu pudesse seduzir”.
“Eu sou o homem do século. Ninguém nunca vai me esquecer”.
Referências
https://web.archive.org/web/20071021224003/http://users.erols.com/mwhite28/lopez_ap.htm
http://www.biography.com/people/pedro-alonso-lopez-12103226
https://web.archive.org/web/20150216093053/http://www.guinnessworldrecords.com/world-records/most-prolific-serial-killer
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O declínio econômico de Paranavaí
Quando o desenvolvimento foi comprometido pela monocultura e ausência de políticas públicas
A história mostra que Paranavaí, na região Noroeste, poderia ser um dos municípios mais importantes do Paraná, no entanto, em função da falta de diversificação econômica e ausência de políticas públicas para o setor agrícola, a cidade entrou em declínio a partir de 1970.
Paranavaí teve um progresso exemplar até o início da década de 1960. À época, a cidade era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.
As consequências humanas
Contudo, como tinha um perfil essencialmente agrícola, baseado na monocultura cafeeira, a ex-Fazenda Brasileira experimentou um declínio sem precedentes. As primeiras geadas que castigaram as lavouras da região de Paranavaí e atingiram profundamente a economia local foram registradas em 1962 e 1964, de acordo com informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil. “Na segunda geada, o prejuízo foi tão grande que tive que vender meu sítio. A partir do acontecido, nunca mais quis mexer com a cafeicultura”, revelou o pioneiro paranaense Orlando Otávio Bernal.
Para piorar, a intempérie voltou a devastar as propriedades do Noroeste Paranaense em 1969, destruindo pelo menos 80% da produção cafeeira regional. “Quando meu pai viu aquela camadinha fina de gelo sobre o cafezal, ele entrou em pânico. Nunca o tinha visto chorar daquele jeito, jogado sobre um pé de café. Perdemos tudo, não deu pra recuperar nada”, confidenciou o empresário Fabrício Gomes Soares. Dias depois, a mãe de Soares flagrou o pai se preparando para ingerir um rodenticida conhecido como chumbinho. Felizmente, conseguiu evitar o pior.
A mesma sorte não teve o pai da aposentada Catalina Prado Ruiz que tinha uma propriedade rural às margens da Rodovia BR-376. “Ele contraiu muitas dívidas com as geadas anteriores, então quando veio a mais forte, em 1969, não aguentou”, enfatizou Catalina com a voz calma e pausada, sem velar os olhos marejados. O homem foi encontrado morto, após um ataque cardíaco fulminante, agarrado à base de um cafeeiro.
O agricultor capixaba Orlando Brás de Mello, radicado em Paranavaí desde 1957, preferiu não citar nomes, mas contou que teve vários conhecidos que não superaram os prejuízos, se endividaram e cometeram suicídio. “Meu cunhado quase enlouqueceu. Ele pôs fogo no cafezal e num barracão enorme onde costumava estocar o café”, complementou.
As consequências econômicas
Como consequência econômica das geadas, o preço do café subiu, surgindo um ciclo de especulações que pareceu infindável. “A situação era preocupante demais, muito triste. Quase ninguém tinha ânimo pra continuar porque aqui a gente já tinha outro problema grave que era o solo empobrecido”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, se referindo também ao surgimento das erosões hídricas que se intensificaram a partir dos anos 1960.
Com a queda da cafeicultura, que preservava um caráter familiar na região Noroeste do Paraná, houve grande abertura para a formação dos latifúndios, o que intensificou mais ainda as desigualdades sociais. Logo as lavouras começaram a ser substituídas por pastagens e, como a pecuária absorveu pouca mão de obra, milhares de trabalhadores rurais ficaram desempregados. “Que eu me lembre, quando deixei o trabalho na lavoura e não consegui nada na área urbana de Paranavaí, pelo menos da fazenda onde eu trabalhava e de outra propriedade vizinha mais de 200 pessoas foram embora pra Maringá”, disse o taxista Jurandir Romano de Paula.
No Noroeste do Paraná, entre as cidades mais prejudicadas pela intempérie estavam Paranavaí, Tamboara, Paraíso do Norte, Nova Aliança do Ivaí e Mirador que em 1960 representavam 1/3 de toda a produção agrícola regional, conforme registros do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC). Em 1970, a região de Paranavaí somou 336 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dez anos depois, em 1980, perdeu quase 50 mil habitantes, somando 288 mil moradores.
