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Tertuliano e a boiada
Em 1951, meu avô conheceu um rapaz em uma fazenda na Água do Cedro. Seu nome era Tertuliano e ele tinha chegado há pouco tempo do interior de São Paulo para atuar como motorista de caminhão. Seu trabalho era buscar mantimentos para três casas de secos e molhados situadas no centro de Paranavaí. Tertuliano era “meio aéreo”, como diziam, e sempre que tinha algum tempo livre, era visto sentado na cabine do caminhão, apoiado sobre o painel escrevendo em um caderninho.
Um dia, fizeram uma proposta para que ele transportasse uma boiada até um matadouro na saída para Nova Aliança do Ivaí. A missão de Tertuliano era buscar os animais na Fazenda Alto Remanso em Alto Paraná. Precisando de dinheiro, não pensou duas vezes. Quando chegou ao local de manhã, os animais já estavam prontos para partir. Um homem gritou: “Tá no jeito!”
Tertuliano desceu a rampa parda e resistente de madeira e assistiu a boiada a subindo lentamente. Hesitação. Resistência. Um dos animais empacou no limiar da rampa. Quatro peões reuniram forças para que o boi, que tinha apelido de Teimoso, aceitasse o seu malquisto destino. Antes de desaparecer dentro da carroceria, o animal observou Tertuliano. Ele desviava o olhar, mas o boi persistia com seus olhos escuros.
— Você leva esses que depois a gente acerta — disse o administrador da fazenda.
— Sim, senhor.
— Quer que alguém te acompanhe?
— Não. Já tá tudo certo do lado de lá.
— Então tá bom. Pode ir.
Tertuliano subiu na cabine. Antes deu outra olhadela nos bichos. Silêncio desconfortável. O incomodava saber que os animais não reagiam mais. Sem barulho. Não odiavam os seres humanos, nem Deus, se houvesse um para eles.
— Que diacho de vida é essa? Sabe que vai morrer e vai aceitando assim?
Durante o percurso, parou o caminhão na estrada. Circulou pela carroceria e ouviu a respiração ruidosa de um deles.
— Será que tá com medo? — questionou.
Quis subir na carroceria para ver melhor a boiada. Feito. Lá em cima, nenhum deles movia os cascos, mas somente os olhos em sua direção.
— Por que num chora, num grita, num berra, num odeia? — questionou assistindo a boiada.
— Será que sabem mesmo pra onde vão? Será?
— Talvez sim, talvez não.
— Tô é ficando louco, falando com boi. Melhor seguir viagem.
Demora. Estrada estreita de terra. Animais silvestres atravessando carreadores e se escondendo na mata. Na saída para Nova Aliança do Ivaí, Tertuliano parou o caminhão e observou a pouco mais de 300 metros um barracão onde funcionava o matadouro. Não gostou do que viu. Hora da despedida. Ou não.
Desistiu da entrega. Seguiu viagem. Parou em um sítio em Graciosa, onde comprou ração e pediu água. Dirigiu até o Porto São José. Chegou depois de quatro dias. Em outro sítio, a boiada desceu a rampa sem medo. Deram alguns passos pasto adentro e deitaram sobre a braquiária. Verde, verde, verde. Sol morno. Sem medo.
— Olhe aí, pai! Parece criança.
— E não são? — indagou o velho acendendo um palheiro.
Não perguntou a origem da boiada. Talvez não quisesse saber, ou não tivesse relevância.
— O senhor pode cuidar deles pra mim?
— Deixe, onde come cinco, come até vinte, acho — respondeu sorrindo.
— Tá certo.
Teimoso, que não era mais teimoso, mugiu brevemente pela primeira vez quando o rapaz virou as costas. Avisou ao pai que era preciso resolver a situação.
— Dá-se um jeito — garantiu o velho.
Na semana seguinte, Tertuliano decidiu retornar a Alto Paraná para resolver a situação na Fazenda Alto Remanso. Perto de Guairaçá, encontrou galhos na estrada e desceu para movê-los. Emboscada. Sete tiros de carabina. Três homens. No banco do caminhão havia um pequeno saco de estopa, dinheiro que seria entregue como forma de compensação.
Agonizando e deixado para morrer, resfolegou. Um novilho atravessou a cerca e se aproximou. Lambeu seus olhos. O rapaz sorriu e sucumbiu. Sua história real não seria contada. Ganhou fama de ladrão de gado quando o que menos queria era roubar vidas. Até os anos 1980, ainda havia uma cruz onde Tertuliano morreu. Trazia a frase: “Se vive para não ver, não há o que querer.”
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O boi e o menino
Dirigindo pelas estradas de Alto Paraná, perto da Água do Cedro, encontrei um menino andando lado a lado com um boi. Encostei o carro, desci, pedi uma informação e perguntei se ele morava longe. Então o garotinho de nove ou dez anos apontou uma porteira aberta e uma casa de madeira no horizonte à sua direita. A postura e os olhos daquele boi me fizeram suspeitar que havia algo realmente incomum sobre ele.
— E esse boi? Ele mora com vocês?
— Sim, senhor.
— Vocês estão passeando?
— Isso mesmo. Como o senhor sabe?
— É que lá de trás vocês já pareciam companheiros. E agora, de perto, vi que esse boi não tem nenhuma marca no corpo.
— Pra que marcar o bicho, né? Eu que não quero ter o couro marcado. Acho que ninguém quer, né?
— Pois é. Realmente…
— Vocês passeiam sempre?
— Ah, não. Só quando ele quer.
— E como você sabe quando ele quer?
— Ele encosta na porteira, e esfrega a orelha. Meu pai diz que ele faz isso desde criança.
— Desde criança?
— Isso.
— Quantos anos ele tem?
— Ah, ele tem 21.
— Nossa! Incrível!
— É o que todo mundo diz – comentou sorrindo.
— Forte desse jeito? E como ele viveu tanto?
— Não sei dizer não, senhor. Deve ser porque a gente nunca judiou dele, deixa ele bem solto no pasto.
— Isso é bom.
— É sim.
— Vocês nunca pensaram em abater ele?
— Não, senhor. Que isso! O Mestre é da família, é bicho que nem a gente.
— Vocês não comem carne?
— Não. A gente só mexe com horta e pomar. Meu vô, meu pai e minha mãe falam que comer o que não nasce de novo não presta. Tá certo não.
— Ninguém da sua família come carne?
— Não, ninguém.
— Sempre foi assim?
— Não. Foi por causa de uma coisa que aconteceu com o bisa antes do meu pai nascer.
— O que aconteceu?
— Meu bisavô tinha um cemitério no fundo do sítio dele. Um dia, uma vaca entrou lá e empurrou um pedaço de bife dentro de um buraco. Depois ela arrastou a terra com a pata pra cobrir o bife. O bezerro dela tinha sido levado fazia acho que duas semanas. Então o bisa chorou quando viu e prometeu nunca mais comer carne, nem mexer com isso. Essa história a gente escuta desde bem pequeno.
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Um barbudo no Dia de Finados
Pense numa situação visceral de estranhamento. Estou falando de mim no Cemitério de Alto Paraná visitando parentes falecidos. Muita gente com aquele olhar de surpresa, observando o barbudo aqui:
“O que esse muçulmano está fazendo aqui?” “Muçulmano, Dia de Finados? Oi?” Não sabia que muçulmanos iam ao cemitério.”
E para fechar com chave de ouro, na saída, uma amiga de infância da minha mãe me abraça e diz: “Que honra! Hoje até o Osama veio homenagear os falecidos.” Ah! Recebi também um folheto religioso antes de partir. “Sei que não é a sua religião, mas ficarei feliz se puder ler”, disse um senhor católico.
Em respeito à memória de parentes falecidos
Em respeito à memória de parentes falecidos em 1962 e 1970, desde criança vou ao cemitério de Alto Paraná no Dia de Finados. É um costume sem conotação religiosa. Meus familiares, parte deles imigrantes, se mudaram para esta região na década de 1940, quando o Novo Norte do Paraná ainda estava em processo de colonização.
Embora eu não tenha nascido nem vivido em Alto Paraná, reconheço que é um lugar rico em histórias. O caminho até o cemitério é muito intrigante. Há casas de sítios e fazendas que foram abandonadas há muito tempo, mais tarde consideradas assombradas. Também há lugarejos, antes colônias, envoltos por narrativas insólitas, como a de um rapaz que dormiu por anos e a de famílias de mulheres que expulsavam invasores a tiros.
Um assalto no cemitério
Quando me despedi, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite
Em um dia normal, ainda distante do Dia de Finados, eu estava no Cemitério Municipal de Alto Paraná conversando com um desconhecido chamado Noé. A curta distância da entrada, falávamos sobre vida e morte enquanto poucas pessoas entravam e saíam do lugar.
O clima seguia ameno e o sol não tinha despontado naquela manhã, me fazendo observar tudo à minha frente como se eu estivesse diante de uma pintura gótica, onde a pouca luminosidade enaltecia as sombras e evidenciava de maneira insólita túmulos, cruzes, pessoas e animais que compunham aquele cenário tipicamente cristão.
Por um momento, esfreguei meus olhos e percebi que o fato de tudo transparecer maior não era ilusão, mas sim uma manifestação temporária da natureza, capaz de apequenar ou engrandecer os seres humanos das mais diferentes formas, simplesmente manipulando o clima, o tempo e o senso espacial.
Notei que tinha chovido há alguns dias e as árvores que envolviam o cemitério exalavam olência de casca e raízes, numa perfumaria mesclada que confundiria até os melhores boticários. Uma delas, vez ou outra balouçava os galhos e gotejava sobre a minha cabeça, como se quisesse me alertar sobre algo.
Eu apenas esfregava as mãos sobre o cabelo pontualmente úmido e continuava a ouvir Noé relatando suas aventuras quando viajava a pé por estradas de terra, dormindo sobre túmulos de cemitérios abandonados. Uma vez, amanheceu com as falanges da mão de um cadáver apoiada em seu peito. Nunca soube como aqueles ossos foram parar sobre seu corpo.
Num instante de silêncio, ouvi o canto de um surucuá com peito cor de bronze. Sobre uma cruz altaneira, ele parecia ensimesmado, me observando enquanto o nevoeiro velava seus pés. “Já ouviu falar em pragueira verduga?”, perguntou Noé, desviando minha atenção do pássaro. Respondi que não e ele explicou que é um verme que corrói placas de bronze sempre que a umidade do ar está muito alta.
Quando me despedi e caminhei em direção ao estacionamento, onde não havia mais ninguém, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite: “Cara, bora entrar lá dentro pra catar umas placas de bronze. Deve ter algumas muito boas ainda. Vamo aí?” Espaventado, não acreditei no que ouvi. Ele insistiu na oferta e recusei prontamente.
Sua catadura mudou na hora. O semblante sereno e ponderado foi substituído por um olhar fulminante e um riso vil. Noé inclinou a cabeça em direção aos próprios pés e declarou com sorriso sardônico: “Tá certo! Mas tenho um presente pra você. Chamo de filosofia da pólvora. Ela queima instantaneamente, permitindo um novo tipo de compreensão da vida.”
Inerte, assisti Noé exibir um revólver de calibre 38 enrolado em um pedaço de flanela alaranjada dentro da mochila. Sem titubear, ordenou que eu entregasse os R$ 2 mil guardados dentro da minha carteira. “Não tenho esse dinheiro na carteira. De onde tirou essa ideia?”, perguntei. Ele disse que teve uma visão de que alguém com o meu perfil chegaria ao cemitério pela manhã carregando R$ 2 mil. Abri minha carteira e mostrei que eu tinha R$ 200.
Inclusive coloquei o dinheiro sobre uma mureta e lancei minha carteira a seus pés para que ele a checasse. Irritado, Noé mirou o revólver em minha direção. Não corri nem ameacei atacá-lo. Simplesmente mantive os olhos em sua direção enquanto minhas pernas pareciam se dissolver, querendo se entranhar no solo úmido e moscado. “Quem sabe eu me torne algo que brote da terra ou desapareça como num rastilho da própria pólvora que me invade”, pensei antes de me perder num vácuo onde existência e inexistência transpareciam igualmente insones.
Noé acionou o gatilho, mas não havia balas; nem ele sabia disso. Correu até a margem da estrada, entrou em um Santana Quantum preto, estilo carro de funerária, e desapareceu. Meus R$ 200 continuavam imóveis sobre a mureta onde a brisa movia tudo menos as notas. Peguei minha carteira, o dinheiro, fui até o aterro sanitário perto do cemitério e entreguei o dinheiro às crianças que procuravam algo aproveitável entre os detritos. Na mesma semana, li no jornal que Noé retornou ao Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, de Loanda.
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Visita aos mortos
Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos?
Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?
Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.
O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.
Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.
Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.
Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.
“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.
Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.
Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.
De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.
Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.
A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.
Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.
Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.
Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.
Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.
Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”
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Calado, o homem que rejeitou a sociedade
Diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado
Calado não é um personagem comum ou conhecido da população de Paranavaí e do Noroeste do Paraná. Na realidade, ouso dizer até que é anônimo. A primeira vez que ouvi falar sobre ele foi no Cemitério Municipal de Alto Paraná, em uma conversa entre meus familiares e outras pessoas já falecidas que chegaram a esta região nas décadas de 1930 e 1940. À época, eu tinha entre 11 e 12 anos e fiquei fascinado, embasbacado com o relato sobre aquela figura quimérica que logo invadiria meus sonhos. Acordado, eu divagava e escrevia, baseando-me no que foi ou poderia ser tal sujeito de características singulares.