Foi um retrocesso para a região que em 1960 contou com mais de 307 mil habitantes. “Em 1970, tive que fechar minha mercearia porque fazia mais de seis meses que estava trabalhando no vermelho. Teve mês que não vendi nada porque ninguém tinha dinheiro. Nem conseguia mais honrar os compromissos com fornecedor”, destacou o ex-comerciante Geraldo Marques.
Em 1980, a produção cafeeira do Noroeste Paranaense foi quase reduzida pela metade, caindo de 30 milhões de cafeeiros para 16 milhões. O solo frágil e comprometido pela falta de técnicas adequadas de plantio, manejo e cultivo fez com que o milheiro de pés de café rendesse apenas 27 sacas, quantia muito inferior as 150 da década de 1960, revelou estatísticas do extinto IBC.
Do melhor ao pior índice de desenvolvimento
Orlando de Mello frisou que a lavoura era o “carro-chefe” da economia regional de Paranavaí, por isso, o impacto foi tão grande. “Eu mesmo não tinha nenhum conhecido, amigo ou parente que trabalhasse com outra cultura que não fosse o café”, assinalou Jurandir de Paula. A falta de diversificação econômica deu ao Noroeste Paranaense reflexos muito negativos. Nos anos 1970, a região encabeçada por Paranavaí teve os piores índices de desenvolvimento do Paraná.
O que ilustra bem esse fato é uma pesquisa do IBGE que foi lançada em 1980 sobre industrialização e geração de empregos. A microrregião de Paranavaí ocupou a última posição, com uma ínfima contribuição estadual de 0,5% enquanto as regiões de Ponta Grossa e Londrina despontaram com 10,4% e 9,5%. “Na cidade, não tinha emprego, então a gente tinha que ir pra onde dava. Cheguei a passar uma temporada trabalhando em lavouras em Minas Gerais pra poder sobreviver. Tinha mulher e filhos pra sustentar”, argumentou o aposentado Bernardo Ricardi Proença.
Conforme a pecuária se desenvolveu, o homem se afastou cada vez mais do campo. Um estudo do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva indicou que nos anos 1980, o gado já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí enquanto as lavouras mal ultrapassavam 180 mil. “Eu era acostumado a ver muitas plantações e muita gente trabalhando no campo. Isso acabou. O que a gente viu depois foi só boi e deserto”, desabafou Proença.
No livro “História de Paranavaí”, o escritor Paulo Marcelo levantou duas hipóteses sobre o declínio econômico de Paranavaí a partir de 1969. A primeira foi a ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial. Já a segunda, a adoção de um sistema tributário centralizador que prejudicou os municípios da microrregião, inviabilizando o surgimento de novos incentivos fiscais.
Pesquisadores e pioneiros são unânimes em afirmar que o retrocesso de Paranavaí nos anos 1970 e 1980 teve raízes na supervalorização da monocultura. “Muita gente fez o mesmo depois com a pecuária. Mas o problema é que criar gado só beneficiou uma minoria, não teve um aspecto social, ao contrário da cafeicultura, apesar da exploração do trabalho rural ter surgido na nossa região logo nos primórdios da colonização”, avaliou o sociólogo Otávio Bernal Filho, acrescentando que os nordestinos foram os mais lesados pelas injustiças sociais que transcorriam no campo.
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A importância do avião nos anos 1950
Precariedade das vias popularizou o avião em Paranavaí
No início dos anos 1950, o avião se transformou em um dos principais meios de transporte de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, por causa da precariedade das vias. À época, toda semana, muitos voos partiam do antigo Aeroporto Edu Chaves, atual Colégio Estadual de Paranavaí (CEP), para os mais diversos destinos.
Hoje não há registros que informem com exatidão quantos voos eram realizados por semana em Paranavaí nos anos 1950. No entanto, estima-se que as viagens aéreas ocorriam diariamente no antigo Aeroporto Edu Chaves. “Por volta de 1953, isso já acontecia bastante. Não era assim o ano todo, mas tinha época que os aviões partiam de Paranavaí todos os dias. Era gente indo pra Londrina, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, pra todo lugar”, afirmou o pioneiro cearense João Mariano, acrescentando que os aviões eram modestos, monomotores e até bimotores, mas cumpriam muito bem o trajeto.