A história diz que Calado ou Saru, chamado Maurício, chegou ao Noroeste do Paraná no final do século 19, após ser acusado de se aliar aos maragatos em Paranaguá, durante a Revolução Federalista em 1894. Há quem diga que ele era parente de Gumercindo Saraiva, um dos comandantes das tropas rebeldes que lutavam pela deposição do presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos. Mesmo com a morte de Ildefonso Pereira Correia, o barão do Serro Azul, em 6 de agosto de 1894, injustamente executado como traidor da pátria, os chimangos (republicanos) intensificaram a perseguição aos que teriam contribuído com os maragatos, independente da consistência das provas.
Com 19 anos, na tarde de 13 de setembro, Maurício estava em casa ajudando o seu pai a recolher as tábuas de um velho rancho que tinham desmontado pela manhã. Antes que pudesse terminar o trabalho, quatro homens invadiram a chácara da família procurando pelo rapaz. Assim que Maurício se apresentou, dois soldados o seguraram pelos braços, o acusando de conspiração contra a república. Vasculharam o quarto do jovem e encontraram uma pequena caixa de madeira dentro de um armário. No interior, havia um lenço vermelho, que caracterizava a vestimenta dos maragatos, e o rascunho de uma carta que supostamente foi entregue em julho de 1894 a Gumercindo Saraiva, líder do movimento.
Nela, o autor dava detalhes sobre a localização de uma fazenda que poderia servir de abrigo para os insurgentes sob comando do almirante Custódio de Mello. As informações selaram o destino de Maurício que tentou explicar que a caixa não pertencia a ele. Desesperados, seus pais choraram e imploraram para que o filho não fosse levado. De nada adiantou. O rapaz foi transportado até uma casa velha e abandonada a quilômetros de distância, onde o obrigaram a entrar em um porão extremamente sujo.
O lugar era úmido, escuro e havia um odor nauseante de ferrugem. Sem enxergar nada, Maurício quase escorregou em uma poça. Quando um dos soldados acendeu a lamparina, o rapaz viu que havia bastante sangue sob seus pés; uma parte ressequida e outra ainda fresca, indicando que não fazia muito tempo que alguém entrou ou saiu gravemente ferido daquele lugar. O oficial que comandava a operação, identificado apenas como Justo, disse com voz plácida e pausada para Maurício assumir a autoria da carta, justificando que assim eles não precisariam machucá-lo.
O rapaz rejeitou a oferta. Por cerca de um minuto, o oficial observou seus olhos sem transmitir qualquer tipo de emoção. Caminhou até uma cadeira recostada num canto bem iluminado e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um cachimbo com um tubo de bambu e um fornilho de barro. Lá mesmo, o sujeito começou a fumar ópio, alheio ao que aconteceria nos próximos minutos.
Enquanto isso, Maurício, mantido nas pontas dos pés com os braços suspensos por uma corda, levava socos e chutes de dois chimangos, mas não o suficiente para feri-lo gravemente. Ainda assim, sentindo severas dores em várias partes arroxeadas do corpo, ele lacrimejava em silêncio e ocasionalmente gritava que era inocente. Quando Justo parou de fumar, e acenou com uma das mãos cobertas pela fuligem de uma lamparina pendurada a centímetros de distância, os soldados se afastaram e saíram do porão.
“Você já ouviu falar no ‘braço de folie?’ É uma técnica muito interessante que um mercenário, um apátrida francês, descobriu na Ásia para conseguir respostas honestas de pessoas que não gostam muito de falar a verdade. É bem eficaz, tanto que até hoje nunca deixei de alcançar meu objetivo. Ah! E é exatamente pela boa aplicação dela que me chamam de Justo”, declarou com voz grave e sorriso tétrico.
Desinteressado em fazer mistério, o oficial caminhou até outro canto do porão, retirou algumas flores amarelas de um saco e começou a macerá-las vagarosamente com um pilão, combinando com outros dois ou três ingredientes desconhecidos. “Meu rapaz, veja que dádiva de flor! Se chama ranunculus e pode ser tão bela aos olhos quanto deletéria ao corpo. Há de concordar comigo em breve”, comentou.
Justo avaliou a viscosidade da pasta, caminhou até Maurício, deu alguns tapinhas em suas costas e esfregou nas axilas do rapaz a mistura que tinha a consistência de um unguento. Em segundos, sentiu a pele esquentando. Um minuto depois, todos os pelos da área afetada caíram e suas axilas queimaram como se alguém as tocasse com um ferrete. “Enquanto sentia a pele em carne viva e se balançava, na tentativa de resfriar as queimaduras, ele continuava afirmando que era inocente. Disse à minha avó que a princípio o cheiro da mistura ajudava a amenizar a dor insuportável”, conta Arminda Gervasi, sobrinha-neta de Maurício.
Justo também esfregou um pouco do “braço de folie” nas costas do rapaz que não suportou as dores e acabou desmaiando. A sensação era terrível, dando a impressão de que seus músculos dorsais foram dilacerados. Horas mais tarde, Maurício estava deitado em uma cama dentro de um barracão de estocagem de erva-mate. Acordou e não entendeu o que aconteceu. No seu corpo não havia sinais de queimadura, apenas da violência física cometida pelos dois soldados. Quando ouviu o som da buzina de um navio, percebeu que estavam nas imediações do porto.
O seu algoz continuava ao seu lado, observando sua reação. Supostamente o rapaz seria levado em um navio da Marinha para ser julgado no Rio de Janeiro. Porém, o oficial da escolta mudou de ideia ao ter certeza que Maurício não mentiu. “A verdade é que não vamos levá-lo a lugar nenhum. A ordem que recebi é para matá-lo e abandonar o seu cadáver num buraco qualquer. Só que minha experiência me convenceu de que você é inocente. Como não posso admitir falhas, deixarei você viver sob duas condições: suma deste lugar e nunca mais procure seus pais. Se eu souber que não acatou minha ordem, voltarei e matarei toda a sua família. Agora vá! Desapareça da minha frente!”, ordenou o homem.
Confuso, assustado e tremendo, o rapaz saiu porta afora e correu mancando por mais de dois quilômetros até encontrar uma floresta onde se escondeu entre os arbustos. Sujo, faminto e ofegante, Maurício observou ao longe seus pais cabisbaixos na entrada de casa. Contrariando o oficial da escolta, caminhou furtivamente até eles e relatou tudo que aconteceu desde que foi levado de casa.
“Não posso ficar. Fiz um acordo com aquele homem e ele prometeu que viria atrás de mim e de toda nossa família se eu não cumprisse sua ordem. Vim só pra me despedir e avisar que entrarei em contato em no máximo um ano”, prometeu. Abraçados com o filho, os pais choraram novamente e pediram que ele passasse pelo menos mais uma noite em casa antes de partir. Temendo o pior, Maurício recusou. Aceitou só os curativos, a mala preparada pela mãe e um saco com alimentos, principalmente pães e frutas. Também se despediu da irmã Sophia que à época tinha dez anos.
Enquanto caminhava a passos rápidos, o jovem manteve o olhar em direção aos pais. A mãe, Maria, uma costureira baixinha e de mãos aveludadas, estava com o rosto rubro e os olhos túrgidos de tanto lacrimejar. O pai, Nestor, um magro sapateiro de estatura mediana que se dedicava tanto ao trabalho que trazia no rosto duas pequenas manchas indeléveis de graxa, acenava com uma das mãos enquanto usava a outra para acariciar o ombro da esposa, na tentativa de confortá-la. Prestes a desaparecer através do nevoeiro, Maurício ouviu o eco da voz de sua mãe gritando que o amava, lembrança que o acompanharia por toda a vida.
Assim que deixou Paranaguá, o rapaz encontrou um grupo de tropeiros e os acompanhou até chegar a Sorocaba, em São Paulo. De lá, partiu a pé e sozinho para Tatuí e Avaré, também no interior paulista. “Trabalhava só pra sobreviver. Seu objetivo era ficar longe e ao mesmo tempo sentir-se perto dos pais. Não parava em lugar algum porque seu sonho era voltar ao Paraná, de uma forma que não comprometesse sua família”, enfatiza Arminda, neta de Sophia.
Maurício chegou no início de 1896 à Fazenda da Prata, da Família Alcântara, onde mais tarde surgiria a cidade de Jacarezinho, no Norte Pioneiro do Paraná. Lá, se ofereceu para trabalhar na derrubada de mata. Na incursão pela floresta, ficou impressionado com as belezas da flora e da fauna. Era a primeira vez que sentia-se bem desde que saiu de casa.
Sempre que perguntavam seu nome e origem, ele mentia, preocupado com a possibilidade de ser perseguido pelos republicanos. Evitava falar do passado e não gostava de conversar mais do que o necessário. Às vezes, dormindo na colônia da fazenda ou em algum acampamento perto da mata, onde passava meses trabalhando, acordava sobressaltado, suando frio e soluçando. “Nunca mais foi o mesmo. Tinha fortes dores de cabeça e de estômago, delírios ocasionais e um medo constante de morrer, agravado por uma ansiedade sem fim. Sonhava com a família todos os dias, só que decidiu nunca mais procurar ninguém por receio de represália”, revela a sobrinha-neta.
Avesso à violência, quando presenciava brigas entre peões, Maurício virava as costas e se afastava com o corpo trêmulo. O som de cada soco ou chute trazia nefastas recordações das sessões de tortura em Paranaguá. A agonia e o estado de desespero só eram amenizados com a leitura de um livro que o acompanhava desde os 15 anos – “Papéis Avulsos”, de Machado de Assis, que ganhou dos pais no Natal de 1890.
“Antes de falecer em decorrência de um câncer de tireoide, minha avó ainda falava com os olhos cheios de lágrimas das muitas vezes que seu irmão sentou perto da cabeceira para ler uma das histórias desse livro antes dela dormir”, confidencia Arminda emocionada. Maurício tinha predileção pelos contos “A Teoria do Medalhão”, A Sereníssima República”, “O Alienista” e “O Espelho”, decorando-os integralmente antes de completar 16 anos.
Respeitado pelo patrão, e tratado com desprezo e indiferença por gatos (fiscais) e colegas de trabalho – homens brutos do sertão, o rapaz teve a paz abalada numa noite amena de outono. Cochilando com as costas escoradas numa árvore, deu um grito alarmado quando um sujeito embriagado o segurou pelo colarinho da camisa, o questionando sobre o paradeiro de uma quantia em dinheiro guardada embaixo de um toco. “Por favor, me deixe em paz. Eu não sei de nada. Me solta! Me solta!”, pediu Maurício, de acordo com Arminda Gervasi.
Ignorando a negativa, o homem desferiu um soco no rosto e outro no estômago do rapaz que de tão espaventado teve uma repentina crise de diarreia. Entre goles de cachaça e muita gritaria, os peões já bêbados apontavam os dedos para Maurício e gargalhavam, numa zombaria sem limites. Sem dizer palavra, ele se levantou, caminhou até a barraca onde guardava seus pertences, juntou as próprias roupas em um saco e desapareceu mata adentro, sob o olhar displicente do fiscal que entornava uma garrafa de aguardente. Aquelas pessoas nunca mais o veriam.
Sem se importar com o que poderia lhe acontecer, o jovem se distanciou cada vez mais da sociedade e da civilização, entregando a própria vida aos acasos do desconhecido. “Ele já não queria mais viver junto de outras pessoas. O que aconteceu naquela noite foi o estopim”, garante a sobrinha-neta.
No dia 27 de março de 1896, Maurício entrou na floresta para não mais retornar. Sem medo do próprio fim, começou uma jornada despretensiosa de descobertas e autoconhecimento. Durante o dia, atravessava quilômetros de mata fechada e quando anoitecia se abrigava sobre as árvores. Com o tempo, aprendeu a escalar as mais altas e robustas, que lhe permitiam uma visão privilegiada das cercanias.
Apesar das dificuldades, seu organismo então fragilizado aprendeu a se adaptar a uma alimentação baseada em frutos e vegetais. Algumas vezes, após ingerir algo completamente desconhecido, passou tão mal que pensou que fosse morrer. “Ele era muito mais forte do que imaginava. Em poucos dias, já se sentia saudável. Talvez fosse um sinal, um chamado da natureza, de que nasceu para aquela vida. Acho que outras pessoas não sobreviveriam”, avalia Arminda.
Com o tempo, o rapaz abandonou roupas e pertences, menos um relógio de bolso que prendeu no braço – presente dos pais. Sem rumo, atravessou centenas de quilômetros de mata nativa. Só interrompeu o percurso por volta de 1898, quando encontrou uma onça-pintada caída, quase morta, com o sangue escorrendo sobre pedras musgadas às margens de um riacho.
Ainda acordada, observou Maurício a arrastando alguns metros mata adentro. Ele a deitou sobre a relva e estancou com folhas e raízes um grande ferimento na barriga do animal. Cuidou da onça por dez dias e, apesar de parecer assustada e confusa, ela não o encarou como ameaça, sequer mostrou os dentes ou apontou as garras.
Para Maurício, já não era algo surpreendente. A floresta tornou-se um lar e, de algum modo, seus velhos habitantes o aceitavam. Nem mesmo os índios de etnias caingangue e caiuá que encontrou pelo caminho o tratavam como invasor. Muito pelo contrário. Até o convidavam a participar de algumas celebrações, e foi numa dessas ocasiões que o batizaram como Saru, palavra tupi-guarani que significa Calado em português.