Por causa da precariedade das estradas que faziam o carro balançar durante todo o trajeto, levando passageiros a sentirem-se mal, muitos optavam por viajar de avião. “Naquele tempo, o avião era muito popular, então uma viagem não era nada cara, era relativamente barata”, disse Mariano.
O padre alemão Henrique Wunderlich escreveu em uma carta à revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera, publicada em 20 de maio de 1953, que se surpreendeu com a facilidade em encontrar campos de aviação na região de Paranavaí. “Normalmente o aeroporto se resumia a uma pista para pouso e outra para decolagem e tinha pouco mais de um quilômetro de comprimento”, relatou, acrescentando que onde ainda não havia um campo de aviação, logo trataram de construir.
Henrique Wunderlich teve a ideia de criar um avião
Os aeroportos se resumiam a grandes campos com gramados ou apenas barro, sempre ladeados por terrenos ondulados. Segundo Wunderlich, muita gente dependia dos aviões, inclusive os padres da Paróquia São Sebastião. “O avião era uma necessidade primária para quem precisava viajar muito”, comentou João Mariano.
Na carta à revista alemã, Frei Henrique frisou que as viagens de carro eram muito desgastantes e os longos caminhos a serem percorridos em estradas ruins eram por vezes desanimadores. “Além disso, o vento e os violentos aguaceiros já tinham dado início ao processo de erosão do solo”, revelou. Por esses motivos, e como a Paróquia São Sebastião não tinha dinheiro para investir sequer na compra de um monomotor, o padre teve a ideia de criar um avião.
Wunderlich, que também era paraquedista e piloto, frequentou a Escola de Aviação Alemã durante a Segunda Guerra Mundial e trouxe a Paranavaí um projeto de um avião. “Também quis realizar este sonho para entusiasmar o povo da cidade”, admitiu o padre que pretendia dispor o veículo à população. Infelizmente, por causa de outros compromissos, Henrique Wunderlich não teve tempo de criar o avião porque precisou retornar à Alemanha em 1957.
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“O pessoal dizia é meu e era mesmo”
Pioneiros falam sobre a grilagem de terras nos anos 1940 e 1950
Em 1946, o mineiro Enéias Tirapeli passou por uma situação vivida por muitos outros pioneiros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, entre as décadas de 1940 e 1950: teve as terras griladas durante uma viagem de visita aos familiares.
Tirapeli contou que quando chegou a Paranavaí a colônia era administrada pelo marceneiro curitibano Hugo Doubek, também responsável por emitir documentações de imóveis que asseguravam o direito de posse. “Naquele tempo, quando um lote não custava nada, levava de um a dois anos para cortarem o terreno”, garantiu o pioneiro mineiro.
Certa vez, Tirapeli viajou até São Paulo para visitar a sogra e quando retornou a Paranavaí tinham grilado seus oito imóveis. “Perdi até as mandiocas que tinha plantado. O pessoal dizia é meu e era mesmo. Ninguém contrariava. Já tinha polícia aqui, mas não adiantava porque o costume era o sujeito construir em cima e se declarar dono”, afirmou o mineiro.
De acordo com a pioneira paulista Isabel Andreo Machado, era muito comum nas décadas de 1940 e 1950, as pessoas assumirem propriedades de terras sem terem qualquer documentação. “Havia muita briga e morte. Eu cheguei a ver o assassinato do sogro do Mauro Valério em frente à Caixa Econômica Federal por causa disso”, revelou a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger.
Conforme palavras do pioneiro cearense João Mariano, o período mais intenso de crimes motivados pela posse de terras perdurou por mais de dez anos, de 1945 até 1956. “A partir de 1957 que a coisa começou a melhorar porque já havia uma boa força policial na cidade. Antes disso, Paranavaí era uma terra onde cada um fazia o que bem entendia. Quando o crime era causado por gente graúda a polícia não ousava interferir”, enfatizou Mariano que viu muita gente conhecida morrer em conflitos com grileiros por não querer abrir mão de um terreno.