Meses depois, o rapaz reencontrou a onça de quem salvou a vida. Empoleirada numa árvore, ela saltou quando o viu. Se aproximou, observando os olhos de Saru, e deixou que ele deslizasse rapidamente as mãos pelo seu dorso. Cabeludo, barbudo, de estatura mediana e magro, o jovem ostracista de pele oliva aprendeu a ser mais silencioso do que os mais leves e menores animais que atravessavam a mata nativa. Vivendo sozinho, só interagia com quem se aproximava dele, o que talvez justifique porque sobreviveu tanto tempo na floresta. “Ele chegou a ser picado por cobras. A sua salvação foi o tratamento dos índios caiuá”, informa Arminda.
Em 1898, Calado já vivia em uma área onde surgiria a cidade de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Numa manhã, cansado de viajar sem rumo e de dormir ao relento, começou a construir uma casa no topo de uma gameleira. Dias depois, levou um susto numa madrugada quando notou que havia um animal pressionando as patas contra a lateral da casinha. Cuidadoso, se aproximou e viu que era a onça que o visitou em outra ocasião.
Segundo relato de Arminda, Saru saltou da árvore e seguiu o animal até uma área dominada por cedros, ipês e aroeiras, onde árvores menores ofereciam muitos frutos desconhecidos. A onça a quem Calado deu o nome de Sophia, em homenagem à irmã, conviveu com ele por mais de 15 anos. Por volta de 1914, um pequeno grupo de invasores que chegou à região, provavelmente vindo do estado de São Paulo, para avaliar a qualidade do solo, matou Sophia e Toriba, um de seus filhos, a tiros. Os dois brincavam às margens de um riacho.
Assim que ouviu um estampido, Calado atravessou até o local do ataque e observou os quatro homens armados se aproximando de seus amigos mortos. Um deles sorriu, cutucou a onça com a bota e comemorou: “Nunca imaginei que seria tão fácil matar um bicho selvagem no seu próprio habitat.” Saru guardou para si a fúria que o dominou naquele momento e esperou anoitecer.
Quando os quatro montaram acampamento e se reuniram em torno de uma fogueira, ele assistiu um dos homens ir até uma mina buscar água. Assim que o sujeito retornou, Calado atirou castanhas em várias direções. Também imitou rugidos de onça e escalou a árvore mais próxima. Preocupados, recolheram suas armas e tentaram localizar a origem do barulho, se afastando do acampamento. Silencioso, Calado saltou perto da fogueira, abriu cada cantil e dentro despejou “sono de abaité”, um veneno de origem indígena baseado em batracotoxina, uma secreção extraída das costas de rãs e besouros.
Pela manhã, ao retornar ao acampamento, os quatro invasores tinham tomado a água do cantil e estavam mortos. Semanas depois, outros homens chegaram ao local procurando os desaparecidos. No entanto, concluíram que as mortes foram uma consequência natural da falta de atenção dos desbravadores que talvez tivessem comido frutos venenosos.
Ainda abalado com a morte de Sophia e Toriba, Saru enterrou os dois no ponto mais elevado da floresta, onde frequentemente os animais menores passavam o dia brincando. A cerimônia atraiu a atenção dos outros descendentes da onça-pintada. Ele também notou a presença de antas, pacas, quatis, veados, tatus, jaguatiricas, lobos-guará, gatos-do-mato, bugios e aves. Coincidentemente ou não, parecia uma reunião.
Embora tenha vivido mais alguns anos sem contato com seres humanos, Calado sabia que isso não duraria para sempre. Cerca de dez anos depois, ouviu barulhos cada vez mais frequentes de pessoas abrindo picadões. “Pra ele, o mais importante era que ninguém interferisse na vida selvagem, não matasse os animais. A floresta ainda era grande e ele reconhecia que era possível viver longe da civilização, mesmo com a chegada dos desbravadores”, assinala Arminda.
Desde a morte de Sophia e Toriba, Saru se colocou na posição de guardião da mata nativa de uma grande área onde surgiriam as cidades de Paranavaí e Alto Paraná. Os remanescentes dos índios caiuá nada poderiam fazer a respeito, já que a maioria vivia a mais de 100 quilômetros de distância, próximos do Rio Paraná e do Rio Paranapanema. Beirando os 50 anos, Calado pouco sofreu com a ação do tempo. Facilmente poderia ser confundido com um homem de pouco mais de 30 anos.
Corria pela floresta com extrema agilidade e se exercitava todos os dias sobre as árvores – tanto que ao longe era facilmente confundido com um animal. Vivia como alguém que nasceu e cresceu em território selvagem. Em contraponto, acreditava que quando uma vida era ceifada por motivo banal cabia a ele fazer justiça. E foi assim que Calado puniu entre as décadas de 1920 e 1950 muitos caçadores que invadiram a mata noroestina com a intenção de matar onças por diversão ou para extrair o couro que seria vendido a algum curtume. “Ele tinha o hábito de se abrigar dentro de tocos de árvores, de onde ele observava a movimentação dos invasores”, assegura a sobrinha-neta.
Quando uma jovem onça-pintada foi morta às margens de um córrego no início da década de 1930, onde surgiria o Jardim Ouro Branco, em Paranavaí, Calado extraiu-lhe as garras e as fixou em um tipo grosso de luva confeccionada à mão. Antes de usá-la, as deixou por uma noite embebidas no “sono de abaité”. De manhã, Saru se ajoelhou no chão, e diante do sol nascente fez uma oração à natureza, se preparando para cobrar pelo sangue derramado. De longe, reconhecia a intenção dos homens, se eram inimigos ou não.
Ele justificaria mais tarde que os caçadores traziam uma energia pesada e sufocante que ameaçava o equilíbrio da vida e a vitalidade soberana da floresta. “Meu tio-avô matou mais de 20 caçadores. Os corpos eram abandonados nos carreadores para que a família tivesse direito de enterrar o falecido. Ninguém nunca desconfiou que aquelas mortes pudessem ser causadas por um homem. Achavam que era coisa de onça mesmo”, narra Arminda Gervasi.
Guardião da floresta, Calado encarava como um ritual de justiça os matadores de onças sentirem a própria carne sendo penetrada pelas garras dos felinos que mataram. Entretanto, ao contrário do que imaginavam na época, as mortes eram causadas pelo “sono de abaité” e não pelos golpes, mais simbólicos do que fatais. Caçadores temidos em diversas regiões do Brasil sucumbiram diante das artimanhas de Saru.