O cearense ainda declarou que em Paranavaí há pessoas que fizeram fortuna sobre a infelicidade alheia. “Algumas riquezas nasceram do sangue derramado na época da colonização. Mas cada um tem a sua consciência e sabe o que fez para chegar onde chegou. É uma justiça que não cabe aos homens colocar em prática”, comentou, acrescentando que alguns grileiros tinham amizade até mesmo com governadores e outras autoridades.
João Mariano frisou que sobreviveu ao período da grilagem de terras porque nunca se envolveu em conflitos de posses. “A vida vale mais que um pedaço de chão, ainda mais quando você tem uma família pra sustentar”, salientou. Em 1950, querer fazer justiça com as próprias mãos, bancar o corajoso e enfrentar tudo de “peito aberto” era quase um chamado para a morte. “Muitos grileiros nem sujavam as mãos, andavam rodeados de capangas que faziam o serviço por eles. Alguns a gente nunca soube quem eram. Os jagunços de quem se ouve falar eram como os laranjas do tráfico de drogas, ou seja, mesmo que morressem, isso não mudaria a realidade porque pois tinha gente grande por trás” disse Mariano.
O cearense lembrou um episódio chocante vivido por uma família que morava na zona rural de Paranavaí em setembro de 1953. Para evitar problemas, preferiu não citar nomes. “Eram meus vizinhos, sete pessoas, dois adultos e cinco crianças que trabalhavam como colonos numa roça perto de Alto Paraná. O homem tinha conseguido juntar um dinheirinho ao longo de anos pra comprar uma chácara perto da cidade”, relatou. Uma semana depois da negociação, a família foi surpreendida por três capangas que tentaram expulsá-los de suas terras.
Como a visita inesperada aconteceu à tarde e havia vizinhos observando, inclusive o pioneiro João Mariano, os homens foram embora e retornaram de madrugada. Invadiram o casebre e assassinaram a tiros toda a família, deixando rastros de sangue pela casa. “Não pouparam nem as crianças que tinham entre cinco e doze anos. Me falaram que uma delas estava segurando uma bonequinha de espiga de milho toda ensanguentada. Teve gente que entrou lá pra ver, mas eu não tive coragem. A polícia só apareceu no local dois dias depois do crime”, reclamou João Mariano, confidenciando que jamais esqueceu o “cheiro” de tantas mortes.
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Quando cães frequentavam a igreja
Animais de Paranavaí tinham o hábito de participar das cerimônias religiosas nos anos 1950
Entre os anos de 1951 e 1957, a primeira igreja de Paranavaí não era frequentada apenas por pessoas, mas também por cães, principalmente em dias de missa. Os animais não podiam ver a porta da igreja aberta que logo entravam e passavam horas no local.
Em 2 setembro de 1951, o frei alemão Ulrico Goevert, logo após tomar posse como pároco de Paranavaí, reuniu alguns pioneiros para cobrir a pequena igreja que não tinha telhado. Terminado o trabalho que levou pouco mais de uma semana, o padre realizou a terceira missa como pároco. Foi a primeira de frei Ulrico na igrejinha.
Naquele dia, o padre se virou em direção aos fiéis para abençoá-los e se deparou com seis cães parados, como se aguardassem a bênção. O mais curioso é que havia mais animais na igreja do que pessoas. Só quatro pessoas estavam lá dentro assistindo a cerimônia religiosa. “Recordei das minhas primeiras missas na Igreja do Carmo, de Bamberg, e também na minha aldeia natal, Darfeld. Aqui era muito diferente, pois poucos participaram das cerimônias no início”, revelou o padre.
E não era apenas em dias de missa que os cães entravam na igreja. A partir de 1951, o episódio se repetiu diariamente. “É oportuno dizer que havia muitos cachorros em Paranavaí. Muitos eram tão devotos que até no meio da semana iam para a igreja”, relatou o pároco Ulrico Goevert em tom bem-humorado.
Os animais se portavam como se estivessem em casa. Os cães não latiam nem rosnavam no interior da igreja, apenas participavam das cerimônias religiosas como os fiéis. Nem se intimidavam com a presença humana, tanto é que o padre decidiu proibir a entrada dos animais.
O que não adiantou muito, pois até 1957 os cães ainda eram encontrados no interior da antiga Igreja São Sebastião, construída em 1952, em substituição a igrejinha. “Às vezes, apareciam até durante a santa missa no altar-mor. Falei ao bispo que eu daria 25 dias de indulgência para cada fiel que desse um pontapé num cachorro dentro da igreja”, frisou o padre. O bispo riu da proposta de Frei Ulrico, mas não concordou em dar as indulgências.
No livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”, Frei Ulrico admitiu que deu vários chutes nos cães que invadiam a igreja. E justamente por isso, os animais reagiram. “Os cachorros têm boa memória. Quando me viam na rua, rosnavam e latiam mesmo de longe”, destacou.
À época, um dos cães, revoltado por não poder entrar mais na igreja, mordeu a panturrilha do padre. Apesar de tudo, Frei Ulrico relatava o fato de maneira cômica. “Sempre fui um verdadeiro amigo dos animais, mas não podia permitir a estadia de cães na casa do Senhor”, comentou. De acordo com pioneiros, os animais gostavam de ficar na igreja porque era um local silencioso e de uma atmosfera que inspirava paz.
A chegada de Frei Ulrico Goevert
Logo que chegou a Paranavaí, no dia 1º de setembro de 1951, frei Ulrico Goevert conheceu a primeira igreja de Paranavaí. Era uma casinha de madeira sem telhado e com uma pequena torre. “A casa paroquial também era de madeira, mas tinha cobertura de telhas”, contou Goevert. O padre provincial dos josefinos pediu ao frei alemão para usar o dinheiro arrecadado em uma festa organizada pela comunidade para cobrir e ampliar a igrejinha.
“Ele afirmou que esse seria o meu primeiro trabalho”, enfatizou frei Ulrico que foi enviado a Paranavaí para substituir o padre Carlos Ferrero que comandou as atividades religiosas locais durante alguns meses. Como seria preciso algum tempo para a reforma da igreja, a primeira missa do frei alemão ocorreu num sábado na Casa Paroquial. Lá, improvisaram um altar e um quadro grande de Nossa Senhora das Dores.
O padre estava tão preocupado com as dificuldades que enfrentaria em Paranavaí que admitiu ter suplicado à santa para lhe ajudar. “Naquele tempo, a ‘cidade’ tinha mais ou menos 60 casas e eram todas de madeira. Muitas nunca seriam classificadas como casa, conforme o conceito alemão”, comentou. No início dos anos 1950 ainda havia muitas residências com características de rancho, o que despertou estranheza em frei Ulrico, acostumado ao estilo de vida europeu.
No dia 2 de setembro de 1951, a segunda missa transcorreu em uma casinha que mais parecia uma “barraca de madeira”. No mesmo dia, o padre provincial apresentou frei Ulrico como o novo pároco de Paranavaí e entregou-lhe uma estola e um decreto de nomeação assinado pelo bispo.
O padre fixou residência na Casa Paroquial, onde havia apenas uma mesa, quatro cadeiras, dois armários e duas camas. “Não tinha fogão, e na hora de dormir o padre Carlos se abrigava na casa do vizinho, pois só havia camas para mim e o provincial”, Lembrou.
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A caça à onça em Cidade Gaúcha
O dia em que Fernandez e Euclides quase foram mortos por uma onça
Em Cidade Gaúcha, no Noroeste do Paraná, os pioneiros Fernandez e Euclides decidiram caçar uma onça que entrou no chiqueiro de Fernandez e comeu alguns porcos em 1957. O que os caçadores não esperavam é que a onça, matreira como era, não cairia tão fácil na emboscada.
Nos anos 1950, Cidade Gaúcha, que surgiu para abrigar migrantes do Sul do Brasil, era um pequeno vilarejo envolto por mata primitiva. Um lugar onde a derrubada de mata e as queimadas faziam parte do cotidiano. Em meio a tal cenário já despontavam as onças, animal que foi considerado o mais perigoso da fauna noroestina.
Na descrição dos pioneiros de Cidade Gaúcha, eram “enormes gatos” com um “miado” díspar e grave que ressoava pelo povoado durante a noite e podia ser ouvido a quilômetros de distância. Chamava atenção pela estatura, pois grande e pesada ainda conseguia ser veloz. O animal se pendurava nos galhos das árvores mais altas e lá ficava imóvel por horas, até o momento oportuno de dar o bote.