Em 1937, Sophia, irmã de Maurício, viajou à Fazenda Brasileira com o marido para comprar uma propriedade rural. Enquanto se distraía caminhando por um carreador, ela observou ao longe um homem nadando em uma lagoa de águas cristalinas. Curiosa, se afastou do marido que conversava com um corretor de imóveis e andou em direção ao desconhecido. “Quer que pegue suas roupas? Onde elas estão?”, questionou Sophia. Quando o homem que serpenteava entre os peixes virou o rosto em sua direção, ela caiu de joelhos no chão, com as mãos tapando o nariz e a boca. Sophia chorou como uma criança ao notar nos olhos expressivos daquele homem de 62 anos o olhar vívido do irmão que partiu com 19 anos.
Sem dúvida, Maurício tinha envelhecido, mas ainda parecia mais jovem que Sophia. Calado ou Saru, que abandonou a identidade de Maurício, não conseguiu articular palavra. Ficou imóvel, com as mãos trêmulas enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto já molhado. Ao ver que não havia roupas por perto, Sophia correu até o carro do marido, abriu uma mala e pegou uma calça, uma camisa e um par de sapatos. Então sugeriu que Maurício os vestisse.
Apesar da falta de hábito, ele concordou com o pedido da irmã. Saru, que então mais do que nunca justificava o nome dado pelos índios, passou uma semana com Sophia. Somente no terceiro dia começou a conversar normalmente e contou-lhe tudo que viveu desde que deixou Paranaguá em 1894. Sophia, mais chorosa do que falante, ouviu tudo atentamente. Não cobrou notícias do irmão, pois sabia que ele tinha seus próprios motivos. Maurício foi tomado por uma confusão de sentimentos ao saber que seus pais adoeceram e faleceram em 1931 em decorrência de pneumonia.
Também foi Sophia quem informou que as falsas provas de que ele contribuiu com os maragatos foram plantadas por um antigo amigo chamado Arthur. Apaixonado pela jovem Teodora que sonhava em se casar com Maurício, o rapaz decidiu afastá-lo para sempre de sua amada, mesmo sabendo que Maurício não tinha intenção alguma de ser mais do que amigo da moça, muito menos desposá-la. “Essa informação não teve grande efeito sobre ele, que já não se importava tanto com o mundo civilizado. Somente as memórias familiares o arrebataram de forma surpreendente”, esclarece Arminda.
Sophia e o marido tentaram convencer Maurício a se mudar para Curitiba, onde ela vivia há mais de 20 anos. Ele declinou a oferta, a abraçou e argumentou que nada mais o interessava no mundo dos humanos. Antes de partir, Sophia levou as duas mãos ao rosto do irmão e recitou um trecho de “O Espelho”, de Machado de Assis, um dos contos preferidos de Maurício:
“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja.”
Os dois sorriram, se despediram e Maurício correu em direção à floresta, onde, antes de desaparecer completamente, cumpriu um dos seus rituais mais sagrados – se livrou das roupas, o que significava se despir da civilização. Sophia e o marido não compraram nenhuma fazenda em Paranavaí, mas retornaram mais vezes procurando em vão o paradeiro de Maurício tornado Calado.
Entre as décadas de 1960 e 1980, alguns pioneiros e moradores de Paranavaí e Alto Paraná juraram tê-lo visto caminhando pelas estradas da Fazenda Ipiranga e Água do Cedro, além de áreas de mata do Jardim Ouro Branco e Jardim São Jorge. “Uma vez, voltando de viagem, parei no Cemitério de Alto Paraná pra dormir. Tenho certeza de que o vi atravessando tranquilamente por trás das árvores. Isso foi em 1976”, confidencia o pioneiro Júlio Galhardo.
O aposentado Amâncio Bonavero também afirma que viu Calado na área rural de Paranavaí em 1993, com base na descrição que lhe passaram nas décadas anteriores. Se o sujeito correndo pelo campo realmente era Saru, isso significa que ele estava vivo e saudável aos 118 anos. “Tem gente que acredita que o Calado ainda não morreu. Eu sou um desses. Acho que não o vemos mais porque hoje, mesmo de longe, ele ainda evita contato com pessoas. Quem sabe esse seja o motivo da sua longevidade”, deduz Bonavero sorrindo.
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Enquanto o ônibus não chega
A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena
Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.
Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.
Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.
Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.
A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.
Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.
Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.
Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.
Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.
Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.
Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”
Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.
“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.
Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.
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O legado de Wiegando Reinke
Tradicional Banca do Wiegando foi fundada em Paranavaí em 1957
Fundada em 1957, na Rua Marechal Cândido Rondon, logo nos primeiros anos a Banca do Wiegando se consolidou como o mais tradicional ponto de encontro dos leitores de jornais e revistas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. No início a banca oferecia também o serviço de engraxataria, bastante atrativo em uma época que a cidade não tinha malha viária.
No final da década de 1950, Wiegando Reinke já desenvolvia com destreza o trabalho de disseminar a informação em Paranavaí. Gostava tanto do que fazia que dedicou quase 45 anos à banca, seguindo uma frequência litúrgica. O tempo permitiu que Wiegando fizesse muitos amigos e testemunhasse o surgimento e o desaparecimento de muitos veículos de comunicação.
Só se afastou do trabalho em 2002, por problemas de saúde, deixando a administração do negócio a cargo da esposa Zenaide Elias de Almeida. Mesmo assim, até 2007, a intensa nostalgia ainda o estimulava a comparecer na banca pelo menos uma vez por semana. Por tal esmero e amor à profissão, é difícil encontrar algum morador de Paranavaí que nunca tenha visto ou ouvido falar do Seu Wiegando, senhor esguio de fala plácida e trejeitos peculiares que fundou a mais icônica banca de jornais e revistas da cidade.
Início
“A banca ficava a 50 metros daqui. Era uma casinha de madeira”, contou Wiegando Reinke. À época, como Paranavaí não tinha asfalto, os homens passavam na banca para engraxar os sapatos aos sábados, antes de irem aos bailes. “No domingo era a mesma coisa, vinham aqui porque iam à missa ou passear com a namorada”, relembrou Wiegando sorrindo.
O serviço era oferecido das 8h às 23h e estimulava a venda de jornais e revistas. “Enquanto o engraxate trabalhava, o cliente precisava de algo para passar o tempo. Então era possível lucrar com as duas atividades”, afirmou. Após dois anos, a Banca do Wiegando conquistou bastante popularidade na região, atraindo toda semana clientes de Tamboara, Santa Isabel do Ivaí, Loanda, Paraíso do Norte e muitas outras cidades. Modesto, Reinke justificou que a freguesia era consequência de Paranavaí ser um polo regional.
Dificuldades
No início, a banca enfrentou dificuldades porque Paranavaí era uma cidade de poucos leitores. “Em torno de 20 pessoas passavam todos os dias aqui, mas poucos compravam. Além disso, se comercializava poucos jornais. Tínhamos apenas umas quatro ou cinco revistas diferentes. Hoje a diversidade é muito maior. Qualquer banca tem pelo menos 50 títulos de revistas”, comparou Wiegando. Outro problema era o analfabetismo local que correspondia a mais da metade da população.