Os pioneiros Euclides e Fernandez relataram décadas atrás que era muito complicado matar uma onça. No entanto, o juízo sempre cedia à cólera quando um colono chegava em casa e se deparava com alguns animais mortos ou levados pela felina. Exemplo foi o colono Fernandez que perdeu parte da criação de porcos para a onça. Irascível, o pioneiro previu o retorno do animal conhecido por dizimar criações de suínos, bovinos e equinos.
Fernandez decidiu caçá-la antes que levasse o que sobrou da criação. Contou com a parceria do amigo Euclides, caçador que há muito tencionava eliminá-la. O fato das baixas nas criações serem sempre provocadas pelo mesmo animal despertou um misto de ódio, excitação e senso de justiça. Não reconheciam que o invasor por aquelas bandas era o homem e não a onça.
A caçada malsucedida
Tudo foi preparado previamente, e no dia seguinte pela manhã, Euclides e Fernandez, acompanhados de dois cães de caça, se embrenharam na mata. Depois de percorrerem alguns quilômetros a pé, soltaram os cachorros para farejarem os rastros da onça. Logo começaram a rosnar e latir, até que o silêncio tomou conta do lugar. Um dos cães sumiu e o outro retornou ofegante e assustado. Para Fernandez, só podia ser um sinal de que a “inimiga” estava próxima. Ajeitaram os gatilhos das espingardas e, sem piscar, deram alguns passos até ouvirem o som que emanava dos galhos de uma árvore. Lá estava a felina, como se os aguardasse, atenta a cada movimento dos caçadores.
Quando Fernandez deu o primeiro tiro o animal saltou. Com as patas, dilacerou seus braços e ombros – na região da escápula e do úmero. O estrago foi tão grande que o homem sentiu as garras da onça roçando os ossos. O gatilho da espingarda de Euclides falhou no momento do ataque. Desesperado ao vê-la sobre o companheiro, o caçador tirou uma peixeira da cintura e a golpeou. Mesmo ferida, a felina atacou os dois braços de Euclides, destruiu a espingarda e depois fugiu pela mata.
Apesar de muito machucados, os dois foram encontrados por colonos e levados para o hospital de Rondon. Lá, segundo o frei alemão Ulrico Goevert, que vivia em Paranavaí, estavam com febre alta e braços e ombros atados.
Dias depois, os colonos voltaram à rotina. Mas só até a mulher de Fernandez revelar que a onça levou ‘o seu melhor porco”. “A raiva o cozinhou por dentro. Parecia que a vergonha causada pela onça doía mais que o ferimento nos ombros”, comentou Frei Ulrico no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”. À época, o padre estava participando de uma missão religiosa em Rondon e Cidade Gaúcha.
Uma nova emboscada
Sem pestanejar, Fernandez pegou novamente a espingarda, a municiou e foi até a casa de Euclides convidá-lo para a caçada. O amigo aceitou, ajeitou a peixeira na cintura e seguiu o companheiro. De acordo com os caçadores, era preciso mais cautela porque a onça ferida sempre foge do perigo. Acompanhados por um cão de caça, seguiram as pegadas do animal e o avistaram devorando o pernil de um leitão. Rapidamente, Fernandez puxou o gatilho e acertou o peito da onça que ainda tentou resistir, mas faleceu.
A primeira coisa que fizeram foi medir a felina. Tinha 2,64m de comprimento e pesava mais de 100 quilos. Orgulhosos, Fernandez e Euclides tiraram várias fotos ao lado da onça-pintada morta. “Quando vi a magnífica pele do animal já curtida brotou em mim o desejo de pendurá-la no Seminário Carmelitano Teresiano de Vocações Tardias, em Bamberg [no Estado da Baviera, na Alemanha], para despertar nas novas gerações de missionários a alegria da caça à onça”, destacou o padre alemão. A pele da felina foi leiloada por cerca de dois mil cruzeiros e o dinheiro doado para o Hospital de Rondon que atendia principalmente os menos favorecidos.
Saiba Mais
Nos anos 1950, alguns pioneiros pagavam muito dinheiro para caçadores livrarem suas propriedades das onças.
Observação
Como está claro no texto, nem mesmo os mais civilizados tinham consciência de que o homem era o verdadeiro invasor.