Até a década de 1960, a maior parte dos fregueses da banca eram mecânicos, funcionários de lojas e empresários. “Já era um ponto tradicional para quem gostava de ler”, enfatizou o comerciante. Em 1980, a difusão da informação chegou a um novo patamar, aumentando o interesse por jornais e revistas. “A freguesia já não se restringia mais a quem ocupava um cargo considerado importante dentro da sociedade”, explicou Wiegando que lucrou muito com a venda de periódicos hoje extintos. “A revista que me proporcionou maior faturamento foi a ‘Ilusão’ do final da década de 1970”, revelou.
Jornais e revistas chegavam após quatro dias
Natural de Jaraguá do Sul, o catarinense Wiegando Reinke chegou ao Paraná em 1949. Antes de se mudar para Paranavaí em 1954, viveu em Londrina e em Alto Paraná. “Vim pra cá para trabalhar em uma livraria. Era um bom comércio, mas depois de três anos foi fechado”, relatou.
Desempregado, o ex-vendedor decidiu usar as economias para montar a Banca do Wiegando. O primeiro distribuidor de Reinke foi um colega que trazia jornais e revistas de Londrina. “Recebia diretamente aqui. Foi nesse período que o negócio deslanchou”, afirmou.
Algumas facilidades da época contribuíram para a evolução do negócio. Wiegando não precisava efetuar o pagamento antes de receber a mercadoria, ao contrário de hoje. Porém a maior dificuldade era a entrega das encomendas. “Quando chovia, levava até quatro dias para recebermos jornais e as revistas. Às vezes a situação era tão crítica que só avião conseguia chegar aqui, então tinha de ir buscar no aeroporto. Foi assim até 1959”, garantiu.
Muita gente tentou convencer Wiegando Reinke a mudar a banca de local para conquistar mais fregueses, só que ele insistiu em continuar no mesmo ponto, justificando que perto do estabelecimento havia o Cine Theatro Paramounth e alguns hotéis. “Sempre vinham comprar algo quando terminavam de assistir ao filme”, reiterou o pioneiro mantendo o olhar disperso.
Reinke destacou que jamais se arrependeu de manter a banca na Rua Marechal Cândido Rondon, inclusive fez questão de ressaltar o erro daqueles que o tentaram convencer do contrário. “Enquanto o movimento no comércio não passa das 18h, na minha banca já se estendia até as 19h30”, argumentou.
“Tudo que tenho foi graças à banca”
O período mais lucrativo da Banca do Wiegando foi de 1980 até 1990, quando a maior parte dos clientes tinha faixa etária entre 25 e 30 anos. “A boa freguesia me permitiu construir minha casa e o prédio da banca, além de me dar condições para comprar um carro novo. Tudo que tenho foi graças à banca. Além disso, fiz amizade com a cidade inteira. Conheço muita gente”, afirmou o comerciante, lembrando que a queda no número de fregueses só se acentuou a partir de 1997.
O fluxo de pessoas circulando diariamente pela banca ainda é grande, mas nem todos levam algum exemplar para casa. A Banca do Wiegando se mantém na ativa por causa dos fregueses mais tradicionais. Alguns buscam jornais e revistas na banca há mais de 50 anos. Na opinião de Reinke, a emergência de novas tecnologias é responsável pela redução do interesse pela leitura impressa.
Últimos anos
Desde 2002, quando Wiegando Reinke ficou impossibilitado de trabalhar em decorrência de problemas de saúde, Zenaide Elias de Almeida assumiu a responsabilidade de comandar a banca. “Dona Zenaide”, como é mais conhecida, começou a auxiliar o marido no final da década de 1980, assim que Wiegando teve o primeiro problema cardíaco. “Nossos filhos eram pequenos, então só a partir de 1988 pude ajudar ele”, assinalou.
Zenaide trabalha em parceria com Neusa Gonçalves, funcionária da Banca do Wiegando desde julho de 1991. “Já faz tempo que nós duas cuidamos de tudo aqui”, conta Neusa. O horário de funcionamento da banca é das 7h15 às 19h30. “Só há horário diferenciado aos sábados, domingos e feriados, quando abrimos às 7h15 e fechamos às 16h”, frisou Zenaide.
Para quem trabalha no comércio de jornais e revistas não há diferença entre a segunda-feira e o domingo, por exemplo. “Esse é o ponto negativo da profissão. Não existe feriado para quem é do ramo”, destacou Wiegando, acrescentando que apesar de tudo o prazer do trabalho amortecia as dificuldades.
Curiosidade
Wiegando Reinke nasceu em 7 de agosto de 1926 e chegou a Paranavaí em 9 de janeiro de 1954.
Saiba Mais
Em 2007, tive a oportunidade de conversar com o pioneiro Wiegando Reinke, que em decorrência de graves problemas de saúde faleceu em 20 de junho de 2008. O longo e prazeroso diálogo foi lapidado e o resultado é a reportagem acima que oferece uma díspar perspectiva de quem amadureceu na cidade que adotou como lar. Em síntese, uma homenagem ao primeiro homem que trouxe a Paranavaí a informação por meio da imprensa escrita, de âmbito local, regional, estadual, nacional e internacional.
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Água dos Esquecidos
“Imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo”
Há muito tempo, existiu uma colônia rural entre Alto Paraná e Paranavaí que ficou conhecida como Água dos Esquecidos. Ainda na infância me perguntei a origem desse nome que mais tarde se perdeu na minha memória, assim como estradas, rotas e trilhas de um passado que conheci através de relatos das gerações anteriores.
Quando criança até sonhava com a Água dos Esquecidos; a idealizava. Já adulto, imaginava um ambiente digno do realismo mágico, onde as pessoas pareciam dispersas no tempo e no espaço, alheias ao mundo civilizado e ao progresso, reféns da ingenuidade e do desconhecimento benevolente. Após muitos anos a curiosidade voltou à tona com a chegada de duas tias-avós e a narração de histórias sobre a vida campesina nos anos 1950. Fiquei tão instigado que quis procurar o tão falado lugar onde frondosas árvores carregadas de lichia se inclinam sobre as grandes e velhas moradas de madeira, ornamentando fachadas e janelas com tons e matizes de amarelo, laranja e vermelho, além de um bálsamo castiço e mélico.
Então saí de casa em um domingo depois do almoço. No incerto caminho para a Água dos Esquecidos havia muita lama, poças d’água com mais de meio metro de altura e árvores tombadas pela intempérie da semana anterior. “Sei não, sinhô, mas pra gente isso é sortilégio. Óia a marca no tronco d’árve, é serviço pra num deixa ninguém passa”, disse um lavrador das imediações, justificando a queda de uma árvore aparentemente saudável com algumas grandes inscrições no tronco. O rapaz de fala frugal, que talvez por costume, ansiedade ou timidez tenha o hábito de suprimir sílabas, trajava uma velha camiseta de flanela, uma calça de estopa e um par de sandálias feitas de vegetais. O agradeci, me despedi e fiz o contorno pelo carreador de uma propriedade onde o caseiro, um senhor idoso, acenou e consentiu que eu continuasse o trajeto até a próxima saída.
Mais adiante, percorri 15 quilômetros de estrada estreita e irregular, quando fui surpreendido por duas garotinhas de oito ou nove anos que passaram correndo na minha frente. Usavam uniforme escolar típico de um passado longínquo, com listras em preto e branco e avental com peitoril bege. Aproveitei para descer do carro e pedir informações. Me olharam, sorriram com brevidade e atravessaram uma cerca de arame farpado. Corri alguns metros, mas logo desapareceram entre os laranjais. Continuei dirigindo até chegar a uma fazenda que vi em uma foto familiar de 13 de junho de 1957. Como saía muita fumaça da chaminé, concluí que havia pessoas morando no local. Me aproximei, bati palmas e fui recepcionado por um homem branco de estatura baixa, olhos azuis, cabelos ralos, poucos dentes, pele enrugada e rosto bastante manchado pela irrestrita exposição ao sol. “Vamo cheganu, Jão! Tô passanu o café!”, falou o anfitrião antes de dizer o próprio nome ou me interpelar.
Andei por um trilho enlameado e atravessei uma porteira. Assisti galinhas correndo em círculo em torno de um pastor alemão que raleava a grama com o focinho. A poucos metros dali, uma porquinha circulava livremente carregando no dorso um sabiá-laranjeira bastante confortável lhe amaciando o couro com os pés. Deixando as distrações de lado, entrei na casa e, enquanto eu o esperava retornar do quarto, observei pela janela alguns cômodos. Estava tudo exatamente como vi nas inúmeras fotos de 1957 a 1963, parte de um acervo familiar. Os móveis coloniais, a decoração, nada mudou; nem a posição do sofá. Até o peso da porta da sala que dava acesso ao restante da casa era o mesmo – um lírio almofadado e descorado. Aquilo me intrigou sobremaneira e não resisti em perguntar como conseguiu a proeza de conservar um cenário tão histórico. Ele não entendeu e riu, levando as mãos finas e enrugadas ao rosto. “Que cê tá falanu aí, Jão? A gente conversou inda ontionti”, comentou num tom de voz afável e fragilizado. Aceitei a xícara de café amargo e notei um pequeno moedor de café colonial e azul, com a pintura já opaca e parcialmente descascada.
O café aromatizava a sala com tanto esplendor que tive a impressão de estar próximo de uma torrefadora. Nas primeiras bebericadas senti um sutil gosto de ferrugem e tentei disfarçar. O anfitrião percebeu e argumentou: “Num tá muito bão, né? É que esse inda é dos último pé de café e olha que só sobreviveu pela amargura de existi. Num sobrô mai nada.” Aproveitando a quietude, voltei minha atenção ao fogão à lenha, onde as chamas do braseiro fulguravam inadvertidamente. Em suas formas sinuosas, o fogo resplandecia numa força sempiterna – ora sutil, ora insipiente. Talvez se considerasse autossuficiente, não reconhecendo que sua existência dependia da lenha. Então me recordei da história de amor vivida por Joazino. Ecoava na minha mente com a intensidade do cheiro da panelinha com um pouco de arroz carijó que contrastava com o bule de café e o doce de abóbora e gengibre recém-embalado em folhas de bananeira – todos bem dispostos sobre o fogão à lenha. Só me dispersei por um momento, quando comentou como era difícil acreditar que eu ainda estava vivo depois do que fiz.
Me deu um tapa vaporoso nas costas e virou o rosto para enxugar com a manga da camisa cinza e surrada as lágrimas que escorriam pelas maçãs delgadas do rosto. “Tô feliz q cê tá qui! Inda onti cê tava caído sem vida com os zóio virado do avesso. Agora me fala por que tomô quele veneno?”, indagou Joazino Tibicuá. Constrangido, sem saber como reagir, dei um sorriso pejoso e pedi para mudar de assunto. A conversa seguiu por várias direções, se estendeu por horas, e pouco falei diante de um anfitrião ansioso por exteriorizar tantas emoções, sentimentos e ideias. Evocando a relatos ouvidos na adolescência, lembrei que Joazino teve só uma namorada, de nome Margarida. O relacionamento dos dois era baseado em olhares e frases curtas, sempre assistido por algum parente. O primeiro toque de mão levou semanas. Meses depois veio o primeiro abraço. Durou alguns segundos, o suficiente para o jovem Tibicuá jamais esquecer o aroma adocicado de Cashmere Bouquet que Margarida trazia no corpo.
A relação não foi longe por pressão da mãe de Joazino que não aceitava dividir o filho com outra mulher. A possibilidade dele deixá-la a irritava a ponto dela simular enfermidades e se automutilar. Depois do abraço, nunca mais teve notícias da primeira namorada. Ainda assim prometeu a si mesmo que não desistiria da companheira. Aguardaria o falecimento da mãe para não contrariá-la. Embora tenha dado à luz a Joazino em idade avançada, a mulher viveu até os 113 anos, tempo o suficiente para esvair a mocidade do último dos Tibicuá; agora um homem de corpo miúdo, fustigado pela vida, pelo tempo e por uma credulidade encontrada somente em crianças. A tão sonhada liberdade amorosa foi transformada numa eterna lembrança. Joazino se apegou a ela com tanto paroxismo que se condicionou a encarar o passado como realidade presente, ignorando anos, décadas e as transformações do mundo.
Quando pedi licença para pegar água em um filtro de barro escuro, percorri todo o interior da residência, inclusive o banheiro, e percebi que não havia espelho nem energia elétrica. Mais tarde, Joazino pareceu aliviado e satisfeito com a prosa. Nos despedimos sem que eu lhe revelasse que me confundiu com o seu melhor amigo João, meu tio-avô falecido em 1962. Também omiti que a moça com quem um dia pretendia se casar faleceu há mais de 25 anos, vitimada por pneumonia. Comovido pela situação daquele homem de quase 80 anos, não vi senso de justiça em tirar-lhe o brilho e a jovialidade dos olhos, o privando dos prazeres, mesmo que umbráticos, de sonhar acordado. O amor tornado platônico talvez tenha evitado que seus olhos assumissem um aspecto cristalino opaco, típico dos que já não aspiram nada da vida e aguardam apenas o último suspiro.
Curiosidade
O último pé de café ao qual Joazino Tibicuá se refere foi cortado no final dos anos 1970.
